O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
|
18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

Tags:

Esportes

path
esportes

Meio Ambiente

path
meio-ambiente
A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
por
Marcello Toledo
|
18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

Tags:
Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
por
Catarina Pace
|
05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

Tags:
Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
|
18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

Tags:

Meio Ambiente

path
meio-ambiente
Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
|
04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

Tags:
Moradores, turistas, organizações e especialistas ajudam a explicar o porque situações como a que ocorreu na cidade geram uma alta demanda de doações a curto prazo
por
Larissa Soler e Victória Toral
|
22/06/2023

Barra do Sahy. Pescadores desembarcando mantimentos.
Pescadores desembarcando mantimentos na Barra do Sahy

 

As ações solidárias destinadas à região de São Sebastião, desapareceram junto com a chuva que devastou o litoral norte de São Paulo há três meses e deixou 1.090 pessoas desalojadas, 1.126 desabrigadas e 65 mortas. 

A Diretora do Fundo Social de São Sebastião, Rita Elizabeth informou que 13.500 toneladas de doações foram feitas à cidade depois das chuvas no final de semana do Carnaval. Empresas, como as Casas Bahia e a Sabesp, e órgãos governamentais, como a Receita Federal, doaram juntas mais de 90 toneladas de produtos. Uma empresa de refrigerante em conjunto com a ONG Geração Falcão destinou cerca de R$100 mil para auxiliar as vítimas. 

Porém, semanas depois do ocorrido, o Fundo Social da cidade, já estava com o estoque de doações praticamente zerado, como conta a diretora. Moradores que foram atingidos pela tragédia, e ONGs que levantaram arrecadações também sentiram a redução. 

Organizações que se voluntariaram e levaram doações para os atingidos pelas chuvas no litoral conseguiram coletar altos números de donativos. Como a Feito Formiguinhas e a Formiguinha em Ação que juntas levaram mais de 14 toneladas de produtos, entre elas cestas básicas, produtos de limpeza, de higiene pessoal, água e ração. 

Segundo Elis Pedroso, representante da ONG Feito Formiguinhas, as doações no começo foram enormes, mas, com o passar do tempo, a quantidade de produtos doados sofreu uma redução:"Todas as vezes que existe alguma coisa de comoção de massa, há uma entrada maior de doações. O complexo é que dura muito pouco, porque passou a mídia [noticiando a tragédia], é como se nada tivesse acontecido. Em 15 dias já não se tinha mais tantas doações.”

Sensação também presente para a organização Formiguinhas em Ação. Alex Cahli, porta-voz do local, conta: “Nos momentos iniciais de uma tragédia, como a que ocorreu no meio de fevereiro, os números de doações são altos, mas em seguida com a “volta da rotina”, há uma queda”.

A antropóloga explica que o momento inicial da catástrofe é marcado pela comoção das pessoas de fora do contexto. O sentimento de sensibilidade com a situação emergencial faz com que os não envolvidos sintam que precisam agir diante do cenário de destruição e perda e com isso, entram as doações: “É importante lembrar que essa onda de doações é uma onda inicial e a comoção não chega a mobilizar as pessoas para agirem em relação às questões mais estruturais da catástrofe.” 

O impacto de agir no início é causado muito por aquilo que está imediatamente acessível aos nossos sentidos e essas pessoas distantes da tragédia, recebem essa informação de forma sensacionalista e se inflamam e acreditam que as doações serão o suficiente. O que traz depois da contribuição um "alívio de consciência" e permite que essas pessoas possam voltar a viver suas vidas normalmente.

A identificação com aqueles que sofreram com os 682 mm de água, foi o que levou Márcia Mota a ajudar: “Tenho uma casa na cidade há mais ou menos vinte anos e conheço bem a região desde o final da década de 70. Frequento lá há muitos anos, antes de ter a estrada, inclusive antes das ocupações, em áreas de risco”.

A moradora não estava em sua residência em Juquehy quando tudo ocorreu, mas assim que soube que a casa tinha condições de receber pessoas liberou o local para quem precisava. Marcia, ainda, conta do cenário que encontrou quando chegou no litoral norte: "Lembro que a cena era de guerra. Eram carros do exército, móveis na rua, muita lama, nem parecia que era o mesmo lugar”.

Já a estudante, Letícia Cali, viajou para o sertão de Camburi, São Sebastião, para aproveitar o feriado e vivenciou a tragédia. A jovem e mais quatro amigas acabaram ficando presas na cidade. Cali conta, ainda, que vivenciou o aumento nos preços dos produtos, principalmente em supermercados, mas nada que chegasse a ser valores absurdos, como da água que teve repercussões nos noticiários. 

A estudante também presenciou a "normalidade" que algumas pessoas levaram a situação: "Na praia da baleia, onde estive hospedada, logo na segunda-feira, após as fortes chuvas, vi diversas pessoas passeando na orla da praia como se nada tivesse acontecido." 

O psicólogo social Pedro Luz, explica quanto essa apatia de uma parte pequena da população, se faz presente nesses momentos de tragédia: "Isso diz respeito, a alguns valores que a nossa sociedade cultua, como os valores da competitividade, da meritocracia e de uma individualidade.” Ele ainda ressalta que isso é causado muito por conta da visão do mundo de consumo. 

Escolas e outras estruturas, como restaurantes, serviram, no momento pós tragédia, como locais de abrigos para os atingidos pela chuva, de preparo de comidas e de pontos de coleta de doações. Como o caso da Escola Municipal Branca de Neve, que antes servia para a formação de crianças entre 3 a 5 anos, virou abrigo para oitenta famílias que perderam tudo e tiveram suas casas interditadas. 

Mesmo após quase três meses da tragédia, a vida na região ainda não se ajustou. Algumas pessoas voltaram para suas casas, mesmo com o local classificado como área de risco pela Defesa Civil, pois ainda não tem para onde ir. Os olhos, dos que estão distantes de São Sebastião, deixaram de estar voltados para a região e a crença nas ações solidárias sofreram drásticas reduções.  

O psicólogo faz um alerta sobre esse aspecto do ser humano que precisa ser trabalhado: "Quando cessam as informações e há a diminuição do afeto e da empatia provocados, as pessoas dão continuidade a sua vida. Porque é difícil ter a concepção que o sofrimento do outro é prolongado e que a ação solidária precisa ser contínua, já que a tragédia e seus efeitos vão ser posteriores ao dia, semana ou mês em que ocorreu”.  

Tags:

Comportamento

path
comportamento

Meio Ambiente

path
meio-ambiente
Como mulheres da comunidade LGBTQIA+ estão sujeitas a maiores possibilidades de homicídio
por
Victor Oliveira Trovão
|
20/06/2023

No último domingo (14/05) comemorou-se o Dia das Mães por todo Brasil. A data foi oficializada no dia 5 de maio de 1932 quando o presidente Getúlio Vargas emitiu o Decreto nº 21.366. A partir de então, anualmente, o segundo domingo de maio foi dedicado ao amor materno. Apesar do dia celebrar todas as mães brasileiras, elas nunca deixaram de ser assassinadas, independentemente da existência desse dia.

De acordo com dados do Monitor da Violência e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2022, o Brasil registrou 1.410 casos de feminicídio. Em média, uma mulher é assassinada a cada 6 horas no País por ser mulher. Com diversas possibilidades de configuração, o crime continua a acontecer majoritariamente no lugar em que a vítima deveria se sentir segura, em sua própria casa. O quadro piora a partir do momento em que se enxerga a subnotificação no país, à medida que muitas mulheres são vítimas de feminicídio, mas os casos não chegam a ser denunciados.

Em entrevista, a delegada Dannyella Gomes Pinheiro, da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, explicou a configuração do crime e o papel das delegacias especializadas: “Feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, é o homicídio praticado em razão do gênero feminino. A Delegacia de Defesa da Mulher cuida de questões relacionadas a violência doméstica, crimes sexuais e crimes relacionados a crianças e adolescentes também, como maus-tratos e crimes sexuais. Normalmente e infelizmente, a maior probabilidade de uma mulher ser vítima de homicídio no Brasil, estatisticamente falando, é dentro de casa”.

Ainda que os números sejam alarmantes e cada vez mais as mulheres dentro de casa como os membros familiares estejam denunciando e buscando por medidas protetivas, infelizmente, nem todas as mulheres conseguem se manifestar nas delegacias antes de serem mortas dado o contexto em que se insere. “São inúmeros os casos que levam uma mulher a não fazer uma denúncia e não registrar a ocorrência. Temos dependência emocional, dependência financeira, constrangimento, vergonha, culpabilização e julgamento social”, expõe Dannyella Pinheiro.

-          Novas figuras maternas e inéditas configurações de feminicídio

Dada a luta pela vida ao longo de anos, as minorias da sociedade brasileira gradativamente estão conseguindo conquistar seus direitos, dentre eles, o das pessoas LGBTQIA + se tornarem mães ou pais. Essa transformação contribuiu para que a maternidade ganhasse outros indivíduos como mulheres LBT, lésbicas, bissexuais e transsexuais. Ao se tornarem mães, elas enfrentaram o julgamento e a discriminação constante da sociedade, o que acentuou a discriminação contra as mulheres, por serem mulheres, pela sexualidade e pelos seus respectivos formatos de família.

A vítima passa por discriminações sobrepostas, por vezes, ocasionando no assassinato do indivíduo motivado pela misoginia e a LGBTQIA+ fobia. “Isso é o que a gente chama de interseccionalidade. A pessoa ela não é só uma coisa, a pessoa pode ser mulher, ela pode ser uma mulher lésbica, pode ser uma mulher lésbica, periférica, pode ser uma mulher negra, pode ser uma mulher trans”, relata Amanda Souto, advogada e vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB. A partir do momento em que se adiciona marcadoras, também se adicionam possibilidades de discriminações e opressões diferentes.

De acordo com informações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre a vulnerabilidade da população LGBT a atos de violência sexual ou familiar, foi constatado que em todo o continente americano, as mulheres LBT correm o risco particular de violência devido à misoginia e à desigualdade de gênero na sociedade.

Por outro lado, entre janeiro de 2013 e 31 de março de 2014, a Comissão monitorou a violência contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex (LGBTI) na América. No Registro de Violência contaram no total 594 assassinatos de pessoas da comunidade, ou percebidas assim, e 176 vítimas de ataques graves, embora não letais. Desse total, 55 foram contra mulheres lésbicas, ou percebidas como tais.

Ao passarem por situações discriminatórias ou agressões, as vítimas se sentem extremamente desconfortáveis em denunciar dada a ausência de políticas públicas que protejam essa população e as negligências presentes nos próprios órgãos de acolhimento. Atualmente, as Delegacias de Defesa da Mulher, ainda que muito tardiamente, trabalham para o atendimento dessas pessoas. 

A incidência de casos é infelizmente maior em mulheres transsexuais e travestis. “A mulher que é trans, ela é mulher. Ela é atendida na Delegacia de Defesa da Mulher sem nenhum tipo de diferenciação. Eventualmente, a qualificadora pode ser acrescida por conta do preconceito. Ser mulher trans ou ser cisgênero não muda nada. As mulheres trans sofrem socialmente, já enfrentam um preconceito maior dentro da sociedade, mas perante a lei são tratadas de maneira idêntica”, expõe a delegada.

Nunca é cedo demais para denunciar. À medida que os relacionamentos, sejam eles amorosos ou sociais passam por ameaças ou agressões, sejam elas físicas ou verbais, uma denúncia salva vidas, famílias e histórias. “É muito importante ter esse sentimento de acolhimento da vítima para ela não se sentir julgada, carregar uma culpa, não se sentir constrangida, e ter coragem de relatar e registrar a ocorrência”, aconselha a delegada da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo.

-          Assassinatos: Feminicídios + LGBTQIA+fobia

Com base nos dados da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras (10% da população) se identificam como LGBTQIA +. Delas, 92,5% contaram sobre o aumento da violência contra sua comunidade. Os dados da violência foram obtidos a partir da pesquisa da organização de mídia Gênero e Número, em parceria com a Fundação Ford.

Ainda sobre a subnotificação, esse desafio impacta na vida de diversas minorias, e consequentemente, a obtenção de dados para análises que por fim resultam em medidas. Por hora, alguns estados como o Rio de Janeiro produzem relatórios sobre violência motivada por LGBTfobia, mas são exceções e eles não existem em nível federal. Portanto, a melhor alternativa passa a ser recorrer ao trabalho de organizações não-governamentais para obter dados sobre LGBTfobia no Brasil.

Em abril, o presidente Lula adotou novas medidas a fim de combater crimes contra as mulheres. Ele sancionou o funcionamento 24 horas das delegacias de mulher, uma proposta que foi aprovada em março deste ano que visa com que as mulheres sejam atendidas por mulheres, até mesmo onde não há delegacias específicas. Estes novos projetos trabalham pela segurança e vida das mulheres ao apresentar perspectivas futuras melhores que o cenário atual.

-          Adoção por pessoas LGBTQIA+ e preconceito

As mães sempre passaram pelos desafios mais inacreditáveis para criar seus filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Com o desenvolvimento dos direitos humanos e a liberdade para serem quem são, cada vez mais os estereótipos sobre o que é ser mães são quebrados. Desde a década de 90 casais LGBTs começaram a adotar filhos, um comportamento que foi altamente criticado e continua a ser discriminado até o momento.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção individual de crianças e adolescentes por pessoa lésbica, gay, bissexual ou transgênero é possível no Brasil, levando em conta que a lei vigente não define quaisquer restrições quanto a orientação sexual ou a identidade de gênero do adotante. Por outro lado, desde uma votação em abril de 2010 na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a adoção conjunta de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil é legal.

Ainda que a lei possibilite a adoção e técnicas de reprodução assistidas para pessoas LGBT, em especial mulheres, a tentativa de construção de uma família por vezes é abalada pela discriminação, que em alguns casos compromete com a segurança dos membros chegando ao assassinato motivado pelo ódio. Novamente, as mulheres enfrentam problemas, ao crescerem no momento que exploram suas sexualidades, a sociedade não as apoia, como a partir do momento em que se tornam mães, elas assim como seus filhos e companheiras(os) passam a enfrentar a vulnerabilidade social por serem quem são. Novos formatos de ameaça surgem, assim como novas possibilidades de feminicídio interseccionados pela LGBTfobia.

“Não faz diferença. A violência doméstica não escolhe poder aquisitivo e socioeconomicamente. Ela existe em todas as esferas. Ela atinge todas as categorias de mulheres”, conclui a delegada Dannyella Gomes.

 

 

Tags:
Um estudo informal sobre o estilo de Hunter Thompson
por
João P R Tognonato
|
19/06/2023

 

Cheguei na casa do meu advogado, cansado, melancólico, pronto para cancelar uma viagem que havíamos programado há meses.

“Você é ridículo”, ele disse, “isso precisa mudar agora”.

Pegou o notebook do outro lado da mesa, levantou a tela e ficou passando os olhos durante uns 3 minutos sem nem me dirigir uma palavra. “E então?”, perguntei cinicamente. Ele me olhou ostensivo, “Espere”, respondeu seco. Após uns 5 minutos falou, “Você tem dinheiro?”. Respondi que sim. “Então é isso. Para onde vamos? Bolívia está R$1.300”. Disse que não tinha vontade de conhecer a Bolívia. “Tá bom. E uma viagem mais urbana, tipo Buenos Aires, Uruguai?”, insistiu. Achei a ideia um pouco melhor. “Não! Esquece isso. Que tal o deserto do Atacama?”  - Hmm... já comecei a gostar mesmo da coisa. O Atacama parecia perfeito.

O que eu imaginava era uma mistura de Salvador Dalí com “Camping do Seu Daí”, na Chapada Diamantina: cenários surrealistas e uma galera “hiponga” pronta para festas clandestinas e noites curtidas em ácido. Essa mistura de natureza e orgia seria capaz de me proporcionar uma boa dose de alegria; sem contar que havia escutado sobre as reservas de lítio, uma substância antidepressiva que, no Atacama, flutuava no ar como a especiaria de Frank Herbert.

“Mas e os documentos? Preciso de passaporte, visto, essas coisas?".

“Que nada,” respondeu meu advogado, “Com qualquer papel você viaja para o Chile – RG, CNH, até com carteirinha de vacinação, eu acho. É o Mercosul, baby!

“Bom, então é isso. Vamos nessa”

Eu estava bem animado – ainda que um pouco apreensivo com o imediatismo da coisa. “Você não vai fazer merda, né?”, perguntou meu advogado antes de ir embora. “Não” – definitivamente não. Respondi para mim mesmo dirigindo-lhe um sorriso falso. E saí pela porta me sentindo um pouco estranho.

Agora era hora de se movimentar. A viagem aconteceria em dois dias. Eu não tinha mala, roupas de frio, dinheiro (havia mentido sobre o fato de ter dinheiro) ou qualquer noção básica do que iria encontrar no Atacama. Só sabia de uma coisa: tinha o desejo quase sexual de andar pelo deserto em um conversível. Então, era preciso alugar um carro – coisa que é um pouco mais complicada do que parece. Quer dizer... tirando toda a burocracia natural que envolve alugar um carro, quando isto é feito internacionalmente exige-se que você tenha um cartão de crédito internacional com 500$ na conta de garantia para qualquer merda que aconteça - e eu não tinha um cartão de crédito internacional, muito menos quinhentos dólares.

Deixei essa tarefa para meu advogado; por sorte ele conseguiria utilizar a conta de um cliente rico que lhe devia alguns favores, mas ainda havia o problema do dinheiro. Então, resolvi penhorar algumas joias que tinha em casa, itens que pretendia vender para minha aposentadoria e consegui 5 mil reais nessa brincadeira. Somados com outros 2 mil na conta daria para viajar com o mínimo de dignidade.

Achei importante também ficar atento para as questões práticas do Atacama – como o clima, o tipo de lugar (se é cidade, campo, vila, etc...) se é seguro, se é fácil de se comunicar, enfim... – tudo que dizia respeito ao dia a dia.

Descobri que o Atacama é o deserto mais seco do mundo e fica numa região denominada “Sombra da Chuva,” entre a Cordilheira dos Andes e a cordilheira da Costa, que são responsáveis pela falta de água lá. A primeira impede a chegada do ar úmido proveniente do Amazonas e a segunda se interpõe entre as correntes que chegam do pacífico. E a verdade é que em alguns lugares do Atacama, desde que as medições começaram, nunca foi registrado qualquer sinal de chuva.

Em média, ele se localiza à 2.400 metros acima do nível do mar. Não é dos locais mais altos mundo, que chegam à 4.000 metros. Mas em comparação com o brasil esse fator pode ser relevante. Só para fazer uma comparação, a cidade mais alta daqui, Campos do Jordão, no estado de São Paulo, está a mais ou menos 1.600 metros acima do nível do mar; e a cidade de São Paulo, à 760 metros.

A amplitude térmica se assemelha à dos desertos do mundo todo. Isso significa que de dia faz um sol considerável e, de noite, faz um frio intenso. No mês de maio, que é considerado o melhor par o turismo, são aproximadamente 20º durante o dia e 1º durante a noite – podendo atingir temperaturas negativas. E, no inverno, em agosto, a amplitude se mantém, mas com temperaturas que variam entre -10º e 10º.

Esse conjunto de informações já me deixou tranquilo. O deserto parecia exatamente como eu havia imaginado. Repassei o roteiro de viagens e o que aconteceria após pousarmos no Chile. Descer em Santiago. Esperar 2 horas. Voltar para o avião. Mais duas horas até Calama. Alugar o carro. Dirigir até o Hostel. Fazer compras. Se ambientar.

Com tudo resolvido no plano abstrato resolvi partir para as ações objetivas, me dirigindo ao shopping center para comprar as roupas de frio e trocar dinheiro. É preciso dizer que, na adolescência, quando tinha uns 17 anos, prometi que nunca mais entraria num shopping center sóbrio, o que me levou a tomar meia garrafa de vinho uma garrafa de cerveja antes de sair. Chegando lá, fui direto à casa de câmbio, onde a mulher me obrigou a fazer um terrível cadastro.

 “Muito bem, a cotação do peso chileno está em 0,0062 reais, quanto vai levar?”

“Ahn? Pode repetir. Acho que não entendi”

“Moço, cada real equivale a 0,0062 reais, em pesos chilenos. Vai levar quanto?”

Minha paciência se esgotou naquele instante. Já não bastava ter preenchido aquele formulário estúpido e agora me humilhava achando que contas de decimal são feitas assim, de cabeça.

“Senhora, me responda uma coisa. Os clientes que vem aqui usualmente são engenheiros, economistas ou matemáticos? Olha para a minha cara. Acha que sou o tipo de pessoa que sabe multiplicar frações? Me dê uma luz, pelo menos, uma aproximação. Senão vou achar que estou sendo enganado.”

Ela ficou constrangida.

“Não foi minha intenção, moço. Eu te ajudo, fique tranquilo”. Pegou uma calculadora e concluiu: “1.500 reais são 242 mil pesos.”

Depois deste momento elitista - que me sugou parte da energia remanescente - segui para a loja de roupas esperando um tratamento ainda pior. A ansiedade que a moça da casa de câmbio havia me causado fez com que eu atingisse um estado débil, quase catatônico. Não tinha forças para ficar escolhendo modelos ou pedindo descontos de 10%. Então, parei na primeira loja que vi – a vulgar Loja Renner – e comprei tudo. Casacos, lãs, segunda pele e um gorrinho. Na volta para casa, resolvi que compraria algo espalhafatoso para que as pessoas do aeroporto ficassem em dúvida sobre mim - achando que eu poderia ser uma celebridade. Era mais um desses desejos sexuais que aparecessem de vez em quando. Parei num brechó, na rua Teodoro Sampaio, já me sentindo melhor por ter saído do shopping center. A moça foi muito educada, mas ficava me empurrando um monte de roupas feias. Pedi licença a ela: “Licença, por favor. Acho que vou procurar sozinho”.

E nem precisei procurar muito. Ali, na minha frente, estava o conjunto perfeito, algo que nem os graduados em turismo usariam numa viagem ao Hawaii – uma camisa com estampa de sorvete e uma calça roxa.

Cheguei em casa bem-humorado. Peguei aquele talhão de dinheiro trocado e joguei tudo em cima da cama, como um gangster após vender seu primeiro quilo de cocaína. A nota mais valiosa – de 20.000 pesos chilenos – carregava a imagem de André Bello, uma espécie de libertador dos povos latinos; na de 10.000, a figura de Arturo Prat, um importante líder naval chileno... E, na de 5.000, aparecia a poeta Gabriela Mistral que, por sinal, havia escrito sobre o deserto do Atacama.

“O deserto preserva as memórias. É a pouca umidade, a aridez. É o sal. Como se fosse a fotografia de um tempo distante, há muito passado. Uma fotografia de centenas, milhares ou milhões de anos, dentro da qual é possível se mover...”

Absorto neste delírio estético, escuto o telefone tocar - era meu advogado. Não atendi. Dali uns três minutos recebo uma mensagem:

“EI, IDIOTA. NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, MAS É MELHOR ME ATENDER OU PELO MENOS LER ISSO AQUI. A SUA MALA NÃO PODE PASSAR DE 10KG, OK? SENÃO SEREMOS BARRADOS. E ELA TAMBÉM NÃO PODE SER MUITO GRANDE, TEM QUE CABER NO BAGAGEIRO DA AERONAVE. A GENTE NÃO VAI DESPACHAR NADA.”

Esse cara era muito chato. Nem me lembrava de quando havíamos ficado amigos. Mas ele tinha razão às vezes, e se não fosse seu conselho eu poderia ter chegado no aeroporto com uma mala gigantesca, sendo obrigado a pagar 70 dólares pelo peso extra.

A tarefa parecia difícil. Ainda mais quando descobri uma verdade triste. Não sei dobrar roupas. Na primeira tentativa, tentei copiar o método dos militares, com camisas e calças enroladas em formato de tubo, mas logo descobri que casacos e peças mais robustos simplesmente continuavam ocupando um espaço absurdo. Era necessário procurar no YouTube modos eficientes de dobrar a roupa. Sentindo um pouco de culpa de classe, digitei na barra de busca “Como dobrar roupa que nem um militar” – mas não vieram bons resultados. Depois, fui em canais específicos até encontrar um vídeo que explicava como dobrar no... “estilo do pacotinho.”

1º - Você pega sua camisa e estica ela toda numa superfície qualquer, pode ser uma tábua, uma mesa ou até o chão.

2º - Depois, dobre as mangas das camisas para dentro da roupa de modo a formar uma figura retangular.

3º - Pegue a parte de baixo desse retângulo e leve até o meio da camisa. E, depois, faça o mesmo com a parte de cima.

4º - Dobre a camisa na marca que se formou, e pronto.

5º - Agora é só encaixar um dos lados na abertura que se formou na outra ponta e colocar na mala.

Magicamente tudo ia se resolvendo. A youtuber-dobradora-de-roupas era simplesmente genial. Para cada peça (camisa, camiseta, calça, shorts, casaco moletom, casaco corta-vento, cueca, sai, luva, etc, etc etc..) ela tinha um jeito todo especial de dobrar. Era o oposto do milagre da multiplicação. Era o milagre da redução, e eu comecei a ficar bom, de modo que decorei várias dobras diferentes.

Mas o principal era que a mala estava pronta. Espetacularmente pronta. Tirei uma foto e mandei para meu advogado, com a mensagem. “Nos vemos amanhã, filha da puta”. Ele nem respondeu, mas isso era sinal de que estava com inveja desse meu novo dom. Antes de dormir, pois viajaria no dia seguinte, pedi ao meu irmão para me levar ao aeroporto. Ele concordou. Combinamos sair às 20h da quinta feira para um voo que decolaria às 23h30. Tudo feito para evitar imprevistos. Agora, era deitar a cabeça no travesseiro e esperar o momento.

Acordei no dia seguinte e não fiz nada até a hora de viajar. Só fiquei observando aquela mala linda encostada num canto do meu quarto. Perto das 20h00 vesti minha roupa de viagem e montei a nécessaire com escova de dentes, shampoo, sabonete, desodorante e um creme embelezador de origem suspeita. Meu irmão já estava pronto para sair. “Vamos? Ele perguntou?”. Pegamos o carro e ficamos parados cerca de 1h30 na Marginal Tietê até chegar ao aeroporto. Quando desci, meu advogado já esperava, gentil como sempre.

“Você está ridículo”, disse ele “onde comprou essas roupas?”.

“Não interessa,” respondi. Ele estava se referindo à minha camisa, com estampa de sorvete e à calça jeans roxa. “Dá tempo de fumar mais um cigarro?”, perguntei. Ele respondeu que sim, “Será o último das próximas 8h”.

Fiz questão de fumar dois, um em seguida do outro. Depois, entramos com nossas malas e seguimos direto para o raio-X passando antes por uma mulher que checava as passagens por QR-Code.

Na minha hora de passar pelo detector de metais a máquina apitou. Não sabia que precisava tirar as coisas do bolso. Passei de novo e, mais uma vez, ela apitou. “Bip”. “Tem que tirar o cinto também, senhor.” Tirei o cinto e... passei. Na sequência, um outro guarda se aproximou pedindo para checar minha mala. “Ai meu deus...” – pensei. Não tinha nenhuma droga ou arma na bolsa. Mas sempre alguma coisa pode dar errado. Uma ponta de baseado no bolso lateral da mala de mão, um caco de vidro solto, um isqueiro, ou... Ah! Sim... só podia ser isso, um estilete.... Um terrível estilete, enferrujado, esquecido num estojo. Seria suficiente para me prender? Achei que seria o fim de tudo... Algemado, levado para uma cela, assinando um B.O, que situação...

“Tudo certo senhor, pode seguir”

O que havia acontecido ali? Era meu inconsciente agindo favoravelmente comigo pela primeira vez em anos? Fosse o que fosse, estava salvo. Agarrei a mala e encontrei meu advogado, que olhava para o teto. Mostrei para ele meu documento. Uma CNH recém adquirida com uma foto de 2015 em que estou parecendo um assecla do Osama Bin Laden, todo barbudo, com um coletinho de lã - um aspecto debilmente criminal. Um documento que não passaria pelos Estados unidos na primeira década do século XXI.

“Por sorte, hoje tem menos preconceito”, falei.

“Pare de fazer piadas,” ele disse enfurecido – “Ainda não passamos”.

Andamos por um longo corredor, repleto de fitas separatórias e luzes de hospital. À frente, estava a cabine de imigração. “Pronto, agora era passar por ali e nada mais poderia dar errado. Quer dizer... o avião podia cair – mas isso era algo que fugia da minha alçada de controle.” Havia dois homens dentro dela: um deles simpático e o outro com cara fechada, no melhor estilo Good Cop / Bad Cop. Por ter credibilidade e um pouco mais de experiência meu advogado foi na frente e apresentou seu documento. “Ok, pode passar”, disse o Good Cop.

Na minha vez, quem pegou o documento foi o Bad Cop. Não que fosse fazer alguma diferença, mas fiquei absolutamente em pânico. Uma sensação de que tudo poderia sair errado. Ele veria minha cara barbuda, delinquente, e me impediria de viajar. Seria eu mais uma vítima do preconceito, da xenofobia e das maldades inerentes do mundo. Já começava a formular um discurso humanitário citando a fome no mundo e os horrores do capitalismo. Armaria um barraco. As TVs apareceriam, com seus repórteres descerebrados, fariam matérias e VTs, sobre mim. Meus seguidores no Instagram aumentariam em 3.000%. Seria convidado para talk-shows e afins. No fim, receberia das mãos do Papa Francisco o Prêmio Nobel da paz. Investiria os 2 milhões numa boa corretora e viveria o resta da vida com rendimentos.

“Senhor, que documento é esse?” perguntou o Bad Cop.

Subitamente, o delírio se esvaziou e eu fui contemplado com uma sensação de horror e desespero.

“Documento, senhor? Esta é minha CNH.”

“Mas você não pode viajar com isso aí não. Cadê seu R.G.?”

“Não tenho, senhor, fui roubado.” Menti.

“Você não tem mais nada aí, passaporte, talvez?”

Nessa hora, olhei para meu advogado, que havia dito que eu poderia viajar com a CNH. Ele pareceu envergonhado pela primeira vez em muito tempo. Enquanto isso, o Bad Cop continuava.

“O senhor não pode viajar com isso aí. Vai ser barrado quando chegar no Chile...”

“Espera um pouco, senhor” – Interveio meu advogado. “Ele perdeu o documento. Digo... foi roubado. Não existe aquele RG de emergência?”

“Esse não vale”

“E o RG digital?”

“Também não.”

Aquela conversa foi me enchendo o saco. De um lado, me sentia a pessoa mais estúpida do mundo ao pensar que poderia viajar portando um documento de habilitação. Os chilenos nem devem saber o que é o Detran. Mas, por outro, sentia uma raiva absurda que não poderia ser recalcada dessa vez. Fui me transformando numa ameba enfurecida. Perdi todos os sentidos. Não ouvia nada, não via nada e não me movimentava. Era apenas um corpo flanando no universo.

Enquanto isso, meu advogado conseguiu convencer o policial bonzinho a conversar com seu superior. O rapaz foi diligentemente à uma outra cabine e começou a falar com um homem careca que se fosse receber um nome nessa história seria Bad Bad Cop. Pouco tempo antes, esse sujeito gesticulava negativamente com um outro rapaz, que parecia lhe pedir alguma coisa. Não era um bom sinal. Quando Good Cop começou a falar com seu superior, os gestos negativos tomaram outra proporção, misturando-se com um sorriso cínico típico dos policiais. Vendo aquilo, não me aguentei.

“Você é um advogado de merda, sabia? Como pode não saber de algo tão básico quanto os documentos certos para viajar? Confiei em você seu filha-da-puta e agora estou passando esse ridículo com essa roupa ridícula e essa cara de cu.”

Ele não respondeu. Simplesmente virou as costas e se dirigiu para o Free shop. De longe, eu continuei gritando “Seu merda, lixo, arrombado, filha-da-puta, cuzão, corno, safado, imbecil, etc,” até que o policial bonzinho voltou e me disse.

“Senhor falei com meu superior. Ele disse que você vai poder viajar!”.

“Meu deus! Isso é sério?” – perguntei lacrimejante.

“Não. Vai embora daqui e pare de gritar. Antes que eu chame a polícia.”

Mostrei-lhe o dedo e sai correndo antes que fosse preso. No caminho de volta, a mala abriu e todos aqueles pacotinhos de roupas caíram no chão. Recolhi tudo e continuei xingando. Fui para a central da Latam e xinguei todo mundo mais um pouco. Estava revoltado. Xingava mentalmente meu advogado. Minha estupidez. O mundo. Nada podia ser feito além disso: Xingar, xingar e xingar. Xingando, passei o mês seguinte, até que pude colocar tudo no papel. Fiquei mais tranquilo. Preciso remarcar minha viagem, provavelmente para agosto. Não desisti de ir. Quanto ao meu advogado, quando ele voltar conversaremos. Um casinho desses não será suficiente para destruir nossa amizade.

Fim da história.

 

Tags:
As chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa produção de soja no início do ano pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho
por
Andre Nunes e Flavia Cury
|
24/05/2023

As fortes chuvas que atingiram o Estado de São Paulo atrasaram o plantio da segunda safra do milho, por isso, estima-se uma redução de 8% no total colhido. Como o cereal é uma das principais matérias-primas para a produção de ração animal, isso pode levar a um aumento de preço das carnes de frango e porco em cerca de 6%.

Isso ocorreu em razão do atraso na colheita da soja, safra anterior ao grão. Por conta do excesso de chuva, o ciclo da oleaginosa foi alongado, pois o produtor foi impedido de fazer o trabalho de campo.

"Agora que a colheita foi feita, as chuvas deixaram de ser um fator relevante na soja, e passaram a ser um fator importantíssimo para o milho", explica o analista agrícola Pedro Schicchi. 

Com esse adiamento, essa safra corre o risco de ter sua fase final e primordial de desenvolvimento durante um período mais seco do ano, o que leva a espigas com tamanho e volume menores. 

Por isso, a segunda safra está com um calendário mais estreito. “Alguns produtores decidiram  por não plantar milho com medo de sair dessa janela, isso resultou em uma diminuição de 3% na área do cereal”, diz Daniel Rosa, assessor técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). 

Se as chuvas continuarem, a disponibilidade hídrica para o desenvolvimento do cereal aumenta, mas, o problema é que tende a parar de chover, já que entramos nos meses mais secos do ano. 

Em 2023, a produção de milho do Estado de São Paulo ficará próximo das 4 milhões de toneladas, uma diminuição de 8%, frente às 4,3 milhões de toneladas do ano anterior.

Produção de soja neste ano 

Por outro lado, as chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa  produção de soja no início do ano, pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho. 

Ela é plantada em setembro e colhida em fevereiro, por isso, recebeu muitas chuvas durante o estágio final de seu desenvolvimento, as quais favoreceram a lavoura do grão.

Além do atraso na colheita, elas trouxeram apenas dois contras: a maior porcentagem de grãos ardidos (aqueles que entraram em fermentação após receberem muita chuva) e o aumento na incidência de mofo branco e ferrugem asiática, já que elas encontraram condições ideais de proliferação, explica Candice Romero Santos, superintendente de Informações da Agropecuária da Conab. 

Esses fatores não causaram impacto significativo, ao contrário do algodão, por exemplo, da qual 600 hectares de terra precisaram ser replantados em razão dos fungos.

Com a boa lavoura de soja, espera-se um cenário positivo para o mercado doméstico e para a exportação, com valores reduzidos e quantidade ampliada. No entanto, a alta no volume de produção pressiona a logística, afetando os preços e a capacidade de transporte. 

Os embarques dos cinco principais complexos exportados pelo país (soja, carnes, cereais, produtos florestais e sucroalcooleiro), saídos de São Paulo, em termos de volume, diminuíram 25% em fevereiro de 2023, comparado com o mesmo mês de 2022. Em relação aos últimos cinco anos, a redução é de 12%.

Santos ressalta que esse recuo nas exportações tem relação com outras variáveis que não apenas as chuvas. Para o complexo soja e o complexo sucroalcooleiro, por exemplo, é importante pontuar que houve redução na produção.

Quando colocado na balança, segundo Schicchi, uma safra ruim de milho é mais sentida pelo bolso do consumidor final do que a soja, pois ele é utilizado na fabricação de ração para frango e porcos.

Com isso, o custo de produção dos pecuaristas aumenta, tendo consequência no preço da carne desses animais nos mercados e açougues. 

Alta das chuvas e previsão para o restante do ano 

Segundo Cleverson Freitas, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), as chuvas ficaram acima da média em grande parte de SP, atingindo até 1194 mm de volume em algumas regiões.

Elas foram causadas principalmente pelos sistemas meteorológicos que já atuam sobre o estado durante esse período, o transporte de umidade vindo da Região Amazônica, sistemas de baixa pressão, e frentes frias que atingiram o estado.

Vale lembrar que todas as regiões do país foram afetadas de alguma forma, já que os volumes de chuva foram maiores que 500 mm em áreas do norte da Região Sul, grande parte das regiões Centro-Oeste e Norte, além do centro-sul da Região Sudeste.

Porém, a previsão para junho - justamente o final do desenvolvimento dessa leva de milho -, indica o oposto desse começo de 2023. O INMET prevê volumes de chuva abaixo da média para os próximos três meses em grande parte da Região Sudeste, principalmente em São Paulo.

Tags:

Economia e Negócios

path
economia-negocios
Bairros nasceram de ocupações irregulares no entorno do rio Tietê e são atingidos por deslizamentos e enchentes pela falta de políticas públicas ao longo dos anos
por
Gabriela Costa, Isabela Lago e Julio Cesar Ferreira
|
11/05/2023

Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas
Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas (1. Reprodução/TV Globo; 2. DiCampana Foto Coletivo) 

“Eu perdi uma consulta médica porque não consegui atravessar os dois metros de altura da água na avenida Deputado Cantídio Sampaio”, conta Quintino José Viana, um ambientalista de 78 anos. Residente do bairro Jardim Damasceno, Brasilândia, ele é presidente do “Movimento Ousadia Popular”, organização que busca preservar a área verde do bairro, e recebe com frequência reclamações de moradores que ficam presos dentro de casa sem conseguir sair quando a chuva causa enchentes na região.

Bairros localizados nos extremos da cidade sofrem situações como a descrita em períodos de chuva intensa pela falta de políticas públicas e planejamento da área que não abrange, por exemplo, obras que permitam o escoamento das águas ou sua contenção por meio da polderização, técnicas usadas para mitigar o estrago das chuvas. 

O Jardim Damasceno e os demais bairros do distrito da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, historicamente enfrentam alagamentos e deslizamentos devido a sua localização nas margens da Serra da Cantareira. Outra área que enfrenta situações semelhantes durante estações chuvosas é o bairro Jardim Pantanal, várzea do rio Tietê. A região lida com enchentes anuais desde os anos 80. 

Os “extremos” são os mais afetados 

Jardim Pantanal, bairro no extremo leste com forte presença do rio Tietê, e bairros próximos da Serra da Cantareira como Jardim Damasceno e Jardim Paraná, na Brasilândia, extremo norte de São Paulo, são afetados pela chuva em épocas específicas, como os meses entre outubro e março.

O Jardim Pantanal sempre sofreu com as enchentes. Em 2009, a área ficou alagada por três meses depois que uma tempestade elevou o nível do rio. Por ser uma área plana, Joyce Ferreira, 40,  arquiteta e urbanista que fez parte da equipe do Plano de Bairro do Jardim Pantanal, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), em parceria com o Instituto Alana, conta que a relação com a água no local é inerente a sua existência por ser construído às margens do Tietê.

“Você pode ter lugares que são muito declives ou aclives, que poderiam ser considerados de risco, mas que são bem urbanizados [por estarem em áreas centrais e que sofrem com a especulação imobiliária] e por isso a área suporta melhor algum evento climático”, descreve.

Em bairros como Perdizes e Pinheiros, que são repletos de morro e área de várzea, respectivamente, o mesmo fenômeno pode ser observado, no entanto, devido aos processos de inclusão urbana e atenção do Estado por não serem locais periféricos, não passam por esses desastres.

O Jardim Damasceno, na Brasilândia, embora não tenha um Plano de Bairro, também foi ocupado por comunidades autoconstruídas em áreas de risco e próximas a córregos, como os do Bananal e Canivete. Porém, diferentemente do Pantanal, com construção plana, Damasceno é um grande morro, que tem também proximidades com a Serra da Cantareira. Nesse sentido, não só enchentes atingem o local, como também o risco de deslizamentos.

A favela da Tribo, ao lado do bairro, é um caso crítico de ocupação, por estar em um terreno irregular e íngreme às margens da Cantareira. A comunidade, além das enchentes, lida com queda de árvores e deslizamentos de barrancos devido ao tempo chuvoso, configurando o local como uma área de risco.

A região não recebe apoio de autoridades no caso de enchentes por não ser regularizada. “A Defesa Civil disse que não podia fazer nada”, conta Quintino. O morador também descreve a exposição da comunidade a mananciais que são escoamento de esgoto, o que representa um crime ambiental. 

O abandono urbano tem cor

Não só o recorte econômico, como também o racial, explicam como até a atualidade as periferias enfrentam problemas de infraestrutura causadas pela falta de políticas públicas. Estela Macedo Alves, 45, arquiteta e urbanista pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o conceito de “racismo ambiental" pode ser aplicado nesse âmbito, pois as vítimas desses desastres são majoritariamente negras. 

Como 78% da população pobre de baixa renda é negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2016, negligenciar as demandas das áreas de moradia dessas pessoas é deixá-las vulneráveis a desastres ambientais. Conforme o Mapa da Desigualdade (2022), o distrito da Brasilândia é formado por 50,6% de pessoas negras. Já o distrito do Jardim Helena, que abriga o bairro do Jardim Pantanal, tem 54,7% de moradores negros. Em comparação, 37% dos habitantes da cidade de São Paulo são negros.

Historicamente, quando as áreas centrais viviam o processo de modernização, as periferias não eram incluídas. Também como parte do processo de higienização, era preciso retirar do caminho pessoas pobres, como os ex-escravizados. A migração nordestina também ajudou a consolidar a desigualdade, já que essa população não tinha acesso ao território urbanizado graças à especulação imobiliária.

São Paulo se ergueu com inspiração nas metrópoles europeias, nas quais os recursos hídricos eram deteriorados e vistos como obstáculos ao crescimento, como explica Estela. Como a capital paulista precisava parecer uma cidade com infraestrutura, era necessário esconder a grande quantidade de cursos d'água por meio da canalização ou retificação.

A cidade, como foi construída em cima de bacias hidrográficas na tentativa de suprimir os rumos das águas, causa diversos problemas para a dinâmica da metrópole até hoje, sobretudo em áreas à margem. 

“A construção da cidade era feita por engenheiros, sobretudo os sanitaristas, e uma das questões mais importantes era se livrar de tudo que parecia não civilizado”, afirma.

Para entender como a Prefeitura de São Paulo se posiciona em relação ao acesso pleno a políticas públicas e de urbanização dessa população, o Contraponto Digital entrou em contato com a Coordenadoria de Planejamento Urbano (Planurb) por meio do telefone e e-mail, mas não obteve resposta até o momento da publicação.

Moradores agem autonomamente com a ausência do Estado 

Pela falta de execução de políticas públicas nesses locais, a própria população se vê obrigada a organizar estratégias para minimizar os danos das tragédias. Guilherme Simões, secretário de Periferias do Ministério das Cidades, explica que esses agentes coletivos estão construindo uma “economia de sobrevivência”.

De acordo com o líder da pasta, todas essas movimentações de distribuição de alimentos, mutirões de doações, entre outras ações que ocorrem em momentos de crise, são características das comunidades periféricas. Um exemplo dessas representações são as próprias associações de moradores.

Reginaldo dos Santos, 54, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal (Amojap), conta que, em momentos de enchentes, as famílias desabrigadas são movidas pelos próprios moradores para uma quadra grande do bairro. “Conseguimos trazer alimento, cobertores, insumos e até ajuda médica”, explica. Esses mutirões contemplam cerca de 300 pessoas para almoçar e jantar, além de abrigarem mais de 40 famílias para dormir na quadra.

O coordenador de gestão da Associação dos Moradores do Alto da Vila Brasilândia (AMAVB), Cláudio Kafé, 50, resume o papel de atuação dessas organizações: “Nós não temos como prevenir esses desastres: tudo que podemos fazer é esperar acontecer e depois reconstruir.”

"O Estado sabe quais são os pontos mais vulneráveis, sabe quais as famílias em área de risco, mas, infelizmente, não toma as medidas necessárias”, explica o líder comunitário.

O secretário de Periferias afirma que esse conhecimento dos moradores das regiões deve ser utilizado no momento de elaboração de políticas públicas, sendo necessária a criação de um “Plano Diretor Municipal."

A arquiteta Ferreira explica que a elaboração desse documento é geralmente feita por órgãos do governo ao lado de especialistas. “O objetivo é ser uma diretriz de investimentos públicos para melhorias”, resume.

Em outras palavras, o “Plano Diretor” visa reconhecer os problemas desses territórios e interligar possíveis instrumentos para solucioná-los. A urbanista explica que esse plano "é um reflexo dos conflitos do local; por isso, é importante ter a participação de todos, porque é um processo democrático e o choque entre ideias é inerente.”

Da mesma forma, o “Plano de Bairro” precisa ser elaborado com base nas especificidades daquele lugar. Diferentemente do anterior, esse último documento pode ser elaborado por qualquer instituição, até mesmo aquelas de caráter civil.

Tags:

Cidades

path
cidades

Meio Ambiente

path
meio-ambiente