O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Meio Ambiente

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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O ProUni, programa que dá bolsas integrais e parciais à população de baixa renda do Brasil, dá oportunidade para ascensão social e de classe
por
Henrique Alexandre
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20/04/2023

Quando o Programa Universidade para Todos (PROUNI) foi lançado no longínquo 2004, a expectativa do governo de Luiz Inácio Lula (PT) era de que ele trouxesse mais equilíbrio na quantidade de alunos de classe alta e de classe baixa nas universidades do Brasil. Para além disso, era também uma tentativa de reparar o escanteamento histórico que a população pobre, principalmente a negra, teve no país. Era entendido que com a educação, os pobres, que na época representavam 33,2% % da população da época, teriam a oportunidade de crescer financeiramente e socialmente no Brasil.  

 

No primeiro processo seletivo de bolsas, a quantidade de vagas ofertadas era baixa, um pouco mais de 95 mil. Perto dos 184 milhões de brasileiros que viviam nessa época, a quantidade de bolsa era uma unha perto da desigualdade que existia. Porém, com o sucesso do programa, o número de ofertadas foi aumentando gradativamente com o passar dos anos.  

 

Em 2006, foram 109 mil bolsas. Em 2010, quando o programa completou 5 anos de implementação, foram 152 mil. Em 2019, ano pré-pandêmico, a quantidade de bolsas saltou para quase 250 mil. Enquanto isso, milhões de estudantes de classe baixa foram se formando e ascendendo socialmente por conta dessa política de estado. Ou seja, a expectativa de 2004 virou realidade. 

 

Um dos exemplos mais notórios dessa mudança de vida que o estudo permitiu foi da atual comentarista da TV Globo, Ana Thais Matos. Filha de empregada doméstica, Ana Thais conta que vivia em uma situação que não era alarmante, mas era de insegurança financeira. "Minha família tem uma origem humilde, bem pobre mesmo. Minha mãe Francisca era empregada doméstica, vendia bandeiras de times no estádio do Pacaembu e cuidava de mim e dos meus cinco irmãos." 

 

Atualmente, ela é uma das principais comentaristas da maior emissora de televisão da América Latina. Em 2022, fez história: foi a primeira mulher a comentar os jogos do Brasil em uma Copa do Mundo Masculina de Futebol. Ao lado de Galvão Bueno e o ex-lateral Junior, ela acompanhou de perto a campanha do Brasil no Qatar. Ana Thais fala que se não fossem os estudos, não conseguiria chegar lá.  

 

"Eu devo tudo a minha força de vontade, claro, mas também a oportunidade que me foi aberta há 16 anos, em 2007. Se eu não tivesse entrada na faculdade, possivelmente não teria isso conquistado tudo isso na minha vida." 

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A prounista mais famosa do Brasil desfila o seu conhecimento na TV Globo - (Foto: Reprodução/Sportv)

Ela lembra que quando passou na universidade, quase caiu da cadeira, pois não estava esperando a aprovação na PUC-SP. "Também tinha feito inscrição no Prouni, porque estudei a minha vida toda em colégio público. Eu estava na praia, em Itanhaém, triste, porque todas as minhas amigas já tinham passado na faculdade. Eu fiquei para trás... Até entrei numa lan house para mandar um e-mail para o meu irmão, perguntando se eu poderia morar com ele em Florianópolis para recomeçar minha vida. Quando abri, tinha uma mensagem da PUC (Pontifícia Universidade Católica) me avisando que eu tinha sido aprovada para uma bolsa através do Prouni para jornalismo. Eu quase caí da cadeira", lembra a comentarista com emoção. 

 

Hoje, surfando na onda do sucesso, a comentarista manda um recado claro para as próximas gerações: "não deixem de estudar. Você que é de classe mais baixa, não pense que é incapaz, têm várias formas de entrar na universidade. Tem o ProUni, tem o FIES, enfim. Se eu consegui, você também pode.", finaliza Ana Thais. 

 

LICENÇA POÉTICA - AO ALTO E AVANTE

 

Agora saio da terceira pessoa, do distanciamento jornalístico e me incluo nessa história. Sei que não é praxe das redações de jornais o redator colocar o seu ponto de vista em uma matéria informativa. Porém, é um assunto que mexe tanto com o meu coração e meu ímpeto que peço desculpas aos deuses do jornalismo e solicito, unilateralmente, essa licença poética para rasgar as tradições da profissão. 

 

Digo para você, caro leitor, que as próximas gerações de prounistas têm em quem se inspirar. Não necessariamente precisa ser pessoas que estão na mídia, no vídeo, em rede nacional. Pode ser gente do nosso cotidiano. O vizinho, o colega de empresa, o primo de um grande amigo. Felizmente programas de ascensão social colou no Brasil, embora exista críticas daqueles que lutam para manter o sistema opressor de pobres desse país. Há vitória nesse programa que vai completar 20 anos em 2024. Temos 'Michelles', 'Luans', 'Dayres', 'Geyzas' e entre outros prounistas por aí tentando vencer na vida. E eu me incluo nessa. 

 

Assim como a Ana Thais Matos, sou prounista de jornalismo na PUC-SP. Como ela, trabalho na TV Globo. E posso dizer aos quatro ventos que assim como a comentarista e milhões de brasileiros que entraram na faculdade pelo ProUni, tive minha vida transformada pelo estudo e ascendi socialmente. Sai da favela do sapé, na zona oeste de São Paulo, em uma casa que ficava do lado de um ponto de tráfico para estudar em uma das maiores universidades do país. Não quero que pare em mim e assim como a Ana Thais Matos falou na nossa entrevista: "vamos lutar pra ter mais".  

 

Deuses do Jornalismo: fim da licença poética. 

 

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Brasil afora, milhares de entregadores de aplicativo ganham e perdem a vida nas ruas.
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Texto: Guilherme Silvério Tirelli | Audiovisual: Maria Eduarda de Souza Magalhães
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20/04/2023

Texto: Guilherme Tirelli 

Audiovisual: Maria Eduarda Magalhães

Faça chuva ou faça sol, à noite, no meio de tempestades ou ainda que caia neve, eles são figuras constantes nas ruas. No ritmo acelerado da metrópole ou na selvageria do interior, muitas vezes às margens da sociedade, sem qualquer tipo de reconhecimento, encontram-se os entregadores de aplicativo. Quase que imperceptíveis aos olhos do “cidadão”, são notados apenas quando buzinam, esbarram ou passam a centímetros do seu retrovisor. Suscetíveis aos perigos da vida urbana, o trânsito é o que menos aflige o cotidiano desses trabalhadores. Entre os carros e caminhões, atravessam semáforos triscando as latarias dos automóveis para entregar seu pedido no menor tempo possível. E fazem isso por pelo menos dois motivos em especial.

O primeiro deles diz respeito a satisfação do cliente, levando em consideração que ninguém gosta de esperar mais tempo do que o previsto para sua comida chegar – o que pode representar um feedback negativo para a empresa e empregados. O segundo e mais cruel deles é o salário, que na imensa maioria dos casos, é proporcional ao número de entregas realizadas no dia, semana ou mês. Logo, quanto mais rápido chegarem, mais pedidos serão encaminhados à eles e, consequentemente, aumentando o ganha-pão cotidiano.

Por trás dos capacetes, esse triste cenário revela uma realidade um tanto quanto desafiadora: colocar comida na mesa é muito mais difícil para quem tem que trabalhar com ela, literalmente, amarrada em suas costas. Para piorar essa situação, nas pizzarias, bares e restaurantes, os entregadores precisam embalar o pedido que acabou de sair do forno, “quentinho” e temperado. No pensamento, a imagem da sua casa, dos filhos e da esposa abatidos por conta da fome. Para garantir melhores condições para sua família, são esses os percalços aos quais eles se submetem. Trabalhar com a barriga vazia, entregando uma refeição que não é sua. Não existe nada mais cruel do que isso.

De acordo com dados divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Penssan, no 2º Inquérito Nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número de brasileiros que sofrem com algum nível de insegurança alimentar ultrapassou os 125,2 milhões. O levantamento revela que, por falta de opção, inúmeras pessoas se submetem a trabalhos sem carteira assinada, temporários ou como freelancers. A questão central aqui é que nenhum deles oferece condições trabalhistas mínimas. Logo, eles não possuem direitos, muito menos garantias quanto à segurança. Trata-se de uma parcela da população que sai de casa em busca da sobrevivência.

Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas
Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas - Fonte: Getty Images

O efeito da pandemia

No primeiro semestre de 2020, o Coronavírus se alastrou como foguete e ninguém àquela altura era capaz de prever os próximos capítulos da pandemia. Muito se ouviu sobre os trabalhadores essenciais e como eles não poderiam, em hipótese nenhuma, parar, já que o restante da população dependia diretamente dos seus serviços. Apontados e glorificados pelo senso comum como heróis, os profissionais das áreas da saúde, segurança e alimentação formavam a linha de frente no combate as consequências desse cenário pandêmico. Nesse contexto, os entregadores de aplicativo tiveram uma presença ininterrupta nas avenidas e ruas, embora fossem escassamente reconhecidos.

Em geral, a invisibilidade é rotina para a maioria desses trabalhadores. Os aplicativos de delivery, inegavelmente, dominaram o mercado de uma forma jamais vista. É compreensível, uma vez que, frequentar os estabelecimentos era inviável, logo a comida precisaria bater na porta dos clientes. Os grandes nomes por trás desse fenômeno são de conhecimento geral. iFood, Rappi e outros apps similares já eram figuras carimbadas no gosto do consumidor. As cores vibrantes e os símbolos engenhosos, infelizmente mascaram aquilo que não vemos. Nas notas fiscais o valor da entrega é creditado, contudo, é impossível aferir o preço da falta de segurança ou das noites mal dormidas. A hora-extra não paga a falta de condições mínimas de trabalho ou as dúvidas que pairam na cabeça desses motoqueiros.

Uma dessas dúvidas é se eles voltarão sãos e salvos para suas casas. O crescente número de motociclistas nas ruas afeta diretamente a quantidade de acidentes registrados. Antes do “boom” dos aplicativos, entre 2015 e 2016, as ocorrências com motos representavam 20% dos atendimentos no Hospital das Clínicas. Atualmente esse índice supera os 80%, de acordo com depoimento de Julia Maria D’Andréa Greve, coordenadora técnica do Laboratório de Estudos do Movimento da instituição. O relatório final da “CPI dos aplicativos”, ainda aponta que 60% a 70% das internações em estado mais grave no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do hospital envolvem motocicletas.

São esses desafios que Samuel Jonatas e outros tantos entregadores enfrentam diariamente.

 

Já segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem 1,5 milhão de pessoas que atuam como motoristas e entregadores de aplicativos, taxistas, moto-taxistas ou outras atividades feitas de maneira autônoma no setor de transporte. O mesmo levantamento apresenta que, quando se trata de moto-taxistas, mais de 73% são homens pretos e pardos. Em contrapartida, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos - Abia, os empresários do ramo de entregas de alimentos atingiram R$ 35 bilhões de lucro em 2021.

A dor que ninguém vê

Como dito anteriormente, chegar em casa na madrugada cansado, muitas vezes faminto e ter que levantar cedo novamente no dia seguinte, sem qualquer garantia oferecida pelas empresas corresponde a um cenário desumano. Nem o mínimo no que diz respeito aos vínculos empregatícios é concedido à eles. No caso de Renato, um entregador que ganhou certa notoriedade no ano passado, para economizar o transporte diário, que girava em torno de R$ 25, muitas vezes ele dormia nas ruas do Rio de Janeiro, caso contrário, a missão de sustentar sua família ficaria ainda mais difícil.

O caso de Rafael Vaz de Lima ainda é mais chocante. Retornando de sua última entrega, teve um “apagão” – provavelmente causado por estresse, conforme a palavra dos médicos. O entregador perdeu o movimento das pernas e braços, causado pelo impacto da mochila com o seu corpo.

Histórias como essas são parte do cotidiano desses entregadores, assim como a luta por direitos básicos. Por isso, figuras como Paulo Galo, conhecido como "galo de luta", surgem para denunciar a exploração da mão de obra. Galo ganhou destaque em 2020, ao liderar o movimento "Entregadores Antifascistas" que desde o início da pandemia, têm como objetivo central, melhorar a situação dos trabalhadores do ramo.

Apesar da Lei Federal nº12009 regulamentar a profissão dos motoboys e padronizar o moto-frete e moto-táxi em todo Brasil, a medida tem mais de 10 anos e desde a assinatura do Governo Federal, pouco se avançou na questão. A falta de fiscalização e incentivos para os motociclistas se adequarem à legislação é mais um empecilho que contribui para que a situação permaneça estagnada.

Em detrimento da precariedade trazida pela falta de regulamentação, no mês passado, o presidente Lula criticou duramente as empresas de aplicativos e afirmou que elas "exploram os trabalhadores como jamais foram explorados", em discurso para a Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas. Além disso, alertou que é preciso retomar o diálogo do governo com o movimento sindical para formalizar um novo pacto entre os trabalhadores e as empresas. Ainda assim, esse corresponde a um pequeno passo em busca daquilo que já deveria ser direito de todos eles há muito tempo.

O dia que não terminou

Um dia inteiro têm 1.440 minutos, 86.400 segundos e na manhã seguinte daquele sábado, cada um deles fizeram a diferença. Tudo o que eu queria era que aquilo nunca tivesse acontecido. Desde a infância jogara futebol com a energia de uma criança e o coração de um garoto e nem mesmo todo cansaço, nos meus piores dias em campo, me fizeram sentir algo parecido.

Nesse dia em questão me desafiei na função de entregador. Entretanto, não tinha o relógio contra mim, nem um chefe que me demitiria caso cometesse algum deslize. No interior da minha cidade, minha rotina de entregas iniciou-se na parte da tarde, sob a tutela de um amigo que possui uma livraria. Consigo carregar os livros na minha mente e as palavras no meu imaginário. Tatuadas na minha alma, as letras não fizeram a diferença.

Nunca pensei que, nos ombros, um livro poderia pesar tanto. Ainda assim, carrega-los nas costas pedalando pareceu-me uma ideia intrigante – por isso topei logo de cara e se arrependimento matasse, já não estaria mais sob essa Terra. Quando cheguei em casa, só lembro do alívio de me atirar no sofá e “apagar”. Porém, a dor descomunal nas pernas não me deixou pegar no sono. Parecia que acabara de correr uma maratona. Aquele sentimento de cansaço como jamais presenciei antes. De repente, o alívio me levou a uma reflexão: Como seria se eu tivesse que fazer isso todo santo dia?

Nos dias subsequentes a esse, só de lembrar da experiência já sentia um calafrio, que gelava a minha espinha dorsal, numa espécie de paralisia. E então tive a certeza de que é preciso além de sangue-frio, uma coragem do tamanho do mundo para arriscar a própria vida nas ruas. Os entregadores não entregam só comida. Nas minhas horas de “expediente”, sempre tive a certeza de que voltaria pra casa e lá teria um jantar pronto esperando por mim – privilégio esse que a maioria desses trabalhadores não têm. Por trás do “bom-dia”, eles mascaram a realidade que nem todos enxergam: um cenário de muita luta e dedicação de quem exerce seu ofício priorizando o outro.

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Como a busca por uma 'masculinidade saudável' acaba gerando ódio e misoginia a mulheres que sofrem ataques constantes pela machosfera
por
Sophia G. Dolores
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14/04/2023

Você já ouviu falar do movimento ‘RedPill’? O termo que chamou atenção nas últimas semanas em discurso dado por Thiago Schutz, responsável por um manual que leva o mesmo nome do movimento, traz a ideia de ‘resgatar e fortalecer a masculinidade saudável’. Movimentos como este, ou até mesmo a famosa "machosfera" discutem o papel dos homens na sociedade, mas o resultado efetivo é bem diferente: eles acabam gerando discursos machistas e, muitas vezes, misóginos, onde defendem a errônea percepção de que o feminismo é na verdade, o contrário do machismo, ou seja, prega a superioridade das mulheres. Ideias semelhantes, interesses iguais e direitos mal compreendidos juntam essa parcela de homens em um suposto conceito de misandria (ódio a homens) estatal, preconceito prejudicial, segundo eles, a homens brancos heterossexuais. 

Thiago Schutz, ou o ‘coach do Campari’ como ficou conhecido, tem um perfil no Instagram chamado “Manual Red Pill Brasil”, com cerca de 300 mil seguidores, no qual ele dá “conselhos” para homens. Seus vídeos, apontados pelos internautas como machistas e misóginos trazem falas como: “o propósito de um homem num relacionamento tem que estar sempre acima do propósito da mulher”; “a sua mulher custa mais caro que uma garota de programa”; e “o homem está mais feito para o sexo do que a mulher”. 

A maioria dos discípulos de movimentos como o ‘RedPill’ pertencem a extrema-direita e concordam que o mundo não discute de forma correta problemas relacionados a homens, como por exemplo, a falta de acolhimentos para homens vítimas de violência doméstica, e até a misandria que, segundo eles, é praticada por movimentos feministas. Na visão dos adeptos a pílula vermelha do filme Matrix, filme que deu origem ao nome desses grupos, isso porque no sucesso de 1999, Neo precisa escolher entre uma pílula azul e outra vermelha, sendo a Red responsável por libertar a pessoa do mundo imaginário, mundo esse, injusto, segundo a ‘machosfera’, pois na verdade, o sistema sempre esteve aqui para privilegiar as mulheres. 

Mas que sistema é esse que privilegia mulheres? Esse sistema não é uma questão de subverter a ordem social, mas sim de buscar a igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros. A desigualdade de gênero não é um problema que afeta apenas mulheres de classes menos favorecidas, ela se manifesta em todas as esferas da sociedade, desde o acesso a cargos políticos até a remuneração no mercado de trabalho. Essa desigualdade é agravada por fatores culturais e socioeconômicos, como a ideia de que as mulheres devem ser submissas aos homens e a falta de políticas públicas que garantam a igualdade de gênero. 

Entretanto, essa diferenciação pode ser atribuída a outras questões. O que justificaria então a existência de mulheres que perpetuam o discurso machista? Mulheres também presentes em movimentos masculinistas é mais comum do que se possa imaginar. A existência de mulheres que preservam e concordam com o discurso machista não é uma contradição, mas sim uma manifestação do patriarcado que as ensina a internalizar valores e ideias que as prejudicam e desfavorecem suas lutas. 

Ao longo da história, as mulheres foram consideradas inferiores e incapazes, mas a luta por direitos e igualdade vem se fortalecendo ao longo dos anos. No entanto, ainda é evidente que a imagem da mulher é construída, imaginada e principalmente, disseminada por homens, fazendo com que discursos de ódio sexualizado, oprimindo e ridicularizando ainda sejam recorrentes nas diferentes esferas sociais. 

Juliana Wallauer, jornalista, roteirista, mediadora e, atualmente apresentadora do ‘Mamilos Podcast’, conta o verdadeiro medo que os homens possuem, fazendo com que eles encontrem nas ameaças e discursos de ódio, o seu refúgio. “A luta feminista é uma luta por igualdade, e não para trocar o opressor [...] Eu acho que é uma resistência de homens feridos, de homens com medo, sem ter uma clareza de qual é o papel que existe para eles aqui. Que mundo novo é esse quando a gente tira a masculinidade tóxica? O que sobra? Como amar os homens se todos já nasceram machistas? Eles têm medo da perda do poder [...] o ressentimento pela perda do poder, o medo sobre um futuro que eu não sei qual é, não sei qual é o meu lugar, onde que eu pertenço, qual o papel que ainda existe para mim. Eu acho que tudo isso é um caldo muito fértil para o crescimento desses grupos masculinistas e da continuação de discursos machistas.” 

A inferiorização das mulheres por parte de alguns homens é uma questão complexa e multifacetada. Segundo estudos, essa postura pode ter origem em uma série de fatores, como a socialização de gênero, que muitas vezes reforça estereótipos e papéis desiguais para homens e mulheres. Além disso, a cultura machista que permeia muitas sociedades pode fazer com que os homens se sintam ameaçados pela luta feminista e pela busca por igualdade de gênero. Esse sentimento de ameaça pode levar à adoção de posturas agressivas e discriminatórias, como a disseminação de discursos de ódio e a inferiorização das mulheres. Outro fator importante é a falta de educação e conscientização sobre questões de gênero. Muitos homens não têm contato com informações que os levem a refletir sobre seus comportamentos e atitudes em relação às mulheres, o que pode contribuir para a perpetuação de comportamentos machistas e violentos. 

Juliana ainda reforça que tais discursos de ódio só existem porque, infelizmente, os homens ainda possuem mais força que as mulheres, sejam elas verbais, físicas ou sociais. “Tem estudos que mostram que o homem vai ser violento com a mulher por quê? Porque ele pode. Porque ele consegue. A mulher vai ser violenta com as crianças e com os animais. Então, essa mulher que recebeu porrada da vida, de todo mundo que interage com ela, inclusive do marido, ela vai pegar os vulneráveis que estão ao alcance dela e vai repetir essa violência que, talvez não necessariamente seja física, embora muitas vezes seja, mas pode ser de outras ordens. A gente tem uma ordem estruturada que coloca o homem numa posição superior, acima, mais importante e mais ouvida, e até religiosamente como cabeça da família em relação a mulher [...] existe uma hierarquia clara que é defendida por uma série de estruturas, e ele vai jogar em cima dela todas as frustrações que ele tem, porque ele pode.” 

Apesar das questões legítimas envolvendo homens, como a ausência de suporte para vítimas de violência doméstica, a noção de que um sistema que favorece as mulheres é de todo modo, errônea. Além disso, a presença de mulheres que apoiam ideias machistas não é uma contradição, mas uma demonstração do patriarcado que as ensina a internalizar valores que sempre as prejudicaram, já que crescer com essa mentalidade é incutido na educação e na criação de uma mulher, assim como na mente estreita de homens que se alinham com esses grupos masculinistas, que na realidade, estão perpetuando discursos de ódio. 

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Os parágrafos abaixo contém ironia
por
Júlia Gomes Zuin
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13/04/2023

 

Meu nome é Thiago Schutz, e sempre dou início a quaisquer tipos de texto com uma frase de impacto. Além desta característica, sou um profissional de orientação pessoal ou, em outras palavras, coach: dou auxílio aos Homens para que os Eles acordem para a realidade social opressora e os instruo a desenvolver sua própria conjuntura justa e biologicamente definida, como um leão que ruge ao acordar, da mesma maneira que um gorila bate em seus peitos quando quer mostrar o seu poder (por isso invejo as mulheres cis, que nasceram com mais seios que eu).

Os Homens vêm sofrendo, imagino que desde a primeira guerra mundial - quando as mulheres começaram a invadir o mercado de trabalho e roubar autonomia - um ódio pitoresco e invejoso pela sociedade moderna. Hoje em dia, é comum observarmos críticas ao comportamento Masculino (este, indubitável) tanto em um âmbito macro socioeconômico, quanto micro. As políticas públicas apenas beneficiam mulheres, ignorando totalmente aqueles que de fato movimentam e constroem este meio altamente especial: os seres masculinos. Não é à toa que a expressão “seres humanos” é masculina, muito menos que, ao se referir a ela, é possível utilizar como sinônimo “Homem”. Enganados estão os gregos antigos, que consideravam Gaia, ou seja, a terra, um planeta feminino - sua forma de esfera indica uma barriga de chope que demoramos anos para alcançar (exige muita coceira de saco).

O cenário é este, te afirmo. Agora coloco: qual seu posicionamento diante dele? Muitos, alienados, concluem que o melhor é se inserir neste Estado conforme ele o impõe. Outros, nem enxergam estes absurdos. Já alguns, como eu, lutam para que ganhemos a devida atenção novamente, como meu antigo familiar e primeiro ser geneticamente desenvolvido de maneira racional, a anta.

Durante minha jornada, claro que violenta, pois fisicamente assim sou, enfrentei vários dragões. Um dos piores é recente, e fico de joelhos por ajuda máscula - por isso escrevo estes parágrafos.

No início do mês, a atriz Livia La Gatto publicou em suas redes um vídeo me ridicularizando. A influenciadora não citou o meu nome, mas me senti afetado já que ela coloca de maneira debochada meus mandamentos e ideias meticulosamente elaboradas. Esbravejei nos ombros da mulher que contratei para me acolher neste momento insuportável (aliás, ela é a única que me apetece, já que as outras, nós Homens temos que fazer um sacrifício para suportar).

De modo sugestivo, mesmo com raiva, escrevi à Lívia para que ela tirasse o material do ar. Ela leu a mensagem, não me respondeu e, ansioso por uma resposta, liguei para ela - ninguém atendeu minhas chamadas (odeio ser ignorado). A resposta que tive foi conduzida a mim judicialmente: Fui definido como Réu.

A (in)justiça chama minha opinião exacerbada de crime. Não é à toa que divulgo o meu trabalho como uma atividade de resistência. Além disso, as autoridades decidiram que eu não posso conduzir a minha fala à moça, nem pela internet, muito menos pessoalmente. Eis que tenho que ficar trezentos metros longe dela. O que eu não entendo é a falta de capacidade desta massa envenenada populacional de não saber interpretar um texto. Como provariam que ameacei a artista quando disse “Você tem 24H para tirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, processo ou bala. Você escolhe.”.?

De qualquer forma, “O amor venceu!”, e é isso que importa. Peço, pelo amor de deus, que os Homens me ajudem. Se você está lendo isso e possui pelos no saco escrotal (de acordo com o meu Manual Red Pill e também a bíblia, quanto mais pelo no gorgomilo, mais forte você é, me ajude - “Dalila fez Sansão dormir com a cabeça em seu colo e então chamou um homem para cortar as sete tranças do cabelo dele. Desse modo, começou a enfraquecê-lo, e suas forças o deixaram”. Juízes 16:19-30 NVT”). Vamos unir as nossas mais profundas raízes capilares para acabar com a censura.

ObrigadO,

Thiago Schutz

  

Disclaimer: O texto é uma sátira escrita pela aluna Júlia Zuin.

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As eleições de 2022 revelam a perda simbólica do capital político do presidente Lula na região do ABC Paulista
por
Maria Ferreira dos Santos e Malu Araújo
|
11/12/2022
Lula em greve em São Bernardo do Campo (SP) na década de 70. Foto: FolhaPress
Lula em greve em São Bernardo do Campo (SP) na década de 70. Foto: FolhaPress

Marcada pela luta sindical e por ter sido o berço político do atual presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a região do ABC Paulista apresentou uma queda eleitoral do petista em comparação com eleições anteriores. Tal perda se deve principalmente às mudanças políticas e sociais sofridas no perfil do ABC, principalmente com a dissolução do sindicalismo na região. 

A perda política do PT na região do ABC, não é novidade das eleições de 2022. De 2002 a 2006, a queda no número de votos recebidos foi de 9,71%. Agora, a perda de 2022 se comparado a 2002 é 5,48%, se comparado com os números de 2006 é menor, de somente 1,78%.

 

Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2002- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2002- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2006- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2006- Fonte: SEADE

Maria do Socorro Braga, doutora em Ciência Política e professora da UFSCar, defende que essa queda pode ser “relativa”, mas que ainda sim são dados que "apontam que o PT está perdendo cada vez mais espaço nessa região”. Braga acrescenta que Lula “só se tornou essa liderança tão forte e expressiva hoje” por conta de seu “capital sindical”.

ABC Paulista é composto por sete cidades: Santo André, São Bernardo do Campo,  São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Foto: UFABC
ABC Paulista é composto por sete cidades: Santo André, São Bernardo do Campo,  São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Foto: UFABC

 

Das sete cidades que fazem parte do ABC Paulista, as quatro principais são: Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema, isso porque a tomada de decisão delas influencia o posicionamento das demais. Contraditoriamente, entre elas quatro a preferência eleitoral é divergente.

Das eleições de 1972 às de 2020, Santo André teve sete vezes seu prefeito alinhado às diretrizes da esquerda. João Avamileno e Celso Daniel, por exemplo, foram políticos do PT reeleitos com número de votos expressivo. Em 2000 Celso Daniel foi reeleito com 70,13% dos votos válidos. Após 16 anos, o município elege Paulo Henrique Serra (PSDB) com 78,21% dos votos válidos. Em 2020, ele foi novamente eleito, com 76,93% dos votos.

Lula, à esquerda, e Celso Daniel, à direita, na época em que eram colegas de partido Foto: Reprodução l GloboPlay
Lula, à esquerda, e Celso Daniel, à direita, na época em que eram colegas de partido Foto: Reprodução/GloboPlay

Já em São Bernardo do Campo, em cerca de 30 anos, somente sete prefeitos alinharam-se à ideologias mais progressistas, enquanto outros seis foram de direita ou centro-direita. Desses sete, três foram do PT. O primeiro prefeito de esquerda eleito foi Maurício Soares em 1998, na época do PT. A esquerda se apresenta com maior evidência a partir dos anos 90, conseguindo 06 mandatos seguidos. A “época de ouro” se encerra em 2016 com Luiz Marinho (PT). 

Hélio da Costa, historiador e atual coordenador da área de estudos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, acrescenta que a situação econômica do país favoreceu esse cenário. “[Luiz] Marinho só se elegeu porque o governo Lula estava muito bem”, pontua. 

O ano de 2016, foi um marco da queda do PT. É nesse ano em que houve o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. Não coincidentemente, é a partir desse ano em que o partido perde cada vez mais poder na região.

Em 2018, após ordem de prisão dada a Lula, apoiadores do político estiveram no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP), até que o ex-presidente fosse de fato preso — Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
Em 2018, após ordem de prisão dada a Lula, apoiadores do político estiveram no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP), até que o ex-presidente fosse de fato preso — Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

São Caetano do Sul, por sua vez, não só nunca teve um prefeito alinhado com propostas da esquerda, como candidatos progressistas obtêm um baixo número de votos no município.

Na última eleição, em 2020, por exemplo, os outros dois colocados no pleito foram Mario Camilo Bohm (Novo) e Thiago Tortorello (PRTB), com 16,64% e 10,83% respectivamente. Ambos são de direita. 

Em 2016, o cenário eleitoral foi o mesmo. E nos anos de 2012, 2008, 2004 e 2000 os principais candidatos opositores receberam menos de 35% dos votos.

Diadema, em contrapartida, traz consigo o marco de ter sido a primeira cidade a eleger um prefeito do PT.

O candidato em questão foi Gilson Menezes, eleito em 1982. Desde então, a cidade tem sido coordenada por partidos que compartilham do mesmo ou semelhante posicionamento político.

 A história de Gilson Menezes, inclusive, reflete bem o histórico do ABC Paulista, pois ele nasceu na Bahia e veio à região para trabalhar nas indústrias, como tantos outros, depois participou das grandes greves e, por fim, fez parte da fundação do PT.

Além dessa contraposição, outro fator relevante para se analisar é a média de deputados estaduais eleitos do PT nos municípios do ABC entre os anos de 2002 e 2006, comparando-os ao ano de 2018.  De acordo com a Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de Dados) durante os anos de auge do partido foram eleitos em média 4,2 candidatos do PT, dentre 15 cadeiras a ocupar. Já em 2018, essa média cai para 1,5 candidatos eleitos pelo PT.

Para Hélio da Costa a popularização de Lula não significou necessariamente uma “transferência de votos”. Com exceção de Diadema, os outros municípios do ABC tiveram menos prefeitos alinhados à esquerda.

Já Richard Martins, graduado em história e mestre em ciência política, explica que a região sempre foi mais conservadora, mas que na época de 70 e 80 o apoio ao sindicalismo com bases esquerdistas se deu por questões trabalhistas e econômicas. Martins defende que “é comum e característico da classe trabalhadora votar com o bolso”.

As décadas de 70 e 80 no ABC Paulista foram marcadas pelas greves nas grandes indústrias. Essas surgiram devido à insatisfação dos operários devido aos elevados níveis de demissões, corroborados pela especulação de que o regime militar (1964-1985) havia maquiado os índices da inflação encobrindo o custo de vida da população. 

Em 1977, as greves já haviam se alastrado para muitas fábricas e cidades vizinhas, incluindo classes trabalhadoras desde os metalúrgicos aos bancários, perpassando pelos professores. Em 1980, os movimentos foram atores sociais importantes para o enfraquecimento da ditadura militar e pelo fortalecimento de pautas da esquerda no país.

O fato de Lula ter assumido o protagonismo sindical no ABC nas décadas passadas o levou a uma certa popularização na região e, posteriormente, ao PT também.

Sidney Jard, professor da Universidade Federal do ABC, doutor em ciência política pela USP, acredita que os momentos históricos vivenciados pelo ABC influenciam pouco na hora de votar. Isso porque antes o movimento sindical pautava muitas coisas com os trabalhadores e agora há um enfraquecimento do sindicalismo e, consequentemente, de sua mobilização política.

Dentro disso, Costa argumenta que “o discurso de esquerda assusta o trabalhador, ele respeita o papel do sindicato, mas isso não significa que ele se identifica com valores da esquerda principalmente às vezes nos costumes a respeito da diversidade LGBTQIA + ,sobre feminismo, questão racial”.

Martins justifica a queda da esquerda no ABC Paulista com o enfraquecimento do sindicalismo. Tanto para ele quanto para Costa isso aconteceu principalmente pela terceirização e a uberização do trabalho. 

“O que o terceirizado vai ter em comum com o trabalhador de contrato assinado e que tem o sindicato para defendê-lo? [...] Quem está na uberização sequer tem uma troca [de vivências] com outros [trabalhadores]”, exemplifica o historiador.

O cientista político Jard assinala que quando “se abrem espaços para que parte dos trabalhadores negociem diretamente com os empresários, com os patrões, sem depender da negociação” feita pelos sindicatos, as demandas de até então desaparecem.

Jard frisa que antes “havia uma identidade de trabalhador no ABC Paulista” e que com a chegada desse trabalho descontínuo isso se perde. “Qual a identidade de um trabalhador que trabalha para vários patrões? E qual o sindicato o representa?”, pontua.

Outro fator para a dissolução das entidades sindicais foi o corte dos incentivos tributários, em que antes se tinha com os “impostos sindicais”. Dentre as ressalvas feitas a esse tipo de recurso, o cientista político esclarece que deveria ter sido feito um processo de transição, na qual as entidades “pudessem se organizar e criar formas alternativas de sustentação dos seus trabalhadores, inclusive formas autônomas”.

A cientista política Maria do Socorro Braga defende que não só a região do ABC, mas o eleitoral nacional em sua maioria está mais preocupado com a sua mudança de vida do que com ideologias. “A tendência é buscar aquelas forças, independente se é de esquerda, de direita e de centro que mais apoie uma melhor qualidade de vida das pessoas”. A docente elucida que a identificação partidária é “uma construção de longo prazo”.

Diante disso, a docente acredita que “as forças políticas partidárias é que terão que construir projetos para corresponder a esses anseios e demandas dos diferentes segmentos populacionais”.

  A respeito dessa perda de votos por parte da esquerda, Braga afirmou: “a esquerda vai ter que saber se unir como fizeram agora ao redor do ex-presidente Lula [...] parece que eles já perceberam que vão precisar dessa união para a esquerda conseguir que novas lideranças venham a ocupar esse espaço e aí é muito importante como é que o PT vai se colocar tendo que abrir mais espaço para outras liderança que não só são do campo petista”.

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