Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
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23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
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Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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O corpo da feminino se reinventa como profissão, mercadoria e alternativa de trabalho.
por
Mohara Ogando Cherubin
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23/09/2025

Por Mohara Cherubin

 

Atualmente, os dias começam com a checagem de mensagens e propostas no perfil de conteúdo adulto, antes mesmo do café da manhã de Maria. A academia, os compromissos e o almoço ocupam as primeiras horas do dia, mas é no retorno para casa que o trabalho realmente começa. As tardes e noites são dedicadas a gravar vídeos, responder clientes e editar conteúdos. A rotina, que pode facilmente ultrapassar 12 horas de dedicação, exige organização e disponibilidade. Embora muitos ainda julgam a atividade como algo distante de um “trabalho de verdade”, ela descreve longas jornadas de produção, chamadas de vídeo e edição, realizadas sem apoio externo.

Demissão, dívidas e a responsabilidade de ajudar nas contas de casa foram os fatores que a levaram descobrir, por meio de uma amiga, a criação de conteúdo adulto como uma forma de garantir sua sobrevivência financeira. Provida apenas de um celular e da necessidade de pagar suas despesas, ela decidiu abrir um perfil em uma plataforma e, no primeiro dia, já conseguiu lucrar 300 reais em poucas horas. O resultado imediato a convenceu de que, apesar das dúvidas e inseguranças, havia ali um meio de se sustentar. A partir daquele momento, a rotina de trabalho passaria a girar em torno de gravações, interações com clientes e a construção de uma nova fonte de renda.

O início, contudo, não foi marcado apenas por ganhos. Como era anônima e não tinha seguidores, demorou para alcançar estabilidade financeira na plataforma. Nos primeiros meses, precisou pedir dinheiro emprestado e lidar com a desconfiança da família, que até hoje não sabe exatamente de onde vem sua renda. Para ela, lidar com o estigma social que associa a profissão à piedade é um dos maiores desafios, quando, em sua visão, foi uma escolha consciente diante das circunstâncias que enfrentava.

Apesar de ainda não saber se seguirá no mercado por muitos anos, garante que, por agora, não pensa em parar. Reconhece que sua relação com os clientes é de dependência, mas não admite ser “tirada” dessa vida, como já lhe foi oferecido por um dos consumidores mais recorrentes. Solteira, ela prefere manter o controle sobre suas decisões, sem dever nada a ninguém. Entre o cansaço das longas jornadas, as incertezas sobre o futuro e a satisfação de ver o dinheiro cair na conta, segue encarando um dia de cada vez, certa de que, se for preciso mudar de caminho, encontrará uma forma de se reinventar, como sempre fez.

De acordo com Maria Cláudia Neves, psicanalista especialista em adolescentes, embora o discurso do empoderamento seja colocado como um instrumento de defesa e apareça com frequência nesse contexto, a Psicanálise observa que a sensação de controle dessas mulheres é temporária. No início, a mulher acredita decidir o que mostrar e como se expor, porém à medida em que o sustento dela só é possível com o pagamento de seus assinantes, ela se vê dependente do desejo do cliente. Toda aquela liberdade sentida no começo passa a se tornar vulnerabilidade, uma vez que os conteúdos passam a responder às exigências externas, caso contrário o cliente deixará de pagar e procurará um perfil que atenda às suas vontades. 

Do outro lado da tela, o consumidor busca satisfação em uma fantasia que nunca se completa. Para a psicanalista, trata-se de uma busca por pulsão de vida, por um corpo idealizado que nunca é suficiente. É por essa razão que tantos indivíduos desenvolvem vícios em pornografia. De acordo com dados do PornHub, site canadense de compartilhamento de vídeos pornográficos, o Brasil está entre os dez países que mais consomem pornografia, com 39% de usuárias mulheres e 61% de usuários homens. Os conteúdos são esporádicos e a satisfação é sempre passageira, levando ao consumo repetitivo. Assim como a criadora de conteúdo se torna refém da manutenção de sua imagem e dos gastos associados a ela, o cliente também se torna refém de seu próprio desejo.
 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Grupos de extrema direita encontraram o revisionismo histórico como uma importante ferramenta para sua expansão ideológica, buscando se infiltrar nos ambientes escolares.
por
Gabriel Lourenço e Lucca Fresqui
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26/07/2023

Com o crescimento recente da extrema direita no país, além de confrontos no campo político, a disputa no campo ideológico se agravou. Nesse cenário de intensa polarização, pautas revisionistas ganharam força

Com isso, observamos uma tendência preocupante de reexaminar eventos históricos cruciais, sob uma lente de relativização e negação. Essa abordagem visa diminuir ou até mesmo apagar a gravidade e as consequências desses acontecimentos. 

Leonardo Nascimento, professor de História e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, conta que, se por um lado a universidade sofreu ataques durante os quatro anos de governo Jair Bolsonaro, por outro adotou comportamentos para se blindar de ameaças.

Em sua avaliação, o ambiente democrático e crítico das universidades passou a ser corrompido uma vez vozes dissidentes eram vistas com um olhar de desconfiança. Por vezes até mesmo encaradas como bolsonaristas.

Para ele, a tentativa de silenciar vozes dissidentes e de construir uma homogeneidade de opiniões no ambiente acadêmico teve como impacto a perda da crítica e da inovação no ensino.

Já Marcelo Reis, professor de História em uma escola de ensino médio na capital paulista, reclama de projetos educacionais, como o “Escola sem Partido”, que buscam implementar uma cartilha conservadora na escola. “Eles [revisionistas] falam tanto de doutrinação, entretanto, na verdade eles querem que a escola seja um meio de dispersão de pautas conservadoras”.

Reis também acredita que discursos revisionistas passaram a ser mais presentes nos últimos anos em suas salas de aula. “Criou-se uma relação de conflito entre professor e aluno. A figura do professor foi desacreditada”, diz.
Existe também medo do “comunismo” e de uma esquerda que seria a grande detentora de toda a mídia e todo o sistema educacional – visões irreais, mas que são tidas como fatos por alguns. 
 
Guilherme Assis, de 22 anos, fez parte de movimentos bolsonaristas no passado e diz que esses grupos tinham como prática uma conduta agressiva em sala de aula. Conta que esses comportamentos eram motivo de admiração nas redes bolsonaristas. “Mandavam vídeos de dentro da sala de aula para mostrar para os outros”, explica Assis.

Essa postura de negação da história e de “desafio ao sistema” é extremamente valorizada entre apoiadores desses movimentos, segundo Guilherme.

Reis afirma que esses casos estão fortemente ligados ao fenômeno da extrema direita. “A retórica é a mesma do Bolsonaro, é parte de um projeto de criar uma juventude bolsonarista” Na sua avaliação, descreditar o ambiente acadêmico permite criar suas próprias verdades.

Leonardo Nascimento diz que a ideia de traçar o ambiente da escola como um ambiente a ser combatido estava fortemente presente nas políticas do ex-presidente. Aponta para sua candidatura em 2018, onde uma de suas principais pautas era de “desesquerdizar” o ambiente escolar, incorporando no bolsonarismo movimentos pré-existentes como o “Escola sem Partido”.

Essas pautas se mantiveram em voga durante os quatro anos do seu mandato. “Vamos acabar com a doutrinação no Brasil”, declarou Bolsonaro em sua cerimônia de posse em 1º de janeiro de 2019.

O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, deu declarações atacando a “doutrinação marxista” nas escolas. Em uma reunião no Conselho Nacional da Educação, em abril de 2019, disse: "Não vamos permitir que nossas crianças e jovens sejam doutrinados ideologicamente por uma minoria que detém o poder".

Segundo Marcelo Reis, essas políticas têm uma forte ligação com a mentalidade violenta da extrema direita. “O bolsonarismo coloca com um alvo em qualquer discurso que se oponha a ele. Fazem com que sejam inimigos a serem eliminados”, opina. “Faz parte da ideia de criar um clima bélico contra a imprensa, professores e quaisquer outros considerados inimigos”, continua.

Questionado sobre os desafios gerados pelo revisionismo no sistema educacional, o professor de Comunicação da PUC-SP, José Salvador Faro afirma que isso "força os professores a se manterem sempre antenados e atualizados".

Mas ele aponta que esse desafio tem pontos positivos, uma vez que, mesmo trazendo consigo uma carga de desinformação e fraude, novas descobertas e perspectivas podem surgir ao se revisitar a História.

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A fome ou uma dieta pobre em nutrientes e minerais traz prejuízos incalculáveis às crianças,
dificultando a concentração e o foco
por
Guilherme Lima Alavase
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24/07/2023

“O desemprego, o trabalho precário e mal remunerado, a má distribuição de
renda, são os principais causadores da fome e da desnutrição no Brasil.” Essa
é avaliação de Nanci Maria da Silva de Oliveira, uma das coordenadoras da
Pastoral da Criança em São Paulo.

Uma de suas funções é acompanhar e orientar as gestantes e crianças de zero
a 6 anos em relação à alimentação saudável e barata, ensinando as mães para
o aproveitamento completo dos alimentos, utilizando as folhas, cascas,
sementes e tudo o que for possível ser consumido.  

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil voltou ao
mapa da fome, ou seja, a estar em situação de insegurança alimentar, quando
as famílias vulneráveis economicamente, ao acordar, não sabem se terão
algum alimento para comer no decorrer do dia.

De acordo, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma
situação é crônica “quando os moradores passaram por privação severa no
consumo de alimentos”. Com a insuficiência de comida, o indivíduo não tem
energia suficiente para manter o seu organismo funcionando adequadamente
para desempenhar as suas atividades cotidianas. 

A coordenadora da Pastoral da Criança diz que desperdiçamos muitos
alimentos e que o principal programa de seu grupo é ensinar as famílias, que
frequentam as atividades da pastoral, a fazer as suas compras no final da feira,
a chamada “xepa”, pois os preços estão mais baixos. Mas também pechinchar
pelos produtos que estão sobrando na banca do feirante, pedir a doação das

folhagens e legumes que ele pretende descartar. Com os alimentos em mãos,
ensinam a higienizá-los e armazená-los adequadamente.

Por fim, preparam pratos, muitas vezes desconhecidos pelos participantes.

Segundo o IBGE, cerca de 30% dos alimentos comercializados no Brasil são
descartados em alguma parte do processo. Isso equivale a jogar 46 milhões de
toneladas de comida no lixo todos os anos. 

O desperdício acontece em todas as fases da produção e comercialização dos
produtos. As perdas começam no transporte, sem o cuidado necessário,
passam pelo ponto de venda, onde os produtos “machucados” ou com
pequenos defeitos são descartados, pois não há interesse comercial neles.

Por fim, o consumidor final joga fora uma parte dos itens adquiridos, pois
compra em excesso, descuida com a conservação ou descarta frutos, legumes
e verduras que não estão bonitos e viçosos. Boa parte do desperdício de
alimentos é proveniente do dia a dia das famílias. 

A professora Irene Neves, também colaboradora da Arquidiocese de São
Paulo, afirmou que a fome ou uma dieta pobre em nutrientes e minerais
essenciais ao crescimento e desenvolvimento traz prejuízos incalculáveis às

crianças, dificultando a concentração e o foco - habilidades essenciais no
processo de aprendizagem.

Segundo ela, não se consegue aprender quando o corpo não tem os nutrientes
necessários.  Tais impactos no desenvolvimento físico, emocional e cognitivo
certamente irão prejudicar a qualidade de vida na fase adulta, pois o jovem terá
baixa escolaridade associado à dificuldade de aprendizagem, frustrando sua
inserção no mercado de trabalho.
Irene também ressaltou que a fome na primeira infância pode levar à morte,
pois a criança desnutrida apresenta o sistema imunológico vulnerável, sendo
menos resistentes às doenças comuns da infância.  
 
A coordenadora da Pastoral da Criança, Nanci enfatizou que a fome e as
restrições a uma alimentação saudável desaparecem com uma renda bem
distribuída, pois, segundo ela, a questão não é de escassez de alimentos no
país e sim do convívio com a desigualdade social.

Uns desperdiçam comprando e consumindo em excesso, outros ficam na fila
do osso para conseguir resto de carne para fazer uma sopa. Como exemplo,
basta observar a grave crise de desnutrição e fome dos índios Yanomami. Eles
não estão morrendo de fome por falta de alimentos no Brasil e sim porque o
governo anterior não garantiu que a comida chegasse às aldeias.

O Brasil saiu do mapa da fome nos primeiros anos do século 21, porém, as
políticas públicas de combate à fome e a pobreza adotadas na época foram
gradativamente desmobilizadas. As reformas trabalhistas não trouxeram os
empregos prometidos, pior, abriram a possibilidade de ampliação sem
precedentes do trabalho precário, sem garantias sociais e com baixos salários
empobrecendo ainda mais a população já vulnerável.

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Após repercussão dos ataques que ocorreram em abril deste ano nas mídias sociais, ministros ressaltam a importância do projeto de regulamentação das redes e do combate às fake news
por
Por Nicolly Novo Golz, João Victor Esposo Guimarães e Guilherme Lima Alavase
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08/07/2023

“Os ataques às escolas estão totalmente ligados às redes sociais e a principal solução a curto prazo é a sua regulamentação”, essa é a avaliação de Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), um dos maiores especialistas em desinformação nas redes sociais.

Ele afirma que existem comunidades nas mídias sociais que celebram massacres e endeusam terroristas, isso demanda uma ação do Congresso Nacional para aprovar leis que obriguem as plataformas a agir.

Em abril deste ano um homem de 21 anos entrou em uma escola em Cambé e assassinou a aluna Karoline Verri Alves, 17, e o aluno Luan Augusto, 16, ambos foram baleados na cabeça. O criminoso foi preso logo após cometer o crime e na noite seguinte, o assassino foi encontrado morto na Casa de Custódia de Londrina.

Este não foi um caso isolado de ataque à escola no ano de 2023. No dia 5 de abril deste ano, um homem de 25 anos invadiu a creche Bom Pastor, na cidade de Blumenau, Santa Catarina e causou a morte de 4 crianças. O massacre foi feito menos de um mês depois que um adolescente de 13 anos matou uma professora a facadas em uma escola estadual em São Paulo.  

“Quando acontece um ataque bem sucedido e é veiculado na mídia do jeito que foi, faz com que os membros da comunidade se inspirem em um indivíduo que saiu do anonimato e passou a ser venerado, isso estimula pessoas a fazerem logo na sequência o mesmo tipo de ataque”, diz Ortellado. A True Crime Community é uma comunidade online popular que cultua esses tipos ataques e seus autores, uma fração de membros ficam muito próximos de cometer atentados para sair do anonimato.  

“A imensa maioria do que foi registrado nesse período foram trotes, eram meninos fazendo ameaças falsas para perder prova de matemática e coisas desse gênero.” O coordenador explica que foi o que aconteceu no caso do Brasil, gerando um pânico que se agravou por conta da quantidade de desinformação que circulou.

Ortellado conta que nos últimos 20 anos, o Brasil teve 93 vítimas de ataques a escolas, entre mortos e feridos e no último ano ocorreram mais episódios do que nos últimos 10 anos anteriores, então a reação das pessoas acabou sendo uma mistura de uma sociedade que não estava acostumada com essa sequência de ataques e trotes.

A dentista Márcia Pancini, mãe de Valentina, disse que mesmo sabendo que o WhatsApp não é a melhor ferramenta para se manter informada, utilizava o grupo das mães como fonte de informações. “O grupo das mães era uma loucura, disseram que dia 20 de abril ia acontecer massacre em todas as escolas, mandaram áudios, vídeos, e até fotos com ameaças e a gente na hora do desespero acredita em tudo que vê.”

“A Valentina descobriu dos ataques pelas redes sociais, ficou apavorada com os vídeos que viu pelo Tik Tok e não quis ir para escola com medo dos próprios colegas de classe”. Pancini explicou que com a rotina de trabalho, os pais acabam utilizando a tecnologia em busca de um momento de tranquilidade e entregam nas mãos das crianças o acesso livre à internet e não conseguem filtrar o tipo de conteúdo que os filhos têm acesso.

Somente depois do ataque à escola em Blumenau, no dia 5 de abril, 225 pessoas foram presas ou apreendidas, no caso de menores, por suspeitas de envolvimento no caso. Além disso, a Justiça já retirou ou suspendeu 756 perfis em redes digitais dedicados a difundir ódio.

Ricardo Kassin, advogado especialista em direito digital explica: “É sempre bom destacar que tanto a criação quanto a propagação dessas fake news são práticas criminosas e os responsáveis identificados responderão por tal ato”.

A delegacia de crimes cibernéticos iniciou investigações para responsabilizar quem propaga notícias falsas sobre ataques às escolas. Kassin explica que para se defender juridicamente é preciso identificar quem escreveu a fake news, em seguida deve ser feita uma notificação extrajudicial, que serve como uma prova preparatória e se caso o indivíduo não responder, se transforma em uma prova para um eventual procedimento judicial.

Quando perguntado sobre medidas efetivas para acabar com o ódio propagado nas redes sociais, o especialista de imediato cita a regulação das mídias: “É de extrema importância a regulação das mídias, mas a autorregulação das empresas não é o suficiente e enquanto não tiver um órgão fiscalizador com instrumentos para exigir a retirada desses conteúdos a gente vai seguir tendo um problema sério”.

Logo após os episódios em abril, o presidente Lula convocou uma reunião no Palácio do Planalto sobre combate à violência nas escolas. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse que a regulação da internet é fundamental para combater problemas como a violência nas escolas.

A proposta de regular redes sociais e serviços de mensagens, é considerada um instrumento importante para combater a violência nas escolas. Entre as regras que o projeto estabelece estão a retirada imediata, da internet, de conteúdos que possam causar dano iminente de difícil reparação ou que violem direitos de crianças e adolescentes. Também deverão ser imediatamente excluídas publicações que coloquem em risco a segurança do usuário ou que contenham crimes previstos na Lei do Racismo.

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Apesar de não ser o papel principal na questão da fome, a educação é um agente direto de garantir refeições às crianças
por
Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete e Henrique Baptista
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08/07/2023

As escolas públicas têm um grande papel no combate à insegurança alimentar das crianças, pois é o local que garante a principal refeição do dia à elas: o almoço. Especialistas defendem aumentar a quantidade de tempo nas escolas para aumentar o número de refeições e a melhoria da qualidade de vida das mães em uma sociedade com alto abandono parental.

Mas o problema da fome é muito mais complexo do que oferecer refeições. Ele exige uma abordagem multidisciplinar que envolva não apenas a educação, mas também políticas públicas de saúde, assistência social e economia, visando garantir o acesso universal à alimentação adequada e saudável.

A merenda escolar é a ferramenta mais potente que as instituições de ensino têm atualmente para lidar com a crise da insegurança alimentar dos alunos. Ela assegura que os estudantes se alimentem durante o período das aulas. 

De acordo com o Censo da Educação Básica de 2022, a cidade de São Paulo abriga aproximadamente 5300 escolas. Cerca de 60% dos alunos fazem refeições no ambiente. Na teoria, a oferta da merenda serve para o desempenho da criança na escola. Na prática, muitos alunos continuam a frequentar o ambiente escolar justamente para ter acesso à alimentação. 

Existem formas de ampliar o poder da educação como agente de combate a este problema social.

O diretor da FGV Social Marcelo Neri explica que, assim como em outros países, a jornada escolar das crianças no Brasil deveria ser ampliada. “A partir do momento que você aumenta o tempo da criança na escola, ela tem como obrigação ofertar outras refeições, como café da manhã e lanche da tarde”, afirma. Estender a jornada escolar é uma das medidas cabíveis no cenário atual.

Vale destacar que, além de melhorar a quantidade, também há a necessidade de melhorar a qualidade do que é ofertado às crianças. O vereador Celso Giannazi explicou que essa mudança é possível no cenário atual da cidade de São Paulo: “O orçamento tem recursos para que a gente tenha uma alimentação saudável e em quantidade suficiente, falta vontade política de implementar uma ação voltada à alimentação escolar”. 

Portanto, o investimento em educação leva, necessariamente, ao investimento no combate à fome. Esses dois pilares estão diretamente interligados por vários fatores. A nutricionista infantil no Instituto de Desenvolvimento Infantil Dyandra Loureiro explica que crianças com déficit nutricional, estão com o desenvolvimento comprometido: “A parte cognitiva é a autora do desenvolvimento neurológico e precisa estar bem nutrida”. 

No ano passado, a lei 11.947, de 2009, recebeu uma proposta de alteração em São Paulo. No artigo, a alimentação escolar foi posta como um direito do aluno e dever do Estado. O projeto de 2022 propõe adicionar um novo parágrafo colocando a disponibilidade de duas refeições por dia para atender as necessidades nutricionais de cada faixa etária. 

Apesar de se encaixar perfeitamente no contexto atual, a medida não saiu do papel. Além do mais, é preciso analisar a situação a partir de outras vertentes, pois dois pratos de comida não resolvem o problema. É imprescindível considerar a questão maternal para entender outras raízes da fome infantil. 

Garantir alimento às mães para garantir aos filhos

Junto com o trabalho das escolas, é necessário o trabalho efetivo de políticas públicas, como por exemplo o Bolsa Família. Somado a esses, o combate à fome das mulheres deve ser priorizado para reduzir o problema da fome infantil. 

A quantidade de mães solo nos lares mais pobres é abundante, isso explica o porquê da importância do papel materno na alimentação infantil. Portanto, em muitos casos, a mãe é a única fonte de renda que a criança possui.

Segundo Neri, “empoderar as mães é a melhor forma de garantir a alimentação infantil”. Isso porque os filhos são extremamente dependentes das mães, ainda mais considerando um contexto de famílias em situação de extrema pobreza com um maior índice de abandono paternal (56%, de acordo com dados do IBGE). 

“De um lado, as escolas fechadas, de outro, mulheres ficando sem emprego. A situação só se agravou na pandemia”, relembrou o economista. O exemplo do que ocorreu durante a crise da Covid-19 esclarece o que ocorre quando tiram as crianças da escola e deixam as mães desempregadas. As mulheres ficam sem opções e os filhos, sem comida.

Por esse motivo, programas sociais como o Bolsa Família priorizam as mães no recebimento do auxílio. 

Políticas de combate à fome 

O Bolsa Família é o mais conhecido programa de combate à fome no Brasil. Os valores repassados às famílias são calculados de acordo com a quantidade de filhos que os tutores são encarregados de sustentar. Mas existem outros programas essenciais para prevenir o agravamento da fome infantil. 

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece refeições nas escolas e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. O governo federal repassa valores conforme o número de matriculados em cada rede de ensino.

Durante os governos Temer e Bolsonaro, o projeto foi abandonado. Sem reajustes desde 2017, o PNAE passou pelos anos mais críticos da história do país sem nenhum aumento em seu orçamento. 

Todavia, após 7 anos de boicote, o atual governo aumentou em 39% o valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), corrigindo o orçamento destinado à compra da merenda de 4 bilhões de reais para 5,5 bilhões. 

Tanto o Bolsa Família quanto o PNAE e outros programas com o mesmo viés complementam o trabalho de incentivo à garantia da alimentação nas escolas e ajudam a construir um cenário mais cauteloso e atento aos arredores da questão.

Em entrevista ao Jornal da USP, a economista Tereza Campello afirmou que “embora seja relevante para combater a fome no Brasil, o assistencialismo não substitui as políticas públicas, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo”.

Contudo, os indicadores ainda são escassos, o que dificulta os estudos. Segundo o pesquisador e doutorando da UFABC José Raimundo Souza, “esse é um assunto delicado e limitado em termos de pesquisa. É preciso avaliar o sistema como um todo para ajudar a encontrar soluções eficazes”. 

Uma melhoria foi garantida nos últimos dias.O Ministério do Desenvolvimento Social divulgou que vai iniciar uma pesquisa de mapeamento da insegurança alimentar no Brasil. O estudo é de extrema importância porque, a partir do momento que tivermos esse mapeamento, é possível identificar as regiões que precisam de uma atenção maior, qual a situação atual e quais melhorias serão eficazes na prática.

O ideal para combater a fome infantil seria um plano político que rompa com a influência do dinheiro e possibilite transformações sociais efetivas. Logo, o investimento em educação e empregabilidade de mulheres são primordiais para diminuir os índices da fome infantil. 

Investir no combate à insegurança alimentar infantil é investir no futuro do país. As crianças que não sofrerem com a fome, vão poder usufruir melhor da vida, que acabou de começar. Elas são os adultos do futuro, ou seja, quanto antes conseguirmos diminuir o problema, mais tempo e qualidade de vida daremos à população do nosso país.

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Economia e Negócios

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Após cinco meses da catástrofe, milhares de pessoas desalojadas e em situação de insegurança alimentar exigem esforços contínuos de assistência humanitária
por
Giuliana Nardi e Vitória Nunes
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07/07/2023

“Muitas pessoas morreram por conta do frio e da fome, não pelo terremoto.” Conta Emrullah Güngör, estudante de 22 anos que mora perto da região. No dia 6 de fevereiro de 2023, um terremoto de magnitude de 7.8 atingiu o sul da Turquia e o noroeste da Síria.

Sendo um dos maiores já registrados desde 1939, os tremores atingiram principalmente Kahramanmaras e outras 10 cidades vizinhas, deixando pelo menos 2,5 milhões de pessoas desalojadas e 56 mil mortos, segundo dados da Reuters.

Güngör relata que muitos de seus amigos foram afetados pelo terremoto e ficaram sem domicílio da noite para o dia. “A população não tinha para onde ir, nem conseguiam achar moradia. Nem todo mundo foi resgatado dos destroços causados pelo terremoto.”

Ceren Lale, outra estudante de 21 anos, destaca que a ajuda demorou a chegar para aqueles que precisavam: “A princípio, eles [o governo] não encontraram transportes para ajudar as pessoas, e em certo momento, também não conseguiram encontrar pessoas para conduzirem estes transportes”.

A falta de abrigo e a destruição da infraestrutura dificultaram a entrega de alimentos e de assistência humanitária, por conta da dificuldade de mobilização. Emrullah avaliou que o governo turco só se preocupa com as consequências de curto prazo.

Ambos os estudantes afirmaram que o governo chegou tarde demais nos locais atingidos pelo terremoto, enquanto houve uma grande movimentação de ajuda e de arrecadação de fundos pelas redes sociais. Grande parte da população turca se comoveu e se juntaram para enviar voluntários, roupas e comida para as vítimas.

Luís Fernando Prestes Camargo, professor e mestre de História brasileira que está na Turquia há mais de 5 meses, teve a ideia de realizar uma arrecadação com os apoiadores de seu projeto "Pedalando na História".

Ele conseguiu arrecadar US$2.500 somente no Brasil, o qual foi utilizado para adquirir centenas de cobertores e alimentos entregues aos mais de 6 mil desabrigados em Esparta.

Foto: Reprodução - Luís Fernando Prestes Camargo e seu cachorro Belmiro com arrecadações

De acordo com  Luiz Keppe, subchefe da Coordenação-Geral de Segurança Alimentar e Nutricional do MRE, embora não haja dados recentes que confirmem o aumento da fome nesses países, pode-se presumir que as catástrofes reforçaram uma tendência de aumento geral nesse sentido. 

Ele destaca que os dados mais recentes do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) indicam que 12,1 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar, e 2,7 milhões estão em insegurança alimentar grave, um aumento de 300 mil pessoas em relação ao período anterior aos terremotos.

A Confederação dos Sindicatos da Turquia revela que, após os terremotos, a "linha da fome" ultrapassou o valor do salário mínimo, indicando a quantidade de renda necessária para uma família de quatro pessoas obter nutrição suficiente.

Segundo dados da ONU, aproximadamente 2,2 milhões de pessoas receberam ajuda alimentar, mais de 1 milhão de consultas médicas foram realizadas e cerca de 380 mil pessoas agora têm acesso a água e saneamento

O auxílio na Síria também foi essencial, graças à ajuda de sete agências da ONU, mais de 900 caminhões viajaram pela Turquia e levaram ajuda à região. As Nações Unidas também desembolsaram aproximadamente US$ 40 milhões em fundos de emergência.

O professor Camargo destaca que os desabrigados estão recebendo uma renda mensal de US$500 do governo, além de muitas doações. Ele enfatiza que a comunidade internacional já fez o possível, enviando pessoas para resgatar vítimas vivas sob os escombros.

Turquia x Síria: O problema da fome e as disputas de poder

As situações na Síria e na Turquia são bastante distintas, assim como suas experiências com a fome. Rodrigo Augusto Duarte Amaral, professor de Relações Internacionais e especialista em Estados Unidos e Oriente Médio da PUC-SP, afirma que a Turquia é um país mais estável e sólido em comparação com a Síria.

Por consequência da Primavera Árabe, a Síria passou por uma Guerra Civil nos últimos 12 anos, e atualmente a fome é vista como uma das consequências deste cenário de crise.

Segundo o PMA, mais de 50% da população síria, aproximadamente 12,1 milhões de pessoas, está em situação de insegurança alimentar, e 2,9 milhões correm o risco de enfrentar a fome.

De acordo com o professor Amaral da PUC-SP,  a Turquia, por sua vez, tem maior conexão com as estruturas das comunidades internacionais, além de ter um governo mais estável sob Recep Tayyip Erdoğan. Ele explica que isso facilita a chegada da ajuda de maneira mais eficiente em comparação com a Síria.

Ele esclarece que em cenários de catástrofe ambiental, como os terremotos, todas as formas mínimas de organização sociopolítica, logística, mercado e infraestrutura são destruídas. Nessas situações, a fome se torna ainda mais intensa nos estados já fragilizados.

Keppe ressalta que a insegurança alimentar e nutricional impacta principalmente as mulheres. Cerca de 60% das pessoas que passam fome seriam mulheres, que muitas vezes se sacrificam em prol de suas famílias, comendo menos e por último, especialmente em regiões de conflito e emergência humanitária.

O coordenador de segurança alimentar explica que os refugiados também seriam um grupo vulnerável afetado pelos terremotos na Turquia e na Síria, enfrentando dificuldades de acesso ao mercado formal de trabalho e falta de estrutura de moradia, saúde e saneamento.

O especialista Amaral ressalta que seria natural que a fome se intensifique em um país já fragilizado por um terremoto, especialmente em uma região mais vulnerável dentro de outro país estável, como a Turquia.

O terremoto na Turquia e na Síria teve consequências diferentes devido a suas condições financeiras distintas, conflitos geopolíticos e localizações que podem facilitar ou dificultar a chegada da ajuda necessária. No entanto, ambos os países enfrentaram o desafio da fome.

Luiz Keppe menciona que o Brasil tem se empenhado em auxiliar na reconstrução após os desastres naturais na Síria e na Turquia. "Logo após os terremotos, enviamos equipes de resgate para a região e, nas semanas seguintes, fornecemos doações de vacinas, medicamentos e alimentos."

O coordenador ressalta que o compromisso de aliviar o sofrimento desses povos com os quais o Brasil mantém laços de longa data persistirá, fornecendo toda a assistência possível para mitigar seu sofrimento.

Nesse contexto, Keppe enfatiza a importância de possibilitar a retomada da produção e a disponibilidade doméstica de alimentos, inclusive por meio de doações de alimentos e reconstrução de infraestruturas para irrigação de lavouras e processamento de produtos agrícolas.

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