Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
por
Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Após cinco meses da catástrofe, milhares de pessoas desalojadas e em situação de insegurança alimentar exigem esforços contínuos de assistência humanitária
por
Giuliana Nardi e Vitória Nunes
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07/07/2023

“Muitas pessoas morreram por conta do frio e da fome, não pelo terremoto.” Conta Emrullah Güngör, estudante de 22 anos que mora perto da região. No dia 6 de fevereiro de 2023, um terremoto de magnitude de 7.8 atingiu o sul da Turquia e o noroeste da Síria.

Sendo um dos maiores já registrados desde 1939, os tremores atingiram principalmente Kahramanmaras e outras 10 cidades vizinhas, deixando pelo menos 2,5 milhões de pessoas desalojadas e 56 mil mortos, segundo dados da Reuters.

Güngör relata que muitos de seus amigos foram afetados pelo terremoto e ficaram sem domicílio da noite para o dia. “A população não tinha para onde ir, nem conseguiam achar moradia. Nem todo mundo foi resgatado dos destroços causados pelo terremoto.”

Ceren Lale, outra estudante de 21 anos, destaca que a ajuda demorou a chegar para aqueles que precisavam: “A princípio, eles [o governo] não encontraram transportes para ajudar as pessoas, e em certo momento, também não conseguiram encontrar pessoas para conduzirem estes transportes”.

A falta de abrigo e a destruição da infraestrutura dificultaram a entrega de alimentos e de assistência humanitária, por conta da dificuldade de mobilização. Emrullah avaliou que o governo turco só se preocupa com as consequências de curto prazo.

Ambos os estudantes afirmaram que o governo chegou tarde demais nos locais atingidos pelo terremoto, enquanto houve uma grande movimentação de ajuda e de arrecadação de fundos pelas redes sociais. Grande parte da população turca se comoveu e se juntaram para enviar voluntários, roupas e comida para as vítimas.

Luís Fernando Prestes Camargo, professor e mestre de História brasileira que está na Turquia há mais de 5 meses, teve a ideia de realizar uma arrecadação com os apoiadores de seu projeto "Pedalando na História".

Ele conseguiu arrecadar US$2.500 somente no Brasil, o qual foi utilizado para adquirir centenas de cobertores e alimentos entregues aos mais de 6 mil desabrigados em Esparta.

Foto: Reprodução - Luís Fernando Prestes Camargo e seu cachorro Belmiro com arrecadações

De acordo com  Luiz Keppe, subchefe da Coordenação-Geral de Segurança Alimentar e Nutricional do MRE, embora não haja dados recentes que confirmem o aumento da fome nesses países, pode-se presumir que as catástrofes reforçaram uma tendência de aumento geral nesse sentido. 

Ele destaca que os dados mais recentes do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) indicam que 12,1 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar, e 2,7 milhões estão em insegurança alimentar grave, um aumento de 300 mil pessoas em relação ao período anterior aos terremotos.

A Confederação dos Sindicatos da Turquia revela que, após os terremotos, a "linha da fome" ultrapassou o valor do salário mínimo, indicando a quantidade de renda necessária para uma família de quatro pessoas obter nutrição suficiente.

Segundo dados da ONU, aproximadamente 2,2 milhões de pessoas receberam ajuda alimentar, mais de 1 milhão de consultas médicas foram realizadas e cerca de 380 mil pessoas agora têm acesso a água e saneamento

O auxílio na Síria também foi essencial, graças à ajuda de sete agências da ONU, mais de 900 caminhões viajaram pela Turquia e levaram ajuda à região. As Nações Unidas também desembolsaram aproximadamente US$ 40 milhões em fundos de emergência.

O professor Camargo destaca que os desabrigados estão recebendo uma renda mensal de US$500 do governo, além de muitas doações. Ele enfatiza que a comunidade internacional já fez o possível, enviando pessoas para resgatar vítimas vivas sob os escombros.

Turquia x Síria: O problema da fome e as disputas de poder

As situações na Síria e na Turquia são bastante distintas, assim como suas experiências com a fome. Rodrigo Augusto Duarte Amaral, professor de Relações Internacionais e especialista em Estados Unidos e Oriente Médio da PUC-SP, afirma que a Turquia é um país mais estável e sólido em comparação com a Síria.

Por consequência da Primavera Árabe, a Síria passou por uma Guerra Civil nos últimos 12 anos, e atualmente a fome é vista como uma das consequências deste cenário de crise.

Segundo o PMA, mais de 50% da população síria, aproximadamente 12,1 milhões de pessoas, está em situação de insegurança alimentar, e 2,9 milhões correm o risco de enfrentar a fome.

De acordo com o professor Amaral da PUC-SP,  a Turquia, por sua vez, tem maior conexão com as estruturas das comunidades internacionais, além de ter um governo mais estável sob Recep Tayyip Erdoğan. Ele explica que isso facilita a chegada da ajuda de maneira mais eficiente em comparação com a Síria.

Ele esclarece que em cenários de catástrofe ambiental, como os terremotos, todas as formas mínimas de organização sociopolítica, logística, mercado e infraestrutura são destruídas. Nessas situações, a fome se torna ainda mais intensa nos estados já fragilizados.

Keppe ressalta que a insegurança alimentar e nutricional impacta principalmente as mulheres. Cerca de 60% das pessoas que passam fome seriam mulheres, que muitas vezes se sacrificam em prol de suas famílias, comendo menos e por último, especialmente em regiões de conflito e emergência humanitária.

O coordenador de segurança alimentar explica que os refugiados também seriam um grupo vulnerável afetado pelos terremotos na Turquia e na Síria, enfrentando dificuldades de acesso ao mercado formal de trabalho e falta de estrutura de moradia, saúde e saneamento.

O especialista Amaral ressalta que seria natural que a fome se intensifique em um país já fragilizado por um terremoto, especialmente em uma região mais vulnerável dentro de outro país estável, como a Turquia.

O terremoto na Turquia e na Síria teve consequências diferentes devido a suas condições financeiras distintas, conflitos geopolíticos e localizações que podem facilitar ou dificultar a chegada da ajuda necessária. No entanto, ambos os países enfrentaram o desafio da fome.

Luiz Keppe menciona que o Brasil tem se empenhado em auxiliar na reconstrução após os desastres naturais na Síria e na Turquia. "Logo após os terremotos, enviamos equipes de resgate para a região e, nas semanas seguintes, fornecemos doações de vacinas, medicamentos e alimentos."

O coordenador ressalta que o compromisso de aliviar o sofrimento desses povos com os quais o Brasil mantém laços de longa data persistirá, fornecendo toda a assistência possível para mitigar seu sofrimento.

Nesse contexto, Keppe enfatiza a importância de possibilitar a retomada da produção e a disponibilidade doméstica de alimentos, inclusive por meio de doações de alimentos e reconstrução de infraestruturas para irrigação de lavouras e processamento de produtos agrícolas.

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Aumento dos índices de fome na capital paulista entre 2020 e 2023 resulta em crise humanitária
por
João Victor Tiusso e João Pedro Lindolfo
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01/07/2023

A crise econômica gerada pela pandemia aumentou a pobreza na cidade de São Paulo, dificultando o acesso à alimentos em regiões da periferia. Bairros como Perus, Brasilândia e Sapopemba, alguns dos mais afetados pelo vírus, apresentaram piora significativa nos quadros de fcrescimento no número de famílias em situação de vulnerabilidade. 

Levantamento da Secretaria de Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, de julho do ano passado, apontam 684.295 famílias em pobreza extrema na capital. Um aumento de 44% em relação a janeiro de 2021. O estudo foi feito com base em dados do Cadastro Único da Prefeitura, utilizado nos programas de assistência social. 

A redução da renda da população periférica, reflexo do aumento do desemprego e da inflação, está impossibilitando as pessoas de adquirirem alimentos básicos do cotidiano. 

Dossiê Sobre Casos Extremos de Fome na Cidade de São Paulo, organizado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), mostra que 25,3% das unidades de saúde que participaram do levantamento afirmaram possuir demanda de atendimento para indivíduos com sintomas decorrentes da fome entre 1 e 14 de dezembro de 2021. Casos assim só começaram a aparecer nas unidades a partir de setembro daquele ano, ainda no período de auge da pandemia. 

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), realizado pela Rede PENSSAN, revelou que 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, mas que em 2022 esse nível renda deixou de uma garantia contra a falta de alimentos. 

A pesquisa indica que 3% dos lares com essa renda tem seus moradores em situação de fome, 6% vivem com insegurança alimentar moderada e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação.

"Hoje, um dos principais desafios do combate à fome é identificar as localidades mais vulneráveis. E a periferia é, com certeza, o lugar mais descoberto [pelas políticas públicas]”, afirmou Soninha Francine, Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. 

A secretária explica que a questão da insegurança alimentar em regiões mais pobres é negligenciada. Há pessoas que mesmo mantendo o emprego e tendo moradia fixa, não conseguem comprar comida por conta dos preços altos, porém isso não é tão debatido. Ela também faz uma comparação com a situação dos moradores de rua, que se tornou cada vez mais visível ao longo dos anos, resultando em um número maior de ações voluntárias de combate à fome. 

Juliana Andrade Favacho, coordenadora da Cozinha Solidária do MTST, comenta sobre o perfil das pessoas atendidas pelo projeto em zonas periféricas e centrais da cidade: “Nas periferias vemos muitas mães solteiras, negras e com mais de um filho, além de muitas pessoas desempregadas. No centro há mais pessoas em situação de rua e usuários de drogas, que não recebem atendimento por nenhum programa social.”  

Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo e ex-assessor da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, pontua: "Vimos o quadro de insegurança alimentar se deteriorando em todo o mundo. Isso se deu em intensidades diferentes em cada região, quanto mais pobre a localidade, pior os índices."

Regiões com maior insegurança alimentar

Vila Brasilândia, bairro da zona Norte da cidade, e Sapopemba, zona Leste, foram os distritos que registraram maior número de óbitos por Covid-19 em 2020 e 2021. Ambas estão entre as regiões mais pobres de São Paulo e mais dependentes das políticas de combate à fome promovidas pela prefeitura. 

Já o bairro da zona Norte, Perus, possui a 7ª pior remuneração média mensal e foi a segunda localidade com maior número de óbitos por covid de acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, com 30,2% do número total de mortes sendo em decorrência da doença. 

Jardim Ângela, na zona Sul, iniciou 2022 com o maior número de casos de coronavírus na capital. Além de ser um bairro periférico, é o mais negro de São Paulo, com 60,1% de moradores negros na sua população, é o 12º com a remuneração média mensal e o 10º com o maior número de domicilios em favelas, mostrando que a questão racial que também circunda o problema da fome e de saúde pública na cidade. 

A periferia da zona Sul como um todo é uma área em estado crítico, abrigando 90% das famílias que passam fome. Os dados coletados pela prefeitura também mostram que 8% das famílias residem na zona oeste e 1% no centro se encontram na mesma situação. 

Grande parte dessas pessoas não conseguiram recuperar seus empregos ou se recuperar financeiramente após a pandemia, como afirma Vanessa Almeida, fundadora do projeto Periferia Sem Fome “Até hoje as pessoas não conseguiram se reestruturar, principalmente devido ao tempo em que ficaram sem emprego e ao aumento dos preços.”

"Eu ajudo pessoas que trabalham, que possuem uma residência. Mas com o valor dos alimentos hoje em dia, elas acabam tendo que escolher entre pagar o aluguel e comer”, disse Vanessa quando questionada a respeito do perfil das pessoas atendidas pelo projeto.

Inflação agrava ainda mais a situação 

A inflação de alimentos em todo o país é um dos grandes empecilhos à erradicação da fome. Segundo o IBGE, a inflação de alimentos e bebidas foi de 14%, 7,9% e 11% em 2020, 2021 e 2022, respectivamente. Além disso, no estado de São Paulo, o valor da cesta básica subiu de R$ 786,51 para R$ 1.014,63 no primeiro ano da pandemia. 

A alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo anulou parte do efeito das políticas de auxílio promovidas pelo governo. Iniciativas como o Auxílio Brasil, por exemplo, se demonstraram ineficazes. O retorno do Brasil ao mapa da fome no ano passado constata isso.

"Em 2020, a pandemia bate no mercado de alimentos de duas formas: do lado da oferta, porque há cadeias de distribuição congestionadas. E do lado da demanda, devido à incerteza inicial que levou muitos a estocar alimentos, aumentando os preços”, explica Felippe. 

O economista destaca que, além da pandemia, houve uma série de choques econômicos que contribuíram com a inflação. “No hemisfério sul, em 2021, tivemos problemas climáticos com uma onda de secas, fazendo com que os reservatórios operassem em um nível menor, geadas entre julho e agosto no Centro-sul, que prejudicaram a safra, e o início da Guerra da Ucrânia em 2022, que envolve grandes exportadores de grãos e fertilizantes.” 

O II Vigisan, revelou que 56% das pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar no estado de São Paulo. No Brasil, essa porcentagem é maior, com 58,7% da população brasileira convivendo com a insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas não tendo o que comer.

Ações de combate a fome durante a pandemia 

A Rede Cozinha Cidadã foi uma das principais iniciativas da prefeitura para aliviar o problema de insegurança alimentar em São Paulo. Iniciado em abril de 2020, o projeto distribui por dia 10 mil marmitas em diversas localidades da cidade e 5 mil apenas no centro. O programa também arrecada cerca de 5 mil cestas básicas diariamente. 

Contudo, a política pública ainda enfrenta algumas limitações, como aponta Soninha Francine “Quando são distribuídas marmitas ao longo da cidade, por muitas vezes serem entregues a lugares distantes e o tempo necessário para a entrega ser alto, a qualidade da comida é comprometida e é isso que a secretaria de direitos humanos e cidadania está tentando mudar.”

Ela também chama atenção para o aspecto social e cultural de cada população: "Situações culturais também têm grande parte nesse projeto, como o respeito a culturas diferentes. É impossível separar algumas cestas para colocar ingredientes específicos para certos povos. Como, por exemplo, as tribos guarani que, por opção, não querem farinha de mandioca, mas não é possível tirar apenas para eles.”

A localização é outro problema, pois a maioria dos programas de auxílio encontram-se no centro da cidade, forçando as pessoas a atravessarem a cidade atrás de comida. Isso reflete muito na questão da fome para os moradores da periferia, que precisam pagar aluguel em vez de comprar produtos e muitas vezes chegam no centro em busca de alimento para uma família inteira.

Juliana Favacho aponta para essa questão: “Hoje, as políticas que existem são muito esparsas. Tem distribuição de cestas básicas, o Bom Prato, mas ainda é muito pouco para a cidade de São Paulo e muita coisa também fechou.”

Com essas limitações, uma solução definitiva para o problema da insegurança alimentar na cidade não é possível apenas através de políticas de redução de preços ou de distribuição de alimentos, como as que estão sendo implementadas desde o início da pandemia. 

Juliana acredita que seria necessário um programa que traga os alimentos produzidos por pequenos produtores próximos da cidade e sem intermediários: “Isso evitaria desperdício, melhora a qualidade do alimento e melhora o preço tanto para o produtor quanto para o consumidor.” 

Ela também defende a construção de hortas urbanas ligadas aos centros de distribuição, já que assim os alimentos poderiam ser adquiridos por valores mais baixos, melhorando os índices de alimentação.

"Há toda uma cadeia em que podemos pensar, espaços que já existem e incentivos que não exigem custos altos. Nas próprias ocupações do MTST nós produzimos alimentos para os moradores, por exemplo”, complementa a coordenadora. 

Para Serigati projetos de transferência de renda seriam mais eficientes. “As políticas de distribuição de alimentos são legais, mas, no caso do Brasil, precisamos de algo mais horizontal, programas de transferência de renda bem focalizados para os mais necessitados. Por mais desafiador que seja, o problema está aí e precisamos atacá-lo.” 

Nessa mesma linha, Júlia Schuback, coordenadora de projetos da Ação da Cidadania, ONG que atua em todo o Brasil, afirma: "Embora o Brasil  tenha programas de combate à fome, muitas vezes eles são insuficientes ou mal implementados, frente à dimensão do problema.”

Ela também aponta para os cortes e reduções orçamentárias significativas nas iniciativas de combate à fome e algumas foram até extintas, como foi o caso do CONSEA. “A atuação de projetos independentes que visam o combate à fome não substituem as políticas públicas e a responsabilidade do Estado de garantir o direito à alimentação adequada, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo.”

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O projeto de lei tem um papel fundamental no conteúdo disponibilizado para crianças e adolescentes
por
Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete, João Tiusso e João Lindolfo
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07/07/2023

O projeto de lei 2660/2020, conhecido como “PL das Fake News”, terá grande influência no combate à desinformação e quadro de saúde mental entre jovens, caso aprovado. É o que apontam especialistas ouvidos pelo Contraponto Digital. Eles afirmam que a regulamentação se mostra necessária para conter a ansiedade e estresse causados pela propagação de fake news. 

A falta de uma supervisão adequada do conteúdo que as crianças e adolescentes acessam na internet pode causar uma série de distúrbios para o grupo. Informações incorretas, equivocadas ou incompletas podem não apenas afetar o desenvolvimento cognitivo, mas também contribuir com comportamentos violentos que acabam sendo disseminados em fóruns e alcançam menores de idade, resultando em traumas psicológicos e físicos. 

A PL das Fake News é um projeto de lei que estabelece mecanismos para a regulamentação das redes sociais no Brasil, tal qual a restrição de fake news e publicações extremistas. Essa lei funcionará como um mecanismo para que as empresas de tecnologia sejam cautelosas e ágeis em derrubar conteúdos enganosos. 

A lei atuará diretamente no combate à desinformação e controle de conteúdos violentos a crianças e adolescentes. Isso porque, conforme esse tipo de conteúdo é regulado, a distribuição de publicações com efeitos nocivos aos menores será dificultada.

Segundo a jornalista e pós-doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Luciana Moherdaui, para avançar no debate é preciso fazer mais que ‘sufocar’ o alcance das postagens. ‘’O PL das Fake News será eficiente se conseguir melhorar os mecanismos de transparência e atuação das plataformas sociais”, explicou. Além disso, ela pontua que a lei poderá coibir o financiamento da disseminação em massa de desinformação e diminuir o alcance das postagens.

Perigos do Discord e fóruns de violência

Já na discussão sobre a violência cibernética, a maneira de conter os discursos de ódio seria limitar o número de usuários das plataformas registradas no Brasil, de acordo com o artigo 2 da PL. Com 3 milhões de usuários brasileiros, o Discord, aplicativo comum entre jogadores de games, tem sido usado para propagação de comportamentos de violência extrema. Em servidores fechados, jovens se automutilam, maltratam animais e propagam ódio para fazer parte do grupo. 

O combate a esses grupos já é uma realidade no Brasil, com a operação “Dark Room”, iniciada pela Polícia Civil em março de 2023, investigando três servidores do Discord utilizados para promover atos de violência extrema, incluindo estrupo virtual. A ação resultou na prisão de Ricardo Conceição Rocha, de 19 anos, no dia 04 de julho., responsável por administrar um dos espaços da plataforma onde os crimes eram cometidos. 

De acordo com dados da TIC Kids Online Brasil 2022, cerca de 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos utilizam a internet no país. O número representa 92% desse universo populacional. Segundo Luciana, a transparência em relação aos algoritmos seria mais eficaz que uma placa de ‘proibido para menores’ nas redes sociais. 

Um menor de idade que está em um momento de desenvolvimento tanto cognitivo quanto afetivo, lidando com questões emocionais desse período, fica mais vulnerável a esse tipo de conteúdo, podendo afetar suas relações e seu desenvolvimento emocional. 

"Neste período a criança-adolescente passa por um movimento de identificação com os pares, a busca de grupos, de pertencer a determinados contextos. Isso é algo necessário, mas apresenta riscos e desafios quando encontram conteúdos falsos e que incitam ódio e crimes’’, afirma Camila Fonteles, doutora em psicologia e professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Outro ator que contribui ainda mais para o problema é a articulação de notícias falsas como um mecanismo de promoção do medo. Alexandre Sayad, educador midiático e jornalista, explora a questão: “A desinformação como um fenômeno, pode deturpar alguns aspectos da qualidade de vida, incluindo o aspecto psicológico das pessoas.”

"Por exemplo, toda essa questão dos ataques nas escolas, a desinformação foi um elemento para a manutenção do medo, pois torna uma questão pontual em algo generalizado, dando uma falsa noção de proporcionalidade”, exemplifica Sayad.

Para a doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, Julci Rocha, é crucial expandir nosso letramento digital. “Compreender as nuances, ênfases, omissões e viés presente nas informações, pois isso adiciona uma dimensão significativa para que possamos nos tornar leitores e produtores críticos de conteúdo na internet”. Ela ainda ressalta que nós “não podemos nos limitar apenas à dicotomia simplista de "verdadeiro/falso", que geralmente é o foco das fake news. 

Fato é que esse projeto de lei vai muito além do combate às Fake News, de acordo com o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Murilo César Oliveira Ramos. O objetivo é dispor sobre a liberdade, responsabilidade e transparência na internet, naquilo que diz respeito às mídias digitais. “A questão das notícias falsas é apenas uma parte quando se trata de discutir a proteção das crianças e adolescentes no ambiente da internet”, comentou.

Para o especialista: “O que a internet fez foi potencializar em muito o risco para crianças, dada a velocidade com que foi entrando nas nossas vidas”. Seguindo essa lógica, se até nós adultos estamos suscetíveis a golpes ou vazamento de dados sensíveis, o perigo com os menores de idade é ainda maior.

Ele ressaltou que, no contexto da violência, a questão já era preocupante na era de ouro da televisão e outros veículos como cinema e rádio. Como ele disse, “As crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a todo tipo de informação não condizente com sua maturidade e preparo para a compreensão do que possam estar assistindo e ouvindo”. Por essa razão o acesso precisa ser regulado.

A importância da atenção aos conteúdos que crianças acessam

A eficácia do PL em evitar a propagação de Fake News dependerá dos mecanismos exatos propostos nesta lei em particular, explica o psicólogo Antonio Farelli. Uma abordagem efetiva poderia envolver a regulação das plataformas online, impondo consequências legais para aqueles que deliberadamente espalham informações falsas. 

Todavia, é crucial que haja também um investimento na educação e conscientização pública, especialmente considerando que uma parcela significativa da população brasileira possui baixa alfabetização e pode ser exposta a notícias das quais não compreendem totalmente o conteúdo.  

Farelli destaca que crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis à desinformação devido à inexperiência e falta de habilidades críticas de pensamento. "A PL pode ter um impacto significativo desde que seja implementada de maneira adequada”. O profissional ainda explica que “é essencial fornecer educação sobre como fazer um uso seguro da internet para essa faixa etária, capacitando-os com habilidades de pensamento crítico e discernimento para identificar informações confiáveis”

As crianças estão em aplicativos, jogos e nas redes sociais. Dessa forma, estão em mais em contato com notícias falsas que adultos. Enquanto os mais velhos estão instaurados no Whatsapp e no Facebook, para os mais jovens há uma gama de possibilidades, com várias opções de jogos, aplicativos e sites. A criança fica mais tempo em todas essas plataformas, por isso, tem mais contato com as informações falsas e violentas. 

Além das fake news que incitam o ódio, há mentiras que prejudicam o andamento da inteligência de uma criança. ‘’O público infantil é bombardeado por mensagens falsas que prejudicam o conhecimento e o raciocínio. Só o Chat GPT afeta intelectualmente o menor’’, diz a jornalista e doutora Magaly Prado, especialista em desinformação. Esse acesso traz prejuízos físicos, neurológicos e oftalmológicos pelo excesso de estímulos das telas.

Combate a desinformação

A educação midiática é um elemento necessário no combate à desinformação e precisa começar a ser implementada no currículo educacional o quanto antes. O ensino através dos meios digitais já é uma realidade, mas é necessário ser complementado com o aprendizado de técnicas de apuração e produção de informação de qualidade.  

"Há umm conjunto de habilidades que podemos chamar de educação midiática e precisam ser desenvolvidas na educação básica. Não ter projetos que abordem essas habilidades para navegar com fluidez, ética, análise e produção de informação de qualidade, deixa as pessoas parcialmente analfabetas e limitadas na leitura de mundo”, disse Alexandre Sayad.

Sayad também se posiciona em favor da articulação de várias medidas para combater as fake news. “As soluções contemplam uma constelação de ações, nunca é um tiro só. Eu não acho que educação midiática sozinha resolva a desinformação. Da mesma forma que eu não acho que a regulação das redes sozinha combate a desinformação.”

O educador complementa apontando para ações mais abrangentes que vão além do Estado, já que o que pode vir a ser verdade é complexo e exige uma mobilização de toda a sociedade civil acerca do tema. 

De acordo com Magaly ‘’Não adianta ficar só na superfície, ensinar o que é um computador, um algoritmo, tem que ensinar a criança a ter um pensamento crítico, a duvidar e não aceitar qualquer coisa. Ela tem que saber desconfiar.”

Ter controle no que a criança consome é essencial, principalmente por ela estar na fase de seguir exemplos. ‘’Qual é o canal do Youtube que ela assiste, quem ela segue no Instagram e TikTok? Lá vai ter tudo de abuso e desordem informacional”, pontua a jornalista. ‘’O ideal é que o acesso seja monitorado pelos familiares e educadores. O caminho para combater a desinformação seria esse trabalho de orientação e sobretudo prevenção’’, finaliza a psicóloga Camila Fonteles.

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“Essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, diz voluntário
por
Gisele Cardoso e Sara Gouvêa
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06/07/2023

Lideranças de ONGs que combatem à fome no Brasil, relataram ao longo do mês de junho sobre a burocracia extrema que enfrentam, além de atuarem sozinhas em regiões necessitadas, pela ausência de apoio governamental. 

Essa burocracia apontada pelas instituições atrasa, e até mesmo impedem, a conclusão de processos como os de licenciatura: “Há muita burocracia nos processos de levantamento de recursos e de regulamentação, o governo precisa facilitar essa demanda”, relata Maico Marins, um dos líderes do projeto Sertão Clama, braço do movimento Avança Sertão, que atua no combate à fome no Norte e Nordeste do país.

Rafael Alves, fundador da Rede de Osasco (rede de apoio à ONGs), também enfrenta problemas com as regulamentações das instituições do seu projeto: “A legislação brasileira é péssima para associações... é mais fácil abrir uma empresa do que uma ONG no Brasil”, revela.

Elas não apenas fazem a distribuição de alimentos, mas também ajudam as comunidades carentes a ter acesso ao mercado de trabalho, à educação e a reestruturarem suas vidas para que não dependam continuamente de doações para sobreviver.

As instituições deveriam apenas auxiliar a máquina política a cumprir seus deveres com a população, mas o que se encontra no Brasil são coletivos civis fazendo por completo o trabalho do Estado em regiões abandonadas por seus representantes. “Nós sabemos de coisas que o próprio Estado nunca saberá, pois investimos em lugares que ele não está, como a periferia… O que é importante para nós, não é importante para quem está no poder”, confirma Alves.

Segundo Rafael Alves, apenas 5% das ONGs recebem recursos públicos para suas atividades: “O Estado deve ter uma legislação que facilite a vida de quem quer fazer o bem, que faça o dinheiro chegar nas associações e que as inclua nas grandes discussões sobre a sociedade”, ressalta.

Por serem organizações civis, elas são capazes de acessar lugares e pessoas que o Governo não consegue sozinho, porém essa deveria ser uma relação de parceria. “No geral, nós atuamos em regiões que o governo não dá atenção ou atua de forma superficial e assistencialista, ajudando a pessoa naquele momento, mas sem mudar a realidade dela”, comenta Maico.

Esse trabalho é extremamente necessário para o nosso país que possui 120 milhões de cidadãos que convivem com qualquer nível de insegurança alimentar como divulgado pela atual ministra do Meio Ambiente e da Mudança Climática, Marina Silva. Diante desse dado, fica explícito a urgência com a qual o Estado deve se organizar para mudar esse cenário.

O sociólogo Roberto Antoniasse, explica que a relação de parceria entre as organizações e o governo é de alta complexidade e muda de tempos em tempos de acordo com as lideranças do país: “Essa relação é conflituosa e tensa, pois depende da configuração em que se encontra o cenário social e político, além de envolver questões de interesse partidário e ideológico”.

 

As consequências da falta de auxílio

O Sertão Clama, tem como uma das iniciativas a criação de poços e a contratação de caminhões pipas, para sanar a necessidade dos vilarejos que enfrentam o problema da seca. Porém, o projeto se deparou com um esquema de “máfia”: “É quase impossível cavar os poços e contratar os caminhões superfaturados... tanto a ONG quanto os moradores são ameaçados, pois essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, conta Gustavo Marques, também líder da instituição.

Os governos da Bahia, do Piauí e de Pernambuco já foram notificados pelas famílias e pelo projeto, mas nada foi feito até o momento. Nem a respeito das ameaças e nem para uma possível fiscalização sobre os valores do mercado de água potável da região. Deixando a população refém da criminalidade e impossibilitando que a ONG forneça auxílio na região.

Outro empecilho que existe, desta vez causado pelo próprio governo, são as taxas para adquirir a autorização da escavação de um poço artesiano, pois quando a escavação é concluída e a água é atestada como própria para uso, governo muitas vezes tenta tomar posse da fonte, tirando assim mais uma fonte de água totalmente gratuita do povo, ao qual ele deveria servir.

Vias para melhoria do cenário

De acordo com Bianca Monteiro, advogada especializada em terceiro setor, há sempre um protagonismo na área social pelas organizações sem fins lucrativos e cita: “Isso são indicadores da necessidade por políticas públicas. Organizações que trabalham com segurança alimentar e nutricional, efetivamente fazem muita diferença na prática e no cotidiano do povo brasileiro”.

As políticas públicas são a principal ferramenta para que o governo possa desafogar o trabalho das ONGs. Patrícia Mendonça, Professora Mestre de Gestão de Políticas Públicas da USP, explica como o governo pode melhorar essa relação: “Hoje se alguém precisar saber sobre essas parcerias, ela vai precisar ir em cada secretaria de São Paulo, pois não existe um site ou uma área específica que contenha todas essas informações para a orientação e relação”.

A especialista sugere que os estados retomem essa pauta e criam canais mais estruturados e preparados para receber essas instituições e auxiliá-las nas suas atividades: “Precisa ter uma estrutura mínima para fazer a gestão dessas parceiras, para que elas ocorram de fato como parcerias e não como mais um prestador de serviço”.

Com essa aceleração dos procedimentos, as populações poderão ser atendidas mais rapidamente, evitando que a insegurança alimentar das famílias piore durante a espera, principalmente considerando que a privação de alimento pode acarretar até mesmo em morte.

A participação de organizações religiosas

As organizações religiosas, que representam 17% desse setor, não podem receber verbas do Governo por terem interesses religiosos, visto que o Estado é laico. Sendo assim, precisam recorrer ao setor privado. A varejista C&A, por exemplo, faz doações para o brechó do Centro Social da Comunidade Carisma, igreja da zona oeste de São Paulo.

Essa relação entre empresas e ONGs, garante a continuidade do trabalho contra a fome para essa parcela das organizações e ainda gera empregos no processo. Porém, para que as organizações possam ter acesso a essas empresas, é necessário que elas ganhem mais visibilidade no país.

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Médico psiquiatra especialista em dependentes químicos explica que as substâncias são usadas como uma válvula de escape para ajudar a lidar com a fome, pobreza e exclusão.
por
Nicolly Novo Golz e João Victor Esposo Guimarães
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03/07/2023

“Quem está inserido em uma realidade de extrema exclusão, tem maior chance de usar a droga como válvula de escape dessa realidade”, adverte Marcelo Ribeiro, 53, médico psiquiatra que foi diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas por 10 anos. O doutor explica que do ponto de vista neurobiológico, qualquer privação ou exclusão aumenta o risco de um indivíduo consumir drogas.

O estresse é um grande fator de risco para a introdução do vício. “Se pensarmos em alguém que nasceu em um ambiente de exclusão social, sem apoio nenhum do estado, com uma estrutura familiar desestabilizada, essa pessoa está altamente exposta ao risco de utilizar substâncias, principalmente se tiver contato com o narcotráfico", explica Ribeiro.  

O consumo de drogas pode ser atrelado a múltiplos fatores tornando essencial uma meticulosa compreensão de cada caso. Seu uso, com frequência, está ligado à desigualdade social. Entretanto, o consumo de entorpecentes é visto de forma moralista e individualista culpabilizando o usuário. “O que seria um consumo problemático ou não problemático na vida de quem não tem nada, de quem passa fome, frio e dorme no chão?”, questiona Marcelo.

Antes de procurar o crack, a pessoa marginalizada recorre a produtos baratos e de fácil acessibilidade, como o álcool, solventes, cola de sapateiro, thinner e acetona.

“O álcool, por ser muito barato, viabiliza o acesso de pessoas que têm poucas condições econômicas. A substância possui efeito psicoativo muito intenso e pode provocar dependência severa, até pior que a do crack, do ponto de vista fisiológico”. A cola de sapateiro sofreu algumas regulamentações o que diminuiu a circulação do produto e paralelamente, fez com que o crack tivesse uma penetração muito grande.

O crack é a droga mais consumida pela população extremamente vulnerável, mas ele não surge assim, visto que é um derivado da cocaína. Porém, quando a droga é produzida em grande quantidade, por ser uma substância muito danosa e de absorção muito rápida, se popularizou. 

Outro fator que aumenta a popularidade do entorpecente é o preço. "Pessoas absolutamente excluídas vão precisar de drogas que possuem opções de varejo melhores, o crack pode ser comprado de diversas formas, uma pedra de 5 gramas, lascas do químico ou uma fumada por um real, é uma substância que possui apresentações economicamente mais possíveis”, aponta Marcelo.  

Ribeiro realizou um estudo que explica: “Uma pessoa no topo de uma estruturação social tem menos de 10% de chance de desenvolver dependência por uma substância, já quem está no pólo inferior, em situação de insegurança alimentar e habitacional, tem pelo menos 33,3% de chance de vir a desenvolver dependência por uma substância” 

Em entrevista, Maurício Fiore, mestre em Antropologia Social pela USP, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), esclareceu que, se sabe que os padrões do uso de drogas, não está relacionado diretamente a contextos de fome especificamente. “Para ter uma relação científica, é necessário dizer que todas as pessoas que passam fome vão consumir algum tipo de droga, o que não é verdade”, explica o pesquisador. 

O que acontece é que no Brasil, a fome tem associação especialmente com pessoas em situação de vulnerabilidade e de rua, que podem encontrar no uso de drogas uma forma de aliviar todos seus sofrimentos, incluindo a fome. Fiore explica: “A fome por si só é um problema que se juntada ao uso de drogas, pode formar um problema ainda maior”. 

A  situação de miséria no Brasil é histórica e estrutural, por conta disso, a população em situação de rua muitas vezes é taxada como consumidores problemáticos de drogas, mas na verdade existe um acúmulo de problemas. “Quando analisamos esses indivíduos, é possível ver uma trajetória marcada por rompimentos, dificuldade de relação com o mercado de trabalho, com a polícia, com a justiça criminal, uma somatória de fatores”, completa Maurício. 

Em uma ação do grupo Ondas de Amor, sediado na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo, que promove, quinzenalmente, café da manhã e kit de higiene básico para pessoas carentes. Davanei, 32, morador em situação de rua que participava da ação, contou que é usuário de entorpecentes desde os 13 anos de idade. “Faz 19 anos que sou usuário, comecei cheirando cola  e agora tô no crack”, diz. 

O crack  afeta a química do cérebro do usuário, causando euforia, alegria, suprema confiança, perda de apetite, insônia, aumento da energia, desejo por mais crack, e paranóia potencial (que termina após o uso). Devanei conta que ao usar a substância não sente fome, sono nem sede, apenas vontade de fumar de novo, “com o crack você não é dono nem da sua própria vida”.  

Ele conta que começou a usar drogas porque foi expulso de casa aos 12 anos, o que fez com que ele vivesse inúmeras situações de insalubridade. A falta de alimento pode levar a uma alimentação inadequada e à escassez de nutrientes necessários para o corpo, o que pode ter consequências negativas para a saúde mental e física. Isso pode aumentar a vulnerabilidade de uma pessoa ao uso de drogas, especialmente se ela estiver enfrentando outros fatores de risco, como estresse, ansiedade, depressão ou traumas.

A dependência química afeta a capacidade das pessoas de conseguir empregos e manter sua subsistência. Sem um emprego formal, sem o auxílio de familiares e do poder  público, os dependentes químicos se vêem na responsabilidade de usarem o pouco que ganham na rua para saciar seu vício. A falta de uma alimentação, a vida instável da rua e o uso constante de drogas por essa camada da sociedade, os levam a um ciclo vicioso.

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