Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
por
Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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As refeições são servidas com longas horas de distância e, muitas vezes, chegam estragadas
por
Carol Raciunas e Juliana Mello
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06/07/2023

“Meu filho chegou a se alimentar de papel higiênico e de creme dental para matar a fome, enquanto estava preso”, conta Miriam Nunes, uma das fundadoras da Associação de Familiares e Amigos de Presos (Amparar). Com voz trêmula e olhos marejados, ela explica que a comida não é servida na quantidade e qualidade para que uma pessoa se mantenha saudável.

Dentre as 96 penitenciárias de São Paulo, a fome é uma reclamação dos detentos na maioria delas. Segundo o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Ribamar Araújo, “se naturalizou que, mesmo estando sob custódia do Estado, essas pessoas passam fome.”

“A questão da comida no sistema prisional é: a comida é pouca. Se chega um café da manhã, um almoço, eles comem em horários desregulados. Muitas vezes, passam mais de 24 horas sem se alimentar”, aponta Miriam.

Ela fundou a Amparar ao notar as condições de seu filho, na época em que foi preso na antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM). No mesmo período, recebeu diversas denúncias de que os adolescentes apreendidos estavam em condições deploráveis e insalubres. 

“Nós ficamos muito preocupadas, porque eles estão num ‘cemitério de mortos-vivos’. Na Amparar, acreditamos que isso seja uma jogada para eles não conseguirem pensar, para eles não terem energia de pensar. A fome é uma forma de ter controle desses corpos”, afirma. 

Ela contou ainda que o trabalho da Associação começou através do fortalecimento entre familiares que não se sentiam amparados por nenhum órgão público. As voluntárias visitam Centros de Detenção Provisória (CDP) e oferecem atendimento individual de apoio às famílias.

A população carcerária em São Paulo chegou a 209 mil pessoas no ano de 2022, de acordo com informações da Defensoria Pública. Ribamar, ex-conselheiro do Consea, já visitou penitenciárias em todas as 27 unidades da federação para estudar o tema que aponta ser problema em praticamente todo o território nacional.

“Por uma questão de economia de combustível, em alguns casos, o transporte responsável pela comida dos detentos já leva café, almoço e janta. Então, o almoço é servido frio e, a janta, azeda”, conta.

Segundo ele, frequentemente as refeições são atrasadas por questões pessoais dos funcionários. Quando um deles está de mau humor, por exemplo, a entrega da alimentação é oferecida ainda mais tarde do que o previsto. 

Ribamar aponta que comportamentos assim fazem os detentos passarem longas horas sem comer, os colocando em uma situação de insegurança ainda mais delicada. Ainda assim, o ex-conselheiro do Consea explica que o Estado tem consciência sobre o problema da fome nos presídios, e a usa como uma ferramenta de punição. 

Para ele, a negação do Direito Humano à Alimentação Adequada, converte-se em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante. “A fome é uma ferramenta de tortura, e a pena de fome condena as pessoas à pena de morte”, afirma.

Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988, através da Lei de Execução Penal, garante o direito à alimentação adequada para a população privada de liberdade. Como garantido no Artigo 12, “a assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”. Já no Artigo 40, impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; E por fim, o Artigo 41, que constituem os direitos do preso: alimentação suficiente e vestuário”.

Para Luciana Zaffalon, diretora-executiva do JUSTA (ONG responsável por facilitar o entendimento e a visualização pela melhora da segurança pública e da justiça criminal), o descaso com a dignidade dos detentos ocorre também por uma questão  orçamentária das políticas de segurança e prisional.

“A perspectiva de prender cada vez mais pessoas, sem respeito aos direitos básicos que lhes deveriam ser garantidos, como se fosse um caminho possível para efetivar a segurança pública, se mostra irracional também em sua dimensão orçamentária”, afirma Luciana.

Assim como Ribamar, ela destaca a Lei de Execução Penal, e aponta: “Observamos nas políticas prisionais um grande paradoxo: as pessoas são presas pelo Estado por violarem a legislação e, quando estão nessa condição (de encarcerados), passam a viver uma rotina de violações por parte do Estado, que descumpre sem qualquer pudor a legislação que deveria aplicar”.

Ela afirma ainda que há farta literatura que trata do surgimento de organizações como o PCC atrelando esse fenômeno à ausência do Estado. Com isso, ele, ao naturalizar omissões e violações, ao invés de exercer o papel que lhe é determinado por lei, cria ambiente fértil para que novos arranjos sejam forjados.

Luciana aponta que a solução é simples e clara: o Estado deve seguir a legislação vigente. Para ela, o problema da fome nos presídios só poderia ser plenamente sanado através do cumprimento das leis, principalmente a de Execução Penal.

Em resposta aos questionamentos feitos pela reportagem, as unidades prisionais pertencentes à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informaram que são oferecidas quatro refeições diárias. Elas são compreendidas por café da manhã, almoço, jantar e ceia noturna aos presos.

Para Daniel Balaban, Diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU no Brasil, “Fome se caracteriza pela carência alimentar por períodos longos, causando sensação de desconforto e dor”.

Ao pensar nas estratégias de combate à fome nas prisões, Daniel reforça o pensamento de Luciana de que “é necessário o cumprimento das políticas públicas que permitam o acesso a uma alimentação digna, e que sejam eficazes em casos de pessoas que dependem de outras para se alimentar, como é o caso do sistema prisional”.  

Uma mãe no presídio

A fome que impacta o mundo tem sido protagonista na tortura do sistema prisional. A reportagem conversou com a mãe de um detento, que preferiu não se identificar. Em respeito à sua privacidade, terá seu nome substituído por Maria. “Tem momentos que eu não quero nem comer, porque eu não sei se o meu filho comeu”, conta ela com os olhos marejados.

Maria contou que, apesar da Administração Penitenciária informar que é servida uma refeição balanceada, quando a marmita chega, são dois dedos de comida e as carnes são transparentes.

Ela explica também que, na prisão, existe o jumbo, que é uma lista padronizada de itens que as visitas podem levar. Porém, não têm condições financeiras de mandar um jumbo toda semana e, por isso, leva “o básico” mensalmente. 

“Não consigo ir sempre fazer uma visita, mas quando eu consigo, eu vou. Só entra uma sacola, o que limita muito. A sacola não é tão grande, então você leva o que dá”, aponta. Maria ainda completou dizendo ser impressionante o quanto os detentos conseguem fazer a comida render entre si. 

Ela acredita que servir para os presos uma quantidade de comida que só seria suficiente para crianças de cinco anos é uma forma de tortura modernizada para controlar quem está dentro dos presídios.

“Eles podem ficar horas e horas sem comer nada. Como alguém pode sair saudável desse lugar? Como um ser humano sobrevive?”, questiona.

Tanto Maria quanto Nunes apontaram que o corpo dos detentos sofre diversas mudanças por conta da situação. Após um período na cadeia, quando saem, há um longo processo de adaptação. Enquanto isso, quando se alimentam em condições ideais, passam mal. 

“Está tão penetrado neles, que acham que comer uma boa quantidade de comida vai fazer com que eles passem mal. Até voltar a comer bem, leva bastante tempo”, afirma Nunes

Durante a pandemia

Um estudo realizado pela Amparar e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), concluiu que 34% da população carcerária estava com dificuldades de se alimentar. Maria afirma que seu filho foi preso bem no auge da pandemia, ou seja, em outubro de 2020. Ela conta que, neste período, sofreu muitas dificuldades.

“Tivemos denúncias de que a comida fica perto de lixo, exposta. Falam que a escravidão acabou, mas a gente pode ver isso na relação dentro do sistema prisional, através da comida.” aponta Maria. 

Outro fator que se agravou durante a pandemia foi o recebimento do jumbo por parte dos presos. Muitas vezes, as famílias tiram o que têm de casa para levar para seus filhos na prisão.

“O jumbo é uma despesa. Às vezes você pode gastar 400 reais num jumbo, minimamente. É mandar o jumbo 1 vez por mês, se satisfazer com aquilo.” lamenta Maria. 

No final da entrevista, Maria lamentou ainda a dificuldade de promover mudanças no sistema carcerário: “As coisas não mudam, aumentam a quantidade de presos e a comida só diminui. A pessoa está privada de liberdade, não deveria estar privada de comer.”

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Importância de órgãos como CONSEA SP para a redução da fome e insegurança alimentar no Estado
por
Lucas Munhoz Rossi
|
05/07/2023

São Paulo lidera o ranking brasileiro da fome, com cerca de 7 milhões de pessoas famintas. O governo do Estado afirma ter uma série de ações que visam ao combate à fome, no entanto, 14,7% da população paulista sofre com a falta de alimento. 

Segundo o 2º Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado no ano passado, cerca 125,2 milhões de brasileiros sofrem com algum grau de insegurança alimentar, representando um aumento de 7,2% se comparado aos dados de 2020.

Somente no Estado de São Paulo, 55,9% da população sofre com algum grau insegurança, sendo mais frequente em domicílios com renda mensal de até meio salário-mínimo (83,8% de insegurança alimentar), trabalhadores informais/desempregados (43,9%) e pessoas sem escolaridade (66,5%).

O agravamento da fome tem forte relação com a pandemia de Covid-19. Isso porque, a partir de dados do no inquérito, no Brasil, a fome saltou de 19,1 milhões de pessoas famintas em 2020 (antes da pandemia), para 33,1 milhões em 2022. 
Para Rubens Nunes, economista, professor da Universidade de São Paulo e especialista sobre a fome, “a pandemia fez a insegurança alimentar dar um salto descontínuo, numa tendência de agravamento”. Porém, para o especialista, além da pandemia, há fatores de longo prazo, entre eles o baixo crescimento da economia e a crise fiscal do estado que limitam a execução das políticas públicas de combate à fome.

Na visão de Rubens, São Paulo tem muitas pessoas em situação de insegurança alimentar porque é populoso e que, pela densidade econômica, atrai migrantes em busca de oportunidades que estão se tornando escassas. 
Levando em conta que o índice de desemprego na região saltou de 7,7% (2022) para 8,8% (2023), segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “A desigualdade explica a insegurança alimentar em um estado relativamente rico”, afirma o economista. 

Além disso, para o professor, a piora da fome tem relação com o foco principal do governo, já que os mais necessitados não têm direito a alguns auxílios. “As políticas de transferência de renda são bastante efetivas no combate à fome. O problema aqui é o foco: não conceder benefícios para quem não se enquadra e dar para quem, de fato, está em situação vulnerável”. 

Isso ocorre, pois boa parte das pessoas elegíveis para programas de transferência de renda são “invisíveis” para o Estado. Já que em sua maioria são pessoas sem documentos, que tem dificuldade para se relacionar de modo formal com as agências públicas, e que não estão amparadas pela previdência social. 
Outro fator importante que impacta e dificulta as políticas públicas, reside no fato de que há causas estruturais que, se combatidas, só serão superadas no longo prazo, ao passo que as demandas por alimento são urgentes. Por conta disso, muitas vezes são “escanteadas” pelo governo.

Para Raquel Nunes Silva, doutoranda em Saúde Global e Sustentabilidade (USP), Mestra em Agroecologia (UFV) e professora universitária de nutrição, acredita que, embora São Paulo tenha um imenso potencial agrícola, a distribuição de terras e a concentração da produção em grandes propriedades dificultam o acesso de agricultores familiares aos recursos necessários para uma produção sustentável e diversificada. 

“A falta de infraestrutura adequada, como estradas e armazenamento de alimentos, prejudica a comercialização e a distribuição dos produtos, impactando negativamente o abastecimento alimentar”, afirma a professora.

Além disso, segundo a especialista, durante a pandemia a implementação do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) enfrentou limitações significativas. “A paralisação do Consea/SP e a falta de discussões sobre segurança alimentar e nutricional prejudicaram o andamento das políticas públicas. A participação social e o envolvimento de diversos setores são cruciais para ampliar o alcance das ações e promover a inclusão de atores relevantes nessa área”, complementa. 

Na opinião de Raquel, no âmbito das políticas públicas, os principais desafios enfrentados são a fragilidade do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no Estado, além de ações desarticuladas e com pouca densidade nas medidas estruturantes. “A falta de uma estrutura sólida no SISAN compromete a efetividade das políticas de combate à fome”. 

Ações governamentais contra a fome

Em busca de amenizar o problema, o governo do Estado possui diversas ações e iniciativas, como o “Bom prato”, “Vacina Contra a Fome”, “Vale Gás” (aproximadamente 100 mil famílias) e “Viva Leite” (aproximadamente 300 mil pessoas entre crianças e idosos). Para Rubens, as ações do governo estadual devem reforçar as políticas federais e municipais. “O conjunto das políticas do estado de São Paulo tem um impacto importante, ainda que cada uma tenha um escopo relativamente limitado”.

Marília Touças, presidente do UMA (Instituto Um Momento de Amor), ONG que atende famílias e pessoas socialmente vulneráveis ou em situação de rua, acredita que tais ações governamentais são fundamentais no combate à insegurança alimentar. “Eu fui uma criança pobre e o Viva Leite era fundamental na minha casa. Hoje, acompanho a comunidade que apadrinhamos com cestas básicas e sei da importância dos programas. Para a população em situação de rua”.

Além disso, existe o Consea/SP (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável), que tem como função, assessorar o governo na construção de políticas públicas, referentes a Segurança Alimentar.  Fazendo um elo com a sociedade civil, já que 66,6% de seus membros são civis. O conselho é “a porta de entrada” para as demandas da população.

O presidente do Consea/SP, João Dornellas, afirma: “Nós atuamos principalmente na divulgação e na propagação de informações e de conhecimentos na área da Segurança Alimentar e Nutricional”. O órgão faz as divulgações por meio de palestras e encontros que apresentam as ações do Governo do Estado de São Paulo. 

“Também auxiliamos os municípios paulistas na elaboração da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com reuniões de capacitação para os gestores municipais”, complementa João.

Na visão de Raquel Nunes, embora o governo tenha implementado programas importantes nos últimos anos, ainda existem lacunas a serem preenchidas e a necessidade de fortalecer essas iniciativas, além de desenvolver estratégias mais abrangentes. 

Prova disso, é o não cumprimento do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, por parte dos órgãos públicos. Tal documento, elaborado com base em ampla discussão e participação da sociedade civil, contém diretrizes e metas importantes para a promoção da segurança alimentar e nutricional em São Paulo. No entanto, a falta de comprometimento com a implementação efetiva do plano prejudica os avanços necessários no combate à fome.
Importância das ONGs no combate à fome

Durante a pandemia, à medida que o coronavírus se propagava, algumas iniciativas do governo paralisaram suas atividades. Para Vanuzia Teixeira, coordenadora do Consea/SP, o agravamento da fome teve grande relação com a paralização do conselho em 2020. “Justamente neste momento bem delicado, o conselho foi obrigado a paralisar suas atividades”, afirma a coordenadora. A retomada aconteceu apenas em julho de 2021, enfrentando o pós-Covid. 

Por conta da interrupção do conselho, o combate à fome em São Paulo teve um grande aliado: as ONGs. Marília Touças, afirmou que com o avançar do isolamento, se deparou com muitas pessoas em situação de rua. “Todos os dias encontrávamos famílias inteiras, com malas e alguns pertences, recém-chegadas à rua. Sem trabalho, sem dinheiro, sem moradia e passando fome”.

Para Rubens, as ONGs foram ágeis e efetivas no combate à insegurança alimentar durante a pandemia. Essas organizações têm capilaridade no tecido urbano e conhecimento das comunidades locais. Dessa forma, o Estado pode firmar convênios com as organizações formais. “O Estado é razoavelmente eficiente para coletar alimentos, enquanto as ONGs são eficientes para distribuir a comida”, afirma o especialista.

João Dornellas, presidente do Consea/SP, reitera sobre a importância do auxílio das organizações não governamentais no combate à fome, “A atuação das ONGs e da iniciativa privada tem grande relevância para o enfrentamento da insegurança alimentar e para o combate ao desperdício de alimentos, e há diversas parcerias em todo o estado”.

Novas promessas do governo de São Paulo

Com o intuito de reduzir os índices da fome e insegurança alimentar no Estado paulista, a Coordenadoria de Segurança Alimentar, vinculada à Subsecretaria de Abastecimento e Segurança Alimentar, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), criaram em 2023, um diagnóstico sobre segurança alimentar no estado.

A primeira etapa tem o objetivo de identificar os desafios enfrentados pelos municípios para a implementação da política de segurança alimentar, assim como o de levantar as demandas. Trata-se de um levantamento, que vai trazer as ações de segurança alimentar desenvolvidas nos municípios. Segundo Dornellas, “Os dados coletados serão essenciais para o avanço de projetos que possam colaborar com a implementação da política de segurança alimentar”.

Além do mais, para o presidente do Consea/SP, “Os conselhos municipais de segurança alimentar devem ser formados, pois são importantes portas de entrada para a população mais vulnerável. Esses conselhos poderão identificar as prioridades e quais públicos serão atendidos nos territórios”.

João garante que a aliança entre o conselho, os municípios e as ONGs irão facilitar a reduzir a fome da população. “Para além da parceria entre o governo do estado e os municípios, a atuação das organizações não-governamentais e da iniciativa privada será sempre relevante para o enfrentamento da insegurança alimentar e do desperdício de alimentos”.

Além disso, segundo o Relatório do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (2019-2023), existem propostas que vão além da distribuição de alimentos. O documento destaca a importância de promover ações voltadas para a garantia do direito humano à alimentação adequada. 

Entre as principais propostas estão: fortalecimento da agricultura familiar; estímulo à produção e consumo de alimentos agroecológicos; capacitação e educação alimentar e nutricional; incentivo à criação de mercados locais; articulação e integração das políticas públicas. É importante destacar que essas propostas vão além do combate imediato à fome, visando à construção de um sistema alimentar mais justo, sustentável e equitativo.

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Movimento aumentou doação de alimentos durante a pandemia; especialistas afirmam que iniciativa precisa de apoio estatal
por
Lucas Gomes e Matheus Marcolino
|
03/07/2023

À bordo de uma van branca, um homem e uma mulher cruzam a entrada da favela Souza Ramos, na Vila Mariana, bairro de São Paulo.  Depois de descarregarem os caixotes de feira lotados com abacates, limões e abobrinhas, Cícero e Celina estendem uma bandeira vermelha. Eles são os militantes do MST responsáveis pela distribuição de cestas de alimentos na região.

A 3 mil quilômetros dali, um caminhão de lixo para numa rua de Fortaleza, capital do Ceará. Enquanto os garis recolhem os dejetos dos moradores, a caçamba do caminhão fica aberta por poucos minutos - o suficiente para que dezenas de famílias possam revirar os sacos de lixo enquanto buscam restos de alimentos. 

O caso aconteceu em 2021 e ganhou notoriedade por causa de um vídeo que circulou na internet. As famílias receberam cestas básicas de movimentos sociais do estado, como o Movimento dos Trabalhadores por Direitos (MTD), o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) cearense.

Especialistas afirmam que a participação do poder público é essencial em ações que visam combater a fome. Mas, enquanto o novo governo faz tímidos esforços na retomada de iniciativas de reforma agrária, o MST acredita que pode alimentar os brasileiros com a produção de orgânicos e se mantém engajado em gestos solidários. 

 

Entrada da favela Souza Ramos. Foto: Lucas Gomes.
Entrada da favela Souza Ramos. Foto: Lucas Gomes.

O movimento do Ceará segue acompanhando as famílias que reviraram o caminhão de lixo no vídeo viral. Com aulas de formação política e disponibilização de médicos para as comunidades carentes, a ideia é ir além da entrega de comida - que segue sendo o foco nas comunidades pobres, mais afetadas pela fome. “Algumas pessoas pedem até água para beber”, afirma Gene Santos, diretor nacional do movimento. 

Divulgado em 2022, o 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontou que 33 milhões de pessoas passavam fome no país. Mais da metade da população do país, 125,2 milhões de pessoas (58,7%), vivem com algum grau de insegurança alimentar.

Doutor em geografia humana pela USP, Carlos Alberto Feliciano estuda o MST há 30 anos. Ele diz que o grupo potencializou práticas humanitárias durante esse período para lidar com a falta de políticas públicas. A organização dos movimentos sociais ajuda a eliminar a necessidade do intermédio de um atravessador, responsável pelo transporte de produtos do campo para a cidade, barateando o preço dos alimentos.

A produção tem alguns possíveis destinos. Os orgânicos são vendidos em feiras e no site do grupo, e as doações, organizadas por grupos de consumo compostos por militantes do movimento, são feitas a comunidades com altas taxas de desnutrição. Durante a pandemia da Covid-19, o MST afirma ter distribuído mais de 8 mil toneladas de alimentos, 2,5 milhões de marmitas e 10 mil cestas básicas de orgânicos em todo o Brasil.

As cestas tem uma grande variedade de produtos. Raul Miranda, dirigente do setor de produção de alimentos do MST na Grande São Paulo, afirma que os alimentos são doados tendo como foco a real nutrição das pessoas atendidas. "Não é apenas encher a barriga, mas comer com qualidade", diz.

Caixotes com alimentos orgânicos do MST. Foto: Lucas Gomes.
Caixotes com alimentos orgânicos do MST. Foto: Lucas Gomes.

Apesar dos quase três anos de esforço, a maioria dos moradores não sabe da origem dos alimentos oferecidos. “O pessoal pergunta quando vem a saladinha, mas não sabe de onde vem. Para eles, o que importa é a comida que está chegando”, afirma Celina - responsável pela distribuição das cestas na Vila Mariana. 

Carlos Feliciano acredita que isso não incomoda o MST, que produz muito e utiliza as doações para informar os que as recebem. A estratégia do grupo é desconstruir a marginalização e o preconceito contra os movimentos sociais do campo.

Para Marco Mitidiero, doutor em geografia humana pela USP e pesquisador especialista em território e conflitos agrários, a questão da fome brasileira vai bem além da redistribuição de terras e da produção de orgânicos. “A fome existe porque o povo não tem dinheiro para comprar comida; é um momento de crise mundial, de desemprego. A pessoa que não tem trabalho, não tem como comer. E o valor dos alimentos é um agravante”, afirma.

Os altos preços são um dos motivos de reclamação dos moradores da favela Souza Ramos. Laurenilda, que vive na comunidade há quase quatro décadas, diz que a situação piorou nos últimos anos - e que os produtos orgânicos do MST são bem-vindos justamente por isso. “As cestas nos ajudam muito. Quando a gente recebe as verduras, consegue economizar no mercado - e as coisas estão caras demais”, conta. 

A principal bandeira dos sem-terra é a da luta contra a concentração fundiária - eles acreditam que uma reforma agrária tem potencial de se transformar numa política de soberania alimentar. Marco Mitidiero concorda: "A reforma agrária produz comida, e se tem mais gente produzindo comida, não falta na mesa do brasileiro", diz o professor. 

De acordo com dados do mais recente Censo Agropecuário do IBGE (2017), pequenos produtores têm menos área para produzir, mas o foco da lavoura é em produtos consumidos pelos brasileiros, como frutas e hortaliças. Enquanto o agronegócio, dono de grandes quantidades de terra, planta algodão, soja e cana-de-açúcar, visando exportação. 

José Roberto da Silva, apicultor, crê que a distribuição de terras e produção nos assentamentos aumenta as oportunidades e valoriza o produtor. “O MST resgatou a nossa dignidade”, afirma José, que produz mel há mais de 30 anos num território ocupado pelo movimento.

A reforma agrária reivindicada pelo grupo, porém, vai além da distribuição de terras. Este é, na verdade, apenas o primeiro passo. Produtora de alimentos orgânicos em Sergipe, Ângela Maria, conta que o MST ofereceu treinamento e auxílio na manutenção da lavoura, sua fonte de alimento e de renda.

Produtores vendem na IV Feira Nacional da Reforma Agrária. Foto: Lucas Gomes.
Produtores vendem na IV Feira Nacional da Reforma Agrária. Foto: Lucas Gomes.

Márcia Motta, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de 5 livros sobre conflitos pela terra no Brasil, acredita que o modelo de produção adotado pelos sem-terra é interessante, mas não consegue ter impacto real no combate à fome sem o apoio do Estado. “Ações como as do MST precisam ser abraçadas pelo Estado para criar mecanismos que não permitam alguém nascer e morrer sem um pedaço de chão”, diz.

O grande agronegócio foi um dos maiores beneficiados do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 2003, foi extinto em 2019. Os principais órgãos de reforma agrária foram sucateados e colocados sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, comandados pelos ex-deputados ruralistas Tereza Cristina e Marcos Montes.

Superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em SP, Sabrina Diniz afirma que o órgão, como parte do Governo Federal, vê o MST e outros movimentos de luta pela terra como aliados, principalmente nas ações de ocupação de territórios improdutivos. "Nenhuma política de Estado é feita por boa vontade, mas sim por pressão social", explica. 

A recriação do MDA sinaliza a intenção do governo Lula de retomar políticas que visam a criação de novos assentamentos, ações abandonadas durante o mandato de Bolsonaro - responsável pelo menor número de famílias assentadas nos últimos trinta anos. O futuro próximo, porém, não é animador. O Incra afirma que o orçamento de 2023, aprovado no ano passado, não prevê verba para a compra de novos terrenos para reforma agrária.

Os poucos avanços reais conquistados no primeiro semestre na luta pela reforma agrária dão munição ao MST, que já tece críticas ao atual governo e promete aumentar a pressão. Diretor nacional do grupo, João Pedro Stedile afirmou, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, que a gestão de Lula está agindo muito lentamente na adoção de políticas de combate à fome; além disso, Stedile prometeu que o movimento pode convocar “marchas e grandes acampamentos” para solicitar reforma agrária.

Após pressão da oposição, uma CPI para investigar o MST foi instalada no Congresso. Os responsáveis pelo projeto alegam que o objetivo é averiguar o aumento das invasões de terras e “descobrir seus financiadores”. Será a quinta vez que o MST se tornará alvo de uma CPI. O movimento afirma que usará a comissão para “revelar à sociedade suas estratégias ao ocupar uma terra que não cumpre sua função social”.
 

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No período em que a fome voltou a crescer no Brasil, grupos políticos vinculados a movimentos de extrema direita negam a sua existência
por
Gabriel Lourenço Schiavoni, Lucca Andreolli Fresqui
|
30/06/2023

Grupos políticos ligados à extrema direita têm rejeitado a existência da fome no Brasil, alegando que o problema já está erradicado. Pesquisadores alertam para a gravidade da situação apontando para interesses políticos e econômicos por trás disso.

A disseminação de teorias conspiratórias nas redes sociais vem potencializando e trazendo visibilidade a essas mentiras, alimentando discursos de extremistas e dificultando a luta contra a fome no país.

Em grupos de extrema direita no Telegram, usuários dizem que a fome no país é “uma falácia da esquerda”. Um usuário descreve a fome no país como “um projeto de uma esquerda internacional. 

Confrontados com evidências da existência da fome no país, a atitude de usuários desses grupos é de desdém. “O gás aumentou? A fome voltou no nordeste? Faz o L.” dispara um usuário.

Nesses grupos, a existência da fome é justificada por “pessoas preguiçosas” que não querem trabalhar e desejam “ganhar tudo de mão beijada pelo Estado”.

Contradizendo essas declarações, dados coletados pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) demonstram que entre 2020 e 2022, a quantidade de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave passou de 19 milhões para 33,1 milhões, reinserindo o país para no mapa da fome da Organização das Nações Unidas.

Ao decorrer dos quatro anos do governo Bolsonaro, ocorreram diversas vezes posturas com viés de negação e minimização da fome.

Em agosto de 2019, Bolsonaro declarou em um de seus cafés da manhã com jornalistas que “é mentira essa história que o Brasil passa fome”.

O ex-presidente também disse em agosto de 2021 em uma de suas transmissões ao vivo nas redes sociais que “não existe mais desnutrição no Brasil” e que “não se vê mais gente magra como antigamente”.

Paulo Guedes, ex-ministro da economia, durante um evento da Fenabreve (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores) no dia 21 de setembro de 2022, novamente afirmou que “33 milhões de pessoas passando fome é mentira”.

Em março de 2021, Guedes também chegou a declarar em uma reunião com ministros que a fome no Brasil era “conversa fiada” e que “que não se vê gente, mesmo que pobre, com aparência de subalimentado”.

Deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro afirmou em uma entrevista que “não existe fome no Brasil porque falta gente pra morrer”.

Também deputada federal, Carla Zambeli afirmou em entrevista em maio de 2021 que a fome era uma narrativa inventada pela esquerda. 

Um ano antes, Olavo de Carvalho, mentor político da extrema direita, publicou em suas redes sociais que a fome era uma propaganda da esquerda para angariar votos e “manter as pessoas na dependência do Estado”.

O governo de Bolsonaro e seus aliados não se limitou apenas em declarações que rejeitavam a existência da fome, mas também praticou medidas de sucateamento das políticas que buscavam combatê-la.

Logo ao assumir a presidência do país, em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro extinguiu o Consea, sendo reativado em março de 2023 durante o governo Lula.

O ex-presidente também foi responsável por cortes de orçamento relacionados a áreas como agricultura familiar e distribuição de alimentos.

Essas políticas utilizadas pelo governo Bolsonaro, entretanto, possuem suas origens em práticas com antecedentes históricos, datadas diretamente do período da ditadura militar.

Negação da fome na ditadura militar

Durante o final da década de 1970 e começo dos anos 80, o sertão nordestino passou por sua pior seca de todo o século XX. No auge da crise, 10 milhões de nordestinos já haviam sido impactados pelos efeitos da seca.

Entretanto, o regime ditatorial proibia que a imprensa divulgasse quaisquer matérias que expusessem os efeitos da fome no país, até mesmo proibindo que a palavra fosse utilizada nas redações. 

Essas políticas de negação da fome, tanto na ditadura militar, quanto no governo Bolsonaro, buscam passar uma aparência de estabilidade econômica no país, rotulando quem passa fome de “preguiçoso” ou “incapaz”.

Eduardo Silva, professor de sociologia formado pela Unicamp, defende que os movimentos de invisibilização da existência da fome no país, estão relacionados a projetos que têm o objetivo de desacreditar demais questões além da fome. “A negação da fome é acima de tudo uma negação dos direitos humanos” afirma Silva.

De acordo com a pesquisadora do IBGE Thaís Oliveira, a negação da fome chancela um modelo político, econômico e ideológico. “Assumir sua existência é assumir que algo neste modelo precisa ser revisto”, isso, de acordo com ela, mexe com toda a dinâmica que é confortável para diversos núcleos de poder. 

A respeito dos interesses políticos e econômicos, Thaís afirmou que negar a fome e torná-la seu cargo chefe é “historicamente usado como capital político” (um ponto sensível, considerando que o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo). A pesquisadora aponta para o quase absurdo que é pensar que um país produtor de alimentos tão relevante no cenário mundial, tenha mais de 33 milhões de pessoas com insegurança alimentar, de moderada a grave.

Olhando para a imagem do país internacionalmente, isso pode significar menos contratos e negócios com importantes parceiros econômicos para o país e seus empresários.

A divulgação dessas ideias, entretanto, por meio da internet e redes sociais, consegue atingir cada vez mais pessoas, usando o ambiente online como uma ferramenta de divulgação de massa dessas políticas.

Buscando explicar o motivo da internet ser um ambiente tão fértil para a disseminação de mentiras e teorias da conspiração, Silvio Mieli, professor na Pontifícia Universidade Católica, cita o livro Terra Arrasada de Jonathan Crary. “As redes sociais possuem uma resistência profunda a responsabilidades comunitárias” disserta Mieli.

Ainda segundo Mieli, o individualismo fomentado pelas redes sociais permite que cada um crie e divulgue as suas próprias verdades, abrindo margem para o surgimento de versões de “quinta categoria”.

A contenção da desinformação

A alternativa proposta por Silvio para a contenção da divulgação de projetos destrutivos na internet, passa por uma politização das redes, uma regulamentação que instaure freios e contramedidas para a expansão de discursos negacionistas.

Seguindo na mesma linha, Thaís argumenta que pela mídia informativa ser um espaço importante de poder, debate e mediações de conflito, é uma ferramenta valiosa para dar visibilidade àquilo que não agrada ver ou ouvir, mas é fundamental que a sociedade civil, governo e políticos saibam, para que sejam aplicadas corretamente políticas públicas voltadas para o tema. Até para que a própria sociedade civil pressione seus representantes a se organizar para solucionar o problema.

Para isso, a imprensa deve estar sempre atenta, corajosa e disposta, para trazer esse assunto para a pauta, independentemente de quem de qual grupo esteja ocupando os espaços de poder. Para tal, a imprensa deve ser livre, isenta e respeitada.

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Os impactos da fome no organismo de quem deveria ser o amanhã do Brasil
por
Isabela Gama
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30/06/2023

A fome infantil atinge quase 6 milhões de crianças no país, 22% das famílias são  chefiadas por mulheres negras e 8% por homens brancos, os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, escancarando a desigualdade social e racial no país. Os dados têm assustado especialistas, que apontam a subnutrição infantil como um risco para o desenvolvimento cerebral dos pequenos, criando carências nutricionais devido à mudança no metabolismo e o tamanho dos órgãos, o que afetará sua qualidade de vida quando se tornarem adultos, comprometendo todo o futuro de milhares de  trabalhadores do Brasil. 

A Sociedade Brasileira de Pediatria, detalha que a alimentação balanceada de uma criança precisa ser rica em vitaminas e nutrientes como ferro,cálcio,vitamina A,D,B12 e zinco,  principalmente durante os primeiros dois anos de vida, fase determinante para o desenvolvimento cognitivo e corporal.  

A pediatra, Izilda das Eiras Tâmega, professora do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Sorocaba e especialista em Neonatologia e Nutrologia, explica que a desnutrição infantil afeta duas principais áreas na vida de uma criança, seu crescimento e desenvolvimento. O crescimento diz respeito ao peso e estatura das crianças, enquanto o desenvolvimento está relacionado ao amadurecimento cognitivo. 

“Os primeiros dois anos de vida são fundamentais, é durante esse período que  temos o crescimento cerebral, que não é um crescimento só do tamanho do cérebro mas também da qualidade funcional dele. Durante esse tempo pode haver danos irreversíveis na vida dessas crianças quando elas se tornarem adultas”, afirma a pediatra.   

Após os dois anos de vida, os impactos estão mais relacionados ao crescimento corporal  dessas crianças, que podem crescer menos do que o ideal para a sua idade .   

Tâmega explica também que os efeitos na vida adulta de uma criança desnutrida variam justamente em relação à idade em que elas passaram pela privação de alimentos e ao tipo de investimento feito posteriormente para reverter o quadro desnutrição.   

“Você não pode chegar para uma criança e falar ‘ Essa foi desnutrida, grave, não tem que investir porque não tem mais o que fazer’  Tem, tem sim. Você tem que investir o máximo pela recuperação dela”, reitera a pediatra  

Algumas crianças podem inclusive ficar sem nenhuma sequela de crescimento ou desenvolvimento, mesmo tendo passado por um grave quadro de insegurança alimentar, mas isso não é possível prever ou mapear, sendo somente constatado ao longo da vida.    

O professor de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Wolney Lisboa Conde, explica que além do impacto físico como atraso no crescimento, a desnutrição também ocasiona fraqueza muscular e baixa imunidade. O nutricionista esclarece quais são os efeitos mais comuns da fome no cérebro infantil. 

“O cérebro é vulnerável à fome. Quando uma criança não recebe calorias suficientes, o corpo começa a consumir suas reservas de gordura e calorias armazenadas, deixando o órgão com uma quantidade insuficiente de energia para que ele funcione de maneira adequada”, esclarece o especialista.  

Questões comportamentais como irritabilidade, agitação e dificuldade na concentração, o que é extremamente prejudicial para o desempenho escolar dessas crianças, também são alguns dos impactos causados pela subnutrição.  

“O mau funcionamento do cérebro pode ocasionar atrasos na fala e na aprendizagem desses jovens. Além disso, na idade adulta, essa baixa qualidade da saúde infantil está associada a risco elevado de obesidade, dislipidemias, hipertensão e outras e doenças crônicas não transmissíveis além, evidentemente, da menor qualidade de vida adulta”, expõe Lisboa 

O prejuízo da atividade escolar desses jovens, impactam diretamente sua vida adulta. A má formação acadêmica gera oportunidades profissionais limitadas, o que predestina esses futuros adultos a  trabalharem em subempregos e em condições degradantes, aprofundando ainda mais a desigualdade social.  

Segundo um levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) entre 2020 e 2021, o  número  de crianças e adolescentes com privação no acesso à alimentação teve um crescimento de 9,6%. Diante deste cenário, entidades do terceiro setor contribuem, mesmo que de forma pontual, para a garantia de refeições a estes jovens e suas famílias.   

A Pastoral da Criança, organização vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) atua em prol de comunidades carentes,auxiliando famílias e crianças. A Coordenadora da Pastoral da Criança da Zona Norte, Nanci Maria da Silva de Oliveira, explica que doações de cestas básicas, checagem da carteira de vacinação dos pequenos, acompanhamento de gestantes e o acompanhamento de altura e peso de crianças entre 0 e 6 anos são feitos são feitos por voluntários da pastoral. 

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