O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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De boicotes a ataques aos institutos de pesquisas a tentativas de punir legalmente os que não acertem o resultado, a democracia novamente vem sofrendo ataques
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Andre Nunes Rosa e Silva, Helena Monteleone Sereza e Hiero (Nina) de la Vega de Lima
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08/12/2022

As pesquisas de intenção de voto para a eleição ao governo do Estado de São Paulo apontavam um empate técnico entre o segundo e terceiro colocados – o candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o atual governador paulista, Rodrigo Garcia (PSDB). Os resultados, contudo, apontaram grande vantagem para Tarcísio. Em um cenário de desconfiança em relação ao sistema democrático brasileiro, é importante pontuar a atuação dos institutos por trás dos resultados nas pesquisas de 2022.

As pesquisas de intenção de voto têm o objetivo de projetar possíveis resultados para as eleições. Felipe Nunes, CEO da Quaest e doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, diz que o maior desafio dos institutos foi não ter conseguido estimar adequadamente o grau de abstenção eleitoral. Ele afirma já estar acostumado a ataques, principalmente de grupos que estão perdendo. 

Nunes acredita que, para reverter essa situação, o único caminho é investir em uma educação que explicite as reais expectativas que a população deve ter a respeito do papel dos institutos. “Pesquisas são prognósticos, e não diagnósticos. Serve para retratar um dado momento da opinião pública brasileira, não devendo ser utilizadas para fins de previsão” diz, em entrevista ao Contraponto.

Segundo o Conselheiro Estadual da OAB/SP e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP Alexandre Rollo, os grandes perdedores nas eleições do Estado de São Paulo foram as pesquisas eleitorais.

O especialista ainda argumenta que existem explicações sobre os resultados coletados. Os fatores que podem ter alterado os dados, de acordo com o advogado, podem ter sido a falta da coleta do Censo antes do período eleitoral, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou o boicote por parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro às pesquisas eleitorais.

Em entrevista ao UOL News, a presidente do Datafolha, Luciana Chong, defendeu a tese de que houve uma dificuldade em coletar as intenções de votos bolsonaristas. Segundo ela, os ataques hostis à imprensa e, em especial, aos institutos de pesquisa, alteraram as proporções dos dados captados.

“No último mês, os ataques em relação às pesquisas, aos institutos, ao Datafolha especialmente, moldaram um clima de hostilidade e agressividade em relação aos pesquisadores. Em um ambiente normal, com outras condições, a gente teria captado algo mais do Bolsonaro na véspera."

Já Andrei Roman, cientista político e CEO do Instituto AtlasIntel, destacou para o jornal Correio Braziliense que existiu dificuldades em realizar cortes de rendas eficientes, além da dificuldade em registrar o "voto envergonhado", quando o eleitor não divulga seu voto até o momento da eleição por medo de represálias ou linchamento político.

Segundo a especialista em ciência de dados pela USP Paula Oliveira, os institutos devem investir no aprimoramento dos seus métodos, e assumir maiores custos operacionais para oferecer mais qualidade e confiança aos eleitores.

Boicote às pesquisas

Em 1986, o então candidato a prefeito para a capital paulista Franco Montoro (PSDB) pediu para que seus eleitores não respondessem às pesquisas eleitorais. Na época, empresas e institutos de pesquisa apontavam a vitória de Fernando Henrique Cardoso, que então estava filiado ao PMDB.

Algo similar aconteceu nas eleições para presidente de 2022, onde blogueiros e políticos próximos a Bolsonaro incentivaram a fraude das pesquisas. Durante o período eleitoral, o Ministro das Comunicações Fábio Faria clamou por boicote publicamente. “Quero dizer ao povo brasileiro: não respondam mais nenhuma pesquisa desses institutos de pesquisa, nem Datafolha nem Ipec”, diz em vídeo publicado em suas redes sociais.

Foi protocolado, neste ano, o Projeto de Lei, na Câmara de Deputados, que previa punição para institutos de pesquisa que não acertassem o resultado das urnas. Segundo a proposta, enviada pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR), a punição é de 4 a 10 anos de prisão para líderes de grupos de coleta de dados eleitorais. 

Rollo também afirma que a criação de um crime para institutos que erram resultados não é a solução, já que o crime apenas existiria como “prova de dolo de falsear” um levantamento de intenção de votos, que não se parece com o cenário atual, segundo ele.

Outros especialistas também apontam que a falta de regulamentação dos institutos de pesquisa podem causar dúvidas e questionamentos na população, porém acham o projeto de lei inconstitucional.

Segundo Turno

Sobre os resultados nas urnas, o doutor em direito constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa de Brasília (IDP/DF) Acacio Miranda afirma que o reconhecimento dos resultados é, inegavelmente, mais importante para a democracia brasileira do que manter o foco sobre os erros das pesquisas eleitorais.

“Zelar pela Constituição significa reconhecer o resultado divulgado pela justiça eleitoral, seja qual for o resultado. Eventuais questionamentos posteriores são legítimos, mas eles passam, necessariamente, por um primeiro reconhecimento que é essencial para a pacificação social”, afirma o especialista.

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O interior de São Paulo mostrou que ainda não aceita o PT ao eleger Tarcisio de Freitas para governador do Estado
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Maria Luiza Oliveira e Giulia Palumbo
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08/12/2022

O resultado das eleições para governador de São Paulo colocou em destaque a força do antipetismo no interior paulista. Tarcisio de Freitas (Republicanos) obteve 55,27% dos votos, enquanto Fernando Haddad (PT), 44,73%. As cidades do interior e do litoral foram decisivas para esse resultado. 

O eleitorado do interior de São Paulo apoia e se identifica com as pautas defendidas pelo candidato bolsonarista, como a liberação das armas, e se afasta da esquerda, diferentemente da capital, explica Vinicius Alves, cientista político e pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).  “O interior, desde sempre, tem uma mente mais conservadora, por conta do agronegócio, da religião e do que aconteceu nos últimos anos com o PT. Esses elementos ficaram fixados no imaginário dessa população e, com tudo isso, criou-se o antipetismo”, complementa. 

Não é à toa que a campanha de Tarcísio focou nos votos da população de cidades pequenas ou médias, como Campinas, Barretos e Sorocaba. Diferentemente de Haddad, que encontrou dificuldades para atingir esse público e teve que cancelar a agenda de campanha em Presidente Prudente, após receber um áudio com apoiadores do Bolsonaro combinando de hostilizar o candidato. A assessoria do petista justificou o cancelamento da passagem pela região devido à “ameaças explícitas à passagem do candidato na cidade”, disse a assessoria do petista. 

Tarcísio
Givernador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas 

“O PT hoje é um partido que se alinha com pautas da minoria: movimento negro, movimento LGBT, pautas ambientais. Então, quanto mais você sai dos grandes centros, menos essas pautas são aceitas. (...) Nessas eleições, muitas fake news foram criadas para indignar essas pessoas que têm esse pensamento mais conservador”, explica Marco Teixeira, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).  

Teixeira complementa que Haddad até tentou se aproximar desses locais, mas não foi bem aceito. Por isso, o foco maior da campanha foram os grandes centros, como na capital de São Paulo, onde obteve 54,41% dos votos, contra 45,49% do candidato bolsonarista. 

Haddad e Lula
Fernando Haddad junto com Lula em campanha. Reprodução: instagram do Haddad

Relação das cidades pequenas com a religião

Na cidade de Pinhalzinho, com cerca de 15 mil habitantes e a 112 km da capital paulista, Tarcísio recebeu 68,94% de votos, contra 31,06% do petista no segundo turno. Durante a campanha, foram organizadas passeatas a favor do governador eleito em que houve grande mobilização das igrejas evangélicas da cidade, além da participação de moradores de municípios vizinhos, como Bragança Paulista, Socorro e Amparo. A oposição foi quase inexistente nesses locais. 

Carro preto com a bandeira do brasil em cima
Passeata pró Bolsonaro que estava se iniciando em Pinhalzinho (SP)

Muitos fiéis da igreja repetiram o discurso do líder religioso. Na primeira semana após o primeiro turno, uma seguidora que não quis ser identificada, vestida com uma camiseta do Brasil, saiu de um culto com uma Bíblia em mãos e foi até a lotérica em que Giovana Silvestre, de 19 anos, trabalha para pedir voto ao seu candidato. 

Ao chegar, a cristã começou a defender a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e de Tarcísio. “Eu não entendo como alguém pode defender esse traste [Lula], e ainda querem trazer a gangue dele para São Paulo [Haddad]. Não podemos deixar isso acontecer!”, afirmou a senhora. Giovana relata que expressou discordância da fala em sua expressão facial, o que desencadeou a pergunta: “Você é petista? Por favor, não me bata. Vocês do PT são tudo loucos!” Depois, a senhora saiu brava do estabelecimento. 

O acontecimento é um retrato do antipetismo forte nas cidades do interior, reforçado ainda por um discurso religioso. O pastor da igreja, que também não quis se identificar, afirma que pede votos ao candidato Bolsonaro “pelos cidadãos de bem'', para a ‘quadrilha’ não voltar ao poder. "E para nós podermos frequentar aqui [igreja] sem sermos perseguidos."


O agronegócio com Tarcísio 

Outro aspecto que mobiliza o interior de São Paulo é o agronegócio. Ribeirão Preto, que está a 315 km da capital, se identifica como o município do agro e, não coincidentemente, Tarcísio ganhou no local com 59,56% dos votos. Um produtor de hortifruti local diz que ficou feliz com a vitória de Tarcísio, e que, diferentemente do governo do atual tucano e do ex-governador João Doria, ele tem esperança de melhorias em São Paulo e da valorização de seu trabalho. 

O empresário do ramo da mineração Arthur Silva mora em Bragança Paulista. Ele afirma que não teria como Fernando Haddad governar para ele e para a sua classe, uma vez que acredita que perderia alguns privilégios, mas não quis citar quais eram. Em seu escritório, há bandeiras do Brasil espalhadas pela parede. 

Tarcísio agradece ao interior 

“Eu agradeço muito o interior do nosso Estado, que foi fundamental nessa vitória. Vamos trabalhar muito em prol do interior. (...) Agradeço muito ao nosso interior do Estado, assim como agradeço os mais de 3,4 milhões de paulistas que depositaram esse voto de confiança e a todo o Estado de São Paulo”, discursou Tarcísio na vitória.

TARCISIO
Tarcísio em discurso de vitória. Imagens: Stella Borges/UOL

 

No plano de governo do bolsonarista, a gestão foi dividida em três segmentos: desenvolvimento social, desenvolvimento urbano e do meio-ambiente, desenvolvimento econômico e inovação. Até o momento, as pautas de transição estão alinhadas com a trajetória dele no governo Bolsonaro, sendo os principais temas de infraestrutura que atingem principalmente o interior do Estado.

 “Os problemas de infraestrutura se espalham por São Paulo, mas se concentram no interior. Há demandas de manutenção e construção de estradas, problemas de logísticas, escoamentos de produção etc. Boa parte das propostas de Tarcísio é para o interior, principalmente no âmbito da infraestrutura, que é uma demanda daquela população”, diz Teixeira.

Contudo, o governador eleito encontrará dificuldades para fazer a gestão da capital, uma vez que o ponto de atenção é a segurança pública, aspecto preocupante para esses moradores, já que grande parte não está de acordo com as medidas propostas, como a reavaliação do uso das câmeras nos uniformes dos policiais. “A segurança é o maior ponto de atenção dele [Tarcísio]. A violência é, sobretudo, um tema metropolitano”, conclui o cientista político. 
 

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Especialistas apontam que uma das razões para a falta de representação feminina, em especial dentre mulheres com condições financeiras piores, é a dupla jornada

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Maria Ferreira dos Santos e Sofia Luppi
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08/12/2022

Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), há ao todo 156.454.011 brasileiros aptos a votar nas eleições de 2022, e desse total, 53% são mulheres. Entretanto, esse número não se reflete nas candidaturas, uma vez que candidaturas femininas são minoria. 

 Em proporções nacionais, há 224 candidatos que tentavam ser eleitos para uma das 27 vagas de governador do Estado e dentro desse número, havia somente 38 mulheres concorrendo aos cargos.  

Essa situação fica mais acentuada em São Paulo, que tem o maior colégio eleitoral do Brasil. Entre as 10 pessoas em campanha para ser o novo governador do estado, havia somente uma única candidata. A ativista social Carol Vigilar do Unidade Popular (UP), que teve cerca de 0,38% dos votos válidos.  

Na Câmara dos Deputados esse cenário mudou das eleições de 2018 para as de 2022. Antes das 70 cadeiras de São Paulo na Câmara dos Deputados, 9 foram ocupadas por mulheres. Agora esse número aumentou para 14, representando 20%. 

Mulheres de baixa renda na política 

Entretanto, como observa Danusa Marques, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, essa falta de representatividade afeta principalmente as eleitoras de baixa renda, que,  muitas vezes, não se enxergam nas poucas candidatas aptas.  

Isso porque há realidades de vida muito divergentes entre eleitoras e candidatas. “Quando há mulheres,  a maior parte delas  não têm a mesma trajetória, não compartilha de uma visão de mundo comum com as mulheres trabalhadoras, com as mulheres pobres, periféricas do Brasil”, elucida a docente. 

A falta de representatividade tanto de gênero quanto de raça e classe gera um afastamento das pessoas que não estão na atuação política. O fato de estar distante  não significa falta de interesse pelo debate.  

Pelo contrário, o que acontece, na verdade, é que o eleitorado feminino de baixa renda não consegue estar atento ao que está acontecendo no viés político devido à dupla jornada de trabalho, isto é, pela sobrecarga advinda da divisão sexual do trabalho. 

Marina Brito, doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais especializada na participação política de mulheres, explica que a dupla jornada de trabalho é quando uma trabalhadora tem tanto o desgaste com o emprego remunerado quanto com as atividades domésticas.  

Quanto a isso, a estudiosa esclarece que “há uma dificuldade em compartilhar essas responsabilidades familiares com companheiros” pois esses não sofrem uma pressão social para tal pois “aos homens não existe essa cobrança, a eles é esperado outro jeito de viver”. “Os homens têm muito mais tempo livre para participar politicamente não só na política  institucional como na própria militância, movimentos sociais, sindicatos”, completa. 

Estado de ‘viração’ 

Rosemary Segurado, pesquisadora e docente de ciências sociais da PUC-SP, ressalta que  dentro desse grupo há mulheres em famílias monoparentais que são, de fato, as únicas responsáveis pela renda e pelos cuidados, dificultando ainda mais seu envolvimento político. Segurado utiliza o termo “viração” para tratar disso. 

Segundo Segurado, esse conceito acaba por definir a vida cotidiana de uma trabalhadora cercada de preocupação. Um exemplo comum nos dias de hoje é a inserção no mercado de trabalho informal, onde direitos trabalhistas e um salário precário são a realidade e, a partir disso, a mulher precisa “se virar” para conseguir sustento. 

São nessas circunstâncias da “viração” que vive Josidalva Silveira, agente de higienização, que para chegar ao emprego que fica no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, pega três conduções e chega em casa somente às 23h. Nesse horário, por exemplo, os debates e entrevistas que passam na televisão já estão ocorrendo. Silveira acredita que se não tivesse uma rotina tão cansativa conseguiria acompanhar e entender melhor de política.   

Como essas mulheres enxergam a política? 

Já Aparecida de Oliveira, auxiliar de faxina, enxerga a política de maneira intrínseca ao período eleitoral. “De quatro em quatro anos acontece a política”, declarou. Eloides Matias, colega de trabalho de Oliveira, declarou não entender de política, mas procura saber sobre, “ ler mais, ver as propostas''. 

Apesar disso, Matias afirmou não saber quais eram os planos de governo dos candidatos ao governo de São Paulo, isso há menos de um mês para o dia das eleições. “Ainda não, ainda não tive tempo de ver as propostas. Por conta do meu horário [de trabalho] não tive tempo”, finalizou. 

Quatro coisas específicas unem essas mulheres: a condição de baixa renda, a sobrecarga, falta de tempo e a indecisão acerca de seu voto mesmo com a proximidade das eleições.  

Tendo isso em vista, Marques completa. “A decisão do voto está orientada pelas informações e pelas condições que as pessoas têm para tomar essa decisão. Então, se a pessoa não tem boas condições, ela não tem informação, não tem tempo para pensar, não tem nada. Vai seguir como se fosse uma coisa desimportante”.  

Outro ponto interessante sobre o perfil eleitoral desse grupo é a perspectiva acerca das políticas públicas. Quando questionadas a respeito, Josidalva Silveira e Aparecida de Oliveira responderam que essas ações não as afetam em nada, nem sequer notavam essas políticas públicas. Matias seguiu com o mesmo raciocínio: “Não sei te dizer por que não me afetam. Eu não consigo ver muita coisa, mas eu sei que afetam muita gente”. 

Essa “muita gente” que Matias cita deveria, em tese, corresponder a elas também. As mulheres de baixa renda, inclusive, são as pessoas que mais utilizam o serviço público, segundo as pesquisadoras.  

Segurado compreende que “quando elas dizem ‘Eu não sinto que a política pública chega a mim’,  nós estamos falando do posto de saúde, da escola pública, é que ela nem identifica isso como política pública pela precariedade dessas ofertas”. A docente ainda acrescenta que as mulheres são o principal público de políticas públicas pois normalmente são designadas, pela sociedade, a zelar e gerenciar a vida de seus familiares.  

Sob essa perspectiva, Segurado afirma que “elas querem ser cuidadas pelo Estado para que elas possam cuidar também dos seus com algum nível de qualidade”. A docente ainda ressalta que, por passar pelos em serviços públicos, a mulher querendo ou não, torna-se um ótimo parâmetro para se saber como essas ações estão atuando de fato.  

As mulheres que se encontram nas classes mais baixas têm um perfil eleitoral heterogêneo. Quase todas elas se encontram em trabalhos terceirizados ou informais, costumam ser o sustento da casa e possuem uma dupla jornada em seu cotidiano que impede de estarem, na opinião delas próprias e de especialistas, ativa nas questões políticas.  

Por isso, traçar sua intenção de votos ou viés político é tão complexo. Sobre a ausência delas em espaços de poder, Marina Brito declara: “Para uma mulher dessas conseguir se eleger, ela precisa mover montanhas”. 

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Com propostas duras para segurança pública, o governador eleito preocupa especialistas, que temem um retrocesso de boas ferramentas da segurança pública que demoraram décadas para serem implementadas
por
Carlos Englert, Pedro Catta-Preta e Rafael Felix
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08/12/2022

Apesar das expressivas melhoras estatísticas dos dados de violência policial no estado de São Paulo, Tarcisio de Freitas segue flertando com a ideia de retirar câmeras corporais e mantém um discurso favorável a uma “linha dura” da polícia. No primeiro semestre de 2022, houve uma redução de 60% na letalidade policial do estado de São Paulo em relação ao primeiro semestre de 2020. As mortes desses agentes do Estado também diminuíram substancialmente nos últimos anos.

Durante toda a sua campanha, Tarcísio de Freitas foi contra a implementação de ferramentas que freassem o poder de fogo policial, principalmente as câmeras corporais, dizendo que as extinguiria caso fosse eleito. Tais câmeras tem o propósito não somente de diminuir a corrupção e a violência policial, mas também de defender os agentes da lei contra falsas alegações de abuso de poder, por exemplo.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) é uma das maiores do país, tanto no quesito de contingentes quanto na verba. De acordo com relatório do Monitor de Violência do G1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, até 2020, a polícia de São Paulo também era uma das que mais matava, com uma taxa de mortes de 814 pessoas a cada 100.000 habitantes, número que caiu 30% em 2022. 

O estado também apresentou uma redução de 49% nos policiais mortos em serviço entre os anos de 2020 e 2021, opondo-se à alta de 44,1% entre 2019 e 2020.

Com a eleição do governador bolsonarista, no entanto, esses números podem voltar a crescer. Tarcísio é abertamente favorável à uma polícia mais dura e alega, por exemplo, que batalhões estão “perdendo produtividade” por conta das câmeras corporais. Ao seu lado, o governador conta com a bancada do PL, a maior eleita, e com o apoio de uma ampla ala bolsonarista na Câmara.

Para o sociólogo e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, a queda da letalidade policial se deve a uma mudança do governo Dória na área da segurança pública, principalmente a partir da segunda metade de 2020, após o Massacre de Paraisópolis, quando Dória passou a se distanciar do discurso de Bolsonaro, quem o ajudou a se eleger em 2018.

Em 2019, uma intervenção desastrosa em um baile no bairro Paraisópolis culminou na morte de nove jovens. Os policiais encurralaram a multidão, causando uma série de pisoteamentos.

Entre 2019 e a primeira metade de 2020, cerca de 30% das mortes violentas no estado foram cometidas pela Polícia Militar, números estes que são computados juntamente com casos de homicídio e latrocínio. “Em certos bairros, como Heliópolis, se fosse retirado da conta essas mortes, o número de pessoas mortas cairia mais da metade”, comenta Rocha.

“Houve então uma tentativa de mudar o modelo de segurança pública, principalmente o controle do uso da força”, explica o sociólogo. Entre as mudanças estão: o investimento em armas não-letais, como os tasers e o uso de câmeras corporais.

Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação
Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação

Conforme apontou Rafael Rocha, essas e outras questões mostram um projeto de segurança pública falho, e muito contraditório: “Ele disse, por exemplo, que não era necessário colocar mais câmeras nos policiais, mas sim tornozeleira eletrônica nos bandidos. Mas uma coisa não exclui a outra, é muito simples”

Tarcísio de Freitas já voltou atrás em alguns de seus posicionamentos, no entanto, mesmo que não descontinue as câmeras, pode sucatear o sistema que as sustenta. As câmera corporais exigem uma estrutura para transmitir, armazenar e analisar as imagens.

“O Tarcísio pode acabar com as câmeras sem acabar com as câmeras. Se o custo político for muito alto, ele pode sucatear a estrutura por trás”, comenta o sociólogo.

Alan Fernandes, Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e Doutor em Administração Pública e Governo, afirma que as mudanças na PM de São Paulo também reduziram as mortes de policiais militares.

Para Fernandes, isso se deve a duas razões: a primeira delas é que, em razão das câmeras, policiais militares em campo buscam estratégias para evitar o confronto armado, o que reduz tanto a letalidade de suas ações, como os coloca em menores níveis de risco. A outra razão é que as câmeras corporais teriam a capacidade de mitigar ações violentas por parte dos agressores não-policiais.

O coronel explica também que existe um discurso político que coloca a polícia como última salvação perante a criminalidade e estimula policiais a arriscarem suas vidas para o cumprimento do dever. Para Fernandes, isso funciona como agravante da mortalidade policial: "Mensagens messiânicas que invocam o papel dos policiais na luta contra o “mal”, lançam-os em ações arriscadas, em que o saldo de vidas perdidas, de quaisquer lados do cano de um fuzil, é resultado aceitável. Não deve ser!"

Dados da GV Executivo apontam que entre o terceiro e o quarto trimestre de 2021, os batalhões que faziam parte do programa Olho Vivo, apresentaram redução de 63,6% e 77,4% na letalidade provocada pelos PMs em serviço, demonstrando a eficácia das câmeras corporais.

Para Rafael Rocha, a imagem dos policiais perante a sociedade também melhorou e grande parte dos agentes sendo contrários ao projeto de extinção das câmeras: “É engraçado achar que a câmera desabona o policial, pelo contrário, esses policiais tem preocupação com a imagem da instituição, eles sentem que isso os qualificou”

O estado de São Paulo pode influenciar o debate sobre as propostas de segurança pública em outros estados, explica David Marques, doutor em sociologia pela UFSCar e Coordenador de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

"São Paulo reduziu em 30% o total de vítimas de letalidade policial, fato em grande medida atribuído às mudanças institucionais pelas quais vem passando a Polícia Militar desde meados de 2020", comenta Marques.

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As pessoas autodeclaradas pretas totalizam 9; as mulheres de esquerda também são maioria nessa categoria e, desde 2014, estão à frente dos homens pretos eleitos
por
Julio Cesar Ferreira
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08/12/2022

São Paulo foi o Estado com maior número de pessoas pretas eleitas para a assembleia estadual em todo o país. As pessoas pretas totalizam nove eleitas, e as mulheres pretas são a maioria desde 2014 na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).

A Alesp está inserida no Estado que mais elege deputados estaduais (94) do país e devido dois mandatos coletivos: Bancada Feminista e Movimento Pretas, ambos do Psol, o número de pessoas pretas pode ser expandido para 19 pessoas eleitas. A Bancada Feminista conta com cinco mulheres e o Movimento Pretas, sete. 

O Contraponto Digital realizou um levantamento considerando os eleitos para a Alesp autodeclarados pretos. Sem os mandatos coletivos, os deputados eleitos sozinhos totalizam sete, sendo eles:  Ediane Maria (Psol); Guto Zacarias (União Brasil); Reis (PT); Barba (PT); Thainara Faria (PT); Leci Brandão (PCdoB) e Luiz Cláudio Marcolino (PT). 

Se observado os espectros políticos dos pretos eleitos em São Paulo, há mais pessoas de esquerda, com oito no total. A direita só tem Guto Zacarias (União Brasil) como representante. As mulheres também são maioria nessa categoria. 

“É um processo que vem se transformando lentamente ao longo dos anos, mas que começou a ter um pouco mais de consistência a partir das eleições de 2014”, argumenta Aírton Fernandes Araújo, doutor em ciência política pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e diretor de formação política da Frente Negra Gaúcha. 

Alguns estudiosos defendem que os partidos denominados de esquerda são reconhecidos dessa forma no Brasil porque têm um corpo parlamentar que pensa em políticas públicas igualitárias e coletivistas. Já os de direita atuam de maneira meritocrática, visando apenas o lucro e têm poucas políticas públicas pensadas para a massa. 

2014 foi o ano em que os candidatos foram obrigados a informar sua cor/raça ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Com isso, foi possível traçar qual era a raça/cor dos candidatos e eleitos a partir desse ano.  Em 2014, a Alesp teve três autodeclarados pretos eleitos: Leci Brandão (PCdoB), Clélia Gomes (PHS, atual Podemos) e Barba (PT). Já em 2018, cinco pessoas pretas foram eleitas: Leci Brandão, Tenente Nascimento (PSL, atual União Brasil), Érica Malunginho (Psol), Bancada Ativista (Psol) e Barba e, neste ano, nove. 

Mesmo que a cidade de São Paulo tenha 37% da população negra (considerando pretos e pardos), segundo os dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) os políticos pretos ainda continuam sub-representados se comparado a proporção da população brasileira, formada de 56% de pessoas negras.  

Mulheres pretas em destaque

A Alesp terá a maior representatividade feminina da história na próxima legislatura (2023/2026), com 25 mulheres. A quantidade de mulheres na atual composição da Casa já era considerada uma marca histórica, com 19 parlamentares. Dentro da categoria de eleitos autodeclarados pretos, há mais mulheres, sendo cinco (15 se contar as integrantes dos mandatos coletivos). 

Para Araújo, isso pode ser explicado a partir do protagonismo que a mulher negra vem exercendo na sociedade civil e o papel de uma campanha frente ao eleitorado e à sociedade acerca da importância do voto feminino negro. “Vejo isso como tomada de consciência”. 

E quanto elas serem dos partidos de esquerda, o cientista político argumenta que são essas instituições que, bem ou mal, melhor representam e discutem toda a ansiedade da mulher negra. 

Todavia, ele salienta que essas parlamentares se responsabilizam por exercer os seus mandatos não só para negros, mas para todos os desfavorecidos na sociedade, o que acaba atraindo um eleitorado diverso. 

Desde 2014 as mulheres autodeclaradas pretas se destacam em número de eleitas, ficando sempre à frente dos homens pretos, mesmo que dentro de um número já pequeno. 

Em 2014, a Alesp teve três autodeclarados pretos eleitos, dois eram mulheres. Já em 2018, cinco pessoas pretas foram eleitas, três eram mulheres e, neste ano, nove pretos eleitos, sendo cinco mulheres. 

Simone Nascimento, codeputada (pessoa que compartilha o cargo de deputada com outros membros) da Bancada Feminista, eleita neste ano explica que o mandato coletivo atuará em prol das lutas populares e serão uma forte oposição ao governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), pois são contra várias medidas que ele propôs em sua campanha, como a retirada das câmeras dos uniformes da Polícia Militar (PM). 

Isso porque, a inserção das câmeras nos uniformes dos policiais militares foi um mecanismo que reduziu a letalidade policial em 72% no estado de São Paulo, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) estadual.

“Lutaremos para que o Estado de São Paulo priorize o combate à fome, o investimento na educação, saúde, moradia e queremos fortalecer a rede de proteção às mulheres e o combate ao racismo”, afirma Simone. 

Assim como Simone, a codeputada do Movimento Pretas, Ana Laura, também cita que o mandato coletivo será um instrumento e uma ferramenta social para ser caixa de ressonância das lutas sociais e enfatizar a importância da representação da mulher negra dentro da política. 

“Temos mulheres negras de várias regiões do Estado que são figuras públicas ou lideranças em seus movimentos sociais. No meu caso, faço parte da Rede Emancipa, o movimento de educação popular. A ideia é que eu fortaleça esse movimento da educação popular, o movimento cultural e o combate ao racismo religioso, e cada uma das integrantes atuando de sua maneira, mas em conjunto”. 

A segunda mulher preta a ocupar a Alesp, Leci Brandão, foi reeleita para o seu quarto mandato neste ano. A primeira foi Theodosina Rosário Ribeiro, que morreu em 2020. 

Brandão expõe que enxerga de maneira positiva o aumento do número de mulher negras eleitas, pois em sua trajetória sempre visou apoiar candidatas negras. 

Quanto ao aumento no número de mulheres na política institucional de um modo geral, a deputada também afirma ser o reflexo do protagonismo das mulheres negras que atuam nas ruas, nos sindicatos, nos coletivos, nas universidades e em todos os lugares. 

“Acredito que ocupar todos os espaços de poder tem sido muito mais do que uma fala, uma bandeira, mas sim o foco da luta de negros, e principalmente das mulheres negras”, ressalta a parlamentar. 

Pretos de direita e de esquerda 

A esquerda tem mais autodeclarados pretos na Alesp desde 2014, pois antes não era possível traçar a cor/raça dos eleitos. Os autodeclarados pretos e que fazem parte de um partido de direita na Alesp não se sobressaíram nenhuma vez. Mas não podem ser desconsiderados dentro da política. 

Araújo destaca que nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores de quase todas as capitais, vem crescendo a presença de negros. 

“Percebe-se que os partidos políticos, principalmente os de esquerda, sejam mais sensíveis e efetivos em relação à participação dos negros nas instâncias de poder”, adiciona o cientista político, que também avalia a atuação de negros de direita dentro da política. 

“Vejo isso como uma dicotomia natural da política. Se observarmos a história do Quilombo dos Palmares, alguns historiadores dizem que existiam contrariedades na forma de atuar entre Zumbi dos Palmares [visto como um revolucionário com ideias de esquerda] a Ganga Zumba [considerado um traidor por fazer um acordo com a corte portuguesa]”, exemplifica. 

Além disso, dentro da Frente Negra Brasileira, a mais importante entidade do movimento negro brasileiro na primeira metade do século 20 também havia os monarquistas versus os republicanos. “É do sistema político e é de fórum íntimo essa escolha”, completa Araújo. 

O historiador e professor da PUC-SP Amailton Magno Azevedo contribui dizendo que os pretos são muito diversos, política e ideologicamente, podendo se falar de pretos de direita e conservadores alocados em partidos de igual tendência ideológica. 

Em sua análise, com pretos de direita eleitos, poucos avanços se fará no plano social, pois são conservadores e fomentam a ideologia meritocrática para as conquistas pessoais e a ascensão socioeconômica. Por outro lado, afirma, os pretos de esquerda eleitos atuam considerando haver uma dívida histórica com o próprio povo, devido à herança da escravidão e do racismo que barram a plena cidadania deste grupo. 

Por isso, para ele é notável a atuação que os pretos progressistas têm para a existência de políticas públicas que busquem superar o passado escravocrata. 

Mesmo que a falta de representatividade signifique que as pautas que interessam a essa população não sejam defendidas ou sequer apresentadas, nem sempre é uma regra, pois nem todos são progressistas, defendem. 

Demandas da população e a atuação a partir de 2023 

Simone e Leci defendem ser preciso superar a pobreza, a fome, ter emprego, educação, assistência à saúde e a cidadania plena para todos e todas. Ana Laura também, mas avalia que as demandas são muitas e diversas, pois a população negra de São Paulo tem particularidades plurais. 

A codeputada da Bancada Feminista afirma que para próximo ano buscarão a superação da crise de vida hoje, somada ao resultado do ex-governador de São Paulo João Doria e do atual presidente Jair Bolsonaro nos últimos anos, pois para ela, o povo precisa com urgência de trabalho e renda para zerar a fome, moradia, porque subiu muito o número de pessoas sem teto no estado e educação, pois a evasão escolar aumentou especialmente entre os mais pobres e negros na pandemia. 

“É necessário criar oportunidades e combater a letalidade policial, com outro modelo de segurança pública sendo essencial”, pontua Simone. 

De acordo com os dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (Polos-UFMG) apenas na cidade de São Paulo, são 42.240 pessoas vivendo nas ruas. 

Outra pesquisa divulgada pelo Datafolha em janeiro deste ano, mostrou que 4 milhões de estudantes abandonaram a escola durante a pandemia. As principais causas foram a dificuldade do acesso remoto às aulas e problemas financeiros. Os alunos que lideraram a taxa de evasão escolar pertenciam às classes D e E.

Para Ana Laura, a população preta tem diversos tipos de demandas, sejam as mais objetivas como a segurança pública, ou as mais subjetivas, que envolvam a identidade, por meio do resgate histórico ou até mesmo o combate ao racismo religioso. 

“Visaremos unir as pautas do Movimento Pretas com o da população, mas é preciso reconhecer que as pautas e as demandas do movimento negro são demandas de reparação históricas, e não demandas únicas de toda a população negra, pois a população negra é uma camada diversa” conta. 

Araújo avalia que os parlamentares negros (pretos e pardos) terão muito trabalho para fazer valer suas pautas, principalmente as de ordem racial. E que, provavelmente, irão compor com os deputados brancos de esquerda. Mesmo assim, ainda terão dificuldades por serem a minoria num ambiente masculino, branco e com um conservadorismo forte, enfatizando também a importância do apoio dos movimentos sociais e da sociedade civil aos parlamentares negros. 

“A pressão da sociedade e sua presença nas galerias da Assembleia será vital para o sucesso dos mandatos”, conclui. 

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