Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
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23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
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Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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O corpo da feminino se reinventa como profissão, mercadoria e alternativa de trabalho.
por
Mohara Ogando Cherubin
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23/09/2025

Por Mohara Cherubin

 

Atualmente, os dias começam com a checagem de mensagens e propostas no perfil de conteúdo adulto, antes mesmo do café da manhã de Maria. A academia, os compromissos e o almoço ocupam as primeiras horas do dia, mas é no retorno para casa que o trabalho realmente começa. As tardes e noites são dedicadas a gravar vídeos, responder clientes e editar conteúdos. A rotina, que pode facilmente ultrapassar 12 horas de dedicação, exige organização e disponibilidade. Embora muitos ainda julgam a atividade como algo distante de um “trabalho de verdade”, ela descreve longas jornadas de produção, chamadas de vídeo e edição, realizadas sem apoio externo.

Demissão, dívidas e a responsabilidade de ajudar nas contas de casa foram os fatores que a levaram descobrir, por meio de uma amiga, a criação de conteúdo adulto como uma forma de garantir sua sobrevivência financeira. Provida apenas de um celular e da necessidade de pagar suas despesas, ela decidiu abrir um perfil em uma plataforma e, no primeiro dia, já conseguiu lucrar 300 reais em poucas horas. O resultado imediato a convenceu de que, apesar das dúvidas e inseguranças, havia ali um meio de se sustentar. A partir daquele momento, a rotina de trabalho passaria a girar em torno de gravações, interações com clientes e a construção de uma nova fonte de renda.

O início, contudo, não foi marcado apenas por ganhos. Como era anônima e não tinha seguidores, demorou para alcançar estabilidade financeira na plataforma. Nos primeiros meses, precisou pedir dinheiro emprestado e lidar com a desconfiança da família, que até hoje não sabe exatamente de onde vem sua renda. Para ela, lidar com o estigma social que associa a profissão à piedade é um dos maiores desafios, quando, em sua visão, foi uma escolha consciente diante das circunstâncias que enfrentava.

Apesar de ainda não saber se seguirá no mercado por muitos anos, garante que, por agora, não pensa em parar. Reconhece que sua relação com os clientes é de dependência, mas não admite ser “tirada” dessa vida, como já lhe foi oferecido por um dos consumidores mais recorrentes. Solteira, ela prefere manter o controle sobre suas decisões, sem dever nada a ninguém. Entre o cansaço das longas jornadas, as incertezas sobre o futuro e a satisfação de ver o dinheiro cair na conta, segue encarando um dia de cada vez, certa de que, se for preciso mudar de caminho, encontrará uma forma de se reinventar, como sempre fez.

De acordo com Maria Cláudia Neves, psicanalista especialista em adolescentes, embora o discurso do empoderamento seja colocado como um instrumento de defesa e apareça com frequência nesse contexto, a Psicanálise observa que a sensação de controle dessas mulheres é temporária. No início, a mulher acredita decidir o que mostrar e como se expor, porém à medida em que o sustento dela só é possível com o pagamento de seus assinantes, ela se vê dependente do desejo do cliente. Toda aquela liberdade sentida no começo passa a se tornar vulnerabilidade, uma vez que os conteúdos passam a responder às exigências externas, caso contrário o cliente deixará de pagar e procurará um perfil que atenda às suas vontades. 

Do outro lado da tela, o consumidor busca satisfação em uma fantasia que nunca se completa. Para a psicanalista, trata-se de uma busca por pulsão de vida, por um corpo idealizado que nunca é suficiente. É por essa razão que tantos indivíduos desenvolvem vícios em pornografia. De acordo com dados do PornHub, site canadense de compartilhamento de vídeos pornográficos, o Brasil está entre os dez países que mais consomem pornografia, com 39% de usuárias mulheres e 61% de usuários homens. Os conteúdos são esporádicos e a satisfação é sempre passageira, levando ao consumo repetitivo. Assim como a criadora de conteúdo se torna refém da manutenção de sua imagem e dos gastos associados a ela, o cliente também se torna refém de seu próprio desejo.
 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Importância de órgãos como CONSEA SP para a redução da fome e insegurança alimentar no Estado
por
Lucas Munhoz Rossi
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05/07/2023

São Paulo lidera o ranking brasileiro da fome, com cerca de 7 milhões de pessoas famintas. O governo do Estado afirma ter uma série de ações que visam ao combate à fome, no entanto, 14,7% da população paulista sofre com a falta de alimento. 

Segundo o 2º Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado no ano passado, cerca 125,2 milhões de brasileiros sofrem com algum grau de insegurança alimentar, representando um aumento de 7,2% se comparado aos dados de 2020.

Somente no Estado de São Paulo, 55,9% da população sofre com algum grau insegurança, sendo mais frequente em domicílios com renda mensal de até meio salário-mínimo (83,8% de insegurança alimentar), trabalhadores informais/desempregados (43,9%) e pessoas sem escolaridade (66,5%).

O agravamento da fome tem forte relação com a pandemia de Covid-19. Isso porque, a partir de dados do no inquérito, no Brasil, a fome saltou de 19,1 milhões de pessoas famintas em 2020 (antes da pandemia), para 33,1 milhões em 2022. 
Para Rubens Nunes, economista, professor da Universidade de São Paulo e especialista sobre a fome, “a pandemia fez a insegurança alimentar dar um salto descontínuo, numa tendência de agravamento”. Porém, para o especialista, além da pandemia, há fatores de longo prazo, entre eles o baixo crescimento da economia e a crise fiscal do estado que limitam a execução das políticas públicas de combate à fome.

Na visão de Rubens, São Paulo tem muitas pessoas em situação de insegurança alimentar porque é populoso e que, pela densidade econômica, atrai migrantes em busca de oportunidades que estão se tornando escassas. 
Levando em conta que o índice de desemprego na região saltou de 7,7% (2022) para 8,8% (2023), segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “A desigualdade explica a insegurança alimentar em um estado relativamente rico”, afirma o economista. 

Além disso, para o professor, a piora da fome tem relação com o foco principal do governo, já que os mais necessitados não têm direito a alguns auxílios. “As políticas de transferência de renda são bastante efetivas no combate à fome. O problema aqui é o foco: não conceder benefícios para quem não se enquadra e dar para quem, de fato, está em situação vulnerável”. 

Isso ocorre, pois boa parte das pessoas elegíveis para programas de transferência de renda são “invisíveis” para o Estado. Já que em sua maioria são pessoas sem documentos, que tem dificuldade para se relacionar de modo formal com as agências públicas, e que não estão amparadas pela previdência social. 
Outro fator importante que impacta e dificulta as políticas públicas, reside no fato de que há causas estruturais que, se combatidas, só serão superadas no longo prazo, ao passo que as demandas por alimento são urgentes. Por conta disso, muitas vezes são “escanteadas” pelo governo.

Para Raquel Nunes Silva, doutoranda em Saúde Global e Sustentabilidade (USP), Mestra em Agroecologia (UFV) e professora universitária de nutrição, acredita que, embora São Paulo tenha um imenso potencial agrícola, a distribuição de terras e a concentração da produção em grandes propriedades dificultam o acesso de agricultores familiares aos recursos necessários para uma produção sustentável e diversificada. 

“A falta de infraestrutura adequada, como estradas e armazenamento de alimentos, prejudica a comercialização e a distribuição dos produtos, impactando negativamente o abastecimento alimentar”, afirma a professora.

Além disso, segundo a especialista, durante a pandemia a implementação do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) enfrentou limitações significativas. “A paralisação do Consea/SP e a falta de discussões sobre segurança alimentar e nutricional prejudicaram o andamento das políticas públicas. A participação social e o envolvimento de diversos setores são cruciais para ampliar o alcance das ações e promover a inclusão de atores relevantes nessa área”, complementa. 

Na opinião de Raquel, no âmbito das políticas públicas, os principais desafios enfrentados são a fragilidade do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no Estado, além de ações desarticuladas e com pouca densidade nas medidas estruturantes. “A falta de uma estrutura sólida no SISAN compromete a efetividade das políticas de combate à fome”. 

Ações governamentais contra a fome

Em busca de amenizar o problema, o governo do Estado possui diversas ações e iniciativas, como o “Bom prato”, “Vacina Contra a Fome”, “Vale Gás” (aproximadamente 100 mil famílias) e “Viva Leite” (aproximadamente 300 mil pessoas entre crianças e idosos). Para Rubens, as ações do governo estadual devem reforçar as políticas federais e municipais. “O conjunto das políticas do estado de São Paulo tem um impacto importante, ainda que cada uma tenha um escopo relativamente limitado”.

Marília Touças, presidente do UMA (Instituto Um Momento de Amor), ONG que atende famílias e pessoas socialmente vulneráveis ou em situação de rua, acredita que tais ações governamentais são fundamentais no combate à insegurança alimentar. “Eu fui uma criança pobre e o Viva Leite era fundamental na minha casa. Hoje, acompanho a comunidade que apadrinhamos com cestas básicas e sei da importância dos programas. Para a população em situação de rua”.

Além disso, existe o Consea/SP (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável), que tem como função, assessorar o governo na construção de políticas públicas, referentes a Segurança Alimentar.  Fazendo um elo com a sociedade civil, já que 66,6% de seus membros são civis. O conselho é “a porta de entrada” para as demandas da população.

O presidente do Consea/SP, João Dornellas, afirma: “Nós atuamos principalmente na divulgação e na propagação de informações e de conhecimentos na área da Segurança Alimentar e Nutricional”. O órgão faz as divulgações por meio de palestras e encontros que apresentam as ações do Governo do Estado de São Paulo. 

“Também auxiliamos os municípios paulistas na elaboração da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com reuniões de capacitação para os gestores municipais”, complementa João.

Na visão de Raquel Nunes, embora o governo tenha implementado programas importantes nos últimos anos, ainda existem lacunas a serem preenchidas e a necessidade de fortalecer essas iniciativas, além de desenvolver estratégias mais abrangentes. 

Prova disso, é o não cumprimento do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, por parte dos órgãos públicos. Tal documento, elaborado com base em ampla discussão e participação da sociedade civil, contém diretrizes e metas importantes para a promoção da segurança alimentar e nutricional em São Paulo. No entanto, a falta de comprometimento com a implementação efetiva do plano prejudica os avanços necessários no combate à fome.
Importância das ONGs no combate à fome

Durante a pandemia, à medida que o coronavírus se propagava, algumas iniciativas do governo paralisaram suas atividades. Para Vanuzia Teixeira, coordenadora do Consea/SP, o agravamento da fome teve grande relação com a paralização do conselho em 2020. “Justamente neste momento bem delicado, o conselho foi obrigado a paralisar suas atividades”, afirma a coordenadora. A retomada aconteceu apenas em julho de 2021, enfrentando o pós-Covid. 

Por conta da interrupção do conselho, o combate à fome em São Paulo teve um grande aliado: as ONGs. Marília Touças, afirmou que com o avançar do isolamento, se deparou com muitas pessoas em situação de rua. “Todos os dias encontrávamos famílias inteiras, com malas e alguns pertences, recém-chegadas à rua. Sem trabalho, sem dinheiro, sem moradia e passando fome”.

Para Rubens, as ONGs foram ágeis e efetivas no combate à insegurança alimentar durante a pandemia. Essas organizações têm capilaridade no tecido urbano e conhecimento das comunidades locais. Dessa forma, o Estado pode firmar convênios com as organizações formais. “O Estado é razoavelmente eficiente para coletar alimentos, enquanto as ONGs são eficientes para distribuir a comida”, afirma o especialista.

João Dornellas, presidente do Consea/SP, reitera sobre a importância do auxílio das organizações não governamentais no combate à fome, “A atuação das ONGs e da iniciativa privada tem grande relevância para o enfrentamento da insegurança alimentar e para o combate ao desperdício de alimentos, e há diversas parcerias em todo o estado”.

Novas promessas do governo de São Paulo

Com o intuito de reduzir os índices da fome e insegurança alimentar no Estado paulista, a Coordenadoria de Segurança Alimentar, vinculada à Subsecretaria de Abastecimento e Segurança Alimentar, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), criaram em 2023, um diagnóstico sobre segurança alimentar no estado.

A primeira etapa tem o objetivo de identificar os desafios enfrentados pelos municípios para a implementação da política de segurança alimentar, assim como o de levantar as demandas. Trata-se de um levantamento, que vai trazer as ações de segurança alimentar desenvolvidas nos municípios. Segundo Dornellas, “Os dados coletados serão essenciais para o avanço de projetos que possam colaborar com a implementação da política de segurança alimentar”.

Além do mais, para o presidente do Consea/SP, “Os conselhos municipais de segurança alimentar devem ser formados, pois são importantes portas de entrada para a população mais vulnerável. Esses conselhos poderão identificar as prioridades e quais públicos serão atendidos nos territórios”.

João garante que a aliança entre o conselho, os municípios e as ONGs irão facilitar a reduzir a fome da população. “Para além da parceria entre o governo do estado e os municípios, a atuação das organizações não-governamentais e da iniciativa privada será sempre relevante para o enfrentamento da insegurança alimentar e do desperdício de alimentos”.

Além disso, segundo o Relatório do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (2019-2023), existem propostas que vão além da distribuição de alimentos. O documento destaca a importância de promover ações voltadas para a garantia do direito humano à alimentação adequada. 

Entre as principais propostas estão: fortalecimento da agricultura familiar; estímulo à produção e consumo de alimentos agroecológicos; capacitação e educação alimentar e nutricional; incentivo à criação de mercados locais; articulação e integração das políticas públicas. É importante destacar que essas propostas vão além do combate imediato à fome, visando à construção de um sistema alimentar mais justo, sustentável e equitativo.

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Movimento aumentou doação de alimentos durante a pandemia; especialistas afirmam que iniciativa precisa de apoio estatal
por
Lucas Gomes e Matheus Marcolino
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03/07/2023

À bordo de uma van branca, um homem e uma mulher cruzam a entrada da favela Souza Ramos, na Vila Mariana, bairro de São Paulo.  Depois de descarregarem os caixotes de feira lotados com abacates, limões e abobrinhas, Cícero e Celina estendem uma bandeira vermelha. Eles são os militantes do MST responsáveis pela distribuição de cestas de alimentos na região.

A 3 mil quilômetros dali, um caminhão de lixo para numa rua de Fortaleza, capital do Ceará. Enquanto os garis recolhem os dejetos dos moradores, a caçamba do caminhão fica aberta por poucos minutos - o suficiente para que dezenas de famílias possam revirar os sacos de lixo enquanto buscam restos de alimentos. 

O caso aconteceu em 2021 e ganhou notoriedade por causa de um vídeo que circulou na internet. As famílias receberam cestas básicas de movimentos sociais do estado, como o Movimento dos Trabalhadores por Direitos (MTD), o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) cearense.

Especialistas afirmam que a participação do poder público é essencial em ações que visam combater a fome. Mas, enquanto o novo governo faz tímidos esforços na retomada de iniciativas de reforma agrária, o MST acredita que pode alimentar os brasileiros com a produção de orgânicos e se mantém engajado em gestos solidários. 

 

Entrada da favela Souza Ramos. Foto: Lucas Gomes.
Entrada da favela Souza Ramos. Foto: Lucas Gomes.

O movimento do Ceará segue acompanhando as famílias que reviraram o caminhão de lixo no vídeo viral. Com aulas de formação política e disponibilização de médicos para as comunidades carentes, a ideia é ir além da entrega de comida - que segue sendo o foco nas comunidades pobres, mais afetadas pela fome. “Algumas pessoas pedem até água para beber”, afirma Gene Santos, diretor nacional do movimento. 

Divulgado em 2022, o 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontou que 33 milhões de pessoas passavam fome no país. Mais da metade da população do país, 125,2 milhões de pessoas (58,7%), vivem com algum grau de insegurança alimentar.

Doutor em geografia humana pela USP, Carlos Alberto Feliciano estuda o MST há 30 anos. Ele diz que o grupo potencializou práticas humanitárias durante esse período para lidar com a falta de políticas públicas. A organização dos movimentos sociais ajuda a eliminar a necessidade do intermédio de um atravessador, responsável pelo transporte de produtos do campo para a cidade, barateando o preço dos alimentos.

A produção tem alguns possíveis destinos. Os orgânicos são vendidos em feiras e no site do grupo, e as doações, organizadas por grupos de consumo compostos por militantes do movimento, são feitas a comunidades com altas taxas de desnutrição. Durante a pandemia da Covid-19, o MST afirma ter distribuído mais de 8 mil toneladas de alimentos, 2,5 milhões de marmitas e 10 mil cestas básicas de orgânicos em todo o Brasil.

As cestas tem uma grande variedade de produtos. Raul Miranda, dirigente do setor de produção de alimentos do MST na Grande São Paulo, afirma que os alimentos são doados tendo como foco a real nutrição das pessoas atendidas. "Não é apenas encher a barriga, mas comer com qualidade", diz.

Caixotes com alimentos orgânicos do MST. Foto: Lucas Gomes.
Caixotes com alimentos orgânicos do MST. Foto: Lucas Gomes.

Apesar dos quase três anos de esforço, a maioria dos moradores não sabe da origem dos alimentos oferecidos. “O pessoal pergunta quando vem a saladinha, mas não sabe de onde vem. Para eles, o que importa é a comida que está chegando”, afirma Celina - responsável pela distribuição das cestas na Vila Mariana. 

Carlos Feliciano acredita que isso não incomoda o MST, que produz muito e utiliza as doações para informar os que as recebem. A estratégia do grupo é desconstruir a marginalização e o preconceito contra os movimentos sociais do campo.

Para Marco Mitidiero, doutor em geografia humana pela USP e pesquisador especialista em território e conflitos agrários, a questão da fome brasileira vai bem além da redistribuição de terras e da produção de orgânicos. “A fome existe porque o povo não tem dinheiro para comprar comida; é um momento de crise mundial, de desemprego. A pessoa que não tem trabalho, não tem como comer. E o valor dos alimentos é um agravante”, afirma.

Os altos preços são um dos motivos de reclamação dos moradores da favela Souza Ramos. Laurenilda, que vive na comunidade há quase quatro décadas, diz que a situação piorou nos últimos anos - e que os produtos orgânicos do MST são bem-vindos justamente por isso. “As cestas nos ajudam muito. Quando a gente recebe as verduras, consegue economizar no mercado - e as coisas estão caras demais”, conta. 

A principal bandeira dos sem-terra é a da luta contra a concentração fundiária - eles acreditam que uma reforma agrária tem potencial de se transformar numa política de soberania alimentar. Marco Mitidiero concorda: "A reforma agrária produz comida, e se tem mais gente produzindo comida, não falta na mesa do brasileiro", diz o professor. 

De acordo com dados do mais recente Censo Agropecuário do IBGE (2017), pequenos produtores têm menos área para produzir, mas o foco da lavoura é em produtos consumidos pelos brasileiros, como frutas e hortaliças. Enquanto o agronegócio, dono de grandes quantidades de terra, planta algodão, soja e cana-de-açúcar, visando exportação. 

José Roberto da Silva, apicultor, crê que a distribuição de terras e produção nos assentamentos aumenta as oportunidades e valoriza o produtor. “O MST resgatou a nossa dignidade”, afirma José, que produz mel há mais de 30 anos num território ocupado pelo movimento.

A reforma agrária reivindicada pelo grupo, porém, vai além da distribuição de terras. Este é, na verdade, apenas o primeiro passo. Produtora de alimentos orgânicos em Sergipe, Ângela Maria, conta que o MST ofereceu treinamento e auxílio na manutenção da lavoura, sua fonte de alimento e de renda.

Produtores vendem na IV Feira Nacional da Reforma Agrária. Foto: Lucas Gomes.
Produtores vendem na IV Feira Nacional da Reforma Agrária. Foto: Lucas Gomes.

Márcia Motta, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de 5 livros sobre conflitos pela terra no Brasil, acredita que o modelo de produção adotado pelos sem-terra é interessante, mas não consegue ter impacto real no combate à fome sem o apoio do Estado. “Ações como as do MST precisam ser abraçadas pelo Estado para criar mecanismos que não permitam alguém nascer e morrer sem um pedaço de chão”, diz.

O grande agronegócio foi um dos maiores beneficiados do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 2003, foi extinto em 2019. Os principais órgãos de reforma agrária foram sucateados e colocados sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, comandados pelos ex-deputados ruralistas Tereza Cristina e Marcos Montes.

Superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em SP, Sabrina Diniz afirma que o órgão, como parte do Governo Federal, vê o MST e outros movimentos de luta pela terra como aliados, principalmente nas ações de ocupação de territórios improdutivos. "Nenhuma política de Estado é feita por boa vontade, mas sim por pressão social", explica. 

A recriação do MDA sinaliza a intenção do governo Lula de retomar políticas que visam a criação de novos assentamentos, ações abandonadas durante o mandato de Bolsonaro - responsável pelo menor número de famílias assentadas nos últimos trinta anos. O futuro próximo, porém, não é animador. O Incra afirma que o orçamento de 2023, aprovado no ano passado, não prevê verba para a compra de novos terrenos para reforma agrária.

Os poucos avanços reais conquistados no primeiro semestre na luta pela reforma agrária dão munição ao MST, que já tece críticas ao atual governo e promete aumentar a pressão. Diretor nacional do grupo, João Pedro Stedile afirmou, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, que a gestão de Lula está agindo muito lentamente na adoção de políticas de combate à fome; além disso, Stedile prometeu que o movimento pode convocar “marchas e grandes acampamentos” para solicitar reforma agrária.

Após pressão da oposição, uma CPI para investigar o MST foi instalada no Congresso. Os responsáveis pelo projeto alegam que o objetivo é averiguar o aumento das invasões de terras e “descobrir seus financiadores”. Será a quinta vez que o MST se tornará alvo de uma CPI. O movimento afirma que usará a comissão para “revelar à sociedade suas estratégias ao ocupar uma terra que não cumpre sua função social”.
 

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No período em que a fome voltou a crescer no Brasil, grupos políticos vinculados a movimentos de extrema direita negam a sua existência
por
Gabriel Lourenço Schiavoni, Lucca Andreolli Fresqui
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30/06/2023

Grupos políticos ligados à extrema direita têm rejeitado a existência da fome no Brasil, alegando que o problema já está erradicado. Pesquisadores alertam para a gravidade da situação apontando para interesses políticos e econômicos por trás disso.

A disseminação de teorias conspiratórias nas redes sociais vem potencializando e trazendo visibilidade a essas mentiras, alimentando discursos de extremistas e dificultando a luta contra a fome no país.

Em grupos de extrema direita no Telegram, usuários dizem que a fome no país é “uma falácia da esquerda”. Um usuário descreve a fome no país como “um projeto de uma esquerda internacional. 

Confrontados com evidências da existência da fome no país, a atitude de usuários desses grupos é de desdém. “O gás aumentou? A fome voltou no nordeste? Faz o L.” dispara um usuário.

Nesses grupos, a existência da fome é justificada por “pessoas preguiçosas” que não querem trabalhar e desejam “ganhar tudo de mão beijada pelo Estado”.

Contradizendo essas declarações, dados coletados pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) demonstram que entre 2020 e 2022, a quantidade de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave passou de 19 milhões para 33,1 milhões, reinserindo o país para no mapa da fome da Organização das Nações Unidas.

Ao decorrer dos quatro anos do governo Bolsonaro, ocorreram diversas vezes posturas com viés de negação e minimização da fome.

Em agosto de 2019, Bolsonaro declarou em um de seus cafés da manhã com jornalistas que “é mentira essa história que o Brasil passa fome”.

O ex-presidente também disse em agosto de 2021 em uma de suas transmissões ao vivo nas redes sociais que “não existe mais desnutrição no Brasil” e que “não se vê mais gente magra como antigamente”.

Paulo Guedes, ex-ministro da economia, durante um evento da Fenabreve (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores) no dia 21 de setembro de 2022, novamente afirmou que “33 milhões de pessoas passando fome é mentira”.

Em março de 2021, Guedes também chegou a declarar em uma reunião com ministros que a fome no Brasil era “conversa fiada” e que “que não se vê gente, mesmo que pobre, com aparência de subalimentado”.

Deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro afirmou em uma entrevista que “não existe fome no Brasil porque falta gente pra morrer”.

Também deputada federal, Carla Zambeli afirmou em entrevista em maio de 2021 que a fome era uma narrativa inventada pela esquerda. 

Um ano antes, Olavo de Carvalho, mentor político da extrema direita, publicou em suas redes sociais que a fome era uma propaganda da esquerda para angariar votos e “manter as pessoas na dependência do Estado”.

O governo de Bolsonaro e seus aliados não se limitou apenas em declarações que rejeitavam a existência da fome, mas também praticou medidas de sucateamento das políticas que buscavam combatê-la.

Logo ao assumir a presidência do país, em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro extinguiu o Consea, sendo reativado em março de 2023 durante o governo Lula.

O ex-presidente também foi responsável por cortes de orçamento relacionados a áreas como agricultura familiar e distribuição de alimentos.

Essas políticas utilizadas pelo governo Bolsonaro, entretanto, possuem suas origens em práticas com antecedentes históricos, datadas diretamente do período da ditadura militar.

Negação da fome na ditadura militar

Durante o final da década de 1970 e começo dos anos 80, o sertão nordestino passou por sua pior seca de todo o século XX. No auge da crise, 10 milhões de nordestinos já haviam sido impactados pelos efeitos da seca.

Entretanto, o regime ditatorial proibia que a imprensa divulgasse quaisquer matérias que expusessem os efeitos da fome no país, até mesmo proibindo que a palavra fosse utilizada nas redações. 

Essas políticas de negação da fome, tanto na ditadura militar, quanto no governo Bolsonaro, buscam passar uma aparência de estabilidade econômica no país, rotulando quem passa fome de “preguiçoso” ou “incapaz”.

Eduardo Silva, professor de sociologia formado pela Unicamp, defende que os movimentos de invisibilização da existência da fome no país, estão relacionados a projetos que têm o objetivo de desacreditar demais questões além da fome. “A negação da fome é acima de tudo uma negação dos direitos humanos” afirma Silva.

De acordo com a pesquisadora do IBGE Thaís Oliveira, a negação da fome chancela um modelo político, econômico e ideológico. “Assumir sua existência é assumir que algo neste modelo precisa ser revisto”, isso, de acordo com ela, mexe com toda a dinâmica que é confortável para diversos núcleos de poder. 

A respeito dos interesses políticos e econômicos, Thaís afirmou que negar a fome e torná-la seu cargo chefe é “historicamente usado como capital político” (um ponto sensível, considerando que o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo). A pesquisadora aponta para o quase absurdo que é pensar que um país produtor de alimentos tão relevante no cenário mundial, tenha mais de 33 milhões de pessoas com insegurança alimentar, de moderada a grave.

Olhando para a imagem do país internacionalmente, isso pode significar menos contratos e negócios com importantes parceiros econômicos para o país e seus empresários.

A divulgação dessas ideias, entretanto, por meio da internet e redes sociais, consegue atingir cada vez mais pessoas, usando o ambiente online como uma ferramenta de divulgação de massa dessas políticas.

Buscando explicar o motivo da internet ser um ambiente tão fértil para a disseminação de mentiras e teorias da conspiração, Silvio Mieli, professor na Pontifícia Universidade Católica, cita o livro Terra Arrasada de Jonathan Crary. “As redes sociais possuem uma resistência profunda a responsabilidades comunitárias” disserta Mieli.

Ainda segundo Mieli, o individualismo fomentado pelas redes sociais permite que cada um crie e divulgue as suas próprias verdades, abrindo margem para o surgimento de versões de “quinta categoria”.

A contenção da desinformação

A alternativa proposta por Silvio para a contenção da divulgação de projetos destrutivos na internet, passa por uma politização das redes, uma regulamentação que instaure freios e contramedidas para a expansão de discursos negacionistas.

Seguindo na mesma linha, Thaís argumenta que pela mídia informativa ser um espaço importante de poder, debate e mediações de conflito, é uma ferramenta valiosa para dar visibilidade àquilo que não agrada ver ou ouvir, mas é fundamental que a sociedade civil, governo e políticos saibam, para que sejam aplicadas corretamente políticas públicas voltadas para o tema. Até para que a própria sociedade civil pressione seus representantes a se organizar para solucionar o problema.

Para isso, a imprensa deve estar sempre atenta, corajosa e disposta, para trazer esse assunto para a pauta, independentemente de quem de qual grupo esteja ocupando os espaços de poder. Para tal, a imprensa deve ser livre, isenta e respeitada.

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Os impactos da fome no organismo de quem deveria ser o amanhã do Brasil
por
Isabela Gama
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30/06/2023

A fome infantil atinge quase 6 milhões de crianças no país, 22% das famílias são  chefiadas por mulheres negras e 8% por homens brancos, os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, escancarando a desigualdade social e racial no país. Os dados têm assustado especialistas, que apontam a subnutrição infantil como um risco para o desenvolvimento cerebral dos pequenos, criando carências nutricionais devido à mudança no metabolismo e o tamanho dos órgãos, o que afetará sua qualidade de vida quando se tornarem adultos, comprometendo todo o futuro de milhares de  trabalhadores do Brasil. 

A Sociedade Brasileira de Pediatria, detalha que a alimentação balanceada de uma criança precisa ser rica em vitaminas e nutrientes como ferro,cálcio,vitamina A,D,B12 e zinco,  principalmente durante os primeiros dois anos de vida, fase determinante para o desenvolvimento cognitivo e corporal.  

A pediatra, Izilda das Eiras Tâmega, professora do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Sorocaba e especialista em Neonatologia e Nutrologia, explica que a desnutrição infantil afeta duas principais áreas na vida de uma criança, seu crescimento e desenvolvimento. O crescimento diz respeito ao peso e estatura das crianças, enquanto o desenvolvimento está relacionado ao amadurecimento cognitivo. 

“Os primeiros dois anos de vida são fundamentais, é durante esse período que  temos o crescimento cerebral, que não é um crescimento só do tamanho do cérebro mas também da qualidade funcional dele. Durante esse tempo pode haver danos irreversíveis na vida dessas crianças quando elas se tornarem adultas”, afirma a pediatra.   

Após os dois anos de vida, os impactos estão mais relacionados ao crescimento corporal  dessas crianças, que podem crescer menos do que o ideal para a sua idade .   

Tâmega explica também que os efeitos na vida adulta de uma criança desnutrida variam justamente em relação à idade em que elas passaram pela privação de alimentos e ao tipo de investimento feito posteriormente para reverter o quadro desnutrição.   

“Você não pode chegar para uma criança e falar ‘ Essa foi desnutrida, grave, não tem que investir porque não tem mais o que fazer’  Tem, tem sim. Você tem que investir o máximo pela recuperação dela”, reitera a pediatra  

Algumas crianças podem inclusive ficar sem nenhuma sequela de crescimento ou desenvolvimento, mesmo tendo passado por um grave quadro de insegurança alimentar, mas isso não é possível prever ou mapear, sendo somente constatado ao longo da vida.    

O professor de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Wolney Lisboa Conde, explica que além do impacto físico como atraso no crescimento, a desnutrição também ocasiona fraqueza muscular e baixa imunidade. O nutricionista esclarece quais são os efeitos mais comuns da fome no cérebro infantil. 

“O cérebro é vulnerável à fome. Quando uma criança não recebe calorias suficientes, o corpo começa a consumir suas reservas de gordura e calorias armazenadas, deixando o órgão com uma quantidade insuficiente de energia para que ele funcione de maneira adequada”, esclarece o especialista.  

Questões comportamentais como irritabilidade, agitação e dificuldade na concentração, o que é extremamente prejudicial para o desempenho escolar dessas crianças, também são alguns dos impactos causados pela subnutrição.  

“O mau funcionamento do cérebro pode ocasionar atrasos na fala e na aprendizagem desses jovens. Além disso, na idade adulta, essa baixa qualidade da saúde infantil está associada a risco elevado de obesidade, dislipidemias, hipertensão e outras e doenças crônicas não transmissíveis além, evidentemente, da menor qualidade de vida adulta”, expõe Lisboa 

O prejuízo da atividade escolar desses jovens, impactam diretamente sua vida adulta. A má formação acadêmica gera oportunidades profissionais limitadas, o que predestina esses futuros adultos a  trabalharem em subempregos e em condições degradantes, aprofundando ainda mais a desigualdade social.  

Segundo um levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) entre 2020 e 2021, o  número  de crianças e adolescentes com privação no acesso à alimentação teve um crescimento de 9,6%. Diante deste cenário, entidades do terceiro setor contribuem, mesmo que de forma pontual, para a garantia de refeições a estes jovens e suas famílias.   

A Pastoral da Criança, organização vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) atua em prol de comunidades carentes,auxiliando famílias e crianças. A Coordenadora da Pastoral da Criança da Zona Norte, Nanci Maria da Silva de Oliveira, explica que doações de cestas básicas, checagem da carteira de vacinação dos pequenos, acompanhamento de gestantes e o acompanhamento de altura e peso de crianças entre 0 e 6 anos são feitos são feitos por voluntários da pastoral. 

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O autor do livro “República das Milícias” participou de entrevista coletiva com alunos de Jornalismo da PUC-SP
por
Laura Naito e Rafaela Dionello
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30/06/2023

"O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo".

A análise é do jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e vencedor do prêmio Jabuti, Bruno Paes Manso. O autor de "República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" e "A Guerra: A ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil" voltou ao seu lugar de formação para participar de uma entrevista coletiva ao Contraponto Digital da PUC-SP. 

O jornalista respondeu perguntas variadas desde como foi o processo de escrever o livro: métodos jornalísticos que usou, quais estratégias de checagem de fatos e até mesmo decidir o que entraria ou não nas 304 páginas. Ele contou sobre a forma como "República das Milícias" se tornou um sucesso que até virou podcast e sobre suas experiências enquanto produzia a obra.

As páginas do livro narram a história do nascimento das milícias no Brasil desde o começo: dos esquadrões da morte formados nos anos 1960; da ditadura militar; do domínio do tráfico nas décadas de 1980 e 1990; das máfias de caça-níquel e da ascensão de milicianos e seus negócios.

Surgida numa pequena comunidade rural na Zona Oeste do Rio, as milícias foram ganhando poder político e econômico a partir dos anos 1990, auge da violência e do poder do tráfico, em conflito com a polícia e entre diferentes facções. Bruno responde uma dúvida silenciada por anos pela polícia: viver sob o tráfico ou a milícia?

Passando por um dos mais emblemáticos crimes da história brasileira, o assassinato da vereadora Marielle Franco, e revelando relações com o poder, principalmente com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que se tornou personagem do livro “A república das milícias”. 

Para apurar uma história tão delicada, Bruno entrevista milicianos e ex-milicianos. Ele descreveu no livro, uma entrevista com o personagem chamado de Pescador, em que a entrevista aconteceu em um local cheio de aves para evitar gravações. Ele explicou que para conseguir as respostas que deseja, se coloca no lugar do entrevistado e não se permite julgar a vivência de cada um. 

O autor não deixou de fora da coletiva novas informações sobre seu novo livro. "Fé e fuzil" será lançado no segundo semestre deste ano, e vai tratar das Igrejas evangélicas e dos crimes que justificados pela fé. 

Confira os destaques da entrevista:

Contraponto Digital: A milícia brasileira é uma das mais organizadas do mundo, como o colonialismo influenciou na expansão e instalação desses grupos?

Bruno: Todas as questões que eu escrevo, se for parar para pensar na violência, estão muito ligadas ao processo de urbanização do Brasil, uma história que a gente está escrevendo até hoje. Estamos falando de um país onde 70% era rural e a maioria das pessoas morava no campo, historias de escravidão, letifundios, coroneis e ao mesmo tempo trabalhando na terra e a sua relação com a igreja, principalmente o catolicismo. Essa cultura de alguma forma funcionava, apesar de ser um país violento essa ordem acabou sendo estabelecida.

Em 1950, os veículos de comunicação em massa criam nas pessoas uma ideia de que aquele mundo estagnado, hierárquico e sem possibilidades na verdade não era real e que essa possibilidade existia sim. A Partir disso uma nova realidade surgiu e as pessoas passaram a migrar para a cidades e o Brasil passa a ser majoritariamente urbano e esses dois mundos passam a coexistir, com muito estranhamento e preconceitos.

As milícias são o auge do bolsonarismo, houve alguma mudança no modus operandi das organizações com o início do governo Lula?

No caso da vitória do Lula, em primeiro lugar eu acho que nós corríamos um certo risco no segundo mandato do Bolsonaro de todos os avanços no sentido de um governo autoritário e esse conflito e convicção que eles estão em defesa do bem. A gente está passando por uma transição muito grande no mundo em que vivemos. 

O Lula surge como uma possibilidade de voltar a discutir de uma forma mais racional e menos apaixonada de acabar com a guerra, de propor uma pacificação. Só que é muito difícil você propor racionalidade em um mundo que está pegando fogo, então apesar de ele representar isso, ele encontra dificuldade em fazer acordos com os representantes dessas organizações. 

Você pode comentar mais sobre essa conexão de masculinidade x violência e comparar com outros livros que já escreveu? Por exemplo, o livro sobre o PCC.

Você tem essa ideia que faz parte da produção do estado moderno, onde esse estado se forma a partir do momento em que ele consegue exercer o monopólio legítimo da força. Isso significa que só o estado pode usar da violência quando as pessoas desrespeitam a lei. Essa ideia de você ver a violência como uma forma pedagógica faz parte da produção da civilização. 

Ao passar do tempo passa a ser discutido que o poder quando ele precisa usar a violência é porque ele deixa de ter o poder. Se você precisa usar disso o tempo todo para que os outros obedeçam e essa é uma das questões da violência brasileira é que não existe um pacto coletivo sobre esses termos. Existe uma mega injustiça e desigualdade, você não é capaz de produzir esse tipo de liderança e obediência, você usa a violência porque o poder é frágil. 

O bolsonarismo chegou em São Paulo na figura de Tarcísio de Freitas, novo governador do estado. Você acha que o PCC corre o risco de perder o monopólio do crime para as milícias com a chegada dele? Uma vez que o Governador Tarcísio elogiou muito o modelo de segurança do Rio de Janeiro.

A questão com São Paulo, ele foi tomado pelo PCC, é que o estado foi tomado de uma outra forma, existe um outro tipo de gestão, um outro tipo de negócio. O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo. 

Você cria uma nova forma de marra, o traficante passa a fazer parte de ONGS e negócios internacionais formando uma nova cena empresarial, ao estado hoje só cabe permitir que esses estados continuem acontecendo. O PCC virou esse grande governo desse mundo, o modelo de milícia do Rio de Janeiro é outro. 

A mídia, sobretudo os programas policiais, como Brasil Urgente e Cidade Alerta, ajudaram a consolidar o discurso das milícias dentro da sociedade, especialmente nas comunidades? Já que esses programas exaltam a força policial em detrimento de alguém que cometeu um crime?

Eu acho que sim, esses programas acabam acirrando essa ideia de guerra ao crime mas tem uma camada de diferença nas redes sociais, porque apesar dos programas falarem isso o diálogo não deixava de acontecer. O problema nas redes é que elas passam a isolar esses mundos, se transformando em uma grande guerra de ideais. Nos programas as pessoas que dão as caras ao vivo, podem ser responsabilizadas aqui fora. Com o tempo eu acabei me tornado menos crítico sobre isso.

Qual foi o raciocínio feito na realização do livro? Primeiro vieram os dados, pesquisa histórica e entrevistas, ou tudo se misturou? Você pensou em desistir de escrever o livro em algum momento quando a apuração estava difícil? 

A estrutura do livro é algo que eu tenho repetido nos três livros, é algo que acabou virando um modelo meu, eu parto da notícia quente, então a partir desse fato quente, procuro explicar como isso aconteceu, eu volto na história. Meu interesse vem dos discursos e das ideias que passam a se espalhar pelos outros. A construção geralmente inicia com a descrição desse fato quente e em algum momento do livro eu volto para construir o arco narrativo para os leitores.

Toda investigação começa por perguntas que você faz e o que você busca, a investigação começa por perguntas que talvez depois você perceba que as pessoas também não tem resposta. Eu tive muita sorte escrevendo A república das milícias, deu tudo muito certo em encontrar os personagens. Assim que eu entrevistei o Lobo, já sabia que ia ser o personagem que iria abrir o livro e eu faria a ligação ao Bolsonaro, sem precisar forçar a barra para falar sobre. 

Como traçar o limite entre a curiosidade e o necessário para conduzir a entrevista, para conseguir as informações que precisa? 

Eu vejo o jornalismo como terapia, deixo meus entrevistados falarem o que sentirem a vontade e só falo com eles se for apresentado por alguém que eles confiem. O importante é eles sentirem que podem falar comigo, muitas vezes eles querem ter suas histórias contadas.

É fundamental ter suas perguntas muito claras, saber qual seu produto final e o que você precisa. O que vale são as histórias que o entrevistado vai te contar, o que ele se sentir confortável para compartilhar com você.

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