Quando o corpo vira território e a memória se transforma em luta
por
Vitor Simas
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22/04/2025

Por Vitor Simas

 

No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.

Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.

Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.

Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.

Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.

A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.

Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.

A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.

Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.

Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.

Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.

 

 

Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé

 

Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.

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A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
por
Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Cultura e Entretenimento

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No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
por
Julia da Justa Berkovitz
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10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

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Entre o alívio da fuga e as incertezas do futuro, a sobrevivência de uma familia libanesa em território brasileiro revela a resiliência dos refugiados
por
Laura Celis Brandão
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15/04/2025

Por Laura Celis

 

O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.

A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.

Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.

Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.

Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.

Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária. 

A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade. 

A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente. 

O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.

 

 

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Política Internacional

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

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Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

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Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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O interior de São Paulo mostrou que ainda não aceita o PT ao eleger Tarcisio de Freitas para governador do Estado
por
Maria Luiza Oliveira e Giulia Palumbo
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08/12/2022

O resultado das eleições para governador de São Paulo colocou em destaque a força do antipetismo no interior paulista. Tarcisio de Freitas (Republicanos) obteve 55,27% dos votos, enquanto Fernando Haddad (PT), 44,73%. As cidades do interior e do litoral foram decisivas para esse resultado. 

O eleitorado do interior de São Paulo apoia e se identifica com as pautas defendidas pelo candidato bolsonarista, como a liberação das armas, e se afasta da esquerda, diferentemente da capital, explica Vinicius Alves, cientista político e pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).  “O interior, desde sempre, tem uma mente mais conservadora, por conta do agronegócio, da religião e do que aconteceu nos últimos anos com o PT. Esses elementos ficaram fixados no imaginário dessa população e, com tudo isso, criou-se o antipetismo”, complementa. 

Não é à toa que a campanha de Tarcísio focou nos votos da população de cidades pequenas ou médias, como Campinas, Barretos e Sorocaba. Diferentemente de Haddad, que encontrou dificuldades para atingir esse público e teve que cancelar a agenda de campanha em Presidente Prudente, após receber um áudio com apoiadores do Bolsonaro combinando de hostilizar o candidato. A assessoria do petista justificou o cancelamento da passagem pela região devido à “ameaças explícitas à passagem do candidato na cidade”, disse a assessoria do petista. 

Tarcísio
Givernador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas 

“O PT hoje é um partido que se alinha com pautas da minoria: movimento negro, movimento LGBT, pautas ambientais. Então, quanto mais você sai dos grandes centros, menos essas pautas são aceitas. (...) Nessas eleições, muitas fake news foram criadas para indignar essas pessoas que têm esse pensamento mais conservador”, explica Marco Teixeira, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).  

Teixeira complementa que Haddad até tentou se aproximar desses locais, mas não foi bem aceito. Por isso, o foco maior da campanha foram os grandes centros, como na capital de São Paulo, onde obteve 54,41% dos votos, contra 45,49% do candidato bolsonarista. 

Haddad e Lula
Fernando Haddad junto com Lula em campanha. Reprodução: instagram do Haddad

Relação das cidades pequenas com a religião

Na cidade de Pinhalzinho, com cerca de 15 mil habitantes e a 112 km da capital paulista, Tarcísio recebeu 68,94% de votos, contra 31,06% do petista no segundo turno. Durante a campanha, foram organizadas passeatas a favor do governador eleito em que houve grande mobilização das igrejas evangélicas da cidade, além da participação de moradores de municípios vizinhos, como Bragança Paulista, Socorro e Amparo. A oposição foi quase inexistente nesses locais. 

Carro preto com a bandeira do brasil em cima
Passeata pró Bolsonaro que estava se iniciando em Pinhalzinho (SP)

Muitos fiéis da igreja repetiram o discurso do líder religioso. Na primeira semana após o primeiro turno, uma seguidora que não quis ser identificada, vestida com uma camiseta do Brasil, saiu de um culto com uma Bíblia em mãos e foi até a lotérica em que Giovana Silvestre, de 19 anos, trabalha para pedir voto ao seu candidato. 

Ao chegar, a cristã começou a defender a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e de Tarcísio. “Eu não entendo como alguém pode defender esse traste [Lula], e ainda querem trazer a gangue dele para São Paulo [Haddad]. Não podemos deixar isso acontecer!”, afirmou a senhora. Giovana relata que expressou discordância da fala em sua expressão facial, o que desencadeou a pergunta: “Você é petista? Por favor, não me bata. Vocês do PT são tudo loucos!” Depois, a senhora saiu brava do estabelecimento. 

O acontecimento é um retrato do antipetismo forte nas cidades do interior, reforçado ainda por um discurso religioso. O pastor da igreja, que também não quis se identificar, afirma que pede votos ao candidato Bolsonaro “pelos cidadãos de bem'', para a ‘quadrilha’ não voltar ao poder. "E para nós podermos frequentar aqui [igreja] sem sermos perseguidos."


O agronegócio com Tarcísio 

Outro aspecto que mobiliza o interior de São Paulo é o agronegócio. Ribeirão Preto, que está a 315 km da capital, se identifica como o município do agro e, não coincidentemente, Tarcísio ganhou no local com 59,56% dos votos. Um produtor de hortifruti local diz que ficou feliz com a vitória de Tarcísio, e que, diferentemente do governo do atual tucano e do ex-governador João Doria, ele tem esperança de melhorias em São Paulo e da valorização de seu trabalho. 

O empresário do ramo da mineração Arthur Silva mora em Bragança Paulista. Ele afirma que não teria como Fernando Haddad governar para ele e para a sua classe, uma vez que acredita que perderia alguns privilégios, mas não quis citar quais eram. Em seu escritório, há bandeiras do Brasil espalhadas pela parede. 

Tarcísio agradece ao interior 

“Eu agradeço muito o interior do nosso Estado, que foi fundamental nessa vitória. Vamos trabalhar muito em prol do interior. (...) Agradeço muito ao nosso interior do Estado, assim como agradeço os mais de 3,4 milhões de paulistas que depositaram esse voto de confiança e a todo o Estado de São Paulo”, discursou Tarcísio na vitória.

TARCISIO
Tarcísio em discurso de vitória. Imagens: Stella Borges/UOL

 

No plano de governo do bolsonarista, a gestão foi dividida em três segmentos: desenvolvimento social, desenvolvimento urbano e do meio-ambiente, desenvolvimento econômico e inovação. Até o momento, as pautas de transição estão alinhadas com a trajetória dele no governo Bolsonaro, sendo os principais temas de infraestrutura que atingem principalmente o interior do Estado.

 “Os problemas de infraestrutura se espalham por São Paulo, mas se concentram no interior. Há demandas de manutenção e construção de estradas, problemas de logísticas, escoamentos de produção etc. Boa parte das propostas de Tarcísio é para o interior, principalmente no âmbito da infraestrutura, que é uma demanda daquela população”, diz Teixeira.

Contudo, o governador eleito encontrará dificuldades para fazer a gestão da capital, uma vez que o ponto de atenção é a segurança pública, aspecto preocupante para esses moradores, já que grande parte não está de acordo com as medidas propostas, como a reavaliação do uso das câmeras nos uniformes dos policiais. “A segurança é o maior ponto de atenção dele [Tarcísio]. A violência é, sobretudo, um tema metropolitano”, conclui o cientista político. 
 

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Especialistas apontam que uma das razões para a falta de representação feminina, em especial dentre mulheres com condições financeiras piores, é a dupla jornada

por
Maria Ferreira dos Santos e Sofia Luppi
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08/12/2022

Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), há ao todo 156.454.011 brasileiros aptos a votar nas eleições de 2022, e desse total, 53% são mulheres. Entretanto, esse número não se reflete nas candidaturas, uma vez que candidaturas femininas são minoria. 

 Em proporções nacionais, há 224 candidatos que tentavam ser eleitos para uma das 27 vagas de governador do Estado e dentro desse número, havia somente 38 mulheres concorrendo aos cargos.  

Essa situação fica mais acentuada em São Paulo, que tem o maior colégio eleitoral do Brasil. Entre as 10 pessoas em campanha para ser o novo governador do estado, havia somente uma única candidata. A ativista social Carol Vigilar do Unidade Popular (UP), que teve cerca de 0,38% dos votos válidos.  

Na Câmara dos Deputados esse cenário mudou das eleições de 2018 para as de 2022. Antes das 70 cadeiras de São Paulo na Câmara dos Deputados, 9 foram ocupadas por mulheres. Agora esse número aumentou para 14, representando 20%. 

Mulheres de baixa renda na política 

Entretanto, como observa Danusa Marques, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, essa falta de representatividade afeta principalmente as eleitoras de baixa renda, que,  muitas vezes, não se enxergam nas poucas candidatas aptas.  

Isso porque há realidades de vida muito divergentes entre eleitoras e candidatas. “Quando há mulheres,  a maior parte delas  não têm a mesma trajetória, não compartilha de uma visão de mundo comum com as mulheres trabalhadoras, com as mulheres pobres, periféricas do Brasil”, elucida a docente. 

A falta de representatividade tanto de gênero quanto de raça e classe gera um afastamento das pessoas que não estão na atuação política. O fato de estar distante  não significa falta de interesse pelo debate.  

Pelo contrário, o que acontece, na verdade, é que o eleitorado feminino de baixa renda não consegue estar atento ao que está acontecendo no viés político devido à dupla jornada de trabalho, isto é, pela sobrecarga advinda da divisão sexual do trabalho. 

Marina Brito, doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais especializada na participação política de mulheres, explica que a dupla jornada de trabalho é quando uma trabalhadora tem tanto o desgaste com o emprego remunerado quanto com as atividades domésticas.  

Quanto a isso, a estudiosa esclarece que “há uma dificuldade em compartilhar essas responsabilidades familiares com companheiros” pois esses não sofrem uma pressão social para tal pois “aos homens não existe essa cobrança, a eles é esperado outro jeito de viver”. “Os homens têm muito mais tempo livre para participar politicamente não só na política  institucional como na própria militância, movimentos sociais, sindicatos”, completa. 

Estado de ‘viração’ 

Rosemary Segurado, pesquisadora e docente de ciências sociais da PUC-SP, ressalta que  dentro desse grupo há mulheres em famílias monoparentais que são, de fato, as únicas responsáveis pela renda e pelos cuidados, dificultando ainda mais seu envolvimento político. Segurado utiliza o termo “viração” para tratar disso. 

Segundo Segurado, esse conceito acaba por definir a vida cotidiana de uma trabalhadora cercada de preocupação. Um exemplo comum nos dias de hoje é a inserção no mercado de trabalho informal, onde direitos trabalhistas e um salário precário são a realidade e, a partir disso, a mulher precisa “se virar” para conseguir sustento. 

São nessas circunstâncias da “viração” que vive Josidalva Silveira, agente de higienização, que para chegar ao emprego que fica no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, pega três conduções e chega em casa somente às 23h. Nesse horário, por exemplo, os debates e entrevistas que passam na televisão já estão ocorrendo. Silveira acredita que se não tivesse uma rotina tão cansativa conseguiria acompanhar e entender melhor de política.   

Como essas mulheres enxergam a política? 

Já Aparecida de Oliveira, auxiliar de faxina, enxerga a política de maneira intrínseca ao período eleitoral. “De quatro em quatro anos acontece a política”, declarou. Eloides Matias, colega de trabalho de Oliveira, declarou não entender de política, mas procura saber sobre, “ ler mais, ver as propostas''. 

Apesar disso, Matias afirmou não saber quais eram os planos de governo dos candidatos ao governo de São Paulo, isso há menos de um mês para o dia das eleições. “Ainda não, ainda não tive tempo de ver as propostas. Por conta do meu horário [de trabalho] não tive tempo”, finalizou. 

Quatro coisas específicas unem essas mulheres: a condição de baixa renda, a sobrecarga, falta de tempo e a indecisão acerca de seu voto mesmo com a proximidade das eleições.  

Tendo isso em vista, Marques completa. “A decisão do voto está orientada pelas informações e pelas condições que as pessoas têm para tomar essa decisão. Então, se a pessoa não tem boas condições, ela não tem informação, não tem tempo para pensar, não tem nada. Vai seguir como se fosse uma coisa desimportante”.  

Outro ponto interessante sobre o perfil eleitoral desse grupo é a perspectiva acerca das políticas públicas. Quando questionadas a respeito, Josidalva Silveira e Aparecida de Oliveira responderam que essas ações não as afetam em nada, nem sequer notavam essas políticas públicas. Matias seguiu com o mesmo raciocínio: “Não sei te dizer por que não me afetam. Eu não consigo ver muita coisa, mas eu sei que afetam muita gente”. 

Essa “muita gente” que Matias cita deveria, em tese, corresponder a elas também. As mulheres de baixa renda, inclusive, são as pessoas que mais utilizam o serviço público, segundo as pesquisadoras.  

Segurado compreende que “quando elas dizem ‘Eu não sinto que a política pública chega a mim’,  nós estamos falando do posto de saúde, da escola pública, é que ela nem identifica isso como política pública pela precariedade dessas ofertas”. A docente ainda acrescenta que as mulheres são o principal público de políticas públicas pois normalmente são designadas, pela sociedade, a zelar e gerenciar a vida de seus familiares.  

Sob essa perspectiva, Segurado afirma que “elas querem ser cuidadas pelo Estado para que elas possam cuidar também dos seus com algum nível de qualidade”. A docente ainda ressalta que, por passar pelos em serviços públicos, a mulher querendo ou não, torna-se um ótimo parâmetro para se saber como essas ações estão atuando de fato.  

As mulheres que se encontram nas classes mais baixas têm um perfil eleitoral heterogêneo. Quase todas elas se encontram em trabalhos terceirizados ou informais, costumam ser o sustento da casa e possuem uma dupla jornada em seu cotidiano que impede de estarem, na opinião delas próprias e de especialistas, ativa nas questões políticas.  

Por isso, traçar sua intenção de votos ou viés político é tão complexo. Sobre a ausência delas em espaços de poder, Marina Brito declara: “Para uma mulher dessas conseguir se eleger, ela precisa mover montanhas”. 

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Com propostas duras para segurança pública, o governador eleito preocupa especialistas, que temem um retrocesso de boas ferramentas da segurança pública que demoraram décadas para serem implementadas
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Carlos Englert, Pedro Catta-Preta e Rafael Felix
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08/12/2022

Apesar das expressivas melhoras estatísticas dos dados de violência policial no estado de São Paulo, Tarcisio de Freitas segue flertando com a ideia de retirar câmeras corporais e mantém um discurso favorável a uma “linha dura” da polícia. No primeiro semestre de 2022, houve uma redução de 60% na letalidade policial do estado de São Paulo em relação ao primeiro semestre de 2020. As mortes desses agentes do Estado também diminuíram substancialmente nos últimos anos.

Durante toda a sua campanha, Tarcísio de Freitas foi contra a implementação de ferramentas que freassem o poder de fogo policial, principalmente as câmeras corporais, dizendo que as extinguiria caso fosse eleito. Tais câmeras tem o propósito não somente de diminuir a corrupção e a violência policial, mas também de defender os agentes da lei contra falsas alegações de abuso de poder, por exemplo.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) é uma das maiores do país, tanto no quesito de contingentes quanto na verba. De acordo com relatório do Monitor de Violência do G1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, até 2020, a polícia de São Paulo também era uma das que mais matava, com uma taxa de mortes de 814 pessoas a cada 100.000 habitantes, número que caiu 30% em 2022. 

O estado também apresentou uma redução de 49% nos policiais mortos em serviço entre os anos de 2020 e 2021, opondo-se à alta de 44,1% entre 2019 e 2020.

Com a eleição do governador bolsonarista, no entanto, esses números podem voltar a crescer. Tarcísio é abertamente favorável à uma polícia mais dura e alega, por exemplo, que batalhões estão “perdendo produtividade” por conta das câmeras corporais. Ao seu lado, o governador conta com a bancada do PL, a maior eleita, e com o apoio de uma ampla ala bolsonarista na Câmara.

Para o sociólogo e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, a queda da letalidade policial se deve a uma mudança do governo Dória na área da segurança pública, principalmente a partir da segunda metade de 2020, após o Massacre de Paraisópolis, quando Dória passou a se distanciar do discurso de Bolsonaro, quem o ajudou a se eleger em 2018.

Em 2019, uma intervenção desastrosa em um baile no bairro Paraisópolis culminou na morte de nove jovens. Os policiais encurralaram a multidão, causando uma série de pisoteamentos.

Entre 2019 e a primeira metade de 2020, cerca de 30% das mortes violentas no estado foram cometidas pela Polícia Militar, números estes que são computados juntamente com casos de homicídio e latrocínio. “Em certos bairros, como Heliópolis, se fosse retirado da conta essas mortes, o número de pessoas mortas cairia mais da metade”, comenta Rocha.

“Houve então uma tentativa de mudar o modelo de segurança pública, principalmente o controle do uso da força”, explica o sociólogo. Entre as mudanças estão: o investimento em armas não-letais, como os tasers e o uso de câmeras corporais.

Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação
Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação

Conforme apontou Rafael Rocha, essas e outras questões mostram um projeto de segurança pública falho, e muito contraditório: “Ele disse, por exemplo, que não era necessário colocar mais câmeras nos policiais, mas sim tornozeleira eletrônica nos bandidos. Mas uma coisa não exclui a outra, é muito simples”

Tarcísio de Freitas já voltou atrás em alguns de seus posicionamentos, no entanto, mesmo que não descontinue as câmeras, pode sucatear o sistema que as sustenta. As câmera corporais exigem uma estrutura para transmitir, armazenar e analisar as imagens.

“O Tarcísio pode acabar com as câmeras sem acabar com as câmeras. Se o custo político for muito alto, ele pode sucatear a estrutura por trás”, comenta o sociólogo.

Alan Fernandes, Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e Doutor em Administração Pública e Governo, afirma que as mudanças na PM de São Paulo também reduziram as mortes de policiais militares.

Para Fernandes, isso se deve a duas razões: a primeira delas é que, em razão das câmeras, policiais militares em campo buscam estratégias para evitar o confronto armado, o que reduz tanto a letalidade de suas ações, como os coloca em menores níveis de risco. A outra razão é que as câmeras corporais teriam a capacidade de mitigar ações violentas por parte dos agressores não-policiais.

O coronel explica também que existe um discurso político que coloca a polícia como última salvação perante a criminalidade e estimula policiais a arriscarem suas vidas para o cumprimento do dever. Para Fernandes, isso funciona como agravante da mortalidade policial: "Mensagens messiânicas que invocam o papel dos policiais na luta contra o “mal”, lançam-os em ações arriscadas, em que o saldo de vidas perdidas, de quaisquer lados do cano de um fuzil, é resultado aceitável. Não deve ser!"

Dados da GV Executivo apontam que entre o terceiro e o quarto trimestre de 2021, os batalhões que faziam parte do programa Olho Vivo, apresentaram redução de 63,6% e 77,4% na letalidade provocada pelos PMs em serviço, demonstrando a eficácia das câmeras corporais.

Para Rafael Rocha, a imagem dos policiais perante a sociedade também melhorou e grande parte dos agentes sendo contrários ao projeto de extinção das câmeras: “É engraçado achar que a câmera desabona o policial, pelo contrário, esses policiais tem preocupação com a imagem da instituição, eles sentem que isso os qualificou”

O estado de São Paulo pode influenciar o debate sobre as propostas de segurança pública em outros estados, explica David Marques, doutor em sociologia pela UFSCar e Coordenador de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

"São Paulo reduziu em 30% o total de vítimas de letalidade policial, fato em grande medida atribuído às mudanças institucionais pelas quais vem passando a Polícia Militar desde meados de 2020", comenta Marques.

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As pessoas autodeclaradas pretas totalizam 9; as mulheres de esquerda também são maioria nessa categoria e, desde 2014, estão à frente dos homens pretos eleitos
por
Julio Cesar Ferreira
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08/12/2022

São Paulo foi o Estado com maior número de pessoas pretas eleitas para a assembleia estadual em todo o país. As pessoas pretas totalizam nove eleitas, e as mulheres pretas são a maioria desde 2014 na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).

A Alesp está inserida no Estado que mais elege deputados estaduais (94) do país e devido dois mandatos coletivos: Bancada Feminista e Movimento Pretas, ambos do Psol, o número de pessoas pretas pode ser expandido para 19 pessoas eleitas. A Bancada Feminista conta com cinco mulheres e o Movimento Pretas, sete. 

O Contraponto Digital realizou um levantamento considerando os eleitos para a Alesp autodeclarados pretos. Sem os mandatos coletivos, os deputados eleitos sozinhos totalizam sete, sendo eles:  Ediane Maria (Psol); Guto Zacarias (União Brasil); Reis (PT); Barba (PT); Thainara Faria (PT); Leci Brandão (PCdoB) e Luiz Cláudio Marcolino (PT). 

Se observado os espectros políticos dos pretos eleitos em São Paulo, há mais pessoas de esquerda, com oito no total. A direita só tem Guto Zacarias (União Brasil) como representante. As mulheres também são maioria nessa categoria. 

“É um processo que vem se transformando lentamente ao longo dos anos, mas que começou a ter um pouco mais de consistência a partir das eleições de 2014”, argumenta Aírton Fernandes Araújo, doutor em ciência política pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e diretor de formação política da Frente Negra Gaúcha. 

Alguns estudiosos defendem que os partidos denominados de esquerda são reconhecidos dessa forma no Brasil porque têm um corpo parlamentar que pensa em políticas públicas igualitárias e coletivistas. Já os de direita atuam de maneira meritocrática, visando apenas o lucro e têm poucas políticas públicas pensadas para a massa. 

2014 foi o ano em que os candidatos foram obrigados a informar sua cor/raça ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Com isso, foi possível traçar qual era a raça/cor dos candidatos e eleitos a partir desse ano.  Em 2014, a Alesp teve três autodeclarados pretos eleitos: Leci Brandão (PCdoB), Clélia Gomes (PHS, atual Podemos) e Barba (PT). Já em 2018, cinco pessoas pretas foram eleitas: Leci Brandão, Tenente Nascimento (PSL, atual União Brasil), Érica Malunginho (Psol), Bancada Ativista (Psol) e Barba e, neste ano, nove. 

Mesmo que a cidade de São Paulo tenha 37% da população negra (considerando pretos e pardos), segundo os dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) os políticos pretos ainda continuam sub-representados se comparado a proporção da população brasileira, formada de 56% de pessoas negras.  

Mulheres pretas em destaque

A Alesp terá a maior representatividade feminina da história na próxima legislatura (2023/2026), com 25 mulheres. A quantidade de mulheres na atual composição da Casa já era considerada uma marca histórica, com 19 parlamentares. Dentro da categoria de eleitos autodeclarados pretos, há mais mulheres, sendo cinco (15 se contar as integrantes dos mandatos coletivos). 

Para Araújo, isso pode ser explicado a partir do protagonismo que a mulher negra vem exercendo na sociedade civil e o papel de uma campanha frente ao eleitorado e à sociedade acerca da importância do voto feminino negro. “Vejo isso como tomada de consciência”. 

E quanto elas serem dos partidos de esquerda, o cientista político argumenta que são essas instituições que, bem ou mal, melhor representam e discutem toda a ansiedade da mulher negra. 

Todavia, ele salienta que essas parlamentares se responsabilizam por exercer os seus mandatos não só para negros, mas para todos os desfavorecidos na sociedade, o que acaba atraindo um eleitorado diverso. 

Desde 2014 as mulheres autodeclaradas pretas se destacam em número de eleitas, ficando sempre à frente dos homens pretos, mesmo que dentro de um número já pequeno. 

Em 2014, a Alesp teve três autodeclarados pretos eleitos, dois eram mulheres. Já em 2018, cinco pessoas pretas foram eleitas, três eram mulheres e, neste ano, nove pretos eleitos, sendo cinco mulheres. 

Simone Nascimento, codeputada (pessoa que compartilha o cargo de deputada com outros membros) da Bancada Feminista, eleita neste ano explica que o mandato coletivo atuará em prol das lutas populares e serão uma forte oposição ao governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), pois são contra várias medidas que ele propôs em sua campanha, como a retirada das câmeras dos uniformes da Polícia Militar (PM). 

Isso porque, a inserção das câmeras nos uniformes dos policiais militares foi um mecanismo que reduziu a letalidade policial em 72% no estado de São Paulo, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) estadual.

“Lutaremos para que o Estado de São Paulo priorize o combate à fome, o investimento na educação, saúde, moradia e queremos fortalecer a rede de proteção às mulheres e o combate ao racismo”, afirma Simone. 

Assim como Simone, a codeputada do Movimento Pretas, Ana Laura, também cita que o mandato coletivo será um instrumento e uma ferramenta social para ser caixa de ressonância das lutas sociais e enfatizar a importância da representação da mulher negra dentro da política. 

“Temos mulheres negras de várias regiões do Estado que são figuras públicas ou lideranças em seus movimentos sociais. No meu caso, faço parte da Rede Emancipa, o movimento de educação popular. A ideia é que eu fortaleça esse movimento da educação popular, o movimento cultural e o combate ao racismo religioso, e cada uma das integrantes atuando de sua maneira, mas em conjunto”. 

A segunda mulher preta a ocupar a Alesp, Leci Brandão, foi reeleita para o seu quarto mandato neste ano. A primeira foi Theodosina Rosário Ribeiro, que morreu em 2020. 

Brandão expõe que enxerga de maneira positiva o aumento do número de mulher negras eleitas, pois em sua trajetória sempre visou apoiar candidatas negras. 

Quanto ao aumento no número de mulheres na política institucional de um modo geral, a deputada também afirma ser o reflexo do protagonismo das mulheres negras que atuam nas ruas, nos sindicatos, nos coletivos, nas universidades e em todos os lugares. 

“Acredito que ocupar todos os espaços de poder tem sido muito mais do que uma fala, uma bandeira, mas sim o foco da luta de negros, e principalmente das mulheres negras”, ressalta a parlamentar. 

Pretos de direita e de esquerda 

A esquerda tem mais autodeclarados pretos na Alesp desde 2014, pois antes não era possível traçar a cor/raça dos eleitos. Os autodeclarados pretos e que fazem parte de um partido de direita na Alesp não se sobressaíram nenhuma vez. Mas não podem ser desconsiderados dentro da política. 

Araújo destaca que nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores de quase todas as capitais, vem crescendo a presença de negros. 

“Percebe-se que os partidos políticos, principalmente os de esquerda, sejam mais sensíveis e efetivos em relação à participação dos negros nas instâncias de poder”, adiciona o cientista político, que também avalia a atuação de negros de direita dentro da política. 

“Vejo isso como uma dicotomia natural da política. Se observarmos a história do Quilombo dos Palmares, alguns historiadores dizem que existiam contrariedades na forma de atuar entre Zumbi dos Palmares [visto como um revolucionário com ideias de esquerda] a Ganga Zumba [considerado um traidor por fazer um acordo com a corte portuguesa]”, exemplifica. 

Além disso, dentro da Frente Negra Brasileira, a mais importante entidade do movimento negro brasileiro na primeira metade do século 20 também havia os monarquistas versus os republicanos. “É do sistema político e é de fórum íntimo essa escolha”, completa Araújo. 

O historiador e professor da PUC-SP Amailton Magno Azevedo contribui dizendo que os pretos são muito diversos, política e ideologicamente, podendo se falar de pretos de direita e conservadores alocados em partidos de igual tendência ideológica. 

Em sua análise, com pretos de direita eleitos, poucos avanços se fará no plano social, pois são conservadores e fomentam a ideologia meritocrática para as conquistas pessoais e a ascensão socioeconômica. Por outro lado, afirma, os pretos de esquerda eleitos atuam considerando haver uma dívida histórica com o próprio povo, devido à herança da escravidão e do racismo que barram a plena cidadania deste grupo. 

Por isso, para ele é notável a atuação que os pretos progressistas têm para a existência de políticas públicas que busquem superar o passado escravocrata. 

Mesmo que a falta de representatividade signifique que as pautas que interessam a essa população não sejam defendidas ou sequer apresentadas, nem sempre é uma regra, pois nem todos são progressistas, defendem. 

Demandas da população e a atuação a partir de 2023 

Simone e Leci defendem ser preciso superar a pobreza, a fome, ter emprego, educação, assistência à saúde e a cidadania plena para todos e todas. Ana Laura também, mas avalia que as demandas são muitas e diversas, pois a população negra de São Paulo tem particularidades plurais. 

A codeputada da Bancada Feminista afirma que para próximo ano buscarão a superação da crise de vida hoje, somada ao resultado do ex-governador de São Paulo João Doria e do atual presidente Jair Bolsonaro nos últimos anos, pois para ela, o povo precisa com urgência de trabalho e renda para zerar a fome, moradia, porque subiu muito o número de pessoas sem teto no estado e educação, pois a evasão escolar aumentou especialmente entre os mais pobres e negros na pandemia. 

“É necessário criar oportunidades e combater a letalidade policial, com outro modelo de segurança pública sendo essencial”, pontua Simone. 

De acordo com os dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (Polos-UFMG) apenas na cidade de São Paulo, são 42.240 pessoas vivendo nas ruas. 

Outra pesquisa divulgada pelo Datafolha em janeiro deste ano, mostrou que 4 milhões de estudantes abandonaram a escola durante a pandemia. As principais causas foram a dificuldade do acesso remoto às aulas e problemas financeiros. Os alunos que lideraram a taxa de evasão escolar pertenciam às classes D e E.

Para Ana Laura, a população preta tem diversos tipos de demandas, sejam as mais objetivas como a segurança pública, ou as mais subjetivas, que envolvam a identidade, por meio do resgate histórico ou até mesmo o combate ao racismo religioso. 

“Visaremos unir as pautas do Movimento Pretas com o da população, mas é preciso reconhecer que as pautas e as demandas do movimento negro são demandas de reparação históricas, e não demandas únicas de toda a população negra, pois a população negra é uma camada diversa” conta. 

Araújo avalia que os parlamentares negros (pretos e pardos) terão muito trabalho para fazer valer suas pautas, principalmente as de ordem racial. E que, provavelmente, irão compor com os deputados brancos de esquerda. Mesmo assim, ainda terão dificuldades por serem a minoria num ambiente masculino, branco e com um conservadorismo forte, enfatizando também a importância do apoio dos movimentos sociais e da sociedade civil aos parlamentares negros. 

“A pressão da sociedade e sua presença nas galerias da Assembleia será vital para o sucesso dos mandatos”, conclui. 

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Cenário eleitoral brasileiro é marcado por embates violentos entre polos e expõe democracia ao perigo extremista
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Pedro Alcântara, Rafaela Freitas, Yerko Bazan
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08/12/2022

Discursos extremistas por motivação política têm sido cada vez mais parte do dia a dia do brasileiro, mesmo fora do período eleitoral. Segundo Monitoramento da Violência Política do do jornal O Estado de São Paulo, até julho deste ano, o Brasil já havia contabilizado 26 assassinatos de políticos, maior número registrado desde a redemocratização. As vítimas englobam lideranças e integrantes do polo adversário. 

A polarização, isto é, quando dois ou mais lados opostos se dividem em grupos com ideias contrárias ou conflitantes, não é novidade, muito menos no âmbito político. Nos últimos anos, entretanto, os embates se intensificaram e duas frentes opostas surgiram com mais força desde o período eleitoral de 2018. Composta por turbulências acerca das opiniões políticas e pessoais do candidato Jair Bolsonaro (na época, PSL), a primeira eleição depois da explosão da operação Lava-Jato gerou movimentação entre os simpatizantes da nova extrema direita e aqueles que enxergavam perigo no discurso do candidato.

Homem de máscara e camisa cinza de costas, em meio à uma manifestação, segurando uma bandeira do brasil ensanguentada
Foto de Maria Fernanda Pissioli | Unsplash

Para Victor Marques Varollo, Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Mestre em Educação e Políticas Públicas pela PUC Campinas, o termo “polarização” não vem sendo bem aplicado nas últimas análises políticas. 

“Na eleição de 2022 tivemos um lado defendendo o rompimento institucional e o outro, fazendo uma frente ampla pela democracia. O erro em utilizar o termo é que se pode pressupor que temos uma ‘extrema-direita’ e uma ‘extrema-esquerda’, em polos distintos. Isso não acontece”, afirma, sobre a comparação, em sua opinião, equivocada entre os lados. “Na eleição tivemos um lado defendendo o rompimento institucional e o outro fazendo uma frente ampla pela democracia”.

Apesar de muitos estudiosos não acreditarem na ideia de contrários nas últimas duas eleições brasileiras, a polarização é evidente – ainda que, muitas vezes, o termo seja mal aplicado, como comenta Varollo. O período foi marcado por violências e expôs uma outra face da divergência política, chamada de “ultrapolarização”

Eleições ultrapolarizadas

Marcada por turbulências, uso da força e até conflitos externos, o excesso da polarização (ou sua ultralização), compromete as bases da democracia e torna-se uma imposição de  ideais. Afinal, sociedades ultrapolarizadas que discordam entre si tendem a usar a violência no lugar do debate.

É o que diz Victor Mendes, mestrando em relações internacionais pela USP e pesquisador na área de instituições internacionais e governança global. “A polarização deixa de ser saudável quando ultrapassa o debate político saudável e passa a se sustentar à base de ameaças, informações falsas e violência.”

Para Vera Lucia Michalany, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), a polarização em si já engloba sentimentos como ódio, medo, ressentimento, vingança e desqualificação do outro, e deixa de ser saudável quando interesses políticos interferem na vida pessoal – corroborando para conflitos familiares, por exemplo. 

Segundo Michalany, as manifestações de 2013 e 2014 também foram agentes importantes no fortalecimento da extrema direita, também visto como protagonista de atos antidemocráticos após o resultado das eleições de 2022: “as eleições de 2018 e 2022 reproduzem as ações e as disputas presentes no seio da sociedade.”

Alguns dos últimos casos que ilustram este fenômeno podem ser exemplificados pela violência armada que teve palco em um bar no interior do Ceará, na cidade de Cascavel, quando um indivíduo perguntou quem era eleitor de determinado candidato, para então, desferir tiros e matar aquele que ele considerava como “oponente”. Ou mesmo com o assassinato do tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT) Marcelo Aloizio de Arruda em sua própria festa de aniversário, e uma briga com motivação política em bar de Santa Catarina, Dona Emma, no Alto Vale do Itajaí, onde um dos envolvidos não resistiu após ser esfaqueado. 

Nasce, então, a linha tênue que separa a polarização saudável (polos direita e esquerda, por exemplo) e a ultrapolarização (as ‘extremidades’). Michalany, em sua avaliação, diz não encontrar diferença entre ambos, pois os extremos também fazem parte do conceito originário de polarização. 

Onde está o perigo?

Além de se mostrar uma ameaça física aos envolvidos diretos, períodos políticos ultrapolarizados são marcados por notícias falsas, ameaças e abandono de consciência política e social, comuns de ganhar cunho criminoso, segundo Josue de Oliveira Rios, doutor em direito pela PUC-SP.  “Quando isso [a polarização] se junta com a desinformação e a invenção de mentiras, impossibilita a população de elaborar uma consciência política e refinamento de informação. Fica apenas um clima de que guerra é guerra.” explica. 

Esse aspecto foi visto no último período eleitoral, marcado pelo assédio no ambiente corporativo e até na boca das urnas, como exposto na reportagem feita pelo “Profissão Repórter”, da TV Globo, que foi ao ar no dia 1 de novembro e flagrou uma convocação dos beneficiados pelo Auxílio Brasil e ouviu moradores sobre suposto assédio eleitoral no local; ou como também abordagens menos discretas, como no caso em que uma empresária de Santa Catarina teve de assinar um Termo de Reajuste de Conduta (TAC) e se retratar em vídeo após pedir que clientes “não contratem nordestinos” que votem em determinado candidato.

“Isso tem a ver com o ‘vale tudo’, o clima de guerra. Se eu tenho poder, eu vou usar todos os caminhos para vencer. Esse nível de embate só é visto em eleições ultrapolarizadas, onde tem essa ideia de que não basta vencer, é preciso impor novos valores, uma nova verdade.” explica Rios, sobre a ausência de um cenário civilizatório.

Além dos conflitos internos, Mendes também pontua as consequências da radicalização política no cenário externo, bem como a relação do Brasil com outros países. “Por questões de diplomacia, os países evitaram realizar comentários incisivos sobre os assuntos domésticos no Brasil, que deixou a sua posição de protagonista global, especialmente entre países em desenvolvimento.” explica.

Para ele, a polarização em si serviu apenas para gerar apreensão sobre os resultados da eleição, além de olhares atentos sobre a sustentabilidade da democracia brasileira. “Um exemplo disso foi a aprovação, nos Estados Unidos, de uma recomendação do Senado para que Washington rompesse as relações com o Brasil em caso de golpe. Para a comunidade internacional já não é mais tempo de se permitir incursões que vão contra os valores democráticos.”

Imagem de capa: Marília Castelli | Unsplash

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