Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Moradores, turistas, organizações e especialistas ajudam a explicar o porque situações como a que ocorreu na cidade geram uma alta demanda de doações a curto prazo
por
Larissa Soler e Victória Toral
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22/06/2023

Barra do Sahy. Pescadores desembarcando mantimentos.
Pescadores desembarcando mantimentos na Barra do Sahy

 

As ações solidárias destinadas à região de São Sebastião, desapareceram junto com a chuva que devastou o litoral norte de São Paulo há três meses e deixou 1.090 pessoas desalojadas, 1.126 desabrigadas e 65 mortas. 

A Diretora do Fundo Social de São Sebastião, Rita Elizabeth informou que 13.500 toneladas de doações foram feitas à cidade depois das chuvas no final de semana do Carnaval. Empresas, como as Casas Bahia e a Sabesp, e órgãos governamentais, como a Receita Federal, doaram juntas mais de 90 toneladas de produtos. Uma empresa de refrigerante em conjunto com a ONG Geração Falcão destinou cerca de R$100 mil para auxiliar as vítimas. 

Porém, semanas depois do ocorrido, o Fundo Social da cidade, já estava com o estoque de doações praticamente zerado, como conta a diretora. Moradores que foram atingidos pela tragédia, e ONGs que levantaram arrecadações também sentiram a redução. 

Organizações que se voluntariaram e levaram doações para os atingidos pelas chuvas no litoral conseguiram coletar altos números de donativos. Como a Feito Formiguinhas e a Formiguinha em Ação que juntas levaram mais de 14 toneladas de produtos, entre elas cestas básicas, produtos de limpeza, de higiene pessoal, água e ração. 

Segundo Elis Pedroso, representante da ONG Feito Formiguinhas, as doações no começo foram enormes, mas, com o passar do tempo, a quantidade de produtos doados sofreu uma redução:"Todas as vezes que existe alguma coisa de comoção de massa, há uma entrada maior de doações. O complexo é que dura muito pouco, porque passou a mídia [noticiando a tragédia], é como se nada tivesse acontecido. Em 15 dias já não se tinha mais tantas doações.”

Sensação também presente para a organização Formiguinhas em Ação. Alex Cahli, porta-voz do local, conta: “Nos momentos iniciais de uma tragédia, como a que ocorreu no meio de fevereiro, os números de doações são altos, mas em seguida com a “volta da rotina”, há uma queda”.

A antropóloga explica que o momento inicial da catástrofe é marcado pela comoção das pessoas de fora do contexto. O sentimento de sensibilidade com a situação emergencial faz com que os não envolvidos sintam que precisam agir diante do cenário de destruição e perda e com isso, entram as doações: “É importante lembrar que essa onda de doações é uma onda inicial e a comoção não chega a mobilizar as pessoas para agirem em relação às questões mais estruturais da catástrofe.” 

O impacto de agir no início é causado muito por aquilo que está imediatamente acessível aos nossos sentidos e essas pessoas distantes da tragédia, recebem essa informação de forma sensacionalista e se inflamam e acreditam que as doações serão o suficiente. O que traz depois da contribuição um "alívio de consciência" e permite que essas pessoas possam voltar a viver suas vidas normalmente.

A identificação com aqueles que sofreram com os 682 mm de água, foi o que levou Márcia Mota a ajudar: “Tenho uma casa na cidade há mais ou menos vinte anos e conheço bem a região desde o final da década de 70. Frequento lá há muitos anos, antes de ter a estrada, inclusive antes das ocupações, em áreas de risco”.

A moradora não estava em sua residência em Juquehy quando tudo ocorreu, mas assim que soube que a casa tinha condições de receber pessoas liberou o local para quem precisava. Marcia, ainda, conta do cenário que encontrou quando chegou no litoral norte: "Lembro que a cena era de guerra. Eram carros do exército, móveis na rua, muita lama, nem parecia que era o mesmo lugar”.

Já a estudante, Letícia Cali, viajou para o sertão de Camburi, São Sebastião, para aproveitar o feriado e vivenciou a tragédia. A jovem e mais quatro amigas acabaram ficando presas na cidade. Cali conta, ainda, que vivenciou o aumento nos preços dos produtos, principalmente em supermercados, mas nada que chegasse a ser valores absurdos, como da água que teve repercussões nos noticiários. 

A estudante também presenciou a "normalidade" que algumas pessoas levaram a situação: "Na praia da baleia, onde estive hospedada, logo na segunda-feira, após as fortes chuvas, vi diversas pessoas passeando na orla da praia como se nada tivesse acontecido." 

O psicólogo social Pedro Luz, explica quanto essa apatia de uma parte pequena da população, se faz presente nesses momentos de tragédia: "Isso diz respeito, a alguns valores que a nossa sociedade cultua, como os valores da competitividade, da meritocracia e de uma individualidade.” Ele ainda ressalta que isso é causado muito por conta da visão do mundo de consumo. 

Escolas e outras estruturas, como restaurantes, serviram, no momento pós tragédia, como locais de abrigos para os atingidos pela chuva, de preparo de comidas e de pontos de coleta de doações. Como o caso da Escola Municipal Branca de Neve, que antes servia para a formação de crianças entre 3 a 5 anos, virou abrigo para oitenta famílias que perderam tudo e tiveram suas casas interditadas. 

Mesmo após quase três meses da tragédia, a vida na região ainda não se ajustou. Algumas pessoas voltaram para suas casas, mesmo com o local classificado como área de risco pela Defesa Civil, pois ainda não tem para onde ir. Os olhos, dos que estão distantes de São Sebastião, deixaram de estar voltados para a região e a crença nas ações solidárias sofreram drásticas reduções.  

O psicólogo faz um alerta sobre esse aspecto do ser humano que precisa ser trabalhado: "Quando cessam as informações e há a diminuição do afeto e da empatia provocados, as pessoas dão continuidade a sua vida. Porque é difícil ter a concepção que o sofrimento do outro é prolongado e que a ação solidária precisa ser contínua, já que a tragédia e seus efeitos vão ser posteriores ao dia, semana ou mês em que ocorreu”.  

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Como mulheres da comunidade LGBTQIA+ estão sujeitas a maiores possibilidades de homicídio
por
Victor Oliveira Trovão
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20/06/2023

No último domingo (14/05) comemorou-se o Dia das Mães por todo Brasil. A data foi oficializada no dia 5 de maio de 1932 quando o presidente Getúlio Vargas emitiu o Decreto nº 21.366. A partir de então, anualmente, o segundo domingo de maio foi dedicado ao amor materno. Apesar do dia celebrar todas as mães brasileiras, elas nunca deixaram de ser assassinadas, independentemente da existência desse dia.

De acordo com dados do Monitor da Violência e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2022, o Brasil registrou 1.410 casos de feminicídio. Em média, uma mulher é assassinada a cada 6 horas no País por ser mulher. Com diversas possibilidades de configuração, o crime continua a acontecer majoritariamente no lugar em que a vítima deveria se sentir segura, em sua própria casa. O quadro piora a partir do momento em que se enxerga a subnotificação no país, à medida que muitas mulheres são vítimas de feminicídio, mas os casos não chegam a ser denunciados.

Em entrevista, a delegada Dannyella Gomes Pinheiro, da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, explicou a configuração do crime e o papel das delegacias especializadas: “Feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, é o homicídio praticado em razão do gênero feminino. A Delegacia de Defesa da Mulher cuida de questões relacionadas a violência doméstica, crimes sexuais e crimes relacionados a crianças e adolescentes também, como maus-tratos e crimes sexuais. Normalmente e infelizmente, a maior probabilidade de uma mulher ser vítima de homicídio no Brasil, estatisticamente falando, é dentro de casa”.

Ainda que os números sejam alarmantes e cada vez mais as mulheres dentro de casa como os membros familiares estejam denunciando e buscando por medidas protetivas, infelizmente, nem todas as mulheres conseguem se manifestar nas delegacias antes de serem mortas dado o contexto em que se insere. “São inúmeros os casos que levam uma mulher a não fazer uma denúncia e não registrar a ocorrência. Temos dependência emocional, dependência financeira, constrangimento, vergonha, culpabilização e julgamento social”, expõe Dannyella Pinheiro.

-          Novas figuras maternas e inéditas configurações de feminicídio

Dada a luta pela vida ao longo de anos, as minorias da sociedade brasileira gradativamente estão conseguindo conquistar seus direitos, dentre eles, o das pessoas LGBTQIA + se tornarem mães ou pais. Essa transformação contribuiu para que a maternidade ganhasse outros indivíduos como mulheres LBT, lésbicas, bissexuais e transsexuais. Ao se tornarem mães, elas enfrentaram o julgamento e a discriminação constante da sociedade, o que acentuou a discriminação contra as mulheres, por serem mulheres, pela sexualidade e pelos seus respectivos formatos de família.

A vítima passa por discriminações sobrepostas, por vezes, ocasionando no assassinato do indivíduo motivado pela misoginia e a LGBTQIA+ fobia. “Isso é o que a gente chama de interseccionalidade. A pessoa ela não é só uma coisa, a pessoa pode ser mulher, ela pode ser uma mulher lésbica, pode ser uma mulher lésbica, periférica, pode ser uma mulher negra, pode ser uma mulher trans”, relata Amanda Souto, advogada e vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB. A partir do momento em que se adiciona marcadoras, também se adicionam possibilidades de discriminações e opressões diferentes.

De acordo com informações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre a vulnerabilidade da população LGBT a atos de violência sexual ou familiar, foi constatado que em todo o continente americano, as mulheres LBT correm o risco particular de violência devido à misoginia e à desigualdade de gênero na sociedade.

Por outro lado, entre janeiro de 2013 e 31 de março de 2014, a Comissão monitorou a violência contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex (LGBTI) na América. No Registro de Violência contaram no total 594 assassinatos de pessoas da comunidade, ou percebidas assim, e 176 vítimas de ataques graves, embora não letais. Desse total, 55 foram contra mulheres lésbicas, ou percebidas como tais.

Ao passarem por situações discriminatórias ou agressões, as vítimas se sentem extremamente desconfortáveis em denunciar dada a ausência de políticas públicas que protejam essa população e as negligências presentes nos próprios órgãos de acolhimento. Atualmente, as Delegacias de Defesa da Mulher, ainda que muito tardiamente, trabalham para o atendimento dessas pessoas. 

A incidência de casos é infelizmente maior em mulheres transsexuais e travestis. “A mulher que é trans, ela é mulher. Ela é atendida na Delegacia de Defesa da Mulher sem nenhum tipo de diferenciação. Eventualmente, a qualificadora pode ser acrescida por conta do preconceito. Ser mulher trans ou ser cisgênero não muda nada. As mulheres trans sofrem socialmente, já enfrentam um preconceito maior dentro da sociedade, mas perante a lei são tratadas de maneira idêntica”, expõe a delegada.

Nunca é cedo demais para denunciar. À medida que os relacionamentos, sejam eles amorosos ou sociais passam por ameaças ou agressões, sejam elas físicas ou verbais, uma denúncia salva vidas, famílias e histórias. “É muito importante ter esse sentimento de acolhimento da vítima para ela não se sentir julgada, carregar uma culpa, não se sentir constrangida, e ter coragem de relatar e registrar a ocorrência”, aconselha a delegada da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo.

-          Assassinatos: Feminicídios + LGBTQIA+fobia

Com base nos dados da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras (10% da população) se identificam como LGBTQIA +. Delas, 92,5% contaram sobre o aumento da violência contra sua comunidade. Os dados da violência foram obtidos a partir da pesquisa da organização de mídia Gênero e Número, em parceria com a Fundação Ford.

Ainda sobre a subnotificação, esse desafio impacta na vida de diversas minorias, e consequentemente, a obtenção de dados para análises que por fim resultam em medidas. Por hora, alguns estados como o Rio de Janeiro produzem relatórios sobre violência motivada por LGBTfobia, mas são exceções e eles não existem em nível federal. Portanto, a melhor alternativa passa a ser recorrer ao trabalho de organizações não-governamentais para obter dados sobre LGBTfobia no Brasil.

Em abril, o presidente Lula adotou novas medidas a fim de combater crimes contra as mulheres. Ele sancionou o funcionamento 24 horas das delegacias de mulher, uma proposta que foi aprovada em março deste ano que visa com que as mulheres sejam atendidas por mulheres, até mesmo onde não há delegacias específicas. Estes novos projetos trabalham pela segurança e vida das mulheres ao apresentar perspectivas futuras melhores que o cenário atual.

-          Adoção por pessoas LGBTQIA+ e preconceito

As mães sempre passaram pelos desafios mais inacreditáveis para criar seus filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Com o desenvolvimento dos direitos humanos e a liberdade para serem quem são, cada vez mais os estereótipos sobre o que é ser mães são quebrados. Desde a década de 90 casais LGBTs começaram a adotar filhos, um comportamento que foi altamente criticado e continua a ser discriminado até o momento.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção individual de crianças e adolescentes por pessoa lésbica, gay, bissexual ou transgênero é possível no Brasil, levando em conta que a lei vigente não define quaisquer restrições quanto a orientação sexual ou a identidade de gênero do adotante. Por outro lado, desde uma votação em abril de 2010 na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a adoção conjunta de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil é legal.

Ainda que a lei possibilite a adoção e técnicas de reprodução assistidas para pessoas LGBT, em especial mulheres, a tentativa de construção de uma família por vezes é abalada pela discriminação, que em alguns casos compromete com a segurança dos membros chegando ao assassinato motivado pelo ódio. Novamente, as mulheres enfrentam problemas, ao crescerem no momento que exploram suas sexualidades, a sociedade não as apoia, como a partir do momento em que se tornam mães, elas assim como seus filhos e companheiras(os) passam a enfrentar a vulnerabilidade social por serem quem são. Novos formatos de ameaça surgem, assim como novas possibilidades de feminicídio interseccionados pela LGBTfobia.

“Não faz diferença. A violência doméstica não escolhe poder aquisitivo e socioeconomicamente. Ela existe em todas as esferas. Ela atinge todas as categorias de mulheres”, conclui a delegada Dannyella Gomes.

 

 

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Um estudo informal sobre o estilo de Hunter Thompson
por
João P R Tognonato
|
19/06/2023

 

Cheguei na casa do meu advogado, cansado, melancólico, pronto para cancelar uma viagem que havíamos programado há meses.

“Você é ridículo”, ele disse, “isso precisa mudar agora”.

Pegou o notebook do outro lado da mesa, levantou a tela e ficou passando os olhos durante uns 3 minutos sem nem me dirigir uma palavra. “E então?”, perguntei cinicamente. Ele me olhou ostensivo, “Espere”, respondeu seco. Após uns 5 minutos falou, “Você tem dinheiro?”. Respondi que sim. “Então é isso. Para onde vamos? Bolívia está R$1.300”. Disse que não tinha vontade de conhecer a Bolívia. “Tá bom. E uma viagem mais urbana, tipo Buenos Aires, Uruguai?”, insistiu. Achei a ideia um pouco melhor. “Não! Esquece isso. Que tal o deserto do Atacama?”  - Hmm... já comecei a gostar mesmo da coisa. O Atacama parecia perfeito.

O que eu imaginava era uma mistura de Salvador Dalí com “Camping do Seu Daí”, na Chapada Diamantina: cenários surrealistas e uma galera “hiponga” pronta para festas clandestinas e noites curtidas em ácido. Essa mistura de natureza e orgia seria capaz de me proporcionar uma boa dose de alegria; sem contar que havia escutado sobre as reservas de lítio, uma substância antidepressiva que, no Atacama, flutuava no ar como a especiaria de Frank Herbert.

“Mas e os documentos? Preciso de passaporte, visto, essas coisas?".

“Que nada,” respondeu meu advogado, “Com qualquer papel você viaja para o Chile – RG, CNH, até com carteirinha de vacinação, eu acho. É o Mercosul, baby!

“Bom, então é isso. Vamos nessa”

Eu estava bem animado – ainda que um pouco apreensivo com o imediatismo da coisa. “Você não vai fazer merda, né?”, perguntou meu advogado antes de ir embora. “Não” – definitivamente não. Respondi para mim mesmo dirigindo-lhe um sorriso falso. E saí pela porta me sentindo um pouco estranho.

Agora era hora de se movimentar. A viagem aconteceria em dois dias. Eu não tinha mala, roupas de frio, dinheiro (havia mentido sobre o fato de ter dinheiro) ou qualquer noção básica do que iria encontrar no Atacama. Só sabia de uma coisa: tinha o desejo quase sexual de andar pelo deserto em um conversível. Então, era preciso alugar um carro – coisa que é um pouco mais complicada do que parece. Quer dizer... tirando toda a burocracia natural que envolve alugar um carro, quando isto é feito internacionalmente exige-se que você tenha um cartão de crédito internacional com 500$ na conta de garantia para qualquer merda que aconteça - e eu não tinha um cartão de crédito internacional, muito menos quinhentos dólares.

Deixei essa tarefa para meu advogado; por sorte ele conseguiria utilizar a conta de um cliente rico que lhe devia alguns favores, mas ainda havia o problema do dinheiro. Então, resolvi penhorar algumas joias que tinha em casa, itens que pretendia vender para minha aposentadoria e consegui 5 mil reais nessa brincadeira. Somados com outros 2 mil na conta daria para viajar com o mínimo de dignidade.

Achei importante também ficar atento para as questões práticas do Atacama – como o clima, o tipo de lugar (se é cidade, campo, vila, etc...) se é seguro, se é fácil de se comunicar, enfim... – tudo que dizia respeito ao dia a dia.

Descobri que o Atacama é o deserto mais seco do mundo e fica numa região denominada “Sombra da Chuva,” entre a Cordilheira dos Andes e a cordilheira da Costa, que são responsáveis pela falta de água lá. A primeira impede a chegada do ar úmido proveniente do Amazonas e a segunda se interpõe entre as correntes que chegam do pacífico. E a verdade é que em alguns lugares do Atacama, desde que as medições começaram, nunca foi registrado qualquer sinal de chuva.

Em média, ele se localiza à 2.400 metros acima do nível do mar. Não é dos locais mais altos mundo, que chegam à 4.000 metros. Mas em comparação com o brasil esse fator pode ser relevante. Só para fazer uma comparação, a cidade mais alta daqui, Campos do Jordão, no estado de São Paulo, está a mais ou menos 1.600 metros acima do nível do mar; e a cidade de São Paulo, à 760 metros.

A amplitude térmica se assemelha à dos desertos do mundo todo. Isso significa que de dia faz um sol considerável e, de noite, faz um frio intenso. No mês de maio, que é considerado o melhor par o turismo, são aproximadamente 20º durante o dia e 1º durante a noite – podendo atingir temperaturas negativas. E, no inverno, em agosto, a amplitude se mantém, mas com temperaturas que variam entre -10º e 10º.

Esse conjunto de informações já me deixou tranquilo. O deserto parecia exatamente como eu havia imaginado. Repassei o roteiro de viagens e o que aconteceria após pousarmos no Chile. Descer em Santiago. Esperar 2 horas. Voltar para o avião. Mais duas horas até Calama. Alugar o carro. Dirigir até o Hostel. Fazer compras. Se ambientar.

Com tudo resolvido no plano abstrato resolvi partir para as ações objetivas, me dirigindo ao shopping center para comprar as roupas de frio e trocar dinheiro. É preciso dizer que, na adolescência, quando tinha uns 17 anos, prometi que nunca mais entraria num shopping center sóbrio, o que me levou a tomar meia garrafa de vinho uma garrafa de cerveja antes de sair. Chegando lá, fui direto à casa de câmbio, onde a mulher me obrigou a fazer um terrível cadastro.

 “Muito bem, a cotação do peso chileno está em 0,0062 reais, quanto vai levar?”

“Ahn? Pode repetir. Acho que não entendi”

“Moço, cada real equivale a 0,0062 reais, em pesos chilenos. Vai levar quanto?”

Minha paciência se esgotou naquele instante. Já não bastava ter preenchido aquele formulário estúpido e agora me humilhava achando que contas de decimal são feitas assim, de cabeça.

“Senhora, me responda uma coisa. Os clientes que vem aqui usualmente são engenheiros, economistas ou matemáticos? Olha para a minha cara. Acha que sou o tipo de pessoa que sabe multiplicar frações? Me dê uma luz, pelo menos, uma aproximação. Senão vou achar que estou sendo enganado.”

Ela ficou constrangida.

“Não foi minha intenção, moço. Eu te ajudo, fique tranquilo”. Pegou uma calculadora e concluiu: “1.500 reais são 242 mil pesos.”

Depois deste momento elitista - que me sugou parte da energia remanescente - segui para a loja de roupas esperando um tratamento ainda pior. A ansiedade que a moça da casa de câmbio havia me causado fez com que eu atingisse um estado débil, quase catatônico. Não tinha forças para ficar escolhendo modelos ou pedindo descontos de 10%. Então, parei na primeira loja que vi – a vulgar Loja Renner – e comprei tudo. Casacos, lãs, segunda pele e um gorrinho. Na volta para casa, resolvi que compraria algo espalhafatoso para que as pessoas do aeroporto ficassem em dúvida sobre mim - achando que eu poderia ser uma celebridade. Era mais um desses desejos sexuais que aparecessem de vez em quando. Parei num brechó, na rua Teodoro Sampaio, já me sentindo melhor por ter saído do shopping center. A moça foi muito educada, mas ficava me empurrando um monte de roupas feias. Pedi licença a ela: “Licença, por favor. Acho que vou procurar sozinho”.

E nem precisei procurar muito. Ali, na minha frente, estava o conjunto perfeito, algo que nem os graduados em turismo usariam numa viagem ao Hawaii – uma camisa com estampa de sorvete e uma calça roxa.

Cheguei em casa bem-humorado. Peguei aquele talhão de dinheiro trocado e joguei tudo em cima da cama, como um gangster após vender seu primeiro quilo de cocaína. A nota mais valiosa – de 20.000 pesos chilenos – carregava a imagem de André Bello, uma espécie de libertador dos povos latinos; na de 10.000, a figura de Arturo Prat, um importante líder naval chileno... E, na de 5.000, aparecia a poeta Gabriela Mistral que, por sinal, havia escrito sobre o deserto do Atacama.

“O deserto preserva as memórias. É a pouca umidade, a aridez. É o sal. Como se fosse a fotografia de um tempo distante, há muito passado. Uma fotografia de centenas, milhares ou milhões de anos, dentro da qual é possível se mover...”

Absorto neste delírio estético, escuto o telefone tocar - era meu advogado. Não atendi. Dali uns três minutos recebo uma mensagem:

“EI, IDIOTA. NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, MAS É MELHOR ME ATENDER OU PELO MENOS LER ISSO AQUI. A SUA MALA NÃO PODE PASSAR DE 10KG, OK? SENÃO SEREMOS BARRADOS. E ELA TAMBÉM NÃO PODE SER MUITO GRANDE, TEM QUE CABER NO BAGAGEIRO DA AERONAVE. A GENTE NÃO VAI DESPACHAR NADA.”

Esse cara era muito chato. Nem me lembrava de quando havíamos ficado amigos. Mas ele tinha razão às vezes, e se não fosse seu conselho eu poderia ter chegado no aeroporto com uma mala gigantesca, sendo obrigado a pagar 70 dólares pelo peso extra.

A tarefa parecia difícil. Ainda mais quando descobri uma verdade triste. Não sei dobrar roupas. Na primeira tentativa, tentei copiar o método dos militares, com camisas e calças enroladas em formato de tubo, mas logo descobri que casacos e peças mais robustos simplesmente continuavam ocupando um espaço absurdo. Era necessário procurar no YouTube modos eficientes de dobrar a roupa. Sentindo um pouco de culpa de classe, digitei na barra de busca “Como dobrar roupa que nem um militar” – mas não vieram bons resultados. Depois, fui em canais específicos até encontrar um vídeo que explicava como dobrar no... “estilo do pacotinho.”

1º - Você pega sua camisa e estica ela toda numa superfície qualquer, pode ser uma tábua, uma mesa ou até o chão.

2º - Depois, dobre as mangas das camisas para dentro da roupa de modo a formar uma figura retangular.

3º - Pegue a parte de baixo desse retângulo e leve até o meio da camisa. E, depois, faça o mesmo com a parte de cima.

4º - Dobre a camisa na marca que se formou, e pronto.

5º - Agora é só encaixar um dos lados na abertura que se formou na outra ponta e colocar na mala.

Magicamente tudo ia se resolvendo. A youtuber-dobradora-de-roupas era simplesmente genial. Para cada peça (camisa, camiseta, calça, shorts, casaco moletom, casaco corta-vento, cueca, sai, luva, etc, etc etc..) ela tinha um jeito todo especial de dobrar. Era o oposto do milagre da multiplicação. Era o milagre da redução, e eu comecei a ficar bom, de modo que decorei várias dobras diferentes.

Mas o principal era que a mala estava pronta. Espetacularmente pronta. Tirei uma foto e mandei para meu advogado, com a mensagem. “Nos vemos amanhã, filha da puta”. Ele nem respondeu, mas isso era sinal de que estava com inveja desse meu novo dom. Antes de dormir, pois viajaria no dia seguinte, pedi ao meu irmão para me levar ao aeroporto. Ele concordou. Combinamos sair às 20h da quinta feira para um voo que decolaria às 23h30. Tudo feito para evitar imprevistos. Agora, era deitar a cabeça no travesseiro e esperar o momento.

Acordei no dia seguinte e não fiz nada até a hora de viajar. Só fiquei observando aquela mala linda encostada num canto do meu quarto. Perto das 20h00 vesti minha roupa de viagem e montei a nécessaire com escova de dentes, shampoo, sabonete, desodorante e um creme embelezador de origem suspeita. Meu irmão já estava pronto para sair. “Vamos? Ele perguntou?”. Pegamos o carro e ficamos parados cerca de 1h30 na Marginal Tietê até chegar ao aeroporto. Quando desci, meu advogado já esperava, gentil como sempre.

“Você está ridículo”, disse ele “onde comprou essas roupas?”.

“Não interessa,” respondi. Ele estava se referindo à minha camisa, com estampa de sorvete e à calça jeans roxa. “Dá tempo de fumar mais um cigarro?”, perguntei. Ele respondeu que sim, “Será o último das próximas 8h”.

Fiz questão de fumar dois, um em seguida do outro. Depois, entramos com nossas malas e seguimos direto para o raio-X passando antes por uma mulher que checava as passagens por QR-Code.

Na minha hora de passar pelo detector de metais a máquina apitou. Não sabia que precisava tirar as coisas do bolso. Passei de novo e, mais uma vez, ela apitou. “Bip”. “Tem que tirar o cinto também, senhor.” Tirei o cinto e... passei. Na sequência, um outro guarda se aproximou pedindo para checar minha mala. “Ai meu deus...” – pensei. Não tinha nenhuma droga ou arma na bolsa. Mas sempre alguma coisa pode dar errado. Uma ponta de baseado no bolso lateral da mala de mão, um caco de vidro solto, um isqueiro, ou... Ah! Sim... só podia ser isso, um estilete.... Um terrível estilete, enferrujado, esquecido num estojo. Seria suficiente para me prender? Achei que seria o fim de tudo... Algemado, levado para uma cela, assinando um B.O, que situação...

“Tudo certo senhor, pode seguir”

O que havia acontecido ali? Era meu inconsciente agindo favoravelmente comigo pela primeira vez em anos? Fosse o que fosse, estava salvo. Agarrei a mala e encontrei meu advogado, que olhava para o teto. Mostrei para ele meu documento. Uma CNH recém adquirida com uma foto de 2015 em que estou parecendo um assecla do Osama Bin Laden, todo barbudo, com um coletinho de lã - um aspecto debilmente criminal. Um documento que não passaria pelos Estados unidos na primeira década do século XXI.

“Por sorte, hoje tem menos preconceito”, falei.

“Pare de fazer piadas,” ele disse enfurecido – “Ainda não passamos”.

Andamos por um longo corredor, repleto de fitas separatórias e luzes de hospital. À frente, estava a cabine de imigração. “Pronto, agora era passar por ali e nada mais poderia dar errado. Quer dizer... o avião podia cair – mas isso era algo que fugia da minha alçada de controle.” Havia dois homens dentro dela: um deles simpático e o outro com cara fechada, no melhor estilo Good Cop / Bad Cop. Por ter credibilidade e um pouco mais de experiência meu advogado foi na frente e apresentou seu documento. “Ok, pode passar”, disse o Good Cop.

Na minha vez, quem pegou o documento foi o Bad Cop. Não que fosse fazer alguma diferença, mas fiquei absolutamente em pânico. Uma sensação de que tudo poderia sair errado. Ele veria minha cara barbuda, delinquente, e me impediria de viajar. Seria eu mais uma vítima do preconceito, da xenofobia e das maldades inerentes do mundo. Já começava a formular um discurso humanitário citando a fome no mundo e os horrores do capitalismo. Armaria um barraco. As TVs apareceriam, com seus repórteres descerebrados, fariam matérias e VTs, sobre mim. Meus seguidores no Instagram aumentariam em 3.000%. Seria convidado para talk-shows e afins. No fim, receberia das mãos do Papa Francisco o Prêmio Nobel da paz. Investiria os 2 milhões numa boa corretora e viveria o resta da vida com rendimentos.

“Senhor, que documento é esse?” perguntou o Bad Cop.

Subitamente, o delírio se esvaziou e eu fui contemplado com uma sensação de horror e desespero.

“Documento, senhor? Esta é minha CNH.”

“Mas você não pode viajar com isso aí não. Cadê seu R.G.?”

“Não tenho, senhor, fui roubado.” Menti.

“Você não tem mais nada aí, passaporte, talvez?”

Nessa hora, olhei para meu advogado, que havia dito que eu poderia viajar com a CNH. Ele pareceu envergonhado pela primeira vez em muito tempo. Enquanto isso, o Bad Cop continuava.

“O senhor não pode viajar com isso aí. Vai ser barrado quando chegar no Chile...”

“Espera um pouco, senhor” – Interveio meu advogado. “Ele perdeu o documento. Digo... foi roubado. Não existe aquele RG de emergência?”

“Esse não vale”

“E o RG digital?”

“Também não.”

Aquela conversa foi me enchendo o saco. De um lado, me sentia a pessoa mais estúpida do mundo ao pensar que poderia viajar portando um documento de habilitação. Os chilenos nem devem saber o que é o Detran. Mas, por outro, sentia uma raiva absurda que não poderia ser recalcada dessa vez. Fui me transformando numa ameba enfurecida. Perdi todos os sentidos. Não ouvia nada, não via nada e não me movimentava. Era apenas um corpo flanando no universo.

Enquanto isso, meu advogado conseguiu convencer o policial bonzinho a conversar com seu superior. O rapaz foi diligentemente à uma outra cabine e começou a falar com um homem careca que se fosse receber um nome nessa história seria Bad Bad Cop. Pouco tempo antes, esse sujeito gesticulava negativamente com um outro rapaz, que parecia lhe pedir alguma coisa. Não era um bom sinal. Quando Good Cop começou a falar com seu superior, os gestos negativos tomaram outra proporção, misturando-se com um sorriso cínico típico dos policiais. Vendo aquilo, não me aguentei.

“Você é um advogado de merda, sabia? Como pode não saber de algo tão básico quanto os documentos certos para viajar? Confiei em você seu filha-da-puta e agora estou passando esse ridículo com essa roupa ridícula e essa cara de cu.”

Ele não respondeu. Simplesmente virou as costas e se dirigiu para o Free shop. De longe, eu continuei gritando “Seu merda, lixo, arrombado, filha-da-puta, cuzão, corno, safado, imbecil, etc,” até que o policial bonzinho voltou e me disse.

“Senhor falei com meu superior. Ele disse que você vai poder viajar!”.

“Meu deus! Isso é sério?” – perguntei lacrimejante.

“Não. Vai embora daqui e pare de gritar. Antes que eu chame a polícia.”

Mostrei-lhe o dedo e sai correndo antes que fosse preso. No caminho de volta, a mala abriu e todos aqueles pacotinhos de roupas caíram no chão. Recolhi tudo e continuei xingando. Fui para a central da Latam e xinguei todo mundo mais um pouco. Estava revoltado. Xingava mentalmente meu advogado. Minha estupidez. O mundo. Nada podia ser feito além disso: Xingar, xingar e xingar. Xingando, passei o mês seguinte, até que pude colocar tudo no papel. Fiquei mais tranquilo. Preciso remarcar minha viagem, provavelmente para agosto. Não desisti de ir. Quanto ao meu advogado, quando ele voltar conversaremos. Um casinho desses não será suficiente para destruir nossa amizade.

Fim da história.

 

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As chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa produção de soja no início do ano pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho
por
Andre Nunes e Flavia Cury
|
24/05/2023

As fortes chuvas que atingiram o Estado de São Paulo atrasaram o plantio da segunda safra do milho, por isso, estima-se uma redução de 8% no total colhido. Como o cereal é uma das principais matérias-primas para a produção de ração animal, isso pode levar a um aumento de preço das carnes de frango e porco em cerca de 6%.

Isso ocorreu em razão do atraso na colheita da soja, safra anterior ao grão. Por conta do excesso de chuva, o ciclo da oleaginosa foi alongado, pois o produtor foi impedido de fazer o trabalho de campo.

"Agora que a colheita foi feita, as chuvas deixaram de ser um fator relevante na soja, e passaram a ser um fator importantíssimo para o milho", explica o analista agrícola Pedro Schicchi. 

Com esse adiamento, essa safra corre o risco de ter sua fase final e primordial de desenvolvimento durante um período mais seco do ano, o que leva a espigas com tamanho e volume menores. 

Por isso, a segunda safra está com um calendário mais estreito. “Alguns produtores decidiram  por não plantar milho com medo de sair dessa janela, isso resultou em uma diminuição de 3% na área do cereal”, diz Daniel Rosa, assessor técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). 

Se as chuvas continuarem, a disponibilidade hídrica para o desenvolvimento do cereal aumenta, mas, o problema é que tende a parar de chover, já que entramos nos meses mais secos do ano. 

Em 2023, a produção de milho do Estado de São Paulo ficará próximo das 4 milhões de toneladas, uma diminuição de 8%, frente às 4,3 milhões de toneladas do ano anterior.

Produção de soja neste ano 

Por outro lado, as chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa  produção de soja no início do ano, pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho. 

Ela é plantada em setembro e colhida em fevereiro, por isso, recebeu muitas chuvas durante o estágio final de seu desenvolvimento, as quais favoreceram a lavoura do grão.

Além do atraso na colheita, elas trouxeram apenas dois contras: a maior porcentagem de grãos ardidos (aqueles que entraram em fermentação após receberem muita chuva) e o aumento na incidência de mofo branco e ferrugem asiática, já que elas encontraram condições ideais de proliferação, explica Candice Romero Santos, superintendente de Informações da Agropecuária da Conab. 

Esses fatores não causaram impacto significativo, ao contrário do algodão, por exemplo, da qual 600 hectares de terra precisaram ser replantados em razão dos fungos.

Com a boa lavoura de soja, espera-se um cenário positivo para o mercado doméstico e para a exportação, com valores reduzidos e quantidade ampliada. No entanto, a alta no volume de produção pressiona a logística, afetando os preços e a capacidade de transporte. 

Os embarques dos cinco principais complexos exportados pelo país (soja, carnes, cereais, produtos florestais e sucroalcooleiro), saídos de São Paulo, em termos de volume, diminuíram 25% em fevereiro de 2023, comparado com o mesmo mês de 2022. Em relação aos últimos cinco anos, a redução é de 12%.

Santos ressalta que esse recuo nas exportações tem relação com outras variáveis que não apenas as chuvas. Para o complexo soja e o complexo sucroalcooleiro, por exemplo, é importante pontuar que houve redução na produção.

Quando colocado na balança, segundo Schicchi, uma safra ruim de milho é mais sentida pelo bolso do consumidor final do que a soja, pois ele é utilizado na fabricação de ração para frango e porcos.

Com isso, o custo de produção dos pecuaristas aumenta, tendo consequência no preço da carne desses animais nos mercados e açougues. 

Alta das chuvas e previsão para o restante do ano 

Segundo Cleverson Freitas, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), as chuvas ficaram acima da média em grande parte de SP, atingindo até 1194 mm de volume em algumas regiões.

Elas foram causadas principalmente pelos sistemas meteorológicos que já atuam sobre o estado durante esse período, o transporte de umidade vindo da Região Amazônica, sistemas de baixa pressão, e frentes frias que atingiram o estado.

Vale lembrar que todas as regiões do país foram afetadas de alguma forma, já que os volumes de chuva foram maiores que 500 mm em áreas do norte da Região Sul, grande parte das regiões Centro-Oeste e Norte, além do centro-sul da Região Sudeste.

Porém, a previsão para junho - justamente o final do desenvolvimento dessa leva de milho -, indica o oposto desse começo de 2023. O INMET prevê volumes de chuva abaixo da média para os próximos três meses em grande parte da Região Sudeste, principalmente em São Paulo.

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Economia e Negócios

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Bairros nasceram de ocupações irregulares no entorno do rio Tietê e são atingidos por deslizamentos e enchentes pela falta de políticas públicas ao longo dos anos
por
Gabriela Costa, Isabela Lago e Julio Cesar Ferreira
|
11/05/2023

Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas
Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas (1. Reprodução/TV Globo; 2. DiCampana Foto Coletivo) 

“Eu perdi uma consulta médica porque não consegui atravessar os dois metros de altura da água na avenida Deputado Cantídio Sampaio”, conta Quintino José Viana, um ambientalista de 78 anos. Residente do bairro Jardim Damasceno, Brasilândia, ele é presidente do “Movimento Ousadia Popular”, organização que busca preservar a área verde do bairro, e recebe com frequência reclamações de moradores que ficam presos dentro de casa sem conseguir sair quando a chuva causa enchentes na região.

Bairros localizados nos extremos da cidade sofrem situações como a descrita em períodos de chuva intensa pela falta de políticas públicas e planejamento da área que não abrange, por exemplo, obras que permitam o escoamento das águas ou sua contenção por meio da polderização, técnicas usadas para mitigar o estrago das chuvas. 

O Jardim Damasceno e os demais bairros do distrito da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, historicamente enfrentam alagamentos e deslizamentos devido a sua localização nas margens da Serra da Cantareira. Outra área que enfrenta situações semelhantes durante estações chuvosas é o bairro Jardim Pantanal, várzea do rio Tietê. A região lida com enchentes anuais desde os anos 80. 

Os “extremos” são os mais afetados 

Jardim Pantanal, bairro no extremo leste com forte presença do rio Tietê, e bairros próximos da Serra da Cantareira como Jardim Damasceno e Jardim Paraná, na Brasilândia, extremo norte de São Paulo, são afetados pela chuva em épocas específicas, como os meses entre outubro e março.

O Jardim Pantanal sempre sofreu com as enchentes. Em 2009, a área ficou alagada por três meses depois que uma tempestade elevou o nível do rio. Por ser uma área plana, Joyce Ferreira, 40,  arquiteta e urbanista que fez parte da equipe do Plano de Bairro do Jardim Pantanal, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), em parceria com o Instituto Alana, conta que a relação com a água no local é inerente a sua existência por ser construído às margens do Tietê.

“Você pode ter lugares que são muito declives ou aclives, que poderiam ser considerados de risco, mas que são bem urbanizados [por estarem em áreas centrais e que sofrem com a especulação imobiliária] e por isso a área suporta melhor algum evento climático”, descreve.

Em bairros como Perdizes e Pinheiros, que são repletos de morro e área de várzea, respectivamente, o mesmo fenômeno pode ser observado, no entanto, devido aos processos de inclusão urbana e atenção do Estado por não serem locais periféricos, não passam por esses desastres.

O Jardim Damasceno, na Brasilândia, embora não tenha um Plano de Bairro, também foi ocupado por comunidades autoconstruídas em áreas de risco e próximas a córregos, como os do Bananal e Canivete. Porém, diferentemente do Pantanal, com construção plana, Damasceno é um grande morro, que tem também proximidades com a Serra da Cantareira. Nesse sentido, não só enchentes atingem o local, como também o risco de deslizamentos.

A favela da Tribo, ao lado do bairro, é um caso crítico de ocupação, por estar em um terreno irregular e íngreme às margens da Cantareira. A comunidade, além das enchentes, lida com queda de árvores e deslizamentos de barrancos devido ao tempo chuvoso, configurando o local como uma área de risco.

A região não recebe apoio de autoridades no caso de enchentes por não ser regularizada. “A Defesa Civil disse que não podia fazer nada”, conta Quintino. O morador também descreve a exposição da comunidade a mananciais que são escoamento de esgoto, o que representa um crime ambiental. 

O abandono urbano tem cor

Não só o recorte econômico, como também o racial, explicam como até a atualidade as periferias enfrentam problemas de infraestrutura causadas pela falta de políticas públicas. Estela Macedo Alves, 45, arquiteta e urbanista pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o conceito de “racismo ambiental" pode ser aplicado nesse âmbito, pois as vítimas desses desastres são majoritariamente negras. 

Como 78% da população pobre de baixa renda é negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2016, negligenciar as demandas das áreas de moradia dessas pessoas é deixá-las vulneráveis a desastres ambientais. Conforme o Mapa da Desigualdade (2022), o distrito da Brasilândia é formado por 50,6% de pessoas negras. Já o distrito do Jardim Helena, que abriga o bairro do Jardim Pantanal, tem 54,7% de moradores negros. Em comparação, 37% dos habitantes da cidade de São Paulo são negros.

Historicamente, quando as áreas centrais viviam o processo de modernização, as periferias não eram incluídas. Também como parte do processo de higienização, era preciso retirar do caminho pessoas pobres, como os ex-escravizados. A migração nordestina também ajudou a consolidar a desigualdade, já que essa população não tinha acesso ao território urbanizado graças à especulação imobiliária.

São Paulo se ergueu com inspiração nas metrópoles europeias, nas quais os recursos hídricos eram deteriorados e vistos como obstáculos ao crescimento, como explica Estela. Como a capital paulista precisava parecer uma cidade com infraestrutura, era necessário esconder a grande quantidade de cursos d'água por meio da canalização ou retificação.

A cidade, como foi construída em cima de bacias hidrográficas na tentativa de suprimir os rumos das águas, causa diversos problemas para a dinâmica da metrópole até hoje, sobretudo em áreas à margem. 

“A construção da cidade era feita por engenheiros, sobretudo os sanitaristas, e uma das questões mais importantes era se livrar de tudo que parecia não civilizado”, afirma.

Para entender como a Prefeitura de São Paulo se posiciona em relação ao acesso pleno a políticas públicas e de urbanização dessa população, o Contraponto Digital entrou em contato com a Coordenadoria de Planejamento Urbano (Planurb) por meio do telefone e e-mail, mas não obteve resposta até o momento da publicação.

Moradores agem autonomamente com a ausência do Estado 

Pela falta de execução de políticas públicas nesses locais, a própria população se vê obrigada a organizar estratégias para minimizar os danos das tragédias. Guilherme Simões, secretário de Periferias do Ministério das Cidades, explica que esses agentes coletivos estão construindo uma “economia de sobrevivência”.

De acordo com o líder da pasta, todas essas movimentações de distribuição de alimentos, mutirões de doações, entre outras ações que ocorrem em momentos de crise, são características das comunidades periféricas. Um exemplo dessas representações são as próprias associações de moradores.

Reginaldo dos Santos, 54, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal (Amojap), conta que, em momentos de enchentes, as famílias desabrigadas são movidas pelos próprios moradores para uma quadra grande do bairro. “Conseguimos trazer alimento, cobertores, insumos e até ajuda médica”, explica. Esses mutirões contemplam cerca de 300 pessoas para almoçar e jantar, além de abrigarem mais de 40 famílias para dormir na quadra.

O coordenador de gestão da Associação dos Moradores do Alto da Vila Brasilândia (AMAVB), Cláudio Kafé, 50, resume o papel de atuação dessas organizações: “Nós não temos como prevenir esses desastres: tudo que podemos fazer é esperar acontecer e depois reconstruir.”

"O Estado sabe quais são os pontos mais vulneráveis, sabe quais as famílias em área de risco, mas, infelizmente, não toma as medidas necessárias”, explica o líder comunitário.

O secretário de Periferias afirma que esse conhecimento dos moradores das regiões deve ser utilizado no momento de elaboração de políticas públicas, sendo necessária a criação de um “Plano Diretor Municipal."

A arquiteta Ferreira explica que a elaboração desse documento é geralmente feita por órgãos do governo ao lado de especialistas. “O objetivo é ser uma diretriz de investimentos públicos para melhorias”, resume.

Em outras palavras, o “Plano Diretor” visa reconhecer os problemas desses territórios e interligar possíveis instrumentos para solucioná-los. A urbanista explica que esse plano "é um reflexo dos conflitos do local; por isso, é importante ter a participação de todos, porque é um processo democrático e o choque entre ideias é inerente.”

Da mesma forma, o “Plano de Bairro” precisa ser elaborado com base nas especificidades daquele lugar. Diferentemente do anterior, esse último documento pode ser elaborado por qualquer instituição, até mesmo aquelas de caráter civil.

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