Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
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23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
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Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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O corpo da feminino se reinventa como profissão, mercadoria e alternativa de trabalho.
por
Mohara Ogando Cherubin
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23/09/2025

Por Mohara Cherubin

 

Atualmente, os dias começam com a checagem de mensagens e propostas no perfil de conteúdo adulto, antes mesmo do café da manhã de Maria. A academia, os compromissos e o almoço ocupam as primeiras horas do dia, mas é no retorno para casa que o trabalho realmente começa. As tardes e noites são dedicadas a gravar vídeos, responder clientes e editar conteúdos. A rotina, que pode facilmente ultrapassar 12 horas de dedicação, exige organização e disponibilidade. Embora muitos ainda julgam a atividade como algo distante de um “trabalho de verdade”, ela descreve longas jornadas de produção, chamadas de vídeo e edição, realizadas sem apoio externo.

Demissão, dívidas e a responsabilidade de ajudar nas contas de casa foram os fatores que a levaram descobrir, por meio de uma amiga, a criação de conteúdo adulto como uma forma de garantir sua sobrevivência financeira. Provida apenas de um celular e da necessidade de pagar suas despesas, ela decidiu abrir um perfil em uma plataforma e, no primeiro dia, já conseguiu lucrar 300 reais em poucas horas. O resultado imediato a convenceu de que, apesar das dúvidas e inseguranças, havia ali um meio de se sustentar. A partir daquele momento, a rotina de trabalho passaria a girar em torno de gravações, interações com clientes e a construção de uma nova fonte de renda.

O início, contudo, não foi marcado apenas por ganhos. Como era anônima e não tinha seguidores, demorou para alcançar estabilidade financeira na plataforma. Nos primeiros meses, precisou pedir dinheiro emprestado e lidar com a desconfiança da família, que até hoje não sabe exatamente de onde vem sua renda. Para ela, lidar com o estigma social que associa a profissão à piedade é um dos maiores desafios, quando, em sua visão, foi uma escolha consciente diante das circunstâncias que enfrentava.

Apesar de ainda não saber se seguirá no mercado por muitos anos, garante que, por agora, não pensa em parar. Reconhece que sua relação com os clientes é de dependência, mas não admite ser “tirada” dessa vida, como já lhe foi oferecido por um dos consumidores mais recorrentes. Solteira, ela prefere manter o controle sobre suas decisões, sem dever nada a ninguém. Entre o cansaço das longas jornadas, as incertezas sobre o futuro e a satisfação de ver o dinheiro cair na conta, segue encarando um dia de cada vez, certa de que, se for preciso mudar de caminho, encontrará uma forma de se reinventar, como sempre fez.

De acordo com Maria Cláudia Neves, psicanalista especialista em adolescentes, embora o discurso do empoderamento seja colocado como um instrumento de defesa e apareça com frequência nesse contexto, a Psicanálise observa que a sensação de controle dessas mulheres é temporária. No início, a mulher acredita decidir o que mostrar e como se expor, porém à medida em que o sustento dela só é possível com o pagamento de seus assinantes, ela se vê dependente do desejo do cliente. Toda aquela liberdade sentida no começo passa a se tornar vulnerabilidade, uma vez que os conteúdos passam a responder às exigências externas, caso contrário o cliente deixará de pagar e procurará um perfil que atenda às suas vontades. 

Do outro lado da tela, o consumidor busca satisfação em uma fantasia que nunca se completa. Para a psicanalista, trata-se de uma busca por pulsão de vida, por um corpo idealizado que nunca é suficiente. É por essa razão que tantos indivíduos desenvolvem vícios em pornografia. De acordo com dados do PornHub, site canadense de compartilhamento de vídeos pornográficos, o Brasil está entre os dez países que mais consomem pornografia, com 39% de usuárias mulheres e 61% de usuários homens. Os conteúdos são esporádicos e a satisfação é sempre passageira, levando ao consumo repetitivo. Assim como a criadora de conteúdo se torna refém da manutenção de sua imagem e dos gastos associados a ela, o cliente também se torna refém de seu próprio desejo.
 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Um estudo informal sobre o estilo de Hunter Thompson
por
João P R Tognonato
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19/06/2023

 

Cheguei na casa do meu advogado, cansado, melancólico, pronto para cancelar uma viagem que havíamos programado há meses.

“Você é ridículo”, ele disse, “isso precisa mudar agora”.

Pegou o notebook do outro lado da mesa, levantou a tela e ficou passando os olhos durante uns 3 minutos sem nem me dirigir uma palavra. “E então?”, perguntei cinicamente. Ele me olhou ostensivo, “Espere”, respondeu seco. Após uns 5 minutos falou, “Você tem dinheiro?”. Respondi que sim. “Então é isso. Para onde vamos? Bolívia está R$1.300”. Disse que não tinha vontade de conhecer a Bolívia. “Tá bom. E uma viagem mais urbana, tipo Buenos Aires, Uruguai?”, insistiu. Achei a ideia um pouco melhor. “Não! Esquece isso. Que tal o deserto do Atacama?”  - Hmm... já comecei a gostar mesmo da coisa. O Atacama parecia perfeito.

O que eu imaginava era uma mistura de Salvador Dalí com “Camping do Seu Daí”, na Chapada Diamantina: cenários surrealistas e uma galera “hiponga” pronta para festas clandestinas e noites curtidas em ácido. Essa mistura de natureza e orgia seria capaz de me proporcionar uma boa dose de alegria; sem contar que havia escutado sobre as reservas de lítio, uma substância antidepressiva que, no Atacama, flutuava no ar como a especiaria de Frank Herbert.

“Mas e os documentos? Preciso de passaporte, visto, essas coisas?".

“Que nada,” respondeu meu advogado, “Com qualquer papel você viaja para o Chile – RG, CNH, até com carteirinha de vacinação, eu acho. É o Mercosul, baby!

“Bom, então é isso. Vamos nessa”

Eu estava bem animado – ainda que um pouco apreensivo com o imediatismo da coisa. “Você não vai fazer merda, né?”, perguntou meu advogado antes de ir embora. “Não” – definitivamente não. Respondi para mim mesmo dirigindo-lhe um sorriso falso. E saí pela porta me sentindo um pouco estranho.

Agora era hora de se movimentar. A viagem aconteceria em dois dias. Eu não tinha mala, roupas de frio, dinheiro (havia mentido sobre o fato de ter dinheiro) ou qualquer noção básica do que iria encontrar no Atacama. Só sabia de uma coisa: tinha o desejo quase sexual de andar pelo deserto em um conversível. Então, era preciso alugar um carro – coisa que é um pouco mais complicada do que parece. Quer dizer... tirando toda a burocracia natural que envolve alugar um carro, quando isto é feito internacionalmente exige-se que você tenha um cartão de crédito internacional com 500$ na conta de garantia para qualquer merda que aconteça - e eu não tinha um cartão de crédito internacional, muito menos quinhentos dólares.

Deixei essa tarefa para meu advogado; por sorte ele conseguiria utilizar a conta de um cliente rico que lhe devia alguns favores, mas ainda havia o problema do dinheiro. Então, resolvi penhorar algumas joias que tinha em casa, itens que pretendia vender para minha aposentadoria e consegui 5 mil reais nessa brincadeira. Somados com outros 2 mil na conta daria para viajar com o mínimo de dignidade.

Achei importante também ficar atento para as questões práticas do Atacama – como o clima, o tipo de lugar (se é cidade, campo, vila, etc...) se é seguro, se é fácil de se comunicar, enfim... – tudo que dizia respeito ao dia a dia.

Descobri que o Atacama é o deserto mais seco do mundo e fica numa região denominada “Sombra da Chuva,” entre a Cordilheira dos Andes e a cordilheira da Costa, que são responsáveis pela falta de água lá. A primeira impede a chegada do ar úmido proveniente do Amazonas e a segunda se interpõe entre as correntes que chegam do pacífico. E a verdade é que em alguns lugares do Atacama, desde que as medições começaram, nunca foi registrado qualquer sinal de chuva.

Em média, ele se localiza à 2.400 metros acima do nível do mar. Não é dos locais mais altos mundo, que chegam à 4.000 metros. Mas em comparação com o brasil esse fator pode ser relevante. Só para fazer uma comparação, a cidade mais alta daqui, Campos do Jordão, no estado de São Paulo, está a mais ou menos 1.600 metros acima do nível do mar; e a cidade de São Paulo, à 760 metros.

A amplitude térmica se assemelha à dos desertos do mundo todo. Isso significa que de dia faz um sol considerável e, de noite, faz um frio intenso. No mês de maio, que é considerado o melhor par o turismo, são aproximadamente 20º durante o dia e 1º durante a noite – podendo atingir temperaturas negativas. E, no inverno, em agosto, a amplitude se mantém, mas com temperaturas que variam entre -10º e 10º.

Esse conjunto de informações já me deixou tranquilo. O deserto parecia exatamente como eu havia imaginado. Repassei o roteiro de viagens e o que aconteceria após pousarmos no Chile. Descer em Santiago. Esperar 2 horas. Voltar para o avião. Mais duas horas até Calama. Alugar o carro. Dirigir até o Hostel. Fazer compras. Se ambientar.

Com tudo resolvido no plano abstrato resolvi partir para as ações objetivas, me dirigindo ao shopping center para comprar as roupas de frio e trocar dinheiro. É preciso dizer que, na adolescência, quando tinha uns 17 anos, prometi que nunca mais entraria num shopping center sóbrio, o que me levou a tomar meia garrafa de vinho uma garrafa de cerveja antes de sair. Chegando lá, fui direto à casa de câmbio, onde a mulher me obrigou a fazer um terrível cadastro.

 “Muito bem, a cotação do peso chileno está em 0,0062 reais, quanto vai levar?”

“Ahn? Pode repetir. Acho que não entendi”

“Moço, cada real equivale a 0,0062 reais, em pesos chilenos. Vai levar quanto?”

Minha paciência se esgotou naquele instante. Já não bastava ter preenchido aquele formulário estúpido e agora me humilhava achando que contas de decimal são feitas assim, de cabeça.

“Senhora, me responda uma coisa. Os clientes que vem aqui usualmente são engenheiros, economistas ou matemáticos? Olha para a minha cara. Acha que sou o tipo de pessoa que sabe multiplicar frações? Me dê uma luz, pelo menos, uma aproximação. Senão vou achar que estou sendo enganado.”

Ela ficou constrangida.

“Não foi minha intenção, moço. Eu te ajudo, fique tranquilo”. Pegou uma calculadora e concluiu: “1.500 reais são 242 mil pesos.”

Depois deste momento elitista - que me sugou parte da energia remanescente - segui para a loja de roupas esperando um tratamento ainda pior. A ansiedade que a moça da casa de câmbio havia me causado fez com que eu atingisse um estado débil, quase catatônico. Não tinha forças para ficar escolhendo modelos ou pedindo descontos de 10%. Então, parei na primeira loja que vi – a vulgar Loja Renner – e comprei tudo. Casacos, lãs, segunda pele e um gorrinho. Na volta para casa, resolvi que compraria algo espalhafatoso para que as pessoas do aeroporto ficassem em dúvida sobre mim - achando que eu poderia ser uma celebridade. Era mais um desses desejos sexuais que aparecessem de vez em quando. Parei num brechó, na rua Teodoro Sampaio, já me sentindo melhor por ter saído do shopping center. A moça foi muito educada, mas ficava me empurrando um monte de roupas feias. Pedi licença a ela: “Licença, por favor. Acho que vou procurar sozinho”.

E nem precisei procurar muito. Ali, na minha frente, estava o conjunto perfeito, algo que nem os graduados em turismo usariam numa viagem ao Hawaii – uma camisa com estampa de sorvete e uma calça roxa.

Cheguei em casa bem-humorado. Peguei aquele talhão de dinheiro trocado e joguei tudo em cima da cama, como um gangster após vender seu primeiro quilo de cocaína. A nota mais valiosa – de 20.000 pesos chilenos – carregava a imagem de André Bello, uma espécie de libertador dos povos latinos; na de 10.000, a figura de Arturo Prat, um importante líder naval chileno... E, na de 5.000, aparecia a poeta Gabriela Mistral que, por sinal, havia escrito sobre o deserto do Atacama.

“O deserto preserva as memórias. É a pouca umidade, a aridez. É o sal. Como se fosse a fotografia de um tempo distante, há muito passado. Uma fotografia de centenas, milhares ou milhões de anos, dentro da qual é possível se mover...”

Absorto neste delírio estético, escuto o telefone tocar - era meu advogado. Não atendi. Dali uns três minutos recebo uma mensagem:

“EI, IDIOTA. NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, MAS É MELHOR ME ATENDER OU PELO MENOS LER ISSO AQUI. A SUA MALA NÃO PODE PASSAR DE 10KG, OK? SENÃO SEREMOS BARRADOS. E ELA TAMBÉM NÃO PODE SER MUITO GRANDE, TEM QUE CABER NO BAGAGEIRO DA AERONAVE. A GENTE NÃO VAI DESPACHAR NADA.”

Esse cara era muito chato. Nem me lembrava de quando havíamos ficado amigos. Mas ele tinha razão às vezes, e se não fosse seu conselho eu poderia ter chegado no aeroporto com uma mala gigantesca, sendo obrigado a pagar 70 dólares pelo peso extra.

A tarefa parecia difícil. Ainda mais quando descobri uma verdade triste. Não sei dobrar roupas. Na primeira tentativa, tentei copiar o método dos militares, com camisas e calças enroladas em formato de tubo, mas logo descobri que casacos e peças mais robustos simplesmente continuavam ocupando um espaço absurdo. Era necessário procurar no YouTube modos eficientes de dobrar a roupa. Sentindo um pouco de culpa de classe, digitei na barra de busca “Como dobrar roupa que nem um militar” – mas não vieram bons resultados. Depois, fui em canais específicos até encontrar um vídeo que explicava como dobrar no... “estilo do pacotinho.”

1º - Você pega sua camisa e estica ela toda numa superfície qualquer, pode ser uma tábua, uma mesa ou até o chão.

2º - Depois, dobre as mangas das camisas para dentro da roupa de modo a formar uma figura retangular.

3º - Pegue a parte de baixo desse retângulo e leve até o meio da camisa. E, depois, faça o mesmo com a parte de cima.

4º - Dobre a camisa na marca que se formou, e pronto.

5º - Agora é só encaixar um dos lados na abertura que se formou na outra ponta e colocar na mala.

Magicamente tudo ia se resolvendo. A youtuber-dobradora-de-roupas era simplesmente genial. Para cada peça (camisa, camiseta, calça, shorts, casaco moletom, casaco corta-vento, cueca, sai, luva, etc, etc etc..) ela tinha um jeito todo especial de dobrar. Era o oposto do milagre da multiplicação. Era o milagre da redução, e eu comecei a ficar bom, de modo que decorei várias dobras diferentes.

Mas o principal era que a mala estava pronta. Espetacularmente pronta. Tirei uma foto e mandei para meu advogado, com a mensagem. “Nos vemos amanhã, filha da puta”. Ele nem respondeu, mas isso era sinal de que estava com inveja desse meu novo dom. Antes de dormir, pois viajaria no dia seguinte, pedi ao meu irmão para me levar ao aeroporto. Ele concordou. Combinamos sair às 20h da quinta feira para um voo que decolaria às 23h30. Tudo feito para evitar imprevistos. Agora, era deitar a cabeça no travesseiro e esperar o momento.

Acordei no dia seguinte e não fiz nada até a hora de viajar. Só fiquei observando aquela mala linda encostada num canto do meu quarto. Perto das 20h00 vesti minha roupa de viagem e montei a nécessaire com escova de dentes, shampoo, sabonete, desodorante e um creme embelezador de origem suspeita. Meu irmão já estava pronto para sair. “Vamos? Ele perguntou?”. Pegamos o carro e ficamos parados cerca de 1h30 na Marginal Tietê até chegar ao aeroporto. Quando desci, meu advogado já esperava, gentil como sempre.

“Você está ridículo”, disse ele “onde comprou essas roupas?”.

“Não interessa,” respondi. Ele estava se referindo à minha camisa, com estampa de sorvete e à calça jeans roxa. “Dá tempo de fumar mais um cigarro?”, perguntei. Ele respondeu que sim, “Será o último das próximas 8h”.

Fiz questão de fumar dois, um em seguida do outro. Depois, entramos com nossas malas e seguimos direto para o raio-X passando antes por uma mulher que checava as passagens por QR-Code.

Na minha hora de passar pelo detector de metais a máquina apitou. Não sabia que precisava tirar as coisas do bolso. Passei de novo e, mais uma vez, ela apitou. “Bip”. “Tem que tirar o cinto também, senhor.” Tirei o cinto e... passei. Na sequência, um outro guarda se aproximou pedindo para checar minha mala. “Ai meu deus...” – pensei. Não tinha nenhuma droga ou arma na bolsa. Mas sempre alguma coisa pode dar errado. Uma ponta de baseado no bolso lateral da mala de mão, um caco de vidro solto, um isqueiro, ou... Ah! Sim... só podia ser isso, um estilete.... Um terrível estilete, enferrujado, esquecido num estojo. Seria suficiente para me prender? Achei que seria o fim de tudo... Algemado, levado para uma cela, assinando um B.O, que situação...

“Tudo certo senhor, pode seguir”

O que havia acontecido ali? Era meu inconsciente agindo favoravelmente comigo pela primeira vez em anos? Fosse o que fosse, estava salvo. Agarrei a mala e encontrei meu advogado, que olhava para o teto. Mostrei para ele meu documento. Uma CNH recém adquirida com uma foto de 2015 em que estou parecendo um assecla do Osama Bin Laden, todo barbudo, com um coletinho de lã - um aspecto debilmente criminal. Um documento que não passaria pelos Estados unidos na primeira década do século XXI.

“Por sorte, hoje tem menos preconceito”, falei.

“Pare de fazer piadas,” ele disse enfurecido – “Ainda não passamos”.

Andamos por um longo corredor, repleto de fitas separatórias e luzes de hospital. À frente, estava a cabine de imigração. “Pronto, agora era passar por ali e nada mais poderia dar errado. Quer dizer... o avião podia cair – mas isso era algo que fugia da minha alçada de controle.” Havia dois homens dentro dela: um deles simpático e o outro com cara fechada, no melhor estilo Good Cop / Bad Cop. Por ter credibilidade e um pouco mais de experiência meu advogado foi na frente e apresentou seu documento. “Ok, pode passar”, disse o Good Cop.

Na minha vez, quem pegou o documento foi o Bad Cop. Não que fosse fazer alguma diferença, mas fiquei absolutamente em pânico. Uma sensação de que tudo poderia sair errado. Ele veria minha cara barbuda, delinquente, e me impediria de viajar. Seria eu mais uma vítima do preconceito, da xenofobia e das maldades inerentes do mundo. Já começava a formular um discurso humanitário citando a fome no mundo e os horrores do capitalismo. Armaria um barraco. As TVs apareceriam, com seus repórteres descerebrados, fariam matérias e VTs, sobre mim. Meus seguidores no Instagram aumentariam em 3.000%. Seria convidado para talk-shows e afins. No fim, receberia das mãos do Papa Francisco o Prêmio Nobel da paz. Investiria os 2 milhões numa boa corretora e viveria o resta da vida com rendimentos.

“Senhor, que documento é esse?” perguntou o Bad Cop.

Subitamente, o delírio se esvaziou e eu fui contemplado com uma sensação de horror e desespero.

“Documento, senhor? Esta é minha CNH.”

“Mas você não pode viajar com isso aí não. Cadê seu R.G.?”

“Não tenho, senhor, fui roubado.” Menti.

“Você não tem mais nada aí, passaporte, talvez?”

Nessa hora, olhei para meu advogado, que havia dito que eu poderia viajar com a CNH. Ele pareceu envergonhado pela primeira vez em muito tempo. Enquanto isso, o Bad Cop continuava.

“O senhor não pode viajar com isso aí. Vai ser barrado quando chegar no Chile...”

“Espera um pouco, senhor” – Interveio meu advogado. “Ele perdeu o documento. Digo... foi roubado. Não existe aquele RG de emergência?”

“Esse não vale”

“E o RG digital?”

“Também não.”

Aquela conversa foi me enchendo o saco. De um lado, me sentia a pessoa mais estúpida do mundo ao pensar que poderia viajar portando um documento de habilitação. Os chilenos nem devem saber o que é o Detran. Mas, por outro, sentia uma raiva absurda que não poderia ser recalcada dessa vez. Fui me transformando numa ameba enfurecida. Perdi todos os sentidos. Não ouvia nada, não via nada e não me movimentava. Era apenas um corpo flanando no universo.

Enquanto isso, meu advogado conseguiu convencer o policial bonzinho a conversar com seu superior. O rapaz foi diligentemente à uma outra cabine e começou a falar com um homem careca que se fosse receber um nome nessa história seria Bad Bad Cop. Pouco tempo antes, esse sujeito gesticulava negativamente com um outro rapaz, que parecia lhe pedir alguma coisa. Não era um bom sinal. Quando Good Cop começou a falar com seu superior, os gestos negativos tomaram outra proporção, misturando-se com um sorriso cínico típico dos policiais. Vendo aquilo, não me aguentei.

“Você é um advogado de merda, sabia? Como pode não saber de algo tão básico quanto os documentos certos para viajar? Confiei em você seu filha-da-puta e agora estou passando esse ridículo com essa roupa ridícula e essa cara de cu.”

Ele não respondeu. Simplesmente virou as costas e se dirigiu para o Free shop. De longe, eu continuei gritando “Seu merda, lixo, arrombado, filha-da-puta, cuzão, corno, safado, imbecil, etc,” até que o policial bonzinho voltou e me disse.

“Senhor falei com meu superior. Ele disse que você vai poder viajar!”.

“Meu deus! Isso é sério?” – perguntei lacrimejante.

“Não. Vai embora daqui e pare de gritar. Antes que eu chame a polícia.”

Mostrei-lhe o dedo e sai correndo antes que fosse preso. No caminho de volta, a mala abriu e todos aqueles pacotinhos de roupas caíram no chão. Recolhi tudo e continuei xingando. Fui para a central da Latam e xinguei todo mundo mais um pouco. Estava revoltado. Xingava mentalmente meu advogado. Minha estupidez. O mundo. Nada podia ser feito além disso: Xingar, xingar e xingar. Xingando, passei o mês seguinte, até que pude colocar tudo no papel. Fiquei mais tranquilo. Preciso remarcar minha viagem, provavelmente para agosto. Não desisti de ir. Quanto ao meu advogado, quando ele voltar conversaremos. Um casinho desses não será suficiente para destruir nossa amizade.

Fim da história.

 

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As chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa produção de soja no início do ano pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho
por
Andre Nunes e Flavia Cury
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24/05/2023

As fortes chuvas que atingiram o Estado de São Paulo atrasaram o plantio da segunda safra do milho, por isso, estima-se uma redução de 8% no total colhido. Como o cereal é uma das principais matérias-primas para a produção de ração animal, isso pode levar a um aumento de preço das carnes de frango e porco em cerca de 6%.

Isso ocorreu em razão do atraso na colheita da soja, safra anterior ao grão. Por conta do excesso de chuva, o ciclo da oleaginosa foi alongado, pois o produtor foi impedido de fazer o trabalho de campo.

"Agora que a colheita foi feita, as chuvas deixaram de ser um fator relevante na soja, e passaram a ser um fator importantíssimo para o milho", explica o analista agrícola Pedro Schicchi. 

Com esse adiamento, essa safra corre o risco de ter sua fase final e primordial de desenvolvimento durante um período mais seco do ano, o que leva a espigas com tamanho e volume menores. 

Por isso, a segunda safra está com um calendário mais estreito. “Alguns produtores decidiram  por não plantar milho com medo de sair dessa janela, isso resultou em uma diminuição de 3% na área do cereal”, diz Daniel Rosa, assessor técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). 

Se as chuvas continuarem, a disponibilidade hídrica para o desenvolvimento do cereal aumenta, mas, o problema é que tende a parar de chover, já que entramos nos meses mais secos do ano. 

Em 2023, a produção de milho do Estado de São Paulo ficará próximo das 4 milhões de toneladas, uma diminuição de 8%, frente às 4,3 milhões de toneladas do ano anterior.

Produção de soja neste ano 

Por outro lado, as chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa  produção de soja no início do ano, pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho. 

Ela é plantada em setembro e colhida em fevereiro, por isso, recebeu muitas chuvas durante o estágio final de seu desenvolvimento, as quais favoreceram a lavoura do grão.

Além do atraso na colheita, elas trouxeram apenas dois contras: a maior porcentagem de grãos ardidos (aqueles que entraram em fermentação após receberem muita chuva) e o aumento na incidência de mofo branco e ferrugem asiática, já que elas encontraram condições ideais de proliferação, explica Candice Romero Santos, superintendente de Informações da Agropecuária da Conab. 

Esses fatores não causaram impacto significativo, ao contrário do algodão, por exemplo, da qual 600 hectares de terra precisaram ser replantados em razão dos fungos.

Com a boa lavoura de soja, espera-se um cenário positivo para o mercado doméstico e para a exportação, com valores reduzidos e quantidade ampliada. No entanto, a alta no volume de produção pressiona a logística, afetando os preços e a capacidade de transporte. 

Os embarques dos cinco principais complexos exportados pelo país (soja, carnes, cereais, produtos florestais e sucroalcooleiro), saídos de São Paulo, em termos de volume, diminuíram 25% em fevereiro de 2023, comparado com o mesmo mês de 2022. Em relação aos últimos cinco anos, a redução é de 12%.

Santos ressalta que esse recuo nas exportações tem relação com outras variáveis que não apenas as chuvas. Para o complexo soja e o complexo sucroalcooleiro, por exemplo, é importante pontuar que houve redução na produção.

Quando colocado na balança, segundo Schicchi, uma safra ruim de milho é mais sentida pelo bolso do consumidor final do que a soja, pois ele é utilizado na fabricação de ração para frango e porcos.

Com isso, o custo de produção dos pecuaristas aumenta, tendo consequência no preço da carne desses animais nos mercados e açougues. 

Alta das chuvas e previsão para o restante do ano 

Segundo Cleverson Freitas, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), as chuvas ficaram acima da média em grande parte de SP, atingindo até 1194 mm de volume em algumas regiões.

Elas foram causadas principalmente pelos sistemas meteorológicos que já atuam sobre o estado durante esse período, o transporte de umidade vindo da Região Amazônica, sistemas de baixa pressão, e frentes frias que atingiram o estado.

Vale lembrar que todas as regiões do país foram afetadas de alguma forma, já que os volumes de chuva foram maiores que 500 mm em áreas do norte da Região Sul, grande parte das regiões Centro-Oeste e Norte, além do centro-sul da Região Sudeste.

Porém, a previsão para junho - justamente o final do desenvolvimento dessa leva de milho -, indica o oposto desse começo de 2023. O INMET prevê volumes de chuva abaixo da média para os próximos três meses em grande parte da Região Sudeste, principalmente em São Paulo.

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Economia e Negócios

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Bairros nasceram de ocupações irregulares no entorno do rio Tietê e são atingidos por deslizamentos e enchentes pela falta de políticas públicas ao longo dos anos
por
Gabriela Costa, Isabela Lago e Julio Cesar Ferreira
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11/05/2023

Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas
Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas (1. Reprodução/TV Globo; 2. DiCampana Foto Coletivo) 

“Eu perdi uma consulta médica porque não consegui atravessar os dois metros de altura da água na avenida Deputado Cantídio Sampaio”, conta Quintino José Viana, um ambientalista de 78 anos. Residente do bairro Jardim Damasceno, Brasilândia, ele é presidente do “Movimento Ousadia Popular”, organização que busca preservar a área verde do bairro, e recebe com frequência reclamações de moradores que ficam presos dentro de casa sem conseguir sair quando a chuva causa enchentes na região.

Bairros localizados nos extremos da cidade sofrem situações como a descrita em períodos de chuva intensa pela falta de políticas públicas e planejamento da área que não abrange, por exemplo, obras que permitam o escoamento das águas ou sua contenção por meio da polderização, técnicas usadas para mitigar o estrago das chuvas. 

O Jardim Damasceno e os demais bairros do distrito da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, historicamente enfrentam alagamentos e deslizamentos devido a sua localização nas margens da Serra da Cantareira. Outra área que enfrenta situações semelhantes durante estações chuvosas é o bairro Jardim Pantanal, várzea do rio Tietê. A região lida com enchentes anuais desde os anos 80. 

Os “extremos” são os mais afetados 

Jardim Pantanal, bairro no extremo leste com forte presença do rio Tietê, e bairros próximos da Serra da Cantareira como Jardim Damasceno e Jardim Paraná, na Brasilândia, extremo norte de São Paulo, são afetados pela chuva em épocas específicas, como os meses entre outubro e março.

O Jardim Pantanal sempre sofreu com as enchentes. Em 2009, a área ficou alagada por três meses depois que uma tempestade elevou o nível do rio. Por ser uma área plana, Joyce Ferreira, 40,  arquiteta e urbanista que fez parte da equipe do Plano de Bairro do Jardim Pantanal, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), em parceria com o Instituto Alana, conta que a relação com a água no local é inerente a sua existência por ser construído às margens do Tietê.

“Você pode ter lugares que são muito declives ou aclives, que poderiam ser considerados de risco, mas que são bem urbanizados [por estarem em áreas centrais e que sofrem com a especulação imobiliária] e por isso a área suporta melhor algum evento climático”, descreve.

Em bairros como Perdizes e Pinheiros, que são repletos de morro e área de várzea, respectivamente, o mesmo fenômeno pode ser observado, no entanto, devido aos processos de inclusão urbana e atenção do Estado por não serem locais periféricos, não passam por esses desastres.

O Jardim Damasceno, na Brasilândia, embora não tenha um Plano de Bairro, também foi ocupado por comunidades autoconstruídas em áreas de risco e próximas a córregos, como os do Bananal e Canivete. Porém, diferentemente do Pantanal, com construção plana, Damasceno é um grande morro, que tem também proximidades com a Serra da Cantareira. Nesse sentido, não só enchentes atingem o local, como também o risco de deslizamentos.

A favela da Tribo, ao lado do bairro, é um caso crítico de ocupação, por estar em um terreno irregular e íngreme às margens da Cantareira. A comunidade, além das enchentes, lida com queda de árvores e deslizamentos de barrancos devido ao tempo chuvoso, configurando o local como uma área de risco.

A região não recebe apoio de autoridades no caso de enchentes por não ser regularizada. “A Defesa Civil disse que não podia fazer nada”, conta Quintino. O morador também descreve a exposição da comunidade a mananciais que são escoamento de esgoto, o que representa um crime ambiental. 

O abandono urbano tem cor

Não só o recorte econômico, como também o racial, explicam como até a atualidade as periferias enfrentam problemas de infraestrutura causadas pela falta de políticas públicas. Estela Macedo Alves, 45, arquiteta e urbanista pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o conceito de “racismo ambiental" pode ser aplicado nesse âmbito, pois as vítimas desses desastres são majoritariamente negras. 

Como 78% da população pobre de baixa renda é negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2016, negligenciar as demandas das áreas de moradia dessas pessoas é deixá-las vulneráveis a desastres ambientais. Conforme o Mapa da Desigualdade (2022), o distrito da Brasilândia é formado por 50,6% de pessoas negras. Já o distrito do Jardim Helena, que abriga o bairro do Jardim Pantanal, tem 54,7% de moradores negros. Em comparação, 37% dos habitantes da cidade de São Paulo são negros.

Historicamente, quando as áreas centrais viviam o processo de modernização, as periferias não eram incluídas. Também como parte do processo de higienização, era preciso retirar do caminho pessoas pobres, como os ex-escravizados. A migração nordestina também ajudou a consolidar a desigualdade, já que essa população não tinha acesso ao território urbanizado graças à especulação imobiliária.

São Paulo se ergueu com inspiração nas metrópoles europeias, nas quais os recursos hídricos eram deteriorados e vistos como obstáculos ao crescimento, como explica Estela. Como a capital paulista precisava parecer uma cidade com infraestrutura, era necessário esconder a grande quantidade de cursos d'água por meio da canalização ou retificação.

A cidade, como foi construída em cima de bacias hidrográficas na tentativa de suprimir os rumos das águas, causa diversos problemas para a dinâmica da metrópole até hoje, sobretudo em áreas à margem. 

“A construção da cidade era feita por engenheiros, sobretudo os sanitaristas, e uma das questões mais importantes era se livrar de tudo que parecia não civilizado”, afirma.

Para entender como a Prefeitura de São Paulo se posiciona em relação ao acesso pleno a políticas públicas e de urbanização dessa população, o Contraponto Digital entrou em contato com a Coordenadoria de Planejamento Urbano (Planurb) por meio do telefone e e-mail, mas não obteve resposta até o momento da publicação.

Moradores agem autonomamente com a ausência do Estado 

Pela falta de execução de políticas públicas nesses locais, a própria população se vê obrigada a organizar estratégias para minimizar os danos das tragédias. Guilherme Simões, secretário de Periferias do Ministério das Cidades, explica que esses agentes coletivos estão construindo uma “economia de sobrevivência”.

De acordo com o líder da pasta, todas essas movimentações de distribuição de alimentos, mutirões de doações, entre outras ações que ocorrem em momentos de crise, são características das comunidades periféricas. Um exemplo dessas representações são as próprias associações de moradores.

Reginaldo dos Santos, 54, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal (Amojap), conta que, em momentos de enchentes, as famílias desabrigadas são movidas pelos próprios moradores para uma quadra grande do bairro. “Conseguimos trazer alimento, cobertores, insumos e até ajuda médica”, explica. Esses mutirões contemplam cerca de 300 pessoas para almoçar e jantar, além de abrigarem mais de 40 famílias para dormir na quadra.

O coordenador de gestão da Associação dos Moradores do Alto da Vila Brasilândia (AMAVB), Cláudio Kafé, 50, resume o papel de atuação dessas organizações: “Nós não temos como prevenir esses desastres: tudo que podemos fazer é esperar acontecer e depois reconstruir.”

"O Estado sabe quais são os pontos mais vulneráveis, sabe quais as famílias em área de risco, mas, infelizmente, não toma as medidas necessárias”, explica o líder comunitário.

O secretário de Periferias afirma que esse conhecimento dos moradores das regiões deve ser utilizado no momento de elaboração de políticas públicas, sendo necessária a criação de um “Plano Diretor Municipal."

A arquiteta Ferreira explica que a elaboração desse documento é geralmente feita por órgãos do governo ao lado de especialistas. “O objetivo é ser uma diretriz de investimentos públicos para melhorias”, resume.

Em outras palavras, o “Plano Diretor” visa reconhecer os problemas desses territórios e interligar possíveis instrumentos para solucioná-los. A urbanista explica que esse plano "é um reflexo dos conflitos do local; por isso, é importante ter a participação de todos, porque é um processo democrático e o choque entre ideias é inerente.”

Da mesma forma, o “Plano de Bairro” precisa ser elaborado com base nas especificidades daquele lugar. Diferentemente do anterior, esse último documento pode ser elaborado por qualquer instituição, até mesmo aquelas de caráter civil.

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O ProUni, programa que dá bolsas integrais e parciais à população de baixa renda do Brasil, dá oportunidade para ascensão social e de classe
por
Henrique Alexandre
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20/04/2023

Quando o Programa Universidade para Todos (PROUNI) foi lançado no longínquo 2004, a expectativa do governo de Luiz Inácio Lula (PT) era de que ele trouxesse mais equilíbrio na quantidade de alunos de classe alta e de classe baixa nas universidades do Brasil. Para além disso, era também uma tentativa de reparar o escanteamento histórico que a população pobre, principalmente a negra, teve no país. Era entendido que com a educação, os pobres, que na época representavam 33,2% % da população da época, teriam a oportunidade de crescer financeiramente e socialmente no Brasil.  

 

No primeiro processo seletivo de bolsas, a quantidade de vagas ofertadas era baixa, um pouco mais de 95 mil. Perto dos 184 milhões de brasileiros que viviam nessa época, a quantidade de bolsa era uma unha perto da desigualdade que existia. Porém, com o sucesso do programa, o número de ofertadas foi aumentando gradativamente com o passar dos anos.  

 

Em 2006, foram 109 mil bolsas. Em 2010, quando o programa completou 5 anos de implementação, foram 152 mil. Em 2019, ano pré-pandêmico, a quantidade de bolsas saltou para quase 250 mil. Enquanto isso, milhões de estudantes de classe baixa foram se formando e ascendendo socialmente por conta dessa política de estado. Ou seja, a expectativa de 2004 virou realidade. 

 

Um dos exemplos mais notórios dessa mudança de vida que o estudo permitiu foi da atual comentarista da TV Globo, Ana Thais Matos. Filha de empregada doméstica, Ana Thais conta que vivia em uma situação que não era alarmante, mas era de insegurança financeira. "Minha família tem uma origem humilde, bem pobre mesmo. Minha mãe Francisca era empregada doméstica, vendia bandeiras de times no estádio do Pacaembu e cuidava de mim e dos meus cinco irmãos." 

 

Atualmente, ela é uma das principais comentaristas da maior emissora de televisão da América Latina. Em 2022, fez história: foi a primeira mulher a comentar os jogos do Brasil em uma Copa do Mundo Masculina de Futebol. Ao lado de Galvão Bueno e o ex-lateral Junior, ela acompanhou de perto a campanha do Brasil no Qatar. Ana Thais fala que se não fossem os estudos, não conseguiria chegar lá.  

 

"Eu devo tudo a minha força de vontade, claro, mas também a oportunidade que me foi aberta há 16 anos, em 2007. Se eu não tivesse entrada na faculdade, possivelmente não teria isso conquistado tudo isso na minha vida." 

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A prounista mais famosa do Brasil desfila o seu conhecimento na TV Globo - (Foto: Reprodução/Sportv)

Ela lembra que quando passou na universidade, quase caiu da cadeira, pois não estava esperando a aprovação na PUC-SP. "Também tinha feito inscrição no Prouni, porque estudei a minha vida toda em colégio público. Eu estava na praia, em Itanhaém, triste, porque todas as minhas amigas já tinham passado na faculdade. Eu fiquei para trás... Até entrei numa lan house para mandar um e-mail para o meu irmão, perguntando se eu poderia morar com ele em Florianópolis para recomeçar minha vida. Quando abri, tinha uma mensagem da PUC (Pontifícia Universidade Católica) me avisando que eu tinha sido aprovada para uma bolsa através do Prouni para jornalismo. Eu quase caí da cadeira", lembra a comentarista com emoção. 

 

Hoje, surfando na onda do sucesso, a comentarista manda um recado claro para as próximas gerações: "não deixem de estudar. Você que é de classe mais baixa, não pense que é incapaz, têm várias formas de entrar na universidade. Tem o ProUni, tem o FIES, enfim. Se eu consegui, você também pode.", finaliza Ana Thais. 

 

LICENÇA POÉTICA - AO ALTO E AVANTE

 

Agora saio da terceira pessoa, do distanciamento jornalístico e me incluo nessa história. Sei que não é praxe das redações de jornais o redator colocar o seu ponto de vista em uma matéria informativa. Porém, é um assunto que mexe tanto com o meu coração e meu ímpeto que peço desculpas aos deuses do jornalismo e solicito, unilateralmente, essa licença poética para rasgar as tradições da profissão. 

 

Digo para você, caro leitor, que as próximas gerações de prounistas têm em quem se inspirar. Não necessariamente precisa ser pessoas que estão na mídia, no vídeo, em rede nacional. Pode ser gente do nosso cotidiano. O vizinho, o colega de empresa, o primo de um grande amigo. Felizmente programas de ascensão social colou no Brasil, embora exista críticas daqueles que lutam para manter o sistema opressor de pobres desse país. Há vitória nesse programa que vai completar 20 anos em 2024. Temos 'Michelles', 'Luans', 'Dayres', 'Geyzas' e entre outros prounistas por aí tentando vencer na vida. E eu me incluo nessa. 

 

Assim como a Ana Thais Matos, sou prounista de jornalismo na PUC-SP. Como ela, trabalho na TV Globo. E posso dizer aos quatro ventos que assim como a comentarista e milhões de brasileiros que entraram na faculdade pelo ProUni, tive minha vida transformada pelo estudo e ascendi socialmente. Sai da favela do sapé, na zona oeste de São Paulo, em uma casa que ficava do lado de um ponto de tráfico para estudar em uma das maiores universidades do país. Não quero que pare em mim e assim como a Ana Thais Matos falou na nossa entrevista: "vamos lutar pra ter mais".  

 

Deuses do Jornalismo: fim da licença poética. 

 

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Brasil afora, milhares de entregadores de aplicativo ganham e perdem a vida nas ruas.
por
Texto: Guilherme Silvério Tirelli | Audiovisual: Maria Eduarda de Souza Magalhães
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20/04/2023

Texto: Guilherme Tirelli 

Audiovisual: Maria Eduarda Magalhães

Faça chuva ou faça sol, à noite, no meio de tempestades ou ainda que caia neve, eles são figuras constantes nas ruas. No ritmo acelerado da metrópole ou na selvageria do interior, muitas vezes às margens da sociedade, sem qualquer tipo de reconhecimento, encontram-se os entregadores de aplicativo. Quase que imperceptíveis aos olhos do “cidadão”, são notados apenas quando buzinam, esbarram ou passam a centímetros do seu retrovisor. Suscetíveis aos perigos da vida urbana, o trânsito é o que menos aflige o cotidiano desses trabalhadores. Entre os carros e caminhões, atravessam semáforos triscando as latarias dos automóveis para entregar seu pedido no menor tempo possível. E fazem isso por pelo menos dois motivos em especial.

O primeiro deles diz respeito a satisfação do cliente, levando em consideração que ninguém gosta de esperar mais tempo do que o previsto para sua comida chegar – o que pode representar um feedback negativo para a empresa e empregados. O segundo e mais cruel deles é o salário, que na imensa maioria dos casos, é proporcional ao número de entregas realizadas no dia, semana ou mês. Logo, quanto mais rápido chegarem, mais pedidos serão encaminhados à eles e, consequentemente, aumentando o ganha-pão cotidiano.

Por trás dos capacetes, esse triste cenário revela uma realidade um tanto quanto desafiadora: colocar comida na mesa é muito mais difícil para quem tem que trabalhar com ela, literalmente, amarrada em suas costas. Para piorar essa situação, nas pizzarias, bares e restaurantes, os entregadores precisam embalar o pedido que acabou de sair do forno, “quentinho” e temperado. No pensamento, a imagem da sua casa, dos filhos e da esposa abatidos por conta da fome. Para garantir melhores condições para sua família, são esses os percalços aos quais eles se submetem. Trabalhar com a barriga vazia, entregando uma refeição que não é sua. Não existe nada mais cruel do que isso.

De acordo com dados divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Penssan, no 2º Inquérito Nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número de brasileiros que sofrem com algum nível de insegurança alimentar ultrapassou os 125,2 milhões. O levantamento revela que, por falta de opção, inúmeras pessoas se submetem a trabalhos sem carteira assinada, temporários ou como freelancers. A questão central aqui é que nenhum deles oferece condições trabalhistas mínimas. Logo, eles não possuem direitos, muito menos garantias quanto à segurança. Trata-se de uma parcela da população que sai de casa em busca da sobrevivência.

Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas
Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas - Fonte: Getty Images

O efeito da pandemia

No primeiro semestre de 2020, o Coronavírus se alastrou como foguete e ninguém àquela altura era capaz de prever os próximos capítulos da pandemia. Muito se ouviu sobre os trabalhadores essenciais e como eles não poderiam, em hipótese nenhuma, parar, já que o restante da população dependia diretamente dos seus serviços. Apontados e glorificados pelo senso comum como heróis, os profissionais das áreas da saúde, segurança e alimentação formavam a linha de frente no combate as consequências desse cenário pandêmico. Nesse contexto, os entregadores de aplicativo tiveram uma presença ininterrupta nas avenidas e ruas, embora fossem escassamente reconhecidos.

Em geral, a invisibilidade é rotina para a maioria desses trabalhadores. Os aplicativos de delivery, inegavelmente, dominaram o mercado de uma forma jamais vista. É compreensível, uma vez que, frequentar os estabelecimentos era inviável, logo a comida precisaria bater na porta dos clientes. Os grandes nomes por trás desse fenômeno são de conhecimento geral. iFood, Rappi e outros apps similares já eram figuras carimbadas no gosto do consumidor. As cores vibrantes e os símbolos engenhosos, infelizmente mascaram aquilo que não vemos. Nas notas fiscais o valor da entrega é creditado, contudo, é impossível aferir o preço da falta de segurança ou das noites mal dormidas. A hora-extra não paga a falta de condições mínimas de trabalho ou as dúvidas que pairam na cabeça desses motoqueiros.

Uma dessas dúvidas é se eles voltarão sãos e salvos para suas casas. O crescente número de motociclistas nas ruas afeta diretamente a quantidade de acidentes registrados. Antes do “boom” dos aplicativos, entre 2015 e 2016, as ocorrências com motos representavam 20% dos atendimentos no Hospital das Clínicas. Atualmente esse índice supera os 80%, de acordo com depoimento de Julia Maria D’Andréa Greve, coordenadora técnica do Laboratório de Estudos do Movimento da instituição. O relatório final da “CPI dos aplicativos”, ainda aponta que 60% a 70% das internações em estado mais grave no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do hospital envolvem motocicletas.

São esses desafios que Samuel Jonatas e outros tantos entregadores enfrentam diariamente.

 

Já segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem 1,5 milhão de pessoas que atuam como motoristas e entregadores de aplicativos, taxistas, moto-taxistas ou outras atividades feitas de maneira autônoma no setor de transporte. O mesmo levantamento apresenta que, quando se trata de moto-taxistas, mais de 73% são homens pretos e pardos. Em contrapartida, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos - Abia, os empresários do ramo de entregas de alimentos atingiram R$ 35 bilhões de lucro em 2021.

A dor que ninguém vê

Como dito anteriormente, chegar em casa na madrugada cansado, muitas vezes faminto e ter que levantar cedo novamente no dia seguinte, sem qualquer garantia oferecida pelas empresas corresponde a um cenário desumano. Nem o mínimo no que diz respeito aos vínculos empregatícios é concedido à eles. No caso de Renato, um entregador que ganhou certa notoriedade no ano passado, para economizar o transporte diário, que girava em torno de R$ 25, muitas vezes ele dormia nas ruas do Rio de Janeiro, caso contrário, a missão de sustentar sua família ficaria ainda mais difícil.

O caso de Rafael Vaz de Lima ainda é mais chocante. Retornando de sua última entrega, teve um “apagão” – provavelmente causado por estresse, conforme a palavra dos médicos. O entregador perdeu o movimento das pernas e braços, causado pelo impacto da mochila com o seu corpo.

Histórias como essas são parte do cotidiano desses entregadores, assim como a luta por direitos básicos. Por isso, figuras como Paulo Galo, conhecido como "galo de luta", surgem para denunciar a exploração da mão de obra. Galo ganhou destaque em 2020, ao liderar o movimento "Entregadores Antifascistas" que desde o início da pandemia, têm como objetivo central, melhorar a situação dos trabalhadores do ramo.

Apesar da Lei Federal nº12009 regulamentar a profissão dos motoboys e padronizar o moto-frete e moto-táxi em todo Brasil, a medida tem mais de 10 anos e desde a assinatura do Governo Federal, pouco se avançou na questão. A falta de fiscalização e incentivos para os motociclistas se adequarem à legislação é mais um empecilho que contribui para que a situação permaneça estagnada.

Em detrimento da precariedade trazida pela falta de regulamentação, no mês passado, o presidente Lula criticou duramente as empresas de aplicativos e afirmou que elas "exploram os trabalhadores como jamais foram explorados", em discurso para a Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas. Além disso, alertou que é preciso retomar o diálogo do governo com o movimento sindical para formalizar um novo pacto entre os trabalhadores e as empresas. Ainda assim, esse corresponde a um pequeno passo em busca daquilo que já deveria ser direito de todos eles há muito tempo.

O dia que não terminou

Um dia inteiro têm 1.440 minutos, 86.400 segundos e na manhã seguinte daquele sábado, cada um deles fizeram a diferença. Tudo o que eu queria era que aquilo nunca tivesse acontecido. Desde a infância jogara futebol com a energia de uma criança e o coração de um garoto e nem mesmo todo cansaço, nos meus piores dias em campo, me fizeram sentir algo parecido.

Nesse dia em questão me desafiei na função de entregador. Entretanto, não tinha o relógio contra mim, nem um chefe que me demitiria caso cometesse algum deslize. No interior da minha cidade, minha rotina de entregas iniciou-se na parte da tarde, sob a tutela de um amigo que possui uma livraria. Consigo carregar os livros na minha mente e as palavras no meu imaginário. Tatuadas na minha alma, as letras não fizeram a diferença.

Nunca pensei que, nos ombros, um livro poderia pesar tanto. Ainda assim, carrega-los nas costas pedalando pareceu-me uma ideia intrigante – por isso topei logo de cara e se arrependimento matasse, já não estaria mais sob essa Terra. Quando cheguei em casa, só lembro do alívio de me atirar no sofá e “apagar”. Porém, a dor descomunal nas pernas não me deixou pegar no sono. Parecia que acabara de correr uma maratona. Aquele sentimento de cansaço como jamais presenciei antes. De repente, o alívio me levou a uma reflexão: Como seria se eu tivesse que fazer isso todo santo dia?

Nos dias subsequentes a esse, só de lembrar da experiência já sentia um calafrio, que gelava a minha espinha dorsal, numa espécie de paralisia. E então tive a certeza de que é preciso além de sangue-frio, uma coragem do tamanho do mundo para arriscar a própria vida nas ruas. Os entregadores não entregam só comida. Nas minhas horas de “expediente”, sempre tive a certeza de que voltaria pra casa e lá teria um jantar pronto esperando por mim – privilégio esse que a maioria desses trabalhadores não têm. Por trás do “bom-dia”, eles mascaram a realidade que nem todos enxergam: um cenário de muita luta e dedicação de quem exerce seu ofício priorizando o outro.

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