A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
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Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
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Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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No período em que a fome voltou a crescer no Brasil, grupos políticos vinculados a movimentos de extrema direita negam a sua existência
por
Gabriel Lourenço Schiavoni, Lucca Andreolli Fresqui
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30/06/2023

Grupos políticos ligados à extrema direita têm rejeitado a existência da fome no Brasil, alegando que o problema já está erradicado. Pesquisadores alertam para a gravidade da situação apontando para interesses políticos e econômicos por trás disso.

A disseminação de teorias conspiratórias nas redes sociais vem potencializando e trazendo visibilidade a essas mentiras, alimentando discursos de extremistas e dificultando a luta contra a fome no país.

Em grupos de extrema direita no Telegram, usuários dizem que a fome no país é “uma falácia da esquerda”. Um usuário descreve a fome no país como “um projeto de uma esquerda internacional. 

Confrontados com evidências da existência da fome no país, a atitude de usuários desses grupos é de desdém. “O gás aumentou? A fome voltou no nordeste? Faz o L.” dispara um usuário.

Nesses grupos, a existência da fome é justificada por “pessoas preguiçosas” que não querem trabalhar e desejam “ganhar tudo de mão beijada pelo Estado”.

Contradizendo essas declarações, dados coletados pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) demonstram que entre 2020 e 2022, a quantidade de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave passou de 19 milhões para 33,1 milhões, reinserindo o país para no mapa da fome da Organização das Nações Unidas.

Ao decorrer dos quatro anos do governo Bolsonaro, ocorreram diversas vezes posturas com viés de negação e minimização da fome.

Em agosto de 2019, Bolsonaro declarou em um de seus cafés da manhã com jornalistas que “é mentira essa história que o Brasil passa fome”.

O ex-presidente também disse em agosto de 2021 em uma de suas transmissões ao vivo nas redes sociais que “não existe mais desnutrição no Brasil” e que “não se vê mais gente magra como antigamente”.

Paulo Guedes, ex-ministro da economia, durante um evento da Fenabreve (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores) no dia 21 de setembro de 2022, novamente afirmou que “33 milhões de pessoas passando fome é mentira”.

Em março de 2021, Guedes também chegou a declarar em uma reunião com ministros que a fome no Brasil era “conversa fiada” e que “que não se vê gente, mesmo que pobre, com aparência de subalimentado”.

Deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro afirmou em uma entrevista que “não existe fome no Brasil porque falta gente pra morrer”.

Também deputada federal, Carla Zambeli afirmou em entrevista em maio de 2021 que a fome era uma narrativa inventada pela esquerda. 

Um ano antes, Olavo de Carvalho, mentor político da extrema direita, publicou em suas redes sociais que a fome era uma propaganda da esquerda para angariar votos e “manter as pessoas na dependência do Estado”.

O governo de Bolsonaro e seus aliados não se limitou apenas em declarações que rejeitavam a existência da fome, mas também praticou medidas de sucateamento das políticas que buscavam combatê-la.

Logo ao assumir a presidência do país, em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro extinguiu o Consea, sendo reativado em março de 2023 durante o governo Lula.

O ex-presidente também foi responsável por cortes de orçamento relacionados a áreas como agricultura familiar e distribuição de alimentos.

Essas políticas utilizadas pelo governo Bolsonaro, entretanto, possuem suas origens em práticas com antecedentes históricos, datadas diretamente do período da ditadura militar.

Negação da fome na ditadura militar

Durante o final da década de 1970 e começo dos anos 80, o sertão nordestino passou por sua pior seca de todo o século XX. No auge da crise, 10 milhões de nordestinos já haviam sido impactados pelos efeitos da seca.

Entretanto, o regime ditatorial proibia que a imprensa divulgasse quaisquer matérias que expusessem os efeitos da fome no país, até mesmo proibindo que a palavra fosse utilizada nas redações. 

Essas políticas de negação da fome, tanto na ditadura militar, quanto no governo Bolsonaro, buscam passar uma aparência de estabilidade econômica no país, rotulando quem passa fome de “preguiçoso” ou “incapaz”.

Eduardo Silva, professor de sociologia formado pela Unicamp, defende que os movimentos de invisibilização da existência da fome no país, estão relacionados a projetos que têm o objetivo de desacreditar demais questões além da fome. “A negação da fome é acima de tudo uma negação dos direitos humanos” afirma Silva.

De acordo com a pesquisadora do IBGE Thaís Oliveira, a negação da fome chancela um modelo político, econômico e ideológico. “Assumir sua existência é assumir que algo neste modelo precisa ser revisto”, isso, de acordo com ela, mexe com toda a dinâmica que é confortável para diversos núcleos de poder. 

A respeito dos interesses políticos e econômicos, Thaís afirmou que negar a fome e torná-la seu cargo chefe é “historicamente usado como capital político” (um ponto sensível, considerando que o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo). A pesquisadora aponta para o quase absurdo que é pensar que um país produtor de alimentos tão relevante no cenário mundial, tenha mais de 33 milhões de pessoas com insegurança alimentar, de moderada a grave.

Olhando para a imagem do país internacionalmente, isso pode significar menos contratos e negócios com importantes parceiros econômicos para o país e seus empresários.

A divulgação dessas ideias, entretanto, por meio da internet e redes sociais, consegue atingir cada vez mais pessoas, usando o ambiente online como uma ferramenta de divulgação de massa dessas políticas.

Buscando explicar o motivo da internet ser um ambiente tão fértil para a disseminação de mentiras e teorias da conspiração, Silvio Mieli, professor na Pontifícia Universidade Católica, cita o livro Terra Arrasada de Jonathan Crary. “As redes sociais possuem uma resistência profunda a responsabilidades comunitárias” disserta Mieli.

Ainda segundo Mieli, o individualismo fomentado pelas redes sociais permite que cada um crie e divulgue as suas próprias verdades, abrindo margem para o surgimento de versões de “quinta categoria”.

A contenção da desinformação

A alternativa proposta por Silvio para a contenção da divulgação de projetos destrutivos na internet, passa por uma politização das redes, uma regulamentação que instaure freios e contramedidas para a expansão de discursos negacionistas.

Seguindo na mesma linha, Thaís argumenta que pela mídia informativa ser um espaço importante de poder, debate e mediações de conflito, é uma ferramenta valiosa para dar visibilidade àquilo que não agrada ver ou ouvir, mas é fundamental que a sociedade civil, governo e políticos saibam, para que sejam aplicadas corretamente políticas públicas voltadas para o tema. Até para que a própria sociedade civil pressione seus representantes a se organizar para solucionar o problema.

Para isso, a imprensa deve estar sempre atenta, corajosa e disposta, para trazer esse assunto para a pauta, independentemente de quem de qual grupo esteja ocupando os espaços de poder. Para tal, a imprensa deve ser livre, isenta e respeitada.

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Os impactos da fome no organismo de quem deveria ser o amanhã do Brasil
por
Isabela Gama
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30/06/2023

A fome infantil atinge quase 6 milhões de crianças no país, 22% das famílias são  chefiadas por mulheres negras e 8% por homens brancos, os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, escancarando a desigualdade social e racial no país. Os dados têm assustado especialistas, que apontam a subnutrição infantil como um risco para o desenvolvimento cerebral dos pequenos, criando carências nutricionais devido à mudança no metabolismo e o tamanho dos órgãos, o que afetará sua qualidade de vida quando se tornarem adultos, comprometendo todo o futuro de milhares de  trabalhadores do Brasil. 

A Sociedade Brasileira de Pediatria, detalha que a alimentação balanceada de uma criança precisa ser rica em vitaminas e nutrientes como ferro,cálcio,vitamina A,D,B12 e zinco,  principalmente durante os primeiros dois anos de vida, fase determinante para o desenvolvimento cognitivo e corporal.  

A pediatra, Izilda das Eiras Tâmega, professora do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Sorocaba e especialista em Neonatologia e Nutrologia, explica que a desnutrição infantil afeta duas principais áreas na vida de uma criança, seu crescimento e desenvolvimento. O crescimento diz respeito ao peso e estatura das crianças, enquanto o desenvolvimento está relacionado ao amadurecimento cognitivo. 

“Os primeiros dois anos de vida são fundamentais, é durante esse período que  temos o crescimento cerebral, que não é um crescimento só do tamanho do cérebro mas também da qualidade funcional dele. Durante esse tempo pode haver danos irreversíveis na vida dessas crianças quando elas se tornarem adultas”, afirma a pediatra.   

Após os dois anos de vida, os impactos estão mais relacionados ao crescimento corporal  dessas crianças, que podem crescer menos do que o ideal para a sua idade .   

Tâmega explica também que os efeitos na vida adulta de uma criança desnutrida variam justamente em relação à idade em que elas passaram pela privação de alimentos e ao tipo de investimento feito posteriormente para reverter o quadro desnutrição.   

“Você não pode chegar para uma criança e falar ‘ Essa foi desnutrida, grave, não tem que investir porque não tem mais o que fazer’  Tem, tem sim. Você tem que investir o máximo pela recuperação dela”, reitera a pediatra  

Algumas crianças podem inclusive ficar sem nenhuma sequela de crescimento ou desenvolvimento, mesmo tendo passado por um grave quadro de insegurança alimentar, mas isso não é possível prever ou mapear, sendo somente constatado ao longo da vida.    

O professor de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Wolney Lisboa Conde, explica que além do impacto físico como atraso no crescimento, a desnutrição também ocasiona fraqueza muscular e baixa imunidade. O nutricionista esclarece quais são os efeitos mais comuns da fome no cérebro infantil. 

“O cérebro é vulnerável à fome. Quando uma criança não recebe calorias suficientes, o corpo começa a consumir suas reservas de gordura e calorias armazenadas, deixando o órgão com uma quantidade insuficiente de energia para que ele funcione de maneira adequada”, esclarece o especialista.  

Questões comportamentais como irritabilidade, agitação e dificuldade na concentração, o que é extremamente prejudicial para o desempenho escolar dessas crianças, também são alguns dos impactos causados pela subnutrição.  

“O mau funcionamento do cérebro pode ocasionar atrasos na fala e na aprendizagem desses jovens. Além disso, na idade adulta, essa baixa qualidade da saúde infantil está associada a risco elevado de obesidade, dislipidemias, hipertensão e outras e doenças crônicas não transmissíveis além, evidentemente, da menor qualidade de vida adulta”, expõe Lisboa 

O prejuízo da atividade escolar desses jovens, impactam diretamente sua vida adulta. A má formação acadêmica gera oportunidades profissionais limitadas, o que predestina esses futuros adultos a  trabalharem em subempregos e em condições degradantes, aprofundando ainda mais a desigualdade social.  

Segundo um levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) entre 2020 e 2021, o  número  de crianças e adolescentes com privação no acesso à alimentação teve um crescimento de 9,6%. Diante deste cenário, entidades do terceiro setor contribuem, mesmo que de forma pontual, para a garantia de refeições a estes jovens e suas famílias.   

A Pastoral da Criança, organização vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) atua em prol de comunidades carentes,auxiliando famílias e crianças. A Coordenadora da Pastoral da Criança da Zona Norte, Nanci Maria da Silva de Oliveira, explica que doações de cestas básicas, checagem da carteira de vacinação dos pequenos, acompanhamento de gestantes e o acompanhamento de altura e peso de crianças entre 0 e 6 anos são feitos são feitos por voluntários da pastoral. 

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O autor do livro “República das Milícias” participou de entrevista coletiva com alunos de Jornalismo da PUC-SP
por
Laura Naito e Rafaela Dionello
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30/06/2023

"O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo".

A análise é do jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e vencedor do prêmio Jabuti, Bruno Paes Manso. O autor de "República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" e "A Guerra: A ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil" voltou ao seu lugar de formação para participar de uma entrevista coletiva ao Contraponto Digital da PUC-SP. 

O jornalista respondeu perguntas variadas desde como foi o processo de escrever o livro: métodos jornalísticos que usou, quais estratégias de checagem de fatos e até mesmo decidir o que entraria ou não nas 304 páginas. Ele contou sobre a forma como "República das Milícias" se tornou um sucesso que até virou podcast e sobre suas experiências enquanto produzia a obra.

As páginas do livro narram a história do nascimento das milícias no Brasil desde o começo: dos esquadrões da morte formados nos anos 1960; da ditadura militar; do domínio do tráfico nas décadas de 1980 e 1990; das máfias de caça-níquel e da ascensão de milicianos e seus negócios.

Surgida numa pequena comunidade rural na Zona Oeste do Rio, as milícias foram ganhando poder político e econômico a partir dos anos 1990, auge da violência e do poder do tráfico, em conflito com a polícia e entre diferentes facções. Bruno responde uma dúvida silenciada por anos pela polícia: viver sob o tráfico ou a milícia?

Passando por um dos mais emblemáticos crimes da história brasileira, o assassinato da vereadora Marielle Franco, e revelando relações com o poder, principalmente com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que se tornou personagem do livro “A república das milícias”. 

Para apurar uma história tão delicada, Bruno entrevista milicianos e ex-milicianos. Ele descreveu no livro, uma entrevista com o personagem chamado de Pescador, em que a entrevista aconteceu em um local cheio de aves para evitar gravações. Ele explicou que para conseguir as respostas que deseja, se coloca no lugar do entrevistado e não se permite julgar a vivência de cada um. 

O autor não deixou de fora da coletiva novas informações sobre seu novo livro. "Fé e fuzil" será lançado no segundo semestre deste ano, e vai tratar das Igrejas evangélicas e dos crimes que justificados pela fé. 

Confira os destaques da entrevista:

Contraponto Digital: A milícia brasileira é uma das mais organizadas do mundo, como o colonialismo influenciou na expansão e instalação desses grupos?

Bruno: Todas as questões que eu escrevo, se for parar para pensar na violência, estão muito ligadas ao processo de urbanização do Brasil, uma história que a gente está escrevendo até hoje. Estamos falando de um país onde 70% era rural e a maioria das pessoas morava no campo, historias de escravidão, letifundios, coroneis e ao mesmo tempo trabalhando na terra e a sua relação com a igreja, principalmente o catolicismo. Essa cultura de alguma forma funcionava, apesar de ser um país violento essa ordem acabou sendo estabelecida.

Em 1950, os veículos de comunicação em massa criam nas pessoas uma ideia de que aquele mundo estagnado, hierárquico e sem possibilidades na verdade não era real e que essa possibilidade existia sim. A Partir disso uma nova realidade surgiu e as pessoas passaram a migrar para a cidades e o Brasil passa a ser majoritariamente urbano e esses dois mundos passam a coexistir, com muito estranhamento e preconceitos.

As milícias são o auge do bolsonarismo, houve alguma mudança no modus operandi das organizações com o início do governo Lula?

No caso da vitória do Lula, em primeiro lugar eu acho que nós corríamos um certo risco no segundo mandato do Bolsonaro de todos os avanços no sentido de um governo autoritário e esse conflito e convicção que eles estão em defesa do bem. A gente está passando por uma transição muito grande no mundo em que vivemos. 

O Lula surge como uma possibilidade de voltar a discutir de uma forma mais racional e menos apaixonada de acabar com a guerra, de propor uma pacificação. Só que é muito difícil você propor racionalidade em um mundo que está pegando fogo, então apesar de ele representar isso, ele encontra dificuldade em fazer acordos com os representantes dessas organizações. 

Você pode comentar mais sobre essa conexão de masculinidade x violência e comparar com outros livros que já escreveu? Por exemplo, o livro sobre o PCC.

Você tem essa ideia que faz parte da produção do estado moderno, onde esse estado se forma a partir do momento em que ele consegue exercer o monopólio legítimo da força. Isso significa que só o estado pode usar da violência quando as pessoas desrespeitam a lei. Essa ideia de você ver a violência como uma forma pedagógica faz parte da produção da civilização. 

Ao passar do tempo passa a ser discutido que o poder quando ele precisa usar a violência é porque ele deixa de ter o poder. Se você precisa usar disso o tempo todo para que os outros obedeçam e essa é uma das questões da violência brasileira é que não existe um pacto coletivo sobre esses termos. Existe uma mega injustiça e desigualdade, você não é capaz de produzir esse tipo de liderança e obediência, você usa a violência porque o poder é frágil. 

O bolsonarismo chegou em São Paulo na figura de Tarcísio de Freitas, novo governador do estado. Você acha que o PCC corre o risco de perder o monopólio do crime para as milícias com a chegada dele? Uma vez que o Governador Tarcísio elogiou muito o modelo de segurança do Rio de Janeiro.

A questão com São Paulo, ele foi tomado pelo PCC, é que o estado foi tomado de uma outra forma, existe um outro tipo de gestão, um outro tipo de negócio. O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo. 

Você cria uma nova forma de marra, o traficante passa a fazer parte de ONGS e negócios internacionais formando uma nova cena empresarial, ao estado hoje só cabe permitir que esses estados continuem acontecendo. O PCC virou esse grande governo desse mundo, o modelo de milícia do Rio de Janeiro é outro. 

A mídia, sobretudo os programas policiais, como Brasil Urgente e Cidade Alerta, ajudaram a consolidar o discurso das milícias dentro da sociedade, especialmente nas comunidades? Já que esses programas exaltam a força policial em detrimento de alguém que cometeu um crime?

Eu acho que sim, esses programas acabam acirrando essa ideia de guerra ao crime mas tem uma camada de diferença nas redes sociais, porque apesar dos programas falarem isso o diálogo não deixava de acontecer. O problema nas redes é que elas passam a isolar esses mundos, se transformando em uma grande guerra de ideais. Nos programas as pessoas que dão as caras ao vivo, podem ser responsabilizadas aqui fora. Com o tempo eu acabei me tornado menos crítico sobre isso.

Qual foi o raciocínio feito na realização do livro? Primeiro vieram os dados, pesquisa histórica e entrevistas, ou tudo se misturou? Você pensou em desistir de escrever o livro em algum momento quando a apuração estava difícil? 

A estrutura do livro é algo que eu tenho repetido nos três livros, é algo que acabou virando um modelo meu, eu parto da notícia quente, então a partir desse fato quente, procuro explicar como isso aconteceu, eu volto na história. Meu interesse vem dos discursos e das ideias que passam a se espalhar pelos outros. A construção geralmente inicia com a descrição desse fato quente e em algum momento do livro eu volto para construir o arco narrativo para os leitores.

Toda investigação começa por perguntas que você faz e o que você busca, a investigação começa por perguntas que talvez depois você perceba que as pessoas também não tem resposta. Eu tive muita sorte escrevendo A república das milícias, deu tudo muito certo em encontrar os personagens. Assim que eu entrevistei o Lobo, já sabia que ia ser o personagem que iria abrir o livro e eu faria a ligação ao Bolsonaro, sem precisar forçar a barra para falar sobre. 

Como traçar o limite entre a curiosidade e o necessário para conduzir a entrevista, para conseguir as informações que precisa? 

Eu vejo o jornalismo como terapia, deixo meus entrevistados falarem o que sentirem a vontade e só falo com eles se for apresentado por alguém que eles confiem. O importante é eles sentirem que podem falar comigo, muitas vezes eles querem ter suas histórias contadas.

É fundamental ter suas perguntas muito claras, saber qual seu produto final e o que você precisa. O que vale são as histórias que o entrevistado vai te contar, o que ele se sentir confortável para compartilhar com você.

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A vulnerabilidade alimentar de famílias chefiadas por mulheres é maior no Brasil
por
Laura Naito e Clara Maia
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30/06/2023

“Quando a pandemia veio e fiquei sem trabalhar, entrei em desespero. Não tinha quem me ajudasse, não tinha para onde correr. Era usar o dinheiro do auxílio para não deixar meus filhos passarem fome,”  declara Fabiana Santos, mulher preta e mãe solo de dois filhos. Mulheres em maternidade solitária são mais vulneráveis e têm maiores chances de experimentarem dificuldades financeiras, desemprego ou subemprego, insegurança alimentar e nutricional, falta de moradia ou habitação inadequada, riscos para a saúde e violência. 

Os dados gerais levantados na última pesquisa do IBGE, mostram que dentro dos casos severos de fome no Brasil, a IAN (Insegurança Alimentar e Nutricional) grave, atinge 51,9% das famílias chefiadas por mulheres. A problemática se agrava ainda mais quando se analisa o recorte de mães solo pretas: elas são  as mais afetadas pela insegurança alimentar. Segundo dados levantados pelo Datafolha, a cada cinco lares comandados por esse grupo, um acaba passando por subnutrição. 

Luiza Pires, diretora do Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades (MADE) da FEA-USP, explica que as mulheres, historicamente, foram responsabilizadas com a tarefa de cuidado do lar, "isso acaba sendo uma responsabilidade financeira também, é ela quem vai se preocupar em colocar comida na mesa para os filhos." 

Analisando os dados fornecidos pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar nos anos de 2021 e 2022, conduzidos pela Rede PENSSAN, o país atingiu o número de 33 milhões de brasileiros passando fome. Esse número reflete a desigualdade tanto regional, - concentrada principalmente entre o Norte e Nordeste - quanto a social. Fica claro, portanto, que a fome tem agravante racial no país, já que, pela pesquisa, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas acabam sofrendo com algum tipo de insegurança alimentar. 

O desamparo e medo da maternidade solo no Brasil:

Luciana de Carvalho é mãe solo de uma menina de 8 anos. Ela alega que não conta com nenhuma ajuda do Estado e nem sabe se tem acesso a algum projeto. Carvalho cuida da filha completamente sozinha desde que a mãe faleceu em 2020. Sua ajuda mais próxima está na irmã, que mora a uma hora de distância.

A falta de uma rede de apoio é o caso da maioria das mães solos do país. Luciana é apenas um dos casos de mulheres que têm que dar conta da dupla jornada. Para ela, conciliar a maternidade com trabalho é o maior desafio: “Depois de ter filho e não ter com quem dividir, tive que me adaptar e fazer trabalho só home office. Salário muito menor e outra função.”

Pires comenta sobre o conceito chamado “Pobreza de Tempo”, que de acordo com dados levantados por pesquisas da ONU, as mulheres são as mais afetadas pelo problema. Com o excesso de atividades como trabalho, cuidados domésticos e dos filhos ocorre a negligência com os próprios cuidados, sejam físicos e mentais, levando ao adoecimento e desequilíbrio na rotina familiar.

Para as mulheres negras, o agravante da situação está no racismo estrutural. A taxa de desemprego desse grupo é muito maior que a taxa de desemprego geral, que estava em 9% e para as mulheres negras era de 14%. Elas recebem menos que o salário médio dos homens e mulheres brancos. Ainda, "as mulheres negras estão em empregos com salários menores, e são responsabilizadas igualmente pelo cuidado", afirma Pires. 

Outro ponto que a especialista explica é a diferença da rede de apoio entre as mulheres brancas e negras: "a mulher branca sai para trabalhar e deixa os filhos com outra pessoa cuidando, as mulheres negras, na maioria das vezes, não têm essa opção e geralmente depende de um familiar que possa lhe ajudar." 

Fabiana Santos, trabalha como auxiliar de limpeza e é moradora da periferia da Vila Maria - Zona Norte de São Paulo, lida com a maternidade solo de seus dois filhos. O mais novo é um bebê de 10 meses. Santos diz que tinha dificuldade até na amamentação pois não tinha como se alimentar direito e faltavam nutrientes para a produção do leite: “minha anemia na época era grave. Não conseguia me alimentar, muito menos amamentar meu filho.” Ela teve que complementar a alimentação do bebê e ao comprar fraldas, via quase todo o auxílio do governo indo embora. 

“Eu como mulher e mãe solo sinto na pele todo dia o que é o abandono. Tudo que consegui foi trabalhando muito e sozinha. Hoje com meu emprego consigo pagar minhas contas e garantir que meus filhos estejam seguros, essa sempre foi minha maior preocupação” descreve a auxiliar de limpeza. Para Santos, os planos de auxílio do governo não foram suficientes para garantir sua estabilidade: “eles me ajudaram, claro. Mas falta muito para que um dia eu me sinta segura em qualquer situação de crise.”

Sobre sua rede de apoio Fabiana compartilha que quem vigia seus filhos enquanto trabalha é sua irmã, e relata a importância dessa rede para mães solo. “Ela é minha única ajuda. Quando arranjei meu trabalho pedi a ela que tomasse conta dos meus filhos. Sem ela a situação seria muito difícil.”

A tentativa de melhora dentro da perspectiva brasileira:

Thais Cassapian, organizadora do Coletivo de Apoio à Maternidade Solo, aponta que: "as mulheres negras crescem num contexto social com muito menos acesso à educação e à saúde, e o impacto desse racismo estrutural é amplificado e sentido nesse círculo social.” Para ela, as mães solos e mulheres negras devem ser priorizadas e que a discussão passa pela questão da igualdade. "A pessoa que tem menos, precisa receber mais (auxílio). Ela precisa ser garantida de todos os direitos básicos que foram negligenciados por tanto tempo." 

O Coletivo surgiu no primeiro mês da pandemia. Thais começou ajudando duas mulheres em situação de necessidade e foi crescendo gradativamente, sempre colaborando com alimentação dessas famílias chefiadas por mães solo. Hoje, são 210 mulheres sendo ajudadas e 70 colaboradoras no projeto. Para elas, o diferencial é levar até a porta de cada mulher que precisa de ajuda um kit de alimentos. "O coletivo se propõe a ser um apoio efetivo na vida dessas mulheres." 

A cesta básica tem pelo menos 16 itens e são variados. Frutas e verduras frescas, ovos, biscoitos. Além disso, também há o kit higiene, que cobre de fraldas à absorventes, roupas e até fórmulas para os bebês que precisam de suplementos além do leite materno.

O Coletivo de Apoio à Maternidade Solo também é uma forma de amenizar a insegurança alimentar nas famílias chefiadas por mães solos. Em sua devida proporção, atua em três frentes, sempre priorizando as mulheres. Além dos kits que são entregues nas portas, o projeto promove rodas de conversa presenciais para dar espaço para essas mães compartilharem suas experiências e ter um momento para elas. E, iniciado recentemente, o projeto de cursos profissionalizantes que tem a duração de um trimestre.

Ainda, é necessário um acompanhamento social diferenciado para essas mulheres que vivenciam a maternidade solitária na condição de pobreza através de programas e ações que promovam o cuidado especial desse grupo. A organizadora do coletivo afirma que "são necessárias políticas públicas direcionadas a esse grupo e principalmente, que atuem no recorte racial."

No viés das políticas públicas, retomado neste primeiro trimestre, o Bolsa Família tem o valor mínimo de R$600 e valor extra para famílias com gestantes, crianças e adolescentes. Esse é o início do plano do presidente Lula para reverter a situação atual da fome no Brasil. 

O governo anterior deixou para as políticas de combate à fome um legado que inclui desorganização e desarticulação dos programas, poucos servidores e orçamento baixo no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023.

Uma parte da estratégia nova também deve ser a divulgação para tornar essas políticas públicas de fácil acesso. Às vezes, a população nem sabe se pode receber alguma ajuda. 

Em fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reativou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que reúne sociedades civis na discussão do tema. O órgão, criado em 1993 e foi desativado em 2019 por Bolsonaro, acompanha diretamente a Presidência da República em políticas públicas de combate à fome. Também reajustou em 39% os repasses feitos a estados e municípios para o Programa de Alimentação Escolar (PNAE), que garante a compra de merenda escolar e ficou 5 anos sem correção com  defasagem de 35% no período. Dessa forma, a medida deve beneficiar 40 milhões de estudantes de escolas públicas. Em março, Lula relançou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em seu primeiro governo no âmbito do Fome Zero. 

A especialista Pires expõe a importância de trazer dados sobre essa desigualdade à público “somos responsáveis por visibilizar a questão e apontar políticas públicas que visam reduzir o problema.” Trazendo dados para o Congresso e criando identidade para reformar o sistema, Luiza acredita que mudanças podem ser consideradas.

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Especialistas explicam como a intoxicação por mercúrio afeta os quadros de fome e como é feita a reintrodução alimentar
por
Beatriz Vasconcelos e Rafaela Dionello
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29/06/2023

As imagens de desnutrição das crianças Yanomami chocaram o mundo no início do ano são consequências de uma demora no tratamento da desnutrição severa, que se tornou algo crônico.  Especialistas explicam que o uso de alimentos naturais, a prática de atividades físicas e a atuação emergencial do governo com a retomada do atendimento primário no território, são essenciais para a reversão do quadro.

“É uma situação muito alarmante e muito preocupante e tudo isso que vocês estão vendo nas redes sociais é uma irresponsabilidade do governo brasileiro de proteger o meu povo Yanomami, aqui no estado de Roraima” conta o líder da comunidade, Dario Yanomami.

De acordo com o Departamento de Atenção Primária à Saúde do Indígena, em 2015, entre 3516 crianças que estavam sob os cuidados do departamento, 1059 estavam com peso baixo e 666 com peso muito baixo para a idade, isso representa 49% das crianças. Em 2021, a situação se agravou, tendo 56,5% das crianças com algum déficit de peso. Segundo dados obtidos pela agência Samaúma, 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis na TY, entre 2019 e 2022, um aumento de 29% em relação a 2015-2018.

A desnutrição grave não é só a perda de peso acentuada, mas também representa a falta de vitaminas e nutrientes importantes, que dependendo da carência de cada organismo, pode causar problemas de pele, de visão e até neurológicos.

Para reverter esse quadro, é necessário uma série de ações complexas e bem planejadas. "O primeiro passo é oferecer o que está faltando, a suplementação de comida e tratamento adequado para cada quadro” explica a nutricionista e voluntária nas Terras Yanomami, Gabriela Mendes. Assim a pessoa é tirada do risco iminente de morte. O tratamento depende de uma rotina intensa de acompanhamento por monitores de saúde e nutrição.

A atividade física é igualmente importante no controle do tratamento da desnutrição, pois o objetivo da recuperação nutricional não é só ganho de peso e de tecido gorduroso, mas também de massa muscular.

Os alimentos originários da Terra Yanomami, como banana e açaí, podem ajudar nesse processo, ao contrário das opções ultra processadas que vemos nos mercados. “No início foram identificadas falhas neste sentido, pois o tipo de alimentos que estava chegando não respondia aos hábitos alimentares das comunidades e também não atendia às necessidades de recuperação rápida da saúde das pessoas mais atingidas”, conta Luís Ventura, secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Militares entregam as primeiras cestas básicas que chegam em terras Yanomami, em Roraima
Primeiras cestas básicas chegam em terras Yanomami em Roraima
— Foto: Ministério da Saúde

 

Após o envio de muitos alertas por organizações indígenas e seus aliados, houve um esforço para a adequação dessas medidas. Por isso Ventura reforça que a atuação do governo deve ser construída em diálogo com as organizações indígenas e com as entidades que têm conhecimento do terreno.

“Somos cidadãos brasileiros, somos povo originário, somos povo Yanomami. Então isso é uma responsabilidade do Estado. Como qualquer povo brasileiro, o Estado tem que cuidar do povo indígena” diz Dario.

Com o decorrer do tempo, o corpo passa por transformações muitas vezes irreversíveis. Quando uma pessoa passa muito tempo com uma dieta carente de alimentos e nutrientes, o corpo e seu metabolismo passam por mudanças. Ele passa a ser mais devagar, e produz menos enzimas digestivas. “Há redução da área absortiva, e as células passam a não estarem preparadas para metabolizar uma quantidade elevada de energia”, explica Mendes.

As medidas emergenciais necessárias para atuar com pessoas em risco de morte são fundamentais. “O atendimento dentro do território indígena sempre foi precarizado pelos anos de abandono da política de saúde, isso exigiu que muitas pessoas fossem removidas para a cidade para serem ali atendidas”, comenta o secretário.

Quando ficam doentes, os Yanomami são encaminhados para as instalações da Casa de Saúde Indígena (CASAI). Quando o caso é grave, eles são resgatados e levados para o atendimento de helicóptero até o hospital de campanha da força aérea montado na capital de Roraima, Boa Vista ou unidades de saúde do estado. Com a quantidade gritante de casos que precisam dessa atenção redobrada, essas instalações tiveram pouco tempo para atender uma população muito além da sua capacidade.

Para que a recuperação dessa comunidade tenha sucesso é necessário que alguns fatores andem juntos, como o atendimento emergencial, para a recuperação da saúde básica das pessoas e o fortalecimento do atendimento à saúde nas comunidades, para manter o progresso já feito. Também é necessária a recuperação das pistas de pouso, para o abastecimento das estruturas de atendimento básico. Por fim, “o fortalecimento do Distrito de Saúde Indígena Yanomami (DSEI-Y), que é quem deverá ficar em território depois da fase emergencial e, evidentemente, a retirada dos fatores de risco, que estão vinculados à desintrusão do garimpo", explica Luís Ventura.

Conciliar a atuação emergencial com a retomada do atendimento primário e com medidas culturalmente adequadas ao povo Yanomami, depende principalmente da retirada do garimpo na região. Só com um território livre do garimpo, as condições para que as comunidades tenham acesso de novo às fontes tradicionais de alimento poderão ser recuperadas.

O líder Yanomami conta que as comunidades que estão na fronteira Brasil-Venezuela, têm assistência. São 37 polos base mas, pelo menos 8 foram fechados por ameaças de garimpeiros ilegais. “Faltam profissionais para cuidar da nossa segurança, da segurança das nossas famílias e das nossas crianças”.

 

O garimpo ilegal e a contaminação por mercúrio

Atividade garimpeira  provoca a poluição dos rios na Terras Yanomami
Atividade garimpeira  provoca a poluição dos rios na Terra Yanomami — Foto: © Bruno Kelly/HAY

Os Yanomami têm vasto conhecimento sobre as suas terras e historicamente sobrevivem da coleta, além de pesca e caça. Mesmo assim, sua sobrevivência vem sendo ameaçada pela contaminação das águas e do solo pelo garimpo ilegal, prática que é uma das maiores causas da desnutrição severa que atinge esse povo indígena.

Em 2021, a destruição causada pelo garimpo no Território Indigena Yanomami (TIY) cresceu em 46%. Dados do Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE) indicam que a desflorestação nas terras indígenas Yanomami aumentou 516% entre os anos de 2019 e 2020 em comparação aos anos anteriores (2017 e 2018). Nos últimos dois anos, foram desmatados 39,1 quilómetros quadrados, o equivalente a 3,9 mil campos de futebol. No período anterior, a desflorestação foi de 6,34 quilômetros quadrados.

Mapa da área degradada pelo garimpo na TIY até 2021
Mapa da área degradada pelo garimpo na TIY até 2021
– imagem: acervo do Instituto Socioambiental/ ISA

 

As mortes dos indígenas nesse caso, ocorrem direta ou indiretamente por causa do garimpo ilegal. Durante o governo Bolsonaro, haviam pelo menos 98 pontos ativos de garimpagem ilegal de ouro ativos no interior na TIY, segundo a Rede Amazônica de Informação Socioambiental (RAISG). Sua intensidade e escala cresceram de maneira exponencial nos últimos cinco anos.

Dos 37 polos-base do Distrito Sanitário existentes, pelo menos 18 possuem registro de algum desmatamento relacionado ao garimpo. Assim, o número de comunidades afetadas diretamente seria 273, abrangendo mais de 16.000 pessoas, ou 56% da população da TIY.

As populações residentes próximas às áreas de garimpo apresentam a maior ingestão de mercúrio. A contaminação dos rios e solo pela lama tóxica de mercúrio fazem com que os alimentos estejam contaminados. Isso impossibilita o consumo e resulta na desnutrição, uma vez que o peixe é a principal fonte de proteína das populações indígenas.

Dario conta que a região do Xitei é a mais afetada pelo garimpo ilegal. “Eles ficam muito perto das aldeias. Eles estão destruindo os rios aonde as crianças bebem água. Está totalmente poluído, com mercúrio e cheio de malária. As crianças ficam desnutridas por conta das doenças.”

 

Detalhe do canteiro vizinho à maloca no Xitei
Detalhe do canteiro vizinho à maloca no Xitei
– imagem: acervo do Instituto Socioambiental/ ISA

 

No dia 20 de janeiro, o governo federal decretou estado de emergência de saúde pública, para conseguir viabilizar a assistência necessária. Dez dias depois, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assinou um decreto para dar poder às Forças Armadas e aos ministérios da Defesa, Saúde, do Desenvolvimento Social, da Família e dos Povos Indígenas para barrar a atuação de garimpeiros ilegais nas terras indígenas. Os casos de desnutrição foram expostos pelo próprio presidente em visita ao Estado, no dia 21 de janeiro.

Essas medidas vêm com o intuito de melhorar a condição dos Yanomami. Mas, como eles sofrem com os mesmos problemas desde os anos 50, é muito difícil voltar à vida que tinham antes.

A antropóloga Joana Bonfim explica que o primeiro ponto para o controle do garimpo ilegal na TIY, seria o desenvolvimento e a retomada de uma estratégia de Proteção Territorial consistente. Além de uma reiteração do papel real da Fundação do Índio (FUNAI) para garantir o direito geral dos Yanomami. “Para além de um alinhamento estatal, é necessária uma mudança do modo de agir do sistema como um todo, em especial sua relação com a Terra”, completa.

Existem grandes diferenças sobre o modo como o último governo atuou em comparação ao atual, sob a lente socioambiental. O Ministério do Meio Ambiente, que antes era vinculado ao Ministério da Agricultura, agora tem a sua própria gestão. Além da criação de um novo ministério dedicado aos povos originários. “Juntamente a essas mudanças, o atual governo deve fiscalizar ativamente pontos ativos de garimpagem na TIY e auxiliar na proteção desse território, que é um direito constitucional”, afirma Joana. O Estado brasileiro é responsável pela prevenção e repressão das atividades mineiras ilegais e da utilização do mercúrio em terras indígenas, a fim de proteger o ambiente, as populações indígenas e o próprio ouro.

“Isso é uma crise sanitária desumana, é um resultado dos invasores na terra indígena Yanomami”, ressalta o líder indígena.

A força-tarefa que atua nas Terras Yanomami indica que, desde o início da operação iniciada pelo atual presidente no dia 20 de janeiro, foram destruídos 272 acampamentos de garimpeiros ilegais na região. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, também foram apreendidos e inutilizados equipamentos como máquinas para extração de minérios, motosserra, mercúrio, modens de internet via satélite, celulares, uma tonelada de alimentos, armas e munições.

Recentemente, o espaço aéreo na Terra Yanomami foi fechado na tentativa de frear a ação desses garimpeiros, mas isso não é suficiente para acabar com esse problema que vem se postergando há décadas e nunca foi resolvido. "Ao médio e longo prazo precisamos de políticas públicas que foquem na autossuficiência desses povos, para que eles possam suprir suas necessidades de forma que não se crie dependência com não-indígenas", diz Mendes.

A fim de melhorar as condições de vida dos indígenas Yanomami, o Governo Lula deve fiscalizar pontos ativos de garimpo na TIY e auxiliar na proteção desse território, que é um direito constitucional. “Ainda não sabemos qual serão as maiores dificuldades do povo Yanomami ao longo prazo já que garimpo deixa sequelas de destruição ambiental e de contaminação de solos e de fontes de água que vão requerer um tempo para serem recuperadas”, finaliza Ventura.

“O garimpo ilegal destrói e mata o ser humano, mata a natureza, mata os rios e mata as crianças”, Dario faz questão de realçar.

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