A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
por
Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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Falta de amparo do Estado e preconceito são determinantes na vida dessas pessoas
por
Gabriel Tuma
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24/06/2023

Uma pesquisa publicada na revista científica JAMA pediatrics revela que jovens LGBTQIAP+ tem uma chance 50% maior de desenvolver quadros depressivos em relação aos que são heterossexuais e cisgênero, situação preocupante, ainda mais em um país como o Brasil, que pouco faz pela saúde mental destas pessoas.

O estado de São Paulo conta com os CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), com os Centros de acolhida (voltados para a população de rua) e os CCAs (Centro para Crianças e Adolescentes), entretanto, desde a posse como governador do PSDBista João Dória, estes meios de tratamento foram sucateados. A diretora de comunicação do projeto Canto Baobá e pós-graduanda em Sexo, Gênero e Direitos Humanos, Juliana Ribeiro, fala da situação destes aparatos: “Tem muita gente boa dentro desses mecanismos públicos, que estão articulando junto com o Canto e com outras esferas públicas, e conseguindo ali levar o seu trabalho, não da melhor forma possível, não da forma com que gostariam de levar, mas que estão conseguindo se mobilizar.”

O Canto Baobá, é um projeto criado pelos psicólogos Ana Albuquerque e Douglas Felix, que busca atender pessoas em situação de vulnerabilidade social e levar para além da sala de consultas o combate ao racismo, à LGBTQIAP+fobia e a todos os tipos de violência. Hoje conta com 38 psicólogos, que atendem cerca de 850 pessoas. Entretanto, o projeto não consegue atender todos os seus pacientes de forma gratuita ou com pagamento de valor simbólico.

 

Para Juliana, é fundamental que existam projetos como o Baobá, mas também é necessária uma abertura daqueles que não fazem parte das populações oprimidas: “Muitas pessoas não conseguem ver o racismo acontecendo no dia a dia, porque provavelmente são pessoas brancas, né? E que, realmente não são impactadas com as violências, são, inclusive, as que continuam mantendo essas violências no poder.”

Segundo um relatório do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o Brasil é há 13 anos o país que mais mata pessoas transgênero no mundo, somente em 2022, foram 131 homicídios notificados, número que se encontra defasado, já que dos 26 estados da federação, 11 não tem dados sobre LGBTQIAP+fobia. Segundo Ribeiro, este cenário nunca vai mudar sem que falemos desses assuntos: “A gente tem que falar, a gente precisa falar, ninguém aqui vai ficar quieto, não dá mais. Não é porque não é você que passa, você que sente, você que sabe, mas a partir do momento que você entra aqui, você vai ouvir e talvez isso seja incômodo, por quê finalmente, você está começando a olhar para essas questões.”

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Saúde

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Moradores, turistas, organizações e especialistas ajudam a explicar o porque situações como a que ocorreu na cidade geram uma alta demanda de doações a curto prazo
por
Larissa Soler e Victória Toral
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22/06/2023

Barra do Sahy. Pescadores desembarcando mantimentos.
Pescadores desembarcando mantimentos na Barra do Sahy

 

As ações solidárias destinadas à região de São Sebastião, desapareceram junto com a chuva que devastou o litoral norte de São Paulo há três meses e deixou 1.090 pessoas desalojadas, 1.126 desabrigadas e 65 mortas. 

A Diretora do Fundo Social de São Sebastião, Rita Elizabeth informou que 13.500 toneladas de doações foram feitas à cidade depois das chuvas no final de semana do Carnaval. Empresas, como as Casas Bahia e a Sabesp, e órgãos governamentais, como a Receita Federal, doaram juntas mais de 90 toneladas de produtos. Uma empresa de refrigerante em conjunto com a ONG Geração Falcão destinou cerca de R$100 mil para auxiliar as vítimas. 

Porém, semanas depois do ocorrido, o Fundo Social da cidade, já estava com o estoque de doações praticamente zerado, como conta a diretora. Moradores que foram atingidos pela tragédia, e ONGs que levantaram arrecadações também sentiram a redução. 

Organizações que se voluntariaram e levaram doações para os atingidos pelas chuvas no litoral conseguiram coletar altos números de donativos. Como a Feito Formiguinhas e a Formiguinha em Ação que juntas levaram mais de 14 toneladas de produtos, entre elas cestas básicas, produtos de limpeza, de higiene pessoal, água e ração. 

Segundo Elis Pedroso, representante da ONG Feito Formiguinhas, as doações no começo foram enormes, mas, com o passar do tempo, a quantidade de produtos doados sofreu uma redução:"Todas as vezes que existe alguma coisa de comoção de massa, há uma entrada maior de doações. O complexo é que dura muito pouco, porque passou a mídia [noticiando a tragédia], é como se nada tivesse acontecido. Em 15 dias já não se tinha mais tantas doações.”

Sensação também presente para a organização Formiguinhas em Ação. Alex Cahli, porta-voz do local, conta: “Nos momentos iniciais de uma tragédia, como a que ocorreu no meio de fevereiro, os números de doações são altos, mas em seguida com a “volta da rotina”, há uma queda”.

A antropóloga explica que o momento inicial da catástrofe é marcado pela comoção das pessoas de fora do contexto. O sentimento de sensibilidade com a situação emergencial faz com que os não envolvidos sintam que precisam agir diante do cenário de destruição e perda e com isso, entram as doações: “É importante lembrar que essa onda de doações é uma onda inicial e a comoção não chega a mobilizar as pessoas para agirem em relação às questões mais estruturais da catástrofe.” 

O impacto de agir no início é causado muito por aquilo que está imediatamente acessível aos nossos sentidos e essas pessoas distantes da tragédia, recebem essa informação de forma sensacionalista e se inflamam e acreditam que as doações serão o suficiente. O que traz depois da contribuição um "alívio de consciência" e permite que essas pessoas possam voltar a viver suas vidas normalmente.

A identificação com aqueles que sofreram com os 682 mm de água, foi o que levou Márcia Mota a ajudar: “Tenho uma casa na cidade há mais ou menos vinte anos e conheço bem a região desde o final da década de 70. Frequento lá há muitos anos, antes de ter a estrada, inclusive antes das ocupações, em áreas de risco”.

A moradora não estava em sua residência em Juquehy quando tudo ocorreu, mas assim que soube que a casa tinha condições de receber pessoas liberou o local para quem precisava. Marcia, ainda, conta do cenário que encontrou quando chegou no litoral norte: "Lembro que a cena era de guerra. Eram carros do exército, móveis na rua, muita lama, nem parecia que era o mesmo lugar”.

Já a estudante, Letícia Cali, viajou para o sertão de Camburi, São Sebastião, para aproveitar o feriado e vivenciou a tragédia. A jovem e mais quatro amigas acabaram ficando presas na cidade. Cali conta, ainda, que vivenciou o aumento nos preços dos produtos, principalmente em supermercados, mas nada que chegasse a ser valores absurdos, como da água que teve repercussões nos noticiários. 

A estudante também presenciou a "normalidade" que algumas pessoas levaram a situação: "Na praia da baleia, onde estive hospedada, logo na segunda-feira, após as fortes chuvas, vi diversas pessoas passeando na orla da praia como se nada tivesse acontecido." 

O psicólogo social Pedro Luz, explica quanto essa apatia de uma parte pequena da população, se faz presente nesses momentos de tragédia: "Isso diz respeito, a alguns valores que a nossa sociedade cultua, como os valores da competitividade, da meritocracia e de uma individualidade.” Ele ainda ressalta que isso é causado muito por conta da visão do mundo de consumo. 

Escolas e outras estruturas, como restaurantes, serviram, no momento pós tragédia, como locais de abrigos para os atingidos pela chuva, de preparo de comidas e de pontos de coleta de doações. Como o caso da Escola Municipal Branca de Neve, que antes servia para a formação de crianças entre 3 a 5 anos, virou abrigo para oitenta famílias que perderam tudo e tiveram suas casas interditadas. 

Mesmo após quase três meses da tragédia, a vida na região ainda não se ajustou. Algumas pessoas voltaram para suas casas, mesmo com o local classificado como área de risco pela Defesa Civil, pois ainda não tem para onde ir. Os olhos, dos que estão distantes de São Sebastião, deixaram de estar voltados para a região e a crença nas ações solidárias sofreram drásticas reduções.  

O psicólogo faz um alerta sobre esse aspecto do ser humano que precisa ser trabalhado: "Quando cessam as informações e há a diminuição do afeto e da empatia provocados, as pessoas dão continuidade a sua vida. Porque é difícil ter a concepção que o sofrimento do outro é prolongado e que a ação solidária precisa ser contínua, já que a tragédia e seus efeitos vão ser posteriores ao dia, semana ou mês em que ocorreu”.  

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Como mulheres da comunidade LGBTQIA+ estão sujeitas a maiores possibilidades de homicídio
por
Victor Oliveira Trovão
|
20/06/2023

No último domingo (14/05) comemorou-se o Dia das Mães por todo Brasil. A data foi oficializada no dia 5 de maio de 1932 quando o presidente Getúlio Vargas emitiu o Decreto nº 21.366. A partir de então, anualmente, o segundo domingo de maio foi dedicado ao amor materno. Apesar do dia celebrar todas as mães brasileiras, elas nunca deixaram de ser assassinadas, independentemente da existência desse dia.

De acordo com dados do Monitor da Violência e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2022, o Brasil registrou 1.410 casos de feminicídio. Em média, uma mulher é assassinada a cada 6 horas no País por ser mulher. Com diversas possibilidades de configuração, o crime continua a acontecer majoritariamente no lugar em que a vítima deveria se sentir segura, em sua própria casa. O quadro piora a partir do momento em que se enxerga a subnotificação no país, à medida que muitas mulheres são vítimas de feminicídio, mas os casos não chegam a ser denunciados.

Em entrevista, a delegada Dannyella Gomes Pinheiro, da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, explicou a configuração do crime e o papel das delegacias especializadas: “Feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, é o homicídio praticado em razão do gênero feminino. A Delegacia de Defesa da Mulher cuida de questões relacionadas a violência doméstica, crimes sexuais e crimes relacionados a crianças e adolescentes também, como maus-tratos e crimes sexuais. Normalmente e infelizmente, a maior probabilidade de uma mulher ser vítima de homicídio no Brasil, estatisticamente falando, é dentro de casa”.

Ainda que os números sejam alarmantes e cada vez mais as mulheres dentro de casa como os membros familiares estejam denunciando e buscando por medidas protetivas, infelizmente, nem todas as mulheres conseguem se manifestar nas delegacias antes de serem mortas dado o contexto em que se insere. “São inúmeros os casos que levam uma mulher a não fazer uma denúncia e não registrar a ocorrência. Temos dependência emocional, dependência financeira, constrangimento, vergonha, culpabilização e julgamento social”, expõe Dannyella Pinheiro.

-          Novas figuras maternas e inéditas configurações de feminicídio

Dada a luta pela vida ao longo de anos, as minorias da sociedade brasileira gradativamente estão conseguindo conquistar seus direitos, dentre eles, o das pessoas LGBTQIA + se tornarem mães ou pais. Essa transformação contribuiu para que a maternidade ganhasse outros indivíduos como mulheres LBT, lésbicas, bissexuais e transsexuais. Ao se tornarem mães, elas enfrentaram o julgamento e a discriminação constante da sociedade, o que acentuou a discriminação contra as mulheres, por serem mulheres, pela sexualidade e pelos seus respectivos formatos de família.

A vítima passa por discriminações sobrepostas, por vezes, ocasionando no assassinato do indivíduo motivado pela misoginia e a LGBTQIA+ fobia. “Isso é o que a gente chama de interseccionalidade. A pessoa ela não é só uma coisa, a pessoa pode ser mulher, ela pode ser uma mulher lésbica, pode ser uma mulher lésbica, periférica, pode ser uma mulher negra, pode ser uma mulher trans”, relata Amanda Souto, advogada e vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB. A partir do momento em que se adiciona marcadoras, também se adicionam possibilidades de discriminações e opressões diferentes.

De acordo com informações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre a vulnerabilidade da população LGBT a atos de violência sexual ou familiar, foi constatado que em todo o continente americano, as mulheres LBT correm o risco particular de violência devido à misoginia e à desigualdade de gênero na sociedade.

Por outro lado, entre janeiro de 2013 e 31 de março de 2014, a Comissão monitorou a violência contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex (LGBTI) na América. No Registro de Violência contaram no total 594 assassinatos de pessoas da comunidade, ou percebidas assim, e 176 vítimas de ataques graves, embora não letais. Desse total, 55 foram contra mulheres lésbicas, ou percebidas como tais.

Ao passarem por situações discriminatórias ou agressões, as vítimas se sentem extremamente desconfortáveis em denunciar dada a ausência de políticas públicas que protejam essa população e as negligências presentes nos próprios órgãos de acolhimento. Atualmente, as Delegacias de Defesa da Mulher, ainda que muito tardiamente, trabalham para o atendimento dessas pessoas. 

A incidência de casos é infelizmente maior em mulheres transsexuais e travestis. “A mulher que é trans, ela é mulher. Ela é atendida na Delegacia de Defesa da Mulher sem nenhum tipo de diferenciação. Eventualmente, a qualificadora pode ser acrescida por conta do preconceito. Ser mulher trans ou ser cisgênero não muda nada. As mulheres trans sofrem socialmente, já enfrentam um preconceito maior dentro da sociedade, mas perante a lei são tratadas de maneira idêntica”, expõe a delegada.

Nunca é cedo demais para denunciar. À medida que os relacionamentos, sejam eles amorosos ou sociais passam por ameaças ou agressões, sejam elas físicas ou verbais, uma denúncia salva vidas, famílias e histórias. “É muito importante ter esse sentimento de acolhimento da vítima para ela não se sentir julgada, carregar uma culpa, não se sentir constrangida, e ter coragem de relatar e registrar a ocorrência”, aconselha a delegada da 3ª Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo.

-          Assassinatos: Feminicídios + LGBTQIA+fobia

Com base nos dados da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras (10% da população) se identificam como LGBTQIA +. Delas, 92,5% contaram sobre o aumento da violência contra sua comunidade. Os dados da violência foram obtidos a partir da pesquisa da organização de mídia Gênero e Número, em parceria com a Fundação Ford.

Ainda sobre a subnotificação, esse desafio impacta na vida de diversas minorias, e consequentemente, a obtenção de dados para análises que por fim resultam em medidas. Por hora, alguns estados como o Rio de Janeiro produzem relatórios sobre violência motivada por LGBTfobia, mas são exceções e eles não existem em nível federal. Portanto, a melhor alternativa passa a ser recorrer ao trabalho de organizações não-governamentais para obter dados sobre LGBTfobia no Brasil.

Em abril, o presidente Lula adotou novas medidas a fim de combater crimes contra as mulheres. Ele sancionou o funcionamento 24 horas das delegacias de mulher, uma proposta que foi aprovada em março deste ano que visa com que as mulheres sejam atendidas por mulheres, até mesmo onde não há delegacias específicas. Estes novos projetos trabalham pela segurança e vida das mulheres ao apresentar perspectivas futuras melhores que o cenário atual.

-          Adoção por pessoas LGBTQIA+ e preconceito

As mães sempre passaram pelos desafios mais inacreditáveis para criar seus filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Com o desenvolvimento dos direitos humanos e a liberdade para serem quem são, cada vez mais os estereótipos sobre o que é ser mães são quebrados. Desde a década de 90 casais LGBTs começaram a adotar filhos, um comportamento que foi altamente criticado e continua a ser discriminado até o momento.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção individual de crianças e adolescentes por pessoa lésbica, gay, bissexual ou transgênero é possível no Brasil, levando em conta que a lei vigente não define quaisquer restrições quanto a orientação sexual ou a identidade de gênero do adotante. Por outro lado, desde uma votação em abril de 2010 na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a adoção conjunta de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil é legal.

Ainda que a lei possibilite a adoção e técnicas de reprodução assistidas para pessoas LGBT, em especial mulheres, a tentativa de construção de uma família por vezes é abalada pela discriminação, que em alguns casos compromete com a segurança dos membros chegando ao assassinato motivado pelo ódio. Novamente, as mulheres enfrentam problemas, ao crescerem no momento que exploram suas sexualidades, a sociedade não as apoia, como a partir do momento em que se tornam mães, elas assim como seus filhos e companheiras(os) passam a enfrentar a vulnerabilidade social por serem quem são. Novos formatos de ameaça surgem, assim como novas possibilidades de feminicídio interseccionados pela LGBTfobia.

“Não faz diferença. A violência doméstica não escolhe poder aquisitivo e socioeconomicamente. Ela existe em todas as esferas. Ela atinge todas as categorias de mulheres”, conclui a delegada Dannyella Gomes.

 

 

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Um estudo informal sobre o estilo de Hunter Thompson
por
João P R Tognonato
|
19/06/2023

 

Cheguei na casa do meu advogado, cansado, melancólico, pronto para cancelar uma viagem que havíamos programado há meses.

“Você é ridículo”, ele disse, “isso precisa mudar agora”.

Pegou o notebook do outro lado da mesa, levantou a tela e ficou passando os olhos durante uns 3 minutos sem nem me dirigir uma palavra. “E então?”, perguntei cinicamente. Ele me olhou ostensivo, “Espere”, respondeu seco. Após uns 5 minutos falou, “Você tem dinheiro?”. Respondi que sim. “Então é isso. Para onde vamos? Bolívia está R$1.300”. Disse que não tinha vontade de conhecer a Bolívia. “Tá bom. E uma viagem mais urbana, tipo Buenos Aires, Uruguai?”, insistiu. Achei a ideia um pouco melhor. “Não! Esquece isso. Que tal o deserto do Atacama?”  - Hmm... já comecei a gostar mesmo da coisa. O Atacama parecia perfeito.

O que eu imaginava era uma mistura de Salvador Dalí com “Camping do Seu Daí”, na Chapada Diamantina: cenários surrealistas e uma galera “hiponga” pronta para festas clandestinas e noites curtidas em ácido. Essa mistura de natureza e orgia seria capaz de me proporcionar uma boa dose de alegria; sem contar que havia escutado sobre as reservas de lítio, uma substância antidepressiva que, no Atacama, flutuava no ar como a especiaria de Frank Herbert.

“Mas e os documentos? Preciso de passaporte, visto, essas coisas?".

“Que nada,” respondeu meu advogado, “Com qualquer papel você viaja para o Chile – RG, CNH, até com carteirinha de vacinação, eu acho. É o Mercosul, baby!

“Bom, então é isso. Vamos nessa”

Eu estava bem animado – ainda que um pouco apreensivo com o imediatismo da coisa. “Você não vai fazer merda, né?”, perguntou meu advogado antes de ir embora. “Não” – definitivamente não. Respondi para mim mesmo dirigindo-lhe um sorriso falso. E saí pela porta me sentindo um pouco estranho.

Agora era hora de se movimentar. A viagem aconteceria em dois dias. Eu não tinha mala, roupas de frio, dinheiro (havia mentido sobre o fato de ter dinheiro) ou qualquer noção básica do que iria encontrar no Atacama. Só sabia de uma coisa: tinha o desejo quase sexual de andar pelo deserto em um conversível. Então, era preciso alugar um carro – coisa que é um pouco mais complicada do que parece. Quer dizer... tirando toda a burocracia natural que envolve alugar um carro, quando isto é feito internacionalmente exige-se que você tenha um cartão de crédito internacional com 500$ na conta de garantia para qualquer merda que aconteça - e eu não tinha um cartão de crédito internacional, muito menos quinhentos dólares.

Deixei essa tarefa para meu advogado; por sorte ele conseguiria utilizar a conta de um cliente rico que lhe devia alguns favores, mas ainda havia o problema do dinheiro. Então, resolvi penhorar algumas joias que tinha em casa, itens que pretendia vender para minha aposentadoria e consegui 5 mil reais nessa brincadeira. Somados com outros 2 mil na conta daria para viajar com o mínimo de dignidade.

Achei importante também ficar atento para as questões práticas do Atacama – como o clima, o tipo de lugar (se é cidade, campo, vila, etc...) se é seguro, se é fácil de se comunicar, enfim... – tudo que dizia respeito ao dia a dia.

Descobri que o Atacama é o deserto mais seco do mundo e fica numa região denominada “Sombra da Chuva,” entre a Cordilheira dos Andes e a cordilheira da Costa, que são responsáveis pela falta de água lá. A primeira impede a chegada do ar úmido proveniente do Amazonas e a segunda se interpõe entre as correntes que chegam do pacífico. E a verdade é que em alguns lugares do Atacama, desde que as medições começaram, nunca foi registrado qualquer sinal de chuva.

Em média, ele se localiza à 2.400 metros acima do nível do mar. Não é dos locais mais altos mundo, que chegam à 4.000 metros. Mas em comparação com o brasil esse fator pode ser relevante. Só para fazer uma comparação, a cidade mais alta daqui, Campos do Jordão, no estado de São Paulo, está a mais ou menos 1.600 metros acima do nível do mar; e a cidade de São Paulo, à 760 metros.

A amplitude térmica se assemelha à dos desertos do mundo todo. Isso significa que de dia faz um sol considerável e, de noite, faz um frio intenso. No mês de maio, que é considerado o melhor par o turismo, são aproximadamente 20º durante o dia e 1º durante a noite – podendo atingir temperaturas negativas. E, no inverno, em agosto, a amplitude se mantém, mas com temperaturas que variam entre -10º e 10º.

Esse conjunto de informações já me deixou tranquilo. O deserto parecia exatamente como eu havia imaginado. Repassei o roteiro de viagens e o que aconteceria após pousarmos no Chile. Descer em Santiago. Esperar 2 horas. Voltar para o avião. Mais duas horas até Calama. Alugar o carro. Dirigir até o Hostel. Fazer compras. Se ambientar.

Com tudo resolvido no plano abstrato resolvi partir para as ações objetivas, me dirigindo ao shopping center para comprar as roupas de frio e trocar dinheiro. É preciso dizer que, na adolescência, quando tinha uns 17 anos, prometi que nunca mais entraria num shopping center sóbrio, o que me levou a tomar meia garrafa de vinho uma garrafa de cerveja antes de sair. Chegando lá, fui direto à casa de câmbio, onde a mulher me obrigou a fazer um terrível cadastro.

 “Muito bem, a cotação do peso chileno está em 0,0062 reais, quanto vai levar?”

“Ahn? Pode repetir. Acho que não entendi”

“Moço, cada real equivale a 0,0062 reais, em pesos chilenos. Vai levar quanto?”

Minha paciência se esgotou naquele instante. Já não bastava ter preenchido aquele formulário estúpido e agora me humilhava achando que contas de decimal são feitas assim, de cabeça.

“Senhora, me responda uma coisa. Os clientes que vem aqui usualmente são engenheiros, economistas ou matemáticos? Olha para a minha cara. Acha que sou o tipo de pessoa que sabe multiplicar frações? Me dê uma luz, pelo menos, uma aproximação. Senão vou achar que estou sendo enganado.”

Ela ficou constrangida.

“Não foi minha intenção, moço. Eu te ajudo, fique tranquilo”. Pegou uma calculadora e concluiu: “1.500 reais são 242 mil pesos.”

Depois deste momento elitista - que me sugou parte da energia remanescente - segui para a loja de roupas esperando um tratamento ainda pior. A ansiedade que a moça da casa de câmbio havia me causado fez com que eu atingisse um estado débil, quase catatônico. Não tinha forças para ficar escolhendo modelos ou pedindo descontos de 10%. Então, parei na primeira loja que vi – a vulgar Loja Renner – e comprei tudo. Casacos, lãs, segunda pele e um gorrinho. Na volta para casa, resolvi que compraria algo espalhafatoso para que as pessoas do aeroporto ficassem em dúvida sobre mim - achando que eu poderia ser uma celebridade. Era mais um desses desejos sexuais que aparecessem de vez em quando. Parei num brechó, na rua Teodoro Sampaio, já me sentindo melhor por ter saído do shopping center. A moça foi muito educada, mas ficava me empurrando um monte de roupas feias. Pedi licença a ela: “Licença, por favor. Acho que vou procurar sozinho”.

E nem precisei procurar muito. Ali, na minha frente, estava o conjunto perfeito, algo que nem os graduados em turismo usariam numa viagem ao Hawaii – uma camisa com estampa de sorvete e uma calça roxa.

Cheguei em casa bem-humorado. Peguei aquele talhão de dinheiro trocado e joguei tudo em cima da cama, como um gangster após vender seu primeiro quilo de cocaína. A nota mais valiosa – de 20.000 pesos chilenos – carregava a imagem de André Bello, uma espécie de libertador dos povos latinos; na de 10.000, a figura de Arturo Prat, um importante líder naval chileno... E, na de 5.000, aparecia a poeta Gabriela Mistral que, por sinal, havia escrito sobre o deserto do Atacama.

“O deserto preserva as memórias. É a pouca umidade, a aridez. É o sal. Como se fosse a fotografia de um tempo distante, há muito passado. Uma fotografia de centenas, milhares ou milhões de anos, dentro da qual é possível se mover...”

Absorto neste delírio estético, escuto o telefone tocar - era meu advogado. Não atendi. Dali uns três minutos recebo uma mensagem:

“EI, IDIOTA. NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, MAS É MELHOR ME ATENDER OU PELO MENOS LER ISSO AQUI. A SUA MALA NÃO PODE PASSAR DE 10KG, OK? SENÃO SEREMOS BARRADOS. E ELA TAMBÉM NÃO PODE SER MUITO GRANDE, TEM QUE CABER NO BAGAGEIRO DA AERONAVE. A GENTE NÃO VAI DESPACHAR NADA.”

Esse cara era muito chato. Nem me lembrava de quando havíamos ficado amigos. Mas ele tinha razão às vezes, e se não fosse seu conselho eu poderia ter chegado no aeroporto com uma mala gigantesca, sendo obrigado a pagar 70 dólares pelo peso extra.

A tarefa parecia difícil. Ainda mais quando descobri uma verdade triste. Não sei dobrar roupas. Na primeira tentativa, tentei copiar o método dos militares, com camisas e calças enroladas em formato de tubo, mas logo descobri que casacos e peças mais robustos simplesmente continuavam ocupando um espaço absurdo. Era necessário procurar no YouTube modos eficientes de dobrar a roupa. Sentindo um pouco de culpa de classe, digitei na barra de busca “Como dobrar roupa que nem um militar” – mas não vieram bons resultados. Depois, fui em canais específicos até encontrar um vídeo que explicava como dobrar no... “estilo do pacotinho.”

1º - Você pega sua camisa e estica ela toda numa superfície qualquer, pode ser uma tábua, uma mesa ou até o chão.

2º - Depois, dobre as mangas das camisas para dentro da roupa de modo a formar uma figura retangular.

3º - Pegue a parte de baixo desse retângulo e leve até o meio da camisa. E, depois, faça o mesmo com a parte de cima.

4º - Dobre a camisa na marca que se formou, e pronto.

5º - Agora é só encaixar um dos lados na abertura que se formou na outra ponta e colocar na mala.

Magicamente tudo ia se resolvendo. A youtuber-dobradora-de-roupas era simplesmente genial. Para cada peça (camisa, camiseta, calça, shorts, casaco moletom, casaco corta-vento, cueca, sai, luva, etc, etc etc..) ela tinha um jeito todo especial de dobrar. Era o oposto do milagre da multiplicação. Era o milagre da redução, e eu comecei a ficar bom, de modo que decorei várias dobras diferentes.

Mas o principal era que a mala estava pronta. Espetacularmente pronta. Tirei uma foto e mandei para meu advogado, com a mensagem. “Nos vemos amanhã, filha da puta”. Ele nem respondeu, mas isso era sinal de que estava com inveja desse meu novo dom. Antes de dormir, pois viajaria no dia seguinte, pedi ao meu irmão para me levar ao aeroporto. Ele concordou. Combinamos sair às 20h da quinta feira para um voo que decolaria às 23h30. Tudo feito para evitar imprevistos. Agora, era deitar a cabeça no travesseiro e esperar o momento.

Acordei no dia seguinte e não fiz nada até a hora de viajar. Só fiquei observando aquela mala linda encostada num canto do meu quarto. Perto das 20h00 vesti minha roupa de viagem e montei a nécessaire com escova de dentes, shampoo, sabonete, desodorante e um creme embelezador de origem suspeita. Meu irmão já estava pronto para sair. “Vamos? Ele perguntou?”. Pegamos o carro e ficamos parados cerca de 1h30 na Marginal Tietê até chegar ao aeroporto. Quando desci, meu advogado já esperava, gentil como sempre.

“Você está ridículo”, disse ele “onde comprou essas roupas?”.

“Não interessa,” respondi. Ele estava se referindo à minha camisa, com estampa de sorvete e à calça jeans roxa. “Dá tempo de fumar mais um cigarro?”, perguntei. Ele respondeu que sim, “Será o último das próximas 8h”.

Fiz questão de fumar dois, um em seguida do outro. Depois, entramos com nossas malas e seguimos direto para o raio-X passando antes por uma mulher que checava as passagens por QR-Code.

Na minha hora de passar pelo detector de metais a máquina apitou. Não sabia que precisava tirar as coisas do bolso. Passei de novo e, mais uma vez, ela apitou. “Bip”. “Tem que tirar o cinto também, senhor.” Tirei o cinto e... passei. Na sequência, um outro guarda se aproximou pedindo para checar minha mala. “Ai meu deus...” – pensei. Não tinha nenhuma droga ou arma na bolsa. Mas sempre alguma coisa pode dar errado. Uma ponta de baseado no bolso lateral da mala de mão, um caco de vidro solto, um isqueiro, ou... Ah! Sim... só podia ser isso, um estilete.... Um terrível estilete, enferrujado, esquecido num estojo. Seria suficiente para me prender? Achei que seria o fim de tudo... Algemado, levado para uma cela, assinando um B.O, que situação...

“Tudo certo senhor, pode seguir”

O que havia acontecido ali? Era meu inconsciente agindo favoravelmente comigo pela primeira vez em anos? Fosse o que fosse, estava salvo. Agarrei a mala e encontrei meu advogado, que olhava para o teto. Mostrei para ele meu documento. Uma CNH recém adquirida com uma foto de 2015 em que estou parecendo um assecla do Osama Bin Laden, todo barbudo, com um coletinho de lã - um aspecto debilmente criminal. Um documento que não passaria pelos Estados unidos na primeira década do século XXI.

“Por sorte, hoje tem menos preconceito”, falei.

“Pare de fazer piadas,” ele disse enfurecido – “Ainda não passamos”.

Andamos por um longo corredor, repleto de fitas separatórias e luzes de hospital. À frente, estava a cabine de imigração. “Pronto, agora era passar por ali e nada mais poderia dar errado. Quer dizer... o avião podia cair – mas isso era algo que fugia da minha alçada de controle.” Havia dois homens dentro dela: um deles simpático e o outro com cara fechada, no melhor estilo Good Cop / Bad Cop. Por ter credibilidade e um pouco mais de experiência meu advogado foi na frente e apresentou seu documento. “Ok, pode passar”, disse o Good Cop.

Na minha vez, quem pegou o documento foi o Bad Cop. Não que fosse fazer alguma diferença, mas fiquei absolutamente em pânico. Uma sensação de que tudo poderia sair errado. Ele veria minha cara barbuda, delinquente, e me impediria de viajar. Seria eu mais uma vítima do preconceito, da xenofobia e das maldades inerentes do mundo. Já começava a formular um discurso humanitário citando a fome no mundo e os horrores do capitalismo. Armaria um barraco. As TVs apareceriam, com seus repórteres descerebrados, fariam matérias e VTs, sobre mim. Meus seguidores no Instagram aumentariam em 3.000%. Seria convidado para talk-shows e afins. No fim, receberia das mãos do Papa Francisco o Prêmio Nobel da paz. Investiria os 2 milhões numa boa corretora e viveria o resta da vida com rendimentos.

“Senhor, que documento é esse?” perguntou o Bad Cop.

Subitamente, o delírio se esvaziou e eu fui contemplado com uma sensação de horror e desespero.

“Documento, senhor? Esta é minha CNH.”

“Mas você não pode viajar com isso aí não. Cadê seu R.G.?”

“Não tenho, senhor, fui roubado.” Menti.

“Você não tem mais nada aí, passaporte, talvez?”

Nessa hora, olhei para meu advogado, que havia dito que eu poderia viajar com a CNH. Ele pareceu envergonhado pela primeira vez em muito tempo. Enquanto isso, o Bad Cop continuava.

“O senhor não pode viajar com isso aí. Vai ser barrado quando chegar no Chile...”

“Espera um pouco, senhor” – Interveio meu advogado. “Ele perdeu o documento. Digo... foi roubado. Não existe aquele RG de emergência?”

“Esse não vale”

“E o RG digital?”

“Também não.”

Aquela conversa foi me enchendo o saco. De um lado, me sentia a pessoa mais estúpida do mundo ao pensar que poderia viajar portando um documento de habilitação. Os chilenos nem devem saber o que é o Detran. Mas, por outro, sentia uma raiva absurda que não poderia ser recalcada dessa vez. Fui me transformando numa ameba enfurecida. Perdi todos os sentidos. Não ouvia nada, não via nada e não me movimentava. Era apenas um corpo flanando no universo.

Enquanto isso, meu advogado conseguiu convencer o policial bonzinho a conversar com seu superior. O rapaz foi diligentemente à uma outra cabine e começou a falar com um homem careca que se fosse receber um nome nessa história seria Bad Bad Cop. Pouco tempo antes, esse sujeito gesticulava negativamente com um outro rapaz, que parecia lhe pedir alguma coisa. Não era um bom sinal. Quando Good Cop começou a falar com seu superior, os gestos negativos tomaram outra proporção, misturando-se com um sorriso cínico típico dos policiais. Vendo aquilo, não me aguentei.

“Você é um advogado de merda, sabia? Como pode não saber de algo tão básico quanto os documentos certos para viajar? Confiei em você seu filha-da-puta e agora estou passando esse ridículo com essa roupa ridícula e essa cara de cu.”

Ele não respondeu. Simplesmente virou as costas e se dirigiu para o Free shop. De longe, eu continuei gritando “Seu merda, lixo, arrombado, filha-da-puta, cuzão, corno, safado, imbecil, etc,” até que o policial bonzinho voltou e me disse.

“Senhor falei com meu superior. Ele disse que você vai poder viajar!”.

“Meu deus! Isso é sério?” – perguntei lacrimejante.

“Não. Vai embora daqui e pare de gritar. Antes que eu chame a polícia.”

Mostrei-lhe o dedo e sai correndo antes que fosse preso. No caminho de volta, a mala abriu e todos aqueles pacotinhos de roupas caíram no chão. Recolhi tudo e continuei xingando. Fui para a central da Latam e xinguei todo mundo mais um pouco. Estava revoltado. Xingava mentalmente meu advogado. Minha estupidez. O mundo. Nada podia ser feito além disso: Xingar, xingar e xingar. Xingando, passei o mês seguinte, até que pude colocar tudo no papel. Fiquei mais tranquilo. Preciso remarcar minha viagem, provavelmente para agosto. Não desisti de ir. Quanto ao meu advogado, quando ele voltar conversaremos. Um casinho desses não será suficiente para destruir nossa amizade.

Fim da história.

 

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As chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa produção de soja no início do ano pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho
por
Andre Nunes e Flavia Cury
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24/05/2023

As fortes chuvas que atingiram o Estado de São Paulo atrasaram o plantio da segunda safra do milho, por isso, estima-se uma redução de 8% no total colhido. Como o cereal é uma das principais matérias-primas para a produção de ração animal, isso pode levar a um aumento de preço das carnes de frango e porco em cerca de 6%.

Isso ocorreu em razão do atraso na colheita da soja, safra anterior ao grão. Por conta do excesso de chuva, o ciclo da oleaginosa foi alongado, pois o produtor foi impedido de fazer o trabalho de campo.

"Agora que a colheita foi feita, as chuvas deixaram de ser um fator relevante na soja, e passaram a ser um fator importantíssimo para o milho", explica o analista agrícola Pedro Schicchi. 

Com esse adiamento, essa safra corre o risco de ter sua fase final e primordial de desenvolvimento durante um período mais seco do ano, o que leva a espigas com tamanho e volume menores. 

Por isso, a segunda safra está com um calendário mais estreito. “Alguns produtores decidiram  por não plantar milho com medo de sair dessa janela, isso resultou em uma diminuição de 3% na área do cereal”, diz Daniel Rosa, assessor técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). 

Se as chuvas continuarem, a disponibilidade hídrica para o desenvolvimento do cereal aumenta, mas, o problema é que tende a parar de chover, já que entramos nos meses mais secos do ano. 

Em 2023, a produção de milho do Estado de São Paulo ficará próximo das 4 milhões de toneladas, uma diminuição de 8%, frente às 4,3 milhões de toneladas do ano anterior.

Produção de soja neste ano 

Por outro lado, as chuvas foram um dos fatores que beneficiaram a boa  produção de soja no início do ano, pela exata mesma questão que preocupa os produtores de milho. 

Ela é plantada em setembro e colhida em fevereiro, por isso, recebeu muitas chuvas durante o estágio final de seu desenvolvimento, as quais favoreceram a lavoura do grão.

Além do atraso na colheita, elas trouxeram apenas dois contras: a maior porcentagem de grãos ardidos (aqueles que entraram em fermentação após receberem muita chuva) e o aumento na incidência de mofo branco e ferrugem asiática, já que elas encontraram condições ideais de proliferação, explica Candice Romero Santos, superintendente de Informações da Agropecuária da Conab. 

Esses fatores não causaram impacto significativo, ao contrário do algodão, por exemplo, da qual 600 hectares de terra precisaram ser replantados em razão dos fungos.

Com a boa lavoura de soja, espera-se um cenário positivo para o mercado doméstico e para a exportação, com valores reduzidos e quantidade ampliada. No entanto, a alta no volume de produção pressiona a logística, afetando os preços e a capacidade de transporte. 

Os embarques dos cinco principais complexos exportados pelo país (soja, carnes, cereais, produtos florestais e sucroalcooleiro), saídos de São Paulo, em termos de volume, diminuíram 25% em fevereiro de 2023, comparado com o mesmo mês de 2022. Em relação aos últimos cinco anos, a redução é de 12%.

Santos ressalta que esse recuo nas exportações tem relação com outras variáveis que não apenas as chuvas. Para o complexo soja e o complexo sucroalcooleiro, por exemplo, é importante pontuar que houve redução na produção.

Quando colocado na balança, segundo Schicchi, uma safra ruim de milho é mais sentida pelo bolso do consumidor final do que a soja, pois ele é utilizado na fabricação de ração para frango e porcos.

Com isso, o custo de produção dos pecuaristas aumenta, tendo consequência no preço da carne desses animais nos mercados e açougues. 

Alta das chuvas e previsão para o restante do ano 

Segundo Cleverson Freitas, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), as chuvas ficaram acima da média em grande parte de SP, atingindo até 1194 mm de volume em algumas regiões.

Elas foram causadas principalmente pelos sistemas meteorológicos que já atuam sobre o estado durante esse período, o transporte de umidade vindo da Região Amazônica, sistemas de baixa pressão, e frentes frias que atingiram o estado.

Vale lembrar que todas as regiões do país foram afetadas de alguma forma, já que os volumes de chuva foram maiores que 500 mm em áreas do norte da Região Sul, grande parte das regiões Centro-Oeste e Norte, além do centro-sul da Região Sudeste.

Porém, a previsão para junho - justamente o final do desenvolvimento dessa leva de milho -, indica o oposto desse começo de 2023. O INMET prevê volumes de chuva abaixo da média para os próximos três meses em grande parte da Região Sudeste, principalmente em São Paulo.

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Economia e Negócios

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