A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
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Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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Bairros nasceram de ocupações irregulares no entorno do rio Tietê e são atingidos por deslizamentos e enchentes pela falta de políticas públicas ao longo dos anos
por
Gabriela Costa, Isabela Lago e Julio Cesar Ferreira
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11/05/2023

Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas
Jardim Pantanal, na zona leste e Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo sofrem com danos causados pelas chuvas (1. Reprodução/TV Globo; 2. DiCampana Foto Coletivo) 

“Eu perdi uma consulta médica porque não consegui atravessar os dois metros de altura da água na avenida Deputado Cantídio Sampaio”, conta Quintino José Viana, um ambientalista de 78 anos. Residente do bairro Jardim Damasceno, Brasilândia, ele é presidente do “Movimento Ousadia Popular”, organização que busca preservar a área verde do bairro, e recebe com frequência reclamações de moradores que ficam presos dentro de casa sem conseguir sair quando a chuva causa enchentes na região.

Bairros localizados nos extremos da cidade sofrem situações como a descrita em períodos de chuva intensa pela falta de políticas públicas e planejamento da área que não abrange, por exemplo, obras que permitam o escoamento das águas ou sua contenção por meio da polderização, técnicas usadas para mitigar o estrago das chuvas. 

O Jardim Damasceno e os demais bairros do distrito da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, historicamente enfrentam alagamentos e deslizamentos devido a sua localização nas margens da Serra da Cantareira. Outra área que enfrenta situações semelhantes durante estações chuvosas é o bairro Jardim Pantanal, várzea do rio Tietê. A região lida com enchentes anuais desde os anos 80. 

Os “extremos” são os mais afetados 

Jardim Pantanal, bairro no extremo leste com forte presença do rio Tietê, e bairros próximos da Serra da Cantareira como Jardim Damasceno e Jardim Paraná, na Brasilândia, extremo norte de São Paulo, são afetados pela chuva em épocas específicas, como os meses entre outubro e março.

O Jardim Pantanal sempre sofreu com as enchentes. Em 2009, a área ficou alagada por três meses depois que uma tempestade elevou o nível do rio. Por ser uma área plana, Joyce Ferreira, 40,  arquiteta e urbanista que fez parte da equipe do Plano de Bairro do Jardim Pantanal, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), em parceria com o Instituto Alana, conta que a relação com a água no local é inerente a sua existência por ser construído às margens do Tietê.

“Você pode ter lugares que são muito declives ou aclives, que poderiam ser considerados de risco, mas que são bem urbanizados [por estarem em áreas centrais e que sofrem com a especulação imobiliária] e por isso a área suporta melhor algum evento climático”, descreve.

Em bairros como Perdizes e Pinheiros, que são repletos de morro e área de várzea, respectivamente, o mesmo fenômeno pode ser observado, no entanto, devido aos processos de inclusão urbana e atenção do Estado por não serem locais periféricos, não passam por esses desastres.

O Jardim Damasceno, na Brasilândia, embora não tenha um Plano de Bairro, também foi ocupado por comunidades autoconstruídas em áreas de risco e próximas a córregos, como os do Bananal e Canivete. Porém, diferentemente do Pantanal, com construção plana, Damasceno é um grande morro, que tem também proximidades com a Serra da Cantareira. Nesse sentido, não só enchentes atingem o local, como também o risco de deslizamentos.

A favela da Tribo, ao lado do bairro, é um caso crítico de ocupação, por estar em um terreno irregular e íngreme às margens da Cantareira. A comunidade, além das enchentes, lida com queda de árvores e deslizamentos de barrancos devido ao tempo chuvoso, configurando o local como uma área de risco.

A região não recebe apoio de autoridades no caso de enchentes por não ser regularizada. “A Defesa Civil disse que não podia fazer nada”, conta Quintino. O morador também descreve a exposição da comunidade a mananciais que são escoamento de esgoto, o que representa um crime ambiental. 

O abandono urbano tem cor

Não só o recorte econômico, como também o racial, explicam como até a atualidade as periferias enfrentam problemas de infraestrutura causadas pela falta de políticas públicas. Estela Macedo Alves, 45, arquiteta e urbanista pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o conceito de “racismo ambiental" pode ser aplicado nesse âmbito, pois as vítimas desses desastres são majoritariamente negras. 

Como 78% da população pobre de baixa renda é negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2016, negligenciar as demandas das áreas de moradia dessas pessoas é deixá-las vulneráveis a desastres ambientais. Conforme o Mapa da Desigualdade (2022), o distrito da Brasilândia é formado por 50,6% de pessoas negras. Já o distrito do Jardim Helena, que abriga o bairro do Jardim Pantanal, tem 54,7% de moradores negros. Em comparação, 37% dos habitantes da cidade de São Paulo são negros.

Historicamente, quando as áreas centrais viviam o processo de modernização, as periferias não eram incluídas. Também como parte do processo de higienização, era preciso retirar do caminho pessoas pobres, como os ex-escravizados. A migração nordestina também ajudou a consolidar a desigualdade, já que essa população não tinha acesso ao território urbanizado graças à especulação imobiliária.

São Paulo se ergueu com inspiração nas metrópoles europeias, nas quais os recursos hídricos eram deteriorados e vistos como obstáculos ao crescimento, como explica Estela. Como a capital paulista precisava parecer uma cidade com infraestrutura, era necessário esconder a grande quantidade de cursos d'água por meio da canalização ou retificação.

A cidade, como foi construída em cima de bacias hidrográficas na tentativa de suprimir os rumos das águas, causa diversos problemas para a dinâmica da metrópole até hoje, sobretudo em áreas à margem. 

“A construção da cidade era feita por engenheiros, sobretudo os sanitaristas, e uma das questões mais importantes era se livrar de tudo que parecia não civilizado”, afirma.

Para entender como a Prefeitura de São Paulo se posiciona em relação ao acesso pleno a políticas públicas e de urbanização dessa população, o Contraponto Digital entrou em contato com a Coordenadoria de Planejamento Urbano (Planurb) por meio do telefone e e-mail, mas não obteve resposta até o momento da publicação.

Moradores agem autonomamente com a ausência do Estado 

Pela falta de execução de políticas públicas nesses locais, a própria população se vê obrigada a organizar estratégias para minimizar os danos das tragédias. Guilherme Simões, secretário de Periferias do Ministério das Cidades, explica que esses agentes coletivos estão construindo uma “economia de sobrevivência”.

De acordo com o líder da pasta, todas essas movimentações de distribuição de alimentos, mutirões de doações, entre outras ações que ocorrem em momentos de crise, são características das comunidades periféricas. Um exemplo dessas representações são as próprias associações de moradores.

Reginaldo dos Santos, 54, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal (Amojap), conta que, em momentos de enchentes, as famílias desabrigadas são movidas pelos próprios moradores para uma quadra grande do bairro. “Conseguimos trazer alimento, cobertores, insumos e até ajuda médica”, explica. Esses mutirões contemplam cerca de 300 pessoas para almoçar e jantar, além de abrigarem mais de 40 famílias para dormir na quadra.

O coordenador de gestão da Associação dos Moradores do Alto da Vila Brasilândia (AMAVB), Cláudio Kafé, 50, resume o papel de atuação dessas organizações: “Nós não temos como prevenir esses desastres: tudo que podemos fazer é esperar acontecer e depois reconstruir.”

"O Estado sabe quais são os pontos mais vulneráveis, sabe quais as famílias em área de risco, mas, infelizmente, não toma as medidas necessárias”, explica o líder comunitário.

O secretário de Periferias afirma que esse conhecimento dos moradores das regiões deve ser utilizado no momento de elaboração de políticas públicas, sendo necessária a criação de um “Plano Diretor Municipal."

A arquiteta Ferreira explica que a elaboração desse documento é geralmente feita por órgãos do governo ao lado de especialistas. “O objetivo é ser uma diretriz de investimentos públicos para melhorias”, resume.

Em outras palavras, o “Plano Diretor” visa reconhecer os problemas desses territórios e interligar possíveis instrumentos para solucioná-los. A urbanista explica que esse plano "é um reflexo dos conflitos do local; por isso, é importante ter a participação de todos, porque é um processo democrático e o choque entre ideias é inerente.”

Da mesma forma, o “Plano de Bairro” precisa ser elaborado com base nas especificidades daquele lugar. Diferentemente do anterior, esse último documento pode ser elaborado por qualquer instituição, até mesmo aquelas de caráter civil.

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O ProUni, programa que dá bolsas integrais e parciais à população de baixa renda do Brasil, dá oportunidade para ascensão social e de classe
por
Henrique Alexandre
|
20/04/2023

Quando o Programa Universidade para Todos (PROUNI) foi lançado no longínquo 2004, a expectativa do governo de Luiz Inácio Lula (PT) era de que ele trouxesse mais equilíbrio na quantidade de alunos de classe alta e de classe baixa nas universidades do Brasil. Para além disso, era também uma tentativa de reparar o escanteamento histórico que a população pobre, principalmente a negra, teve no país. Era entendido que com a educação, os pobres, que na época representavam 33,2% % da população da época, teriam a oportunidade de crescer financeiramente e socialmente no Brasil.  

 

No primeiro processo seletivo de bolsas, a quantidade de vagas ofertadas era baixa, um pouco mais de 95 mil. Perto dos 184 milhões de brasileiros que viviam nessa época, a quantidade de bolsa era uma unha perto da desigualdade que existia. Porém, com o sucesso do programa, o número de ofertadas foi aumentando gradativamente com o passar dos anos.  

 

Em 2006, foram 109 mil bolsas. Em 2010, quando o programa completou 5 anos de implementação, foram 152 mil. Em 2019, ano pré-pandêmico, a quantidade de bolsas saltou para quase 250 mil. Enquanto isso, milhões de estudantes de classe baixa foram se formando e ascendendo socialmente por conta dessa política de estado. Ou seja, a expectativa de 2004 virou realidade. 

 

Um dos exemplos mais notórios dessa mudança de vida que o estudo permitiu foi da atual comentarista da TV Globo, Ana Thais Matos. Filha de empregada doméstica, Ana Thais conta que vivia em uma situação que não era alarmante, mas era de insegurança financeira. "Minha família tem uma origem humilde, bem pobre mesmo. Minha mãe Francisca era empregada doméstica, vendia bandeiras de times no estádio do Pacaembu e cuidava de mim e dos meus cinco irmãos." 

 

Atualmente, ela é uma das principais comentaristas da maior emissora de televisão da América Latina. Em 2022, fez história: foi a primeira mulher a comentar os jogos do Brasil em uma Copa do Mundo Masculina de Futebol. Ao lado de Galvão Bueno e o ex-lateral Junior, ela acompanhou de perto a campanha do Brasil no Qatar. Ana Thais fala que se não fossem os estudos, não conseguiria chegar lá.  

 

"Eu devo tudo a minha força de vontade, claro, mas também a oportunidade que me foi aberta há 16 anos, em 2007. Se eu não tivesse entrada na faculdade, possivelmente não teria isso conquistado tudo isso na minha vida." 

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A prounista mais famosa do Brasil desfila o seu conhecimento na TV Globo - (Foto: Reprodução/Sportv)

Ela lembra que quando passou na universidade, quase caiu da cadeira, pois não estava esperando a aprovação na PUC-SP. "Também tinha feito inscrição no Prouni, porque estudei a minha vida toda em colégio público. Eu estava na praia, em Itanhaém, triste, porque todas as minhas amigas já tinham passado na faculdade. Eu fiquei para trás... Até entrei numa lan house para mandar um e-mail para o meu irmão, perguntando se eu poderia morar com ele em Florianópolis para recomeçar minha vida. Quando abri, tinha uma mensagem da PUC (Pontifícia Universidade Católica) me avisando que eu tinha sido aprovada para uma bolsa através do Prouni para jornalismo. Eu quase caí da cadeira", lembra a comentarista com emoção. 

 

Hoje, surfando na onda do sucesso, a comentarista manda um recado claro para as próximas gerações: "não deixem de estudar. Você que é de classe mais baixa, não pense que é incapaz, têm várias formas de entrar na universidade. Tem o ProUni, tem o FIES, enfim. Se eu consegui, você também pode.", finaliza Ana Thais. 

 

LICENÇA POÉTICA - AO ALTO E AVANTE

 

Agora saio da terceira pessoa, do distanciamento jornalístico e me incluo nessa história. Sei que não é praxe das redações de jornais o redator colocar o seu ponto de vista em uma matéria informativa. Porém, é um assunto que mexe tanto com o meu coração e meu ímpeto que peço desculpas aos deuses do jornalismo e solicito, unilateralmente, essa licença poética para rasgar as tradições da profissão. 

 

Digo para você, caro leitor, que as próximas gerações de prounistas têm em quem se inspirar. Não necessariamente precisa ser pessoas que estão na mídia, no vídeo, em rede nacional. Pode ser gente do nosso cotidiano. O vizinho, o colega de empresa, o primo de um grande amigo. Felizmente programas de ascensão social colou no Brasil, embora exista críticas daqueles que lutam para manter o sistema opressor de pobres desse país. Há vitória nesse programa que vai completar 20 anos em 2024. Temos 'Michelles', 'Luans', 'Dayres', 'Geyzas' e entre outros prounistas por aí tentando vencer na vida. E eu me incluo nessa. 

 

Assim como a Ana Thais Matos, sou prounista de jornalismo na PUC-SP. Como ela, trabalho na TV Globo. E posso dizer aos quatro ventos que assim como a comentarista e milhões de brasileiros que entraram na faculdade pelo ProUni, tive minha vida transformada pelo estudo e ascendi socialmente. Sai da favela do sapé, na zona oeste de São Paulo, em uma casa que ficava do lado de um ponto de tráfico para estudar em uma das maiores universidades do país. Não quero que pare em mim e assim como a Ana Thais Matos falou na nossa entrevista: "vamos lutar pra ter mais".  

 

Deuses do Jornalismo: fim da licença poética. 

 

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Brasil afora, milhares de entregadores de aplicativo ganham e perdem a vida nas ruas.
por
Texto: Guilherme Silvério Tirelli | Audiovisual: Maria Eduarda de Souza Magalhães
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20/04/2023

Texto: Guilherme Tirelli 

Audiovisual: Maria Eduarda Magalhães

Faça chuva ou faça sol, à noite, no meio de tempestades ou ainda que caia neve, eles são figuras constantes nas ruas. No ritmo acelerado da metrópole ou na selvageria do interior, muitas vezes às margens da sociedade, sem qualquer tipo de reconhecimento, encontram-se os entregadores de aplicativo. Quase que imperceptíveis aos olhos do “cidadão”, são notados apenas quando buzinam, esbarram ou passam a centímetros do seu retrovisor. Suscetíveis aos perigos da vida urbana, o trânsito é o que menos aflige o cotidiano desses trabalhadores. Entre os carros e caminhões, atravessam semáforos triscando as latarias dos automóveis para entregar seu pedido no menor tempo possível. E fazem isso por pelo menos dois motivos em especial.

O primeiro deles diz respeito a satisfação do cliente, levando em consideração que ninguém gosta de esperar mais tempo do que o previsto para sua comida chegar – o que pode representar um feedback negativo para a empresa e empregados. O segundo e mais cruel deles é o salário, que na imensa maioria dos casos, é proporcional ao número de entregas realizadas no dia, semana ou mês. Logo, quanto mais rápido chegarem, mais pedidos serão encaminhados à eles e, consequentemente, aumentando o ganha-pão cotidiano.

Por trás dos capacetes, esse triste cenário revela uma realidade um tanto quanto desafiadora: colocar comida na mesa é muito mais difícil para quem tem que trabalhar com ela, literalmente, amarrada em suas costas. Para piorar essa situação, nas pizzarias, bares e restaurantes, os entregadores precisam embalar o pedido que acabou de sair do forno, “quentinho” e temperado. No pensamento, a imagem da sua casa, dos filhos e da esposa abatidos por conta da fome. Para garantir melhores condições para sua família, são esses os percalços aos quais eles se submetem. Trabalhar com a barriga vazia, entregando uma refeição que não é sua. Não existe nada mais cruel do que isso.

De acordo com dados divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Penssan, no 2º Inquérito Nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número de brasileiros que sofrem com algum nível de insegurança alimentar ultrapassou os 125,2 milhões. O levantamento revela que, por falta de opção, inúmeras pessoas se submetem a trabalhos sem carteira assinada, temporários ou como freelancers. A questão central aqui é que nenhum deles oferece condições trabalhistas mínimas. Logo, eles não possuem direitos, muito menos garantias quanto à segurança. Trata-se de uma parcela da população que sai de casa em busca da sobrevivência.

Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas
Manifestação contra a falta de direitos trabalhistas - Fonte: Getty Images

O efeito da pandemia

No primeiro semestre de 2020, o Coronavírus se alastrou como foguete e ninguém àquela altura era capaz de prever os próximos capítulos da pandemia. Muito se ouviu sobre os trabalhadores essenciais e como eles não poderiam, em hipótese nenhuma, parar, já que o restante da população dependia diretamente dos seus serviços. Apontados e glorificados pelo senso comum como heróis, os profissionais das áreas da saúde, segurança e alimentação formavam a linha de frente no combate as consequências desse cenário pandêmico. Nesse contexto, os entregadores de aplicativo tiveram uma presença ininterrupta nas avenidas e ruas, embora fossem escassamente reconhecidos.

Em geral, a invisibilidade é rotina para a maioria desses trabalhadores. Os aplicativos de delivery, inegavelmente, dominaram o mercado de uma forma jamais vista. É compreensível, uma vez que, frequentar os estabelecimentos era inviável, logo a comida precisaria bater na porta dos clientes. Os grandes nomes por trás desse fenômeno são de conhecimento geral. iFood, Rappi e outros apps similares já eram figuras carimbadas no gosto do consumidor. As cores vibrantes e os símbolos engenhosos, infelizmente mascaram aquilo que não vemos. Nas notas fiscais o valor da entrega é creditado, contudo, é impossível aferir o preço da falta de segurança ou das noites mal dormidas. A hora-extra não paga a falta de condições mínimas de trabalho ou as dúvidas que pairam na cabeça desses motoqueiros.

Uma dessas dúvidas é se eles voltarão sãos e salvos para suas casas. O crescente número de motociclistas nas ruas afeta diretamente a quantidade de acidentes registrados. Antes do “boom” dos aplicativos, entre 2015 e 2016, as ocorrências com motos representavam 20% dos atendimentos no Hospital das Clínicas. Atualmente esse índice supera os 80%, de acordo com depoimento de Julia Maria D’Andréa Greve, coordenadora técnica do Laboratório de Estudos do Movimento da instituição. O relatório final da “CPI dos aplicativos”, ainda aponta que 60% a 70% das internações em estado mais grave no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do hospital envolvem motocicletas.

São esses desafios que Samuel Jonatas e outros tantos entregadores enfrentam diariamente.

 

Já segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem 1,5 milhão de pessoas que atuam como motoristas e entregadores de aplicativos, taxistas, moto-taxistas ou outras atividades feitas de maneira autônoma no setor de transporte. O mesmo levantamento apresenta que, quando se trata de moto-taxistas, mais de 73% são homens pretos e pardos. Em contrapartida, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos - Abia, os empresários do ramo de entregas de alimentos atingiram R$ 35 bilhões de lucro em 2021.

A dor que ninguém vê

Como dito anteriormente, chegar em casa na madrugada cansado, muitas vezes faminto e ter que levantar cedo novamente no dia seguinte, sem qualquer garantia oferecida pelas empresas corresponde a um cenário desumano. Nem o mínimo no que diz respeito aos vínculos empregatícios é concedido à eles. No caso de Renato, um entregador que ganhou certa notoriedade no ano passado, para economizar o transporte diário, que girava em torno de R$ 25, muitas vezes ele dormia nas ruas do Rio de Janeiro, caso contrário, a missão de sustentar sua família ficaria ainda mais difícil.

O caso de Rafael Vaz de Lima ainda é mais chocante. Retornando de sua última entrega, teve um “apagão” – provavelmente causado por estresse, conforme a palavra dos médicos. O entregador perdeu o movimento das pernas e braços, causado pelo impacto da mochila com o seu corpo.

Histórias como essas são parte do cotidiano desses entregadores, assim como a luta por direitos básicos. Por isso, figuras como Paulo Galo, conhecido como "galo de luta", surgem para denunciar a exploração da mão de obra. Galo ganhou destaque em 2020, ao liderar o movimento "Entregadores Antifascistas" que desde o início da pandemia, têm como objetivo central, melhorar a situação dos trabalhadores do ramo.

Apesar da Lei Federal nº12009 regulamentar a profissão dos motoboys e padronizar o moto-frete e moto-táxi em todo Brasil, a medida tem mais de 10 anos e desde a assinatura do Governo Federal, pouco se avançou na questão. A falta de fiscalização e incentivos para os motociclistas se adequarem à legislação é mais um empecilho que contribui para que a situação permaneça estagnada.

Em detrimento da precariedade trazida pela falta de regulamentação, no mês passado, o presidente Lula criticou duramente as empresas de aplicativos e afirmou que elas "exploram os trabalhadores como jamais foram explorados", em discurso para a Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas. Além disso, alertou que é preciso retomar o diálogo do governo com o movimento sindical para formalizar um novo pacto entre os trabalhadores e as empresas. Ainda assim, esse corresponde a um pequeno passo em busca daquilo que já deveria ser direito de todos eles há muito tempo.

O dia que não terminou

Um dia inteiro têm 1.440 minutos, 86.400 segundos e na manhã seguinte daquele sábado, cada um deles fizeram a diferença. Tudo o que eu queria era que aquilo nunca tivesse acontecido. Desde a infância jogara futebol com a energia de uma criança e o coração de um garoto e nem mesmo todo cansaço, nos meus piores dias em campo, me fizeram sentir algo parecido.

Nesse dia em questão me desafiei na função de entregador. Entretanto, não tinha o relógio contra mim, nem um chefe que me demitiria caso cometesse algum deslize. No interior da minha cidade, minha rotina de entregas iniciou-se na parte da tarde, sob a tutela de um amigo que possui uma livraria. Consigo carregar os livros na minha mente e as palavras no meu imaginário. Tatuadas na minha alma, as letras não fizeram a diferença.

Nunca pensei que, nos ombros, um livro poderia pesar tanto. Ainda assim, carrega-los nas costas pedalando pareceu-me uma ideia intrigante – por isso topei logo de cara e se arrependimento matasse, já não estaria mais sob essa Terra. Quando cheguei em casa, só lembro do alívio de me atirar no sofá e “apagar”. Porém, a dor descomunal nas pernas não me deixou pegar no sono. Parecia que acabara de correr uma maratona. Aquele sentimento de cansaço como jamais presenciei antes. De repente, o alívio me levou a uma reflexão: Como seria se eu tivesse que fazer isso todo santo dia?

Nos dias subsequentes a esse, só de lembrar da experiência já sentia um calafrio, que gelava a minha espinha dorsal, numa espécie de paralisia. E então tive a certeza de que é preciso além de sangue-frio, uma coragem do tamanho do mundo para arriscar a própria vida nas ruas. Os entregadores não entregam só comida. Nas minhas horas de “expediente”, sempre tive a certeza de que voltaria pra casa e lá teria um jantar pronto esperando por mim – privilégio esse que a maioria desses trabalhadores não têm. Por trás do “bom-dia”, eles mascaram a realidade que nem todos enxergam: um cenário de muita luta e dedicação de quem exerce seu ofício priorizando o outro.

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Economia e Negócios

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Como a busca por uma 'masculinidade saudável' acaba gerando ódio e misoginia a mulheres que sofrem ataques constantes pela machosfera
por
Sophia G. Dolores
|
14/04/2023

Você já ouviu falar do movimento ‘RedPill’? O termo que chamou atenção nas últimas semanas em discurso dado por Thiago Schutz, responsável por um manual que leva o mesmo nome do movimento, traz a ideia de ‘resgatar e fortalecer a masculinidade saudável’. Movimentos como este, ou até mesmo a famosa "machosfera" discutem o papel dos homens na sociedade, mas o resultado efetivo é bem diferente: eles acabam gerando discursos machistas e, muitas vezes, misóginos, onde defendem a errônea percepção de que o feminismo é na verdade, o contrário do machismo, ou seja, prega a superioridade das mulheres. Ideias semelhantes, interesses iguais e direitos mal compreendidos juntam essa parcela de homens em um suposto conceito de misandria (ódio a homens) estatal, preconceito prejudicial, segundo eles, a homens brancos heterossexuais. 

Thiago Schutz, ou o ‘coach do Campari’ como ficou conhecido, tem um perfil no Instagram chamado “Manual Red Pill Brasil”, com cerca de 300 mil seguidores, no qual ele dá “conselhos” para homens. Seus vídeos, apontados pelos internautas como machistas e misóginos trazem falas como: “o propósito de um homem num relacionamento tem que estar sempre acima do propósito da mulher”; “a sua mulher custa mais caro que uma garota de programa”; e “o homem está mais feito para o sexo do que a mulher”. 

A maioria dos discípulos de movimentos como o ‘RedPill’ pertencem a extrema-direita e concordam que o mundo não discute de forma correta problemas relacionados a homens, como por exemplo, a falta de acolhimentos para homens vítimas de violência doméstica, e até a misandria que, segundo eles, é praticada por movimentos feministas. Na visão dos adeptos a pílula vermelha do filme Matrix, filme que deu origem ao nome desses grupos, isso porque no sucesso de 1999, Neo precisa escolher entre uma pílula azul e outra vermelha, sendo a Red responsável por libertar a pessoa do mundo imaginário, mundo esse, injusto, segundo a ‘machosfera’, pois na verdade, o sistema sempre esteve aqui para privilegiar as mulheres. 

Mas que sistema é esse que privilegia mulheres? Esse sistema não é uma questão de subverter a ordem social, mas sim de buscar a igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros. A desigualdade de gênero não é um problema que afeta apenas mulheres de classes menos favorecidas, ela se manifesta em todas as esferas da sociedade, desde o acesso a cargos políticos até a remuneração no mercado de trabalho. Essa desigualdade é agravada por fatores culturais e socioeconômicos, como a ideia de que as mulheres devem ser submissas aos homens e a falta de políticas públicas que garantam a igualdade de gênero. 

Entretanto, essa diferenciação pode ser atribuída a outras questões. O que justificaria então a existência de mulheres que perpetuam o discurso machista? Mulheres também presentes em movimentos masculinistas é mais comum do que se possa imaginar. A existência de mulheres que preservam e concordam com o discurso machista não é uma contradição, mas sim uma manifestação do patriarcado que as ensina a internalizar valores e ideias que as prejudicam e desfavorecem suas lutas. 

Ao longo da história, as mulheres foram consideradas inferiores e incapazes, mas a luta por direitos e igualdade vem se fortalecendo ao longo dos anos. No entanto, ainda é evidente que a imagem da mulher é construída, imaginada e principalmente, disseminada por homens, fazendo com que discursos de ódio sexualizado, oprimindo e ridicularizando ainda sejam recorrentes nas diferentes esferas sociais. 

Juliana Wallauer, jornalista, roteirista, mediadora e, atualmente apresentadora do ‘Mamilos Podcast’, conta o verdadeiro medo que os homens possuem, fazendo com que eles encontrem nas ameaças e discursos de ódio, o seu refúgio. “A luta feminista é uma luta por igualdade, e não para trocar o opressor [...] Eu acho que é uma resistência de homens feridos, de homens com medo, sem ter uma clareza de qual é o papel que existe para eles aqui. Que mundo novo é esse quando a gente tira a masculinidade tóxica? O que sobra? Como amar os homens se todos já nasceram machistas? Eles têm medo da perda do poder [...] o ressentimento pela perda do poder, o medo sobre um futuro que eu não sei qual é, não sei qual é o meu lugar, onde que eu pertenço, qual o papel que ainda existe para mim. Eu acho que tudo isso é um caldo muito fértil para o crescimento desses grupos masculinistas e da continuação de discursos machistas.” 

A inferiorização das mulheres por parte de alguns homens é uma questão complexa e multifacetada. Segundo estudos, essa postura pode ter origem em uma série de fatores, como a socialização de gênero, que muitas vezes reforça estereótipos e papéis desiguais para homens e mulheres. Além disso, a cultura machista que permeia muitas sociedades pode fazer com que os homens se sintam ameaçados pela luta feminista e pela busca por igualdade de gênero. Esse sentimento de ameaça pode levar à adoção de posturas agressivas e discriminatórias, como a disseminação de discursos de ódio e a inferiorização das mulheres. Outro fator importante é a falta de educação e conscientização sobre questões de gênero. Muitos homens não têm contato com informações que os levem a refletir sobre seus comportamentos e atitudes em relação às mulheres, o que pode contribuir para a perpetuação de comportamentos machistas e violentos. 

Juliana ainda reforça que tais discursos de ódio só existem porque, infelizmente, os homens ainda possuem mais força que as mulheres, sejam elas verbais, físicas ou sociais. “Tem estudos que mostram que o homem vai ser violento com a mulher por quê? Porque ele pode. Porque ele consegue. A mulher vai ser violenta com as crianças e com os animais. Então, essa mulher que recebeu porrada da vida, de todo mundo que interage com ela, inclusive do marido, ela vai pegar os vulneráveis que estão ao alcance dela e vai repetir essa violência que, talvez não necessariamente seja física, embora muitas vezes seja, mas pode ser de outras ordens. A gente tem uma ordem estruturada que coloca o homem numa posição superior, acima, mais importante e mais ouvida, e até religiosamente como cabeça da família em relação a mulher [...] existe uma hierarquia clara que é defendida por uma série de estruturas, e ele vai jogar em cima dela todas as frustrações que ele tem, porque ele pode.” 

Apesar das questões legítimas envolvendo homens, como a ausência de suporte para vítimas de violência doméstica, a noção de que um sistema que favorece as mulheres é de todo modo, errônea. Além disso, a presença de mulheres que apoiam ideias machistas não é uma contradição, mas uma demonstração do patriarcado que as ensina a internalizar valores que sempre as prejudicaram, já que crescer com essa mentalidade é incutido na educação e na criação de uma mulher, assim como na mente estreita de homens que se alinham com esses grupos masculinistas, que na realidade, estão perpetuando discursos de ódio. 

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Os parágrafos abaixo contém ironia
por
Júlia Gomes Zuin
|
13/04/2023

 

Meu nome é Thiago Schutz, e sempre dou início a quaisquer tipos de texto com uma frase de impacto. Além desta característica, sou um profissional de orientação pessoal ou, em outras palavras, coach: dou auxílio aos Homens para que os Eles acordem para a realidade social opressora e os instruo a desenvolver sua própria conjuntura justa e biologicamente definida, como um leão que ruge ao acordar, da mesma maneira que um gorila bate em seus peitos quando quer mostrar o seu poder (por isso invejo as mulheres cis, que nasceram com mais seios que eu).

Os Homens vêm sofrendo, imagino que desde a primeira guerra mundial - quando as mulheres começaram a invadir o mercado de trabalho e roubar autonomia - um ódio pitoresco e invejoso pela sociedade moderna. Hoje em dia, é comum observarmos críticas ao comportamento Masculino (este, indubitável) tanto em um âmbito macro socioeconômico, quanto micro. As políticas públicas apenas beneficiam mulheres, ignorando totalmente aqueles que de fato movimentam e constroem este meio altamente especial: os seres masculinos. Não é à toa que a expressão “seres humanos” é masculina, muito menos que, ao se referir a ela, é possível utilizar como sinônimo “Homem”. Enganados estão os gregos antigos, que consideravam Gaia, ou seja, a terra, um planeta feminino - sua forma de esfera indica uma barriga de chope que demoramos anos para alcançar (exige muita coceira de saco).

O cenário é este, te afirmo. Agora coloco: qual seu posicionamento diante dele? Muitos, alienados, concluem que o melhor é se inserir neste Estado conforme ele o impõe. Outros, nem enxergam estes absurdos. Já alguns, como eu, lutam para que ganhemos a devida atenção novamente, como meu antigo familiar e primeiro ser geneticamente desenvolvido de maneira racional, a anta.

Durante minha jornada, claro que violenta, pois fisicamente assim sou, enfrentei vários dragões. Um dos piores é recente, e fico de joelhos por ajuda máscula - por isso escrevo estes parágrafos.

No início do mês, a atriz Livia La Gatto publicou em suas redes um vídeo me ridicularizando. A influenciadora não citou o meu nome, mas me senti afetado já que ela coloca de maneira debochada meus mandamentos e ideias meticulosamente elaboradas. Esbravejei nos ombros da mulher que contratei para me acolher neste momento insuportável (aliás, ela é a única que me apetece, já que as outras, nós Homens temos que fazer um sacrifício para suportar).

De modo sugestivo, mesmo com raiva, escrevi à Lívia para que ela tirasse o material do ar. Ela leu a mensagem, não me respondeu e, ansioso por uma resposta, liguei para ela - ninguém atendeu minhas chamadas (odeio ser ignorado). A resposta que tive foi conduzida a mim judicialmente: Fui definido como Réu.

A (in)justiça chama minha opinião exacerbada de crime. Não é à toa que divulgo o meu trabalho como uma atividade de resistência. Além disso, as autoridades decidiram que eu não posso conduzir a minha fala à moça, nem pela internet, muito menos pessoalmente. Eis que tenho que ficar trezentos metros longe dela. O que eu não entendo é a falta de capacidade desta massa envenenada populacional de não saber interpretar um texto. Como provariam que ameacei a artista quando disse “Você tem 24H para tirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, processo ou bala. Você escolhe.”.?

De qualquer forma, “O amor venceu!”, e é isso que importa. Peço, pelo amor de deus, que os Homens me ajudem. Se você está lendo isso e possui pelos no saco escrotal (de acordo com o meu Manual Red Pill e também a bíblia, quanto mais pelo no gorgomilo, mais forte você é, me ajude - “Dalila fez Sansão dormir com a cabeça em seu colo e então chamou um homem para cortar as sete tranças do cabelo dele. Desse modo, começou a enfraquecê-lo, e suas forças o deixaram”. Juízes 16:19-30 NVT”). Vamos unir as nossas mais profundas raízes capilares para acabar com a censura.

ObrigadO,

Thiago Schutz

  

Disclaimer: O texto é uma sátira escrita pela aluna Júlia Zuin.

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