A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
por
Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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As eleições de 2022 revelam a perda simbólica do capital político do presidente Lula na região do ABC Paulista
por
Maria Ferreira dos Santos e Malu Araújo
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11/12/2022
Lula em greve em São Bernardo do Campo (SP) na década de 70. Foto: FolhaPress
Lula em greve em São Bernardo do Campo (SP) na década de 70. Foto: FolhaPress

Marcada pela luta sindical e por ter sido o berço político do atual presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a região do ABC Paulista apresentou uma queda eleitoral do petista em comparação com eleições anteriores. Tal perda se deve principalmente às mudanças políticas e sociais sofridas no perfil do ABC, principalmente com a dissolução do sindicalismo na região. 

A perda política do PT na região do ABC, não é novidade das eleições de 2022. De 2002 a 2006, a queda no número de votos recebidos foi de 9,71%. Agora, a perda de 2022 se comparado a 2002 é 5,48%, se comparado com os números de 2006 é menor, de somente 1,78%.

 

Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2002- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2002- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2006- Fonte: SEADE
Porcentagem de votação no Presidente Lula em 2006- Fonte: SEADE

Maria do Socorro Braga, doutora em Ciência Política e professora da UFSCar, defende que essa queda pode ser “relativa”, mas que ainda sim são dados que "apontam que o PT está perdendo cada vez mais espaço nessa região”. Braga acrescenta que Lula “só se tornou essa liderança tão forte e expressiva hoje” por conta de seu “capital sindical”.

ABC Paulista é composto por sete cidades: Santo André, São Bernardo do Campo,  São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Foto: UFABC
ABC Paulista é composto por sete cidades: Santo André, São Bernardo do Campo,  São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Foto: UFABC

 

Das sete cidades que fazem parte do ABC Paulista, as quatro principais são: Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema, isso porque a tomada de decisão delas influencia o posicionamento das demais. Contraditoriamente, entre elas quatro a preferência eleitoral é divergente.

Das eleições de 1972 às de 2020, Santo André teve sete vezes seu prefeito alinhado às diretrizes da esquerda. João Avamileno e Celso Daniel, por exemplo, foram políticos do PT reeleitos com número de votos expressivo. Em 2000 Celso Daniel foi reeleito com 70,13% dos votos válidos. Após 16 anos, o município elege Paulo Henrique Serra (PSDB) com 78,21% dos votos válidos. Em 2020, ele foi novamente eleito, com 76,93% dos votos.

Lula, à esquerda, e Celso Daniel, à direita, na época em que eram colegas de partido Foto: Reprodução l GloboPlay
Lula, à esquerda, e Celso Daniel, à direita, na época em que eram colegas de partido Foto: Reprodução/GloboPlay

Já em São Bernardo do Campo, em cerca de 30 anos, somente sete prefeitos alinharam-se à ideologias mais progressistas, enquanto outros seis foram de direita ou centro-direita. Desses sete, três foram do PT. O primeiro prefeito de esquerda eleito foi Maurício Soares em 1998, na época do PT. A esquerda se apresenta com maior evidência a partir dos anos 90, conseguindo 06 mandatos seguidos. A “época de ouro” se encerra em 2016 com Luiz Marinho (PT). 

Hélio da Costa, historiador e atual coordenador da área de estudos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, acrescenta que a situação econômica do país favoreceu esse cenário. “[Luiz] Marinho só se elegeu porque o governo Lula estava muito bem”, pontua. 

O ano de 2016, foi um marco da queda do PT. É nesse ano em que houve o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. Não coincidentemente, é a partir desse ano em que o partido perde cada vez mais poder na região.

Em 2018, após ordem de prisão dada a Lula, apoiadores do político estiveram no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP), até que o ex-presidente fosse de fato preso — Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
Em 2018, após ordem de prisão dada a Lula, apoiadores do político estiveram no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP), até que o ex-presidente fosse de fato preso — Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

São Caetano do Sul, por sua vez, não só nunca teve um prefeito alinhado com propostas da esquerda, como candidatos progressistas obtêm um baixo número de votos no município.

Na última eleição, em 2020, por exemplo, os outros dois colocados no pleito foram Mario Camilo Bohm (Novo) e Thiago Tortorello (PRTB), com 16,64% e 10,83% respectivamente. Ambos são de direita. 

Em 2016, o cenário eleitoral foi o mesmo. E nos anos de 2012, 2008, 2004 e 2000 os principais candidatos opositores receberam menos de 35% dos votos.

Diadema, em contrapartida, traz consigo o marco de ter sido a primeira cidade a eleger um prefeito do PT.

O candidato em questão foi Gilson Menezes, eleito em 1982. Desde então, a cidade tem sido coordenada por partidos que compartilham do mesmo ou semelhante posicionamento político.

 A história de Gilson Menezes, inclusive, reflete bem o histórico do ABC Paulista, pois ele nasceu na Bahia e veio à região para trabalhar nas indústrias, como tantos outros, depois participou das grandes greves e, por fim, fez parte da fundação do PT.

Além dessa contraposição, outro fator relevante para se analisar é a média de deputados estaduais eleitos do PT nos municípios do ABC entre os anos de 2002 e 2006, comparando-os ao ano de 2018.  De acordo com a Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de Dados) durante os anos de auge do partido foram eleitos em média 4,2 candidatos do PT, dentre 15 cadeiras a ocupar. Já em 2018, essa média cai para 1,5 candidatos eleitos pelo PT.

Para Hélio da Costa a popularização de Lula não significou necessariamente uma “transferência de votos”. Com exceção de Diadema, os outros municípios do ABC tiveram menos prefeitos alinhados à esquerda.

Já Richard Martins, graduado em história e mestre em ciência política, explica que a região sempre foi mais conservadora, mas que na época de 70 e 80 o apoio ao sindicalismo com bases esquerdistas se deu por questões trabalhistas e econômicas. Martins defende que “é comum e característico da classe trabalhadora votar com o bolso”.

As décadas de 70 e 80 no ABC Paulista foram marcadas pelas greves nas grandes indústrias. Essas surgiram devido à insatisfação dos operários devido aos elevados níveis de demissões, corroborados pela especulação de que o regime militar (1964-1985) havia maquiado os índices da inflação encobrindo o custo de vida da população. 

Em 1977, as greves já haviam se alastrado para muitas fábricas e cidades vizinhas, incluindo classes trabalhadoras desde os metalúrgicos aos bancários, perpassando pelos professores. Em 1980, os movimentos foram atores sociais importantes para o enfraquecimento da ditadura militar e pelo fortalecimento de pautas da esquerda no país.

O fato de Lula ter assumido o protagonismo sindical no ABC nas décadas passadas o levou a uma certa popularização na região e, posteriormente, ao PT também.

Sidney Jard, professor da Universidade Federal do ABC, doutor em ciência política pela USP, acredita que os momentos históricos vivenciados pelo ABC influenciam pouco na hora de votar. Isso porque antes o movimento sindical pautava muitas coisas com os trabalhadores e agora há um enfraquecimento do sindicalismo e, consequentemente, de sua mobilização política.

Dentro disso, Costa argumenta que “o discurso de esquerda assusta o trabalhador, ele respeita o papel do sindicato, mas isso não significa que ele se identifica com valores da esquerda principalmente às vezes nos costumes a respeito da diversidade LGBTQIA + ,sobre feminismo, questão racial”.

Martins justifica a queda da esquerda no ABC Paulista com o enfraquecimento do sindicalismo. Tanto para ele quanto para Costa isso aconteceu principalmente pela terceirização e a uberização do trabalho. 

“O que o terceirizado vai ter em comum com o trabalhador de contrato assinado e que tem o sindicato para defendê-lo? [...] Quem está na uberização sequer tem uma troca [de vivências] com outros [trabalhadores]”, exemplifica o historiador.

O cientista político Jard assinala que quando “se abrem espaços para que parte dos trabalhadores negociem diretamente com os empresários, com os patrões, sem depender da negociação” feita pelos sindicatos, as demandas de até então desaparecem.

Jard frisa que antes “havia uma identidade de trabalhador no ABC Paulista” e que com a chegada desse trabalho descontínuo isso se perde. “Qual a identidade de um trabalhador que trabalha para vários patrões? E qual o sindicato o representa?”, pontua.

Outro fator para a dissolução das entidades sindicais foi o corte dos incentivos tributários, em que antes se tinha com os “impostos sindicais”. Dentre as ressalvas feitas a esse tipo de recurso, o cientista político esclarece que deveria ter sido feito um processo de transição, na qual as entidades “pudessem se organizar e criar formas alternativas de sustentação dos seus trabalhadores, inclusive formas autônomas”.

A cientista política Maria do Socorro Braga defende que não só a região do ABC, mas o eleitoral nacional em sua maioria está mais preocupado com a sua mudança de vida do que com ideologias. “A tendência é buscar aquelas forças, independente se é de esquerda, de direita e de centro que mais apoie uma melhor qualidade de vida das pessoas”. A docente elucida que a identificação partidária é “uma construção de longo prazo”.

Diante disso, a docente acredita que “as forças políticas partidárias é que terão que construir projetos para corresponder a esses anseios e demandas dos diferentes segmentos populacionais”.

  A respeito dessa perda de votos por parte da esquerda, Braga afirmou: “a esquerda vai ter que saber se unir como fizeram agora ao redor do ex-presidente Lula [...] parece que eles já perceberam que vão precisar dessa união para a esquerda conseguir que novas lideranças venham a ocupar esse espaço e aí é muito importante como é que o PT vai se colocar tendo que abrir mais espaço para outras liderança que não só são do campo petista”.

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Publicidade do petista concilia popularidade do ex-tucano com a reação de sua militância.
por
Pedro Kono, Yerko Bazan e Fernando Figaro
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10/12/2022

Como forma de aproveitar a aliança entre Lula e Geraldo Alckmin, chapa que concorre à presidência pelo PT, a campanha de Fernando Haddad para o governo de São Paulo busca utilizar a figura do ex-tucano para levantar votos no interior. O ex-prefeito, porém, enfrenta o forte antipetismo que existe nesse eleitorado.

De acordo com Juliana de Souza Oliveira, mestra do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Políticas e Eleições (NIPE-CEBRAP), há um efeito diferente em capitalizar a figura do ex-tucano em eleitores do interior e da capital.

''O eleitor do interior tende a ser mais fiel aos tucanos, e a gente não pode esquecer que uma grande parcela de quem vota no interior de São Paulo vêm da agricultura e também de um setor industrial importante. Essas pessoas tendem a ter mais receio de uma mudança, o que caracteriza um eleitor mais conservador'', explica Juliana.

O eleitor das metrópoles, por outro lado, é conhecido por "arriscar mais", segundo Juliana, como foi o caso da eleição do próprio Fernando Haddad para a prefeitura paulistana, em 2012. A pesquisadora ainda completa destacando que "o sindicalismo em São Paulo é uma questão muito importante, não só na capital em si, como em toda a região metropolitana, o que ajuda ainda mais a determinar a diferença entre os dois eleitores".

As últimas duas eleições para o governo do estado ajudam a explicar a importância do eleitorado do interior. Segundo levantamento da Folha de São Paulo a partir de dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em 2018 Márcio França (PSB) venceu na capital com 56,1% dos votos, mas teve apenas 41,2% no interior contra os 58,8% de João Doria - que levou a disputa conquistando 60% desses municípios. Já em 2014, Geraldo Alckmin venceu no primeiro turno com 46,4% dos votos na capital e 54,6% no interior.

O PT, que nunca venceu as eleições para o governo do estado, vê o eleitorado do interior como seu calcanhar de aquiles, e segundo Datafolha realizado no dia 15 de setembro, o problema parece persistir. A pesquisa aponta que Haddad possui 43% das intenções de voto na capital e 34% no interior. Seguindo a lógica das eleições anteriores, o petista teria que ampliar a vantagem na capital ou crescer de forma substancial nos outros municípios.

A coordenação de campanha do PT, nesse sentido, tem utilizado a figura do Alckmin de forma muito estratégica, não só no que diz respeito às distinções regionais como também em situações mais específicas.

Quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez visita à Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, que possui um eleitorado mais cativo, não se levou o ex-tucano. Já em reuniões em portas fechadas, com o empresariado, o candidato à vice-presidência aparece.

A oposição ao PSDB com o apoio de Geraldo Alckmin

Apesar do apoio do ex-governador alavancar votos, a campanha do petista enfrenta o problema de poder entrar em contradição aos olhos do eleitorado. Em comícios e pronunciamentos do candidato Fernando Haddad, há um esforço em defender a tese de que há uma grande diferença na forma de governar de Geraldo Alckmin e João Doria, que venceu as eleições pelo PSDB em 2018.

Além disso, em debates, para atacar o candidato Rodrigo Garcia, do PSDB, que está em segundo nas pesquisas, o petista tem usado a estratégia de colar ao tucano elementos da gestão Doria, como foi o caso do debate no SBT, que ocorreu no dia 17 de Setembro.

Para Juliana, tanto os governos de Alckmin, quanto o de João Doria dividem o mesmo espectro do neoliberalismo, apesar do segundo ter ido mais fundo na ideologia. Segundo a pesquisadora, o fato de Doria ter vindo do setor privado fez com que ele trouxesse toda uma rede para dentro do governo, o que caracterizaria uma investida neoliberal mais agressiva.

Na opinião de Ernersto Vivona, que foi coordenador regional do PSDB em 1998 e coordenador da campanha de Geraldo Alckmin para as eleições de 2002, a diferença que a campanha de Haddad traça entre os dois últimos governadores é justificada, visto que, para ele, o novo PSDB está muito mais próximo do bolsonarismo. ‘‘O PT, no governo federal, foi mais inteligente ao criar partidos satélites para agregar novos apoiadores. O PSDB fez diferente. Trouxe essa gente para dentro do partido. Isso ajudou a desfigurar, ideologicamente, a legenda’’, explica.

A repercussão do apoio na militância petista

Já que no diz respeito a possíveis desconfortos na militância petista em ter um inimigo histórico marchando ao lado de Haddad para angariar votos, o candidato a deputado estadual e militante do PT, desde 1989, Fernando Puga afirma que isso deixou de ser um problema: "O pessoal engoliu. Toda essa turma que a princípio falava mal e me bateu, inclusive, nas redes sociais, quando eu elogiei a aliança, se calaram, engoliram seco e estão tocando a campanha’’.

O candidato a deputado afirma que um aspecto em específico contribuiu para a virada de chave: ‘‘Ajuda muito a postura do Alckmin. Ele não só veio em apoio ao Lula, mas ele seduziu completamente com uma generosidade muito grande e fazendo um discurso muito amistoso com relação ao PT, inclusive muito carinhoso’’.

Apesar disso, algumas diferenças mais profundas podem seguir sendo um entrave para alguns eleitores aceitarem o apoio do ex-tucano. Particularmente, a questão da segurança pública no governo de Alckmin ainda é alvo de polêmica. Episódios marcantes, como o Massacre de Castelinho, em 2002, que levou à execução de 12 supostos membros do PCC, e dados como o número de 939 indivíduos mortos pelas Polícias Civil e Militar, em 2017, ao final de seu governo, renderam ao ex-governador, por parte de um parcela dos eleitores de esquerda, as alcunhas de ‘‘autoritário’’ e ‘‘fascista’’.

‘‘Em termos de segurança pública é uma leitura muito justificada. Depois de 2006, quando o PCC saiu do controle, existem algumas evidências de uma certa aliança do governo com esses grupos organizados. Não é um governo que cuida das periferias ou de lugares mais vulneráveis. A polícia não chega exatamente para proteger, mas sim para resolver na base da bala. Quando você olha os índices de homicídios nesses locais, você percebe como eles são altos’’, explica Juliana.

Apesar disso, tanto a campanha do PT, quanto o próprio PSDB, buscam não tocar no assunto. Ambas as campanhas ostentam, em propagandas eleitorais, os pontos considerados positivos do governo Alckmin. Programas como o Bom Prato e o Poupatempo aparecem nos materiais de Fernando Haddad e Rodrigo Garcia, com o primeiro utilizando a figura do governante por trás das medidas e o segundo difundindo a ideia da necessidade de uma continuidade. Nesse caso, os candidatos parecem disputar esse trunfo com um cabo de força.

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Desde março deste ano, diversas operações policiais acontecem na região para combater o tráfico de drogas no Centro de São Paulo. O foco era dispersar a Cracolândia da Praça Júlio Prestes; agora, os usuários estão espalhados em pelo menos 16 pontos da cidade
por
Gabriella Maya, Giovanna Crescitelli, Guilherme Campos e Julia Nogueira
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08/12/2022

A Cracolândia em São Paulo voltou a ser pauta de propostas de “resolução” no debate, a poucos meses da eleição tanto âmbito do Legislativo quanto do Executivo. Por conta das sucessivas tentativas de acabar com a situação, gerou-se uma nova dispersão dos moradores, piorando de forma abrupta a situação tanto das pessoas que ali vivem quanto a vida desta população excluída. 

Em junho deste ano, o vídeo de uma mulher sendo agredida por agentes da Guarda Civil Metropolitana a golpes de cassetete e gás lacrimogênio viralizou e gerou grande repercussão na mídia. O fato ocorreu na região da Santa Cecília, onde a Cracolândia se concentra após a última grande ação das polícias na cidade de São Paulo.

Violência policial se tornou um dos artifícios do Estado para tentar responder de maneira rápida às Cracolândias. Mas, como de acordo com a jornalista e doutora em Ciência Política pela PUCSP, Deysi Cioccari, tentar resolver pautas como essa de maneira rápida e sem “tratar a raiz” é um problema da política brasileira: “É um processo a longo prazo, social, e não do dia pra noite e isso não dá voto”, explica.

Fernando Haddad, do PT, defendeu durante os debates e em sua campanha que “o que tem dado certo no mundo é um programa que envolve teto, tratamento e trabalho”. O Programa de Braços Abertos, criado por ele, e posto em prática durante seu governo na Prefeitura de São Paulo em 2014, previa a oferta de moradia em primeiro lugar para os moradores da Cracolândia, sem nenhuma espécie de condicionante, e ofertava trabalho em alguns serviços de zeladoria, como a varrição de ruas.

O atual governador e candidato à reeleição, Rodrigo Garcia (PSDB), afirmou que a Cracolândia precisa de "ação e tratamento para dependentes químicos e ação policial".

Para Tarcísio de Freitas, do Republicanos, suas propostas aplicam uma política de "valorização do profissional de segurança pública, acolhimento, assistência jurídica, médica e habitacional, assim como a revitalização dos centros das cidades, e habitação". O candidato acredita que a o problema da Cracolândia é um problema do estado precisam de uma união de políticas públicas.

Como criar soluções eficientes para a questão?

Para Daniel Mello, militante d'A Craco Resiste - um coletivo autônomo que atua contra a violência policial na região - o projeto piloto da prefeitura do governo Haddad foi uma iniciativa pequena para o tamanho do problema. Daniel afirma que as propostas "têm que ocorrer na direção de cuidar das pessoas e não atacar as drogas. Essas propostas policialescas existem porque existe uma força política em torno disso”.

O coordenador do programa Pão do Povo da Rua - que atua distribuindo alimento para a população de rua -  Ricardo Mendes, diz que “soluções prontas e editadas para agradar e esconder para baixo do tapete a realidade, podem se tornar marketing eleitoreiro”.

Segundo Deysi Cioccari, pautas como essa acabam entrando num âmbito genérico, porque para entrar na especificidade do assunto, o candidato tem que mostrar se sabe do assunto ou não. Cioccari também relaciona o tema com a “espetacularização” da sociedade, e como a mídia com “programas específicos de televisão glamourizam a violência”.

O militante da Craco Resiste também aponta que resolver a Cracolândia passa por aspectos estruturais da nossa sociedade. Segundo ele, é preciso entendê-la não como necessariamente um espaço de uso de drogas, e relembra que “vão para Cracolândia pessoas que não encontram outros espaços na cidade”.
Uma pesquisa da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas, realizada em 2019, mostrou que apesar dos 31,2% dos entrevistados afirmarem que estão na Cracolândia pela disponibilidade da droga, existem 13,2% de pessoas abandonadas pelas famílias.

Daniel complementa citando pessoas com transtorno mentais que não podem ficar com a família, pessoas que saem do sistema prisional e não têm oportunidade de emprego, ou que foram expulsas de casa.
Para o militante, tudo isso parte para uma situação de que quando a pessoa está na rua, a droga acaba substituindo a comida, por exemplo. E tentar resolver a questão somente como política de drogas não é o caminho: “Só tirar o crack não resolve nada”.

Em de julho de 2022, a prefeitura de São Paulo divulgou resultados da operação policial Sufoco. Segundo Ricardo Nunes, prefeito da capital, “os primeiros resultados da Operação Sufoco mostram que a ação também está sendo bem-sucedida. Com o pacote de modernização da PM e a ampliação do efetivo da GCM, com o concurso que está sendo realizado, além de outros investimentos, a cidade terá condição de atuar com ainda mais eficiência no combate ao crime e na proteção das pessoas". 

O que dizem os candidatos ao cargo de deputado (a) de São Paulo:

A candidata Carina Vitral, do PCdoB-SP, que defende bandeiras do campo da esquerda política, explica que esse “drama social” precisa ser combatido com múltiplas medidas que combinem redução de danos, acolhimento às vítimas e políticas sociais, educacionais, econômicas, ambientais, e outras que assegurem vida digna a toda a população.

A candidata Déia Zulu AfroFuturista, do PT, que diz que a Cracolândia, que deveria ser uma praça de eventos, acabou sendo “um ponto focal das dificuldades da cidade em resolver os seus problemas”. Déia critica os governos anteriores, e pontua que um governo que não olha para as pessoas piora isso situações como essa. “Nos governos Dória, Covas, Nunes, o que fizeram foi juntar GCM e a PM para jogar água fria nas pessoas durante o inverno. Eles precisam entender que é um problema de saúde pública.”

Como meios para solução, Déia Zulu afirma ser necessário realizar uma força-tarefa entre as assistências sociais da prefeitura e do estado, para conseguir ter acesso à dados, e saber da onde essas pessoas vieram, e tentar realocá-las num local de convivência. Déia ainda questiona o motivo de tanta demora para que isso seja feito, já que segunda ela, o centro da capital está com diversos prédios vazios, fechados e abandonados.

A mesma comenta ainda, sobre o rombo familiar existente naquele local:  “Tem gente que vai precisar se restabelecer, como pai, como mãe” E afirma que assistência social, que inclui psicólogos e médicos, é a primeira fase para a reestruturação social. “A gente não pode ter prefeitos e governadores que acham graça em jogar água fria numa pessoa que está morando na rua às 7:00 da manhã”, finaliza Zulu.

A cracolândia já afeta o estado há mais de 30 anos

Altair Moraes, candidato pelo Republicanos, diz à reportagem que a Cracolândia é um câncer social, e complementa dizendo que por diversas vezes a dispersão dos dependentes químicos não resolveu o problema. “Eles simplesmente se deslocaram para outras regiões próximas e continuaram se drogando e praticando crimes. Por isso, há necessidade de ações conjuntas da prefeitura e dos órgãos estaduais competentes para resolver o problema”. 

Rafael Moreno, do PMB, enxerga que a questão da Cracolândia envolve a polícia militar do estado de São Paulo, e diz acreditar que sem a internação compulsória, não há solução alguma, “Chega uma hora que a família perde o controle sobre eles. Não adianta, o único jeito é a internação compulsória”. Moreno ainda pontua que a Cracolândia não se trata apenas de uma questão de segurança pública. Para ele, o governo precisa fazer parcerias e arrumar empregos para que os dependentes saiam de lá trabalhando, e que tenham um recomeço. 

Para Alexandra Abreu, do Partido Novo, “não  tem mais como a cidade de São  Paulo  ficar nessa situação”. Segundo ela, a população da capital não pode mais andar tranquilamente pela cidade, com o medo constante de ser assaltado. Alexandra finaliza dizendo ser triste ver essas pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade, e que é a “degradação do ser humano” que ali está naquele local. Assim como Moreno e Silmara, ela é adepta da internação compulsória e que depois de tratados, os usuários sejam qualificados, possam ter um trabalho e assim “conquistar o seu espaço”. 

Se as operações policiais são um sucesso ou não, depende. É fato que os conflitos desencadeados pelas ações policiais preocupam os moradores e os donos de comércios do centro, e muitos pensam em fechar as portas. À noite, relatos de grupos quebrando estabelecimentos e criando confusão são cada vez mais recorrentes.

Monica Seixas, candidata à reeleição do PSOL, diz que a questão dos dependentes químicos vai muito além da segurança pública, e se trata de uma questão de saúde pública que deve ser discutida em todas as esferas. “ Sabemos que essa é uma questão que não será resolvida a curto prazo. É preciso investir e cuidar da base da sociedade, desde a infância”. A mesma defende a criação de uma proposta de redução de danos, com a criação de centros de acolhimento aos usuários, e “tratar os dependentes químicos não com operações policiais, mas sim com ações cuja a base seja a assistência social”.

Alexandra Abreu, do Novo, complementa dizendo que só a política não acabará com a Cracolândia, e que é necessário “integrar as polícias civil, militar, a GCM, e combater o tráfico.” Além de acesso à saúde e assistência social para esses dependentes. 

O que vem sendo feito está gerando algum resultado positivo?

Em junho de 2021, a Polícia Civil deflagrou pela primeira vez a Operação Caronte no centro de São Paulo. O objetivo era combater o tráfico na região da Cracolândia, ou como ficaram conhecidos os bairros onde o consumo e o comércio de drogas acontece quase livremente. Um ano depois, em junho deste ano, a polícia realizou mais uma fase da operação com 75 mandados de prisão e prendeu 111 pessoas além de apreender toneladas de drogas.

Em maio deste ano, 650 oficiais participaram da sétima ação da operação Caronte, cujo único objetivo era tirar os usuários, e suas barracas, da Praça - apontada como nova Cracolândia. Vinte pessoas foram presas e levadas para a delegacia de Santa Cecília (77º DP). Na sexta ação, realizada em 14 de abril, 22 mandados de prisão e seis de buscas e apreensão foram autorizados na Praça. Desde o início das operações policiais, os usuários se espalharam em pelo menos 16 pontos da cidade.

“Fizemos apreensões expressivas aqui na seccional centro. Apreendemos 600 kg de cocaína que concluímos ser destinados ao abastecimento da Cracolândia”, afirma Roberto Monteiro Dias, delegado titular da 1ª Delegacia Seccional, responsável pela região central de São Paulo. Para sustentar essa tese, a polícia baseia-se também em prisões feitas nos últimos meses. 

O candidato Altair Moraes, que também é apresentador do quadro “Alto Aí” do Cidade Alerta, na Record TV, relata que acompanhou de perto o trabalho dos policiais civis e militares na Cracolândia, e que “é preciso aprender com os erros do passado'' e que não há como se ter uma ação única na Cracolândia.

Não é estranho que candidatos a deputados estaduais pelo estado de São Paulo, de diferentes espectros políticos, enxerguem que é necessário mudar a forma que o problema está sendo tratado. É fato que o problema da Cracolândia persiste, e, enquanto for tratado como área de lazer de criminosos, e não como real problema de saúde e segurança pública, estará longe de ser resolvido.

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Cresce o número de agentes policiais como candidatos nas eleições de 2022
por
Carlos Gonçalves e Tomás Furtado
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08/12/2022

As eleições de outubro bateram o recorde no número de policiais e de oficiais de forças de segurança para disputar cargos políticos. Segundo o levantamento realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral, foram mais de 1,8 mil candidatos registrados, o que representou um aumento de 27% em relação ao pleito anterior. Sendo impulsionados pela pauta de segurança encabeçada por Bolsonaro e a esperança de assegurar mais direitos, os que concorrem veem como uma oportunidade de conquistar um cargo na política e de melhorar as condições de trabalho dos policiais.

O impasse policial

Considerada como uma das profissões mais estressantes do mundo, o policial passa por constante pressão psicológica, baixos salários e hostilização por parte da sociedade. Segundo o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, houve 121 casos de suicídio entre policiais no Brasil, tendo um aumento de 55,4% quando comparado ao ano anterior. Em termos da média populacional, este número é quase oito vezes maior.

A constante exposição à violência, aliada ao elevado risco de morte e situações traumatizantes formam elementos que podem impactar diretamente a saúde mental dos policiais. Esses fatores podem torná-los mais vulneráveis, potencializando o surgimento de doenças psiquiátricas, como depressão e ansiedade; doenças que podem ser encaradas como sinais de fraqueza ou de falta de comprometimento profissional pela instituição.

O delegado Mario Palumbo, do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), terceiro vereador mais votado em 2020, diz que: “há fortes restrições na corporação, no nosso serviço você consegue resolver alguns problemas até certo ponto, além disso, só é possível resolver entrando na política”.

O policial não pode entrar em greve, sofre com casos de corrupção, falta de infraestrutura e fornecimento de equipamentos de segurança, não podendo protestar fora das normas da corporação. Por ter autonomia limitada para resolver essas situações, acabam aceitando as condições impostas.

Com muitos se sentindo sob pressão, observados e julgados pelas suas ações, Palumbo diz que os policiais se sentem desrespeitados pela população: “daqui a pouco vão pedir para gente servir um café para quem você vai prender”. Por ser um consenso entre grande parte dos agentes, torna-se mais fácil para os policiais se agruparem, “todos estão passando pelo mesmo perrengue”, conclui.

A falta de representatividade e apoio institucional, fez surgir entre os agentes um crescimento natural do interesse pela política, sendo visto como a única saída para buscarem os seus direitos trabalhistas. Somado a extrema direita no poder, que traz pautas sobre armamentismo civil e segurança pública, surge para os policiais o terreno propício para recorrerem aos seus direitos.

Troca de valores na participação política

Como principal ferramenta para alavancar votos, o uso das redes sociais são utilizadas para impulsionar a popularidade dos agentes, autopromovendo a sua imagem como um bom representante político para defender os direitos da categoria. No entanto, além de desejarem assumir o papel de representante dos policiais, os candidatos priorizam o seu interesse pessoal em conquistar poder e influência no campo político.

Segundo Fábio Vasconcellos, cientista político e doutor pela UERJ, o fator da violência funciona como uma estratégia dos policiais como bandeira eleitoral. Utilizando o seu serviço em campo para fortalecer a sua imagem política, muitas vezes de forma não ética e desrespeitando o código judicial. “Esses candidatos apresentam características em comum, o discurso radical e o fato de usarem das prerrogativas concedidas pela sua posição pública em benefício próprio”.

Os membros das forças de segurança têm uma vantagem maior na questão da sua representação midiática, pois além de falarem para os colegas de trabalho, conseguem alcançar a população, “eles utilizam de discursos populistas que a sociedade se interessa, dizendo que vão prender mais criminosos e impedir o tráfico de drogas”, diz Vasconcellos. Aplicando também a narrativa de arriscar a vida para proteger a comunidade, sendo estratégias que funcionam para o ganho de votos.

Esse fenômeno da transformação do policial em figura de herói está sendo formado há décadas, desde os programas policiais que cobrem o dia a dia dos agentes até mais recentemente com o surgimento de celebridades policiais. Mario Palumbo, que também foi protagonista do reality show “Operação de risco”, diz que muitos policiais estão utilizando o poder que possuem para ganhar popularidade nas redes sociais: “não sou contra as forças de segurança usando esses veículos para fazer propaganda política”. O delegado enfatiza que este é o único jeito de competir contra o poder que os políticos detêm.

O tiro pode sair pela culatra

A organização militar identifica como problemática a figura do policial herói e mais especificamente o policial celebridade, que utiliza do seu status e suas histórias como munição para os seus interesses políticos. O deputado federal coronel Glauco Marcolino, observa que: “essa glamourização também causa problemas no comportamento dentro da instituição, criando mais abertura para a manipulação de evidências e politizando uma organização que precisa ser apartidária”.

Marcolino diz que: “nos estados de São Paulo e Santa Catarina, está sendo discutido entre os oficiais como limitar a apropriação da figura do policial”. A figura citada pelo coronel é referida aos símbolos da corporação, - a arma, o uniforme, ou distintivo, os seus títulos e as suas ações feitas no campo - benefícios que podem facilitar a entrada para a carreira política.

O delegado Carlos da Cunha (MDB) é um exemplo de quem gravava as suas operações policiais - algumas foram encenadas - e publicava na rede social Youtube para aumentar sua popularidade. As atitudes forjadas do ex-delegado, somada às declarações contra integrantes da instituição acarretaram na sua demissão, mas o efeito da divulgação midiática rendeu a ele o cargo de deputado federal em São Paulo com mais de 181 mil votos.

Katia Sastre, do PL (Partido Liberal), também utilizou da própria imagem para alavancar votos, utilizando de um registro de câmera onde ela dispara contra um criminoso em reação a um assalto. Ao final de sua propaganda eleitoral, ela aparece fardada e diz: “Atirei, e atiraria de novo. Coragem eu tenho”.

A estratégia surtiu efeito, sendo eleita deputada federal com mais de 264 mil votos. Ao estimular o ato violento, Sastre aprofunda a violência social, legitimando expressões como: “bandido bom é bandido morto” e fomentando que o cidadão armado também tem o direito de se defender.

O Instituto Sou da Paz, também demonstra interesse na questão. Seu intuito é propor formas que o policial consiga se representar e ser ouvido politicamente, sem que a politização afete a instituição em garantir a segurança pública. O instituto apresenta em seu podcast “Policialismo - A sua segurança é pública”, possíveis soluções para limitar o aproveitamento da imagem do policial para os ganhos pessoais sem ser hostil com a corporação e o serviço que ele presta à comunidade.

Para tentar combater essa distorção da atividade policial e manter um equilíbrio entre as forças de segurança e o aparelho político, é sugerido pelos especialistas do instituto e as forças armadas um leque de opções, tais como: estabelecer um período de quarentena para o membro das forças de segurança antes de se inscreverem no ramo da política. Assim como uma maior regulamentação das mídias sociais pelos membros da corporação, impedindo a presença de elementos da instituição em campanhas políticas.

Como dito no início de todos os episódios do podcast: “o policial ou qualquer oficial das forças de segurança, tem o direito de ter os seus interesses representados na política e ter as suas vozes ouvidas como qualquer cidadão que atua dentro de um sistema democrático”. O problema surge quando indivíduos dentro da corporação se aproveitam da imagem do policial para ganho pessoal, prejudicando a credibilidade de ambas as instituições. 

Alexandre Rocha, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que esse comportamento de fé no policial não traduz os sentimentos de segurança da corporação, seja ele parte da polícia ou da política nacional. Segundo ele, não há correlação entre aumento de popularidade nas páginas de serviço público com a popularização de policiais influencers, sugerindo que muitas vezes esse valor não é compartilhado com a instituição: "muitas vezes a pessoa se vincula ao influenciador mas não se importa com a polícia. Então a segurança está depositada em quem? Na instituição ou no influencer?", conclui Rocha.

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Enquanto algumas famílias investem em grandes negócios empresariais e comerciais, outras se voltam totalmente para o meio político
por
Sofia Luppi
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07/12/2022

Alguns nomes como Jilmar Tatto, deputado federal por São Paulo e Eduardo Bolsonaro, também deputado federal pela maior metrópole do país, são bem conhecidos no cenário político de São Paulo. Isso porque eles não representam somente uma pessoa, mas sim uma família que atua de forma direta ou indireta na política paulista. O fato é que essas famílias, independentemente se são de esquerda ou direita, muitas vezes possuem grande influência dentro do cenário político brasileiro.  

Um clã pode ser definido com um conjunto de pessoas que por conta de algum parentesco em comum se mantém unido. E é isso que encontramos quando falamos dos irmãos Tatto e de Jair Bolsonaro e seus filhos em questões políticas. Ambas as famílias possuem cargos na câmara dos deputados e nas câmaras municipais. 

Outro fator em comum entre eles é o fato de que se fortalecem com a presença de seus membros. O sobrenome ganha uma força que supera as ideias e até mesmo os partidos políticos. O doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Tiago Valenciano ressalta que existe esse empréstimo de sobrenome para que as campanhas eleitorais ganhem mais força e seja um atrativo para futuros votos.    

Apesar da frente política dos Tatto ser bem forte em São Paulo, principalmente na região de Capela do Socorro, na Zona Sul de São Paulo, os irmãos não possuem origem paulistana. A família migrou do interior do Paraná para o Estado mais populoso do país na década de 70.  

Arselino, Ênio, Nilto, Jilmar e Jair Tatto são os únicos dos 10 filhos de pequenos agricultores que entraram de cabeça no cenário político de São Paulo. Os Tatto estão tanto no governo estadual e federal quanto no municipal. 

Atualmente, Nilto e Jilmar foram reeleitos em 2022 para deputados federais por São Paulo, cargos esses que já estavam à frente desde 2006 e 2014, respectivamente. Já Ênio, que é deputado estadual desde 2006, se reelegeu para mais um mandato. No âmbito municipal, há Jilmar e Arselino como vereadores da cidade de São Paulo, ambos reeleitos na última eleição. Ambos estão no poder há mais de dois mandatos. 

Os irmãos também são peças-chave para a história do Partido dos Trabalhadores (PT). Todos eles são filiados ao partido desde suas primeiras candidaturas. Alguns deles, como Arselino e Ênio, participaram ativamente da fundação do PT. 

Um clã que, segundo Valenciano, em que o sobrenome vale muito mais do que o partido político é o da família Bolsonaro. Apesar de não terem São Paulo como seu maior foco, possui uma certa ramificação no Estado graças a Eduardo Bolsonaro, que já está em seu terceiro mandato como deputado federal pelo Estado. Essa influência se dá mais por ideias do que de fato por políticos.  

Ao contrário dos Tatto, os Bolsonaro tiveram origem paulista, uma vez que Jair Messias Bolsonaro nasceu em Campinas. O presidente que não conseguiu sua reeleição em 2022, construiu toda a sua carreira política no Rio de Janeiro. Ele foi vereador da cidade maravilhosa em 1989. Desde 1991, ano de sua primeira eleição como deputado federal, ele garantiu sete mandatos. 

Com exceção de Eduardo, os filhos de Bolsonaro Flávio e Carlos também são ativos no cenário político carioca. Seu filho mais novo, Jair Renan, já deixou claro que pretende entrar na política em 2028. 

A estrutura dos clãs políticos 

Mesmo o clã Bolsonaro sendo de extrema direita e os Tatto serem de esquerda, Valenciano ressalta que a estrutura de suas famílias na política é a mesma. A partir do momento em que um membro se torna uma figura pública, as chances de os demais conseguiram os mesmos feitos, apoiados em um sobrenome, são grandes. 

Essa situação fica clara com nomes de envergadura nacional, como no caso da família Bolsonaro. Isso se dá muito pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018 à Presidência da República. Usar seu nome para angariar votos, segundo Valenciano, virou uma forte tática nas campanhas eleitorais, principalmente de seus familiares próximos. E não foi somente os filhos que se aproveitaram disso, as ex-esposas também aproveitaram esse benefício. 

Um exemplo desse empréstimo aconteceu nessas eleições. Cristina Bolsonaro, ex-esposa do atual presidente, se candidatou para o cargo de deputada distrital pelo Distrito Federal. Apesar de não ter sido eleita, ela usou o nome Bolsonaro como um “empurrãozinho” em sua campanha, para conseguir mais votos.  

Sérgio Praça, professor da Fundação Getúlio Vargas, apontou que o fato de pertencer a uma família com tradição política, aumenta não só as chances de um candidato ser eleito, mas também de entrar para o cenário político. Isso seria um dos principais motivos para que tanto os Tatto quanto os Bolsonaro tenham poder e influência nas mãos. 

Existe também a questão da credibilidade na hora de decisão dos eleitores. Se um eleitor se identifica com as pautas de um dos Tatto, é provável que ela vote em um deles ou nas indicações feitas por eles. Valenciano explica que, “em geral, o cidadão vota na família política, exatamente porque ele espera uma entrega de um resultado, com uma dominação que já vem de muito tempo.” 

Sob essa perspectiva, é possível perceber que essas famílias podem ter grandes influências nos bastidores do cenário político. O empréstimo de sobrenome é colocado em prática e acaba se tornando um tipo de marca. Ou seja, os candidatos que se apossam e se apoiam de nomes, acabam sendo relacionados diretamente às pessoas que já estão no meio político e tem alguma relevância, seja ela positiva ou negativa. 

O professor Ricardo Costa de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que “toda política brasileira é dominada por famílias ou clãs políticos, o que significa que todas as instituições políticas brasileiras são atravessadas por relação de parentesco”. Seguindo essa lógica, a ideia de que os clãs políticos realmente seriam uma espécie de grife se fortalece e confirma que pode existir candidatos novos em cada eleição, mas na realidade eles pertencem a grupos que já estão no poder. 

Oliveira ainda destaca que essas famílias acabaram se tornando uma instituição dentro do cenário político e que isso facilita que as futuras gerações desses clãs continuem perpetuando as ideologias desse grupo. 

O retorno financeiro 

Valenciano destaca que a política precisa ser tratada muitas vezes como uma empresa, uma vez que aqui no Brasil existe uma rede de pessoas que depende das grandes campanhas políticas e das equipes de gabinetes para sobreviver. Seguindo essa lógica, o especialista ainda ressalta que apesar de muitos clãs quererem ajudar a população e suas demandas, eles possuem um retorno financeiro ao serem ativos na política.  

Sob essa ótica, tanto Valenciano quanto Oliveira, revelam que não é somente os candidatos que lucram ao serem reeleitos em cada eleição, mas também quem participa de suas campanhas, que acaba garantindo de quatro em quatro anos uma renda.  Muitas vezes, existe uma única grande equipe por trás de um clã, algo que vimos nas últimas eleições com os Bolsonaro. 

Termos políticos sendo reeleitos por vários anos consecutivos já se tornou algo rotineiro no cenário de São Paulo. A força familiar nesse âmbito é renovada a cada eleição e a cada novo membro que adota um nome para entrar no jogo político. Apesar de não serem os mais importantes para o cenário político de São Paulo, os clãs possuem sua relevância ao manter a democracia viva, mesmo que para o próprio interesse.  

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