Por Rayssa Paulino
Fé. No dicionário brasileiro da língua portuguesa, a convicção da existência de algum fato ou da veracidade de alguma asserção; credulidade, crença. Algo que nos é atribuído antes mesmo de aprender a andar ou falar. Nenéns curiosos, de roupinha branca e com os olhinhos atentos em cada detalhe da igreja esperando, mesmo que ainda não saibam, a sua vez de ter a cabeça molhada pela água benta derramada pelo padre. Apesar do batismo católico ser quase uma experiência coletiva para os brasileiros e, muitas vezes, o primeiro contato com uma religião, tem pessoas que desviam dessa linha.
Vivian é uma jovem que nasceu e cresceu numa família judia e mantém com muito orgulho a fé na religião que um dia pertenceu aos seus antepassados. Tradicional é uma palavra que bem define o judaísmo, seus praticantes prezam por transmitir o legado para gerações futuras e, para a menina, os ensinamentos que aprendeu desde a infância se tornaram fundamentais ao desenvolver por inteiro o seu ser. Os valores do que acredita, atitudes de outras pessoas que agradam ou desagradam, interesses amorosos e opiniões se lapidaram através deles dia após dia.
Elencando as práticas que mais valoriza, o respeito a todos, sempre ajudar ao próximo e tratar as pessoas de maneira igualitária são os que mais se destacam e afirma com toda certeza que influenciam no seu dia a dia, inclusive perante a forma que enxerga as questões políticas. Ao passarmos por esses assuntos e adentrarmos questões sobre a laicidade, Vivian se mostrou bem compreensiva com algumas tradições gerais que o Brasil segue. A prevalência do calendário católico de feriados, por exemplo, é uma coisa que considera justa, já que a maioria dos brasileiros são católicos - incluindo os não praticantes - mas concorda que de maneira alguma deve ter a priorização de uma religião na legislação.
Já Giovanna é uma católica devota. Apesar da rotina complicada entre trabalho e os estudos, reserva ao menos um dia na semana para comparecer à missa. Estudante de marketing, encontrou uma forma de contribuir com seus conhecimentos acadêmicos participando da Pascom, a pastoral de comunicação da igreja que frequenta. Contando sobre sua rotina religiosa, afirma ser muito apegada a sua fé e, independente das fases boas ou ruins, sempre recorre ao sagrado. Inclusive conta com muito orgulho sobre a resiliência durante o período da quaresma, justamente por entender ser um período de penitência opta por escolher uma que a atingem, como uma forma de gratidão ao sacrifício de Jesus.
A gratidão, junto ao amor ao próximo são os ensinamentos que mais carrega em sua vida e, exatamente por isso, acredita que a religião que segue não a guia em assuntos políticos. Gosto de separar o que é a igreja e o que é a minha fé, não consigo correlacionar questões sociais com a igreja. O aborto é um tema que Giovanna entende como uma questão de saúde pública, portanto, os princípios conservadores perpetuados, principalmente pelos mais velhos, não deve influenciar nas decisões alheias. A influência católica nas leis poderia significar um grande retrocesso social.
Por Felipe Achoa
Marco conheceu Paula ainda no final da adolescência. Ambos tinham vinte anos quando começaram a namorar, e, como muitos casais jovens, foram tomados por uma paixão intensa e um senso de urgência diante da vida. Casaram-se pouco tempo depois. Marco trabalhava na área comercial e Paula cursava administração, ainda que com dificuldades para manter o foco. O nascimento de Pedro aconteceu quando os dois tinham apenas vinte e quatro anos. Marco se lembra até hoje da primeira vez que o segurou nos braços: o choro forte, a pele enrugada, os olhos ainda fechados. Foi o momento mais sublime de sua vida. Mas também foi o ponto em que tudo começou a mudar.
Nos primeiros meses, a rotina cansativa com um recém-nascido colocou à prova o relacionamento do casal. Paula passou a apresentar mudanças de humor constantes. Marco, ainda inexperiente, atribuía tudo ao "baby blues" (tristeza pós-parto), mas logo percebeu que havia algo mais profundo. As saídas noturnas características do passado conturbado de Paula voltaram, acompanhadas do cheiro de bebida em seu hálito, eventualmente, de substâncias que Marco não conseguia identificar, mas intuía. As brigas se tornaram diárias. Paula, por vezes, desaparecia por horas, voltando apenas na manhã seguinte, enquanto Marco, desesperado, cuidava de Pedro e tentava esconder do filho, ainda muito pequeno, da confusão que se instaurava em casa.
Com o tempo, Paula se ausentava por dias. Marco implorava por ajuda, por compreensão, por mudança. Tentou conversar, eles até chegaram ao consenso de interná-la voluntariamente. Em alguns momentos, ela parecia disposta a tentar, mas as recaídas vinham com força redobrada. Quando Pedro completou dois anos e seis meses, Paula saiu de casa após uma discussão particularmente ácida. Foi a última vez que Marco a viu sóbria por muito tempo. Depois desse episódio, o clima da casa era sinistro, Paula não ficava por lá, não se sentia confortável ali. Marco não trabalhava muito e cuidar de Pedro e Paula simultaneamente estava explicitamente lhe custando a alma. A decisão de interná-la veio após um episódio em que ela foi encontrada desacordada, sozinha, em uma praça próxima. O medo de que ela morresse falou mais alto. A mãe de Paula interviu e pela primeira vez, a moça aceitou ajuda de verdade. Eles assinaram os papeis da internação com o coração em pedaços. Ela precisava de cuidados, mas agora ele também precisava cuidar de Pedro e de si. Não havia tempo para refletir.
Um pai, só, cuidar de Pedro sozinho se revelou uma missão árdua. Marco passou a acordar às cinco da manhã para preparar o café, arrumar o filho, levá-lo à creche e correr para o trabalho. Quando Pedro adoeceu, Marco perdeu três dias de serviço. Chegou muito perto de ser demitido, afinal, não havia ninguém mais com quem deixar Pedro; sua ex-sogra, fazia questão de recebê-lo, mas estava idosa, muito mal de saúde. Não haviam opções viáveis. Sem rede de apoio, Marco viu seu salário ser consumido por babás improvisadas, consultas médicas, roupas, comida e brinquedos. No Brasil, segundo dados do IBGE, 11,6% das famílias são ordenadas por homens sozinhos e filhos, mas o debate sobre a vulnerabilidade desse grupo ainda é escasso. Para ele, o que restava era cobrança para dar conta, para não fraquejar, para resolver o problema. Faltava tempo para tudo. A cada final de semana, a lista de tarefas domésticas parecia se multiplicar; Marco tentou se relacionar de novo, mas a rotina caótica tornava tudo difícil. O tempo se tornou líquido, escorria por seus dedos como se fosse água, se esvaia como pó; ele mal tinha tempo para dormir, para pensar, quem diria para se preocupar consigo mesmo.
A vida virou um equilíbrio frágil entre boletos, compromissos escolares, crises de birra e noites mal dormidas. Mas alí também estavam os melhores momentos da vida de Marco. Os desenhos feitos por Pedro, os abraços espontâneos, as risadas compartilhadas na hora do banho, seu filho se tornou a família que ele queria tanto que existisse, a única com quem ele poderia contar no futuro, Marco sabia melhor que ninguém disso.
Eram esses instantes que o mantinham em pé. O peso invisível do mundo não parece feito para pais como Marco, ele nunca esteve verdadeiramente preparado. Auxílios governamentais para pais solteiros são escassos e muitas vezes inacessíveis por burocracias. A creche pública, quando disponível, tem vagas insuficientes; o Brasil ainda enfrenta déficit de mais de 1 milhão de vagas para crianças de até 3 anos, segundo o relatório do Todos Pela Educação (2023). Licenças-paternidade prolongadas são quase inexistentes, limitando o tempo de adaptação e cuidado e inviabilizando em diversos momentos que pais possam dar a devida atenção e criação aos seus filhos.
Em muitas nações do globo, especialmente em países nórdicos, onde a cultura de criação do pai para com o filho é uma diáspora cultural histórica, como na Suécia, a licença-paternidade é de 90 dias e pode ser estendida. Além disso, em diversos outros continentes, também existem outros países onde há subsídios mensais diretos às famílias monoparentais, além de creches subsidiadas com horários estendidos, o que fortalece não apenas pais solteiros, como mães solteiras.
Políticas como essas mudam realidades. Marco, no entanto, vivia em um Brasil onde isso era um sonho distante. Contava com a solidariedade ocasional de vizinhos e a paciência de alguns empregadores, que, nem sempre, compreendiam a sobrecarga. Pouco a pouco Pedro crescia. Aos sete anos, começou a fazer perguntas sobre a mãe e Marco sempre foi honesto, ainda que cuidadoso. Não queria magoar a criança, mas sabia que a ausência da figura materna magoava. E era verdade. Paula seguia internada, com períodos de melhora, em que passava na casa da mãe, e recaídas. Mas era difícil, poucos sinais de recomposição eram apresentados por Paula, que já vinha em decrescente vertiginosa.
Aos poucos, o lar de Marco foi ganhando contornos mais leves. Aprendeu a preparar receitas simples, preparar a lancheira com tudo que era necessário e até costurar botões. Além de tudo ele era pai de primeira viagem; tudo era novidade. Pedro foi diagnosticado com TDAH aos oito anos, o que trouxe novos desafios: psicólogos, remédios e reuniões escolares. Marco enfrentou tudo com o cansaço acumulado, mas com a ternura de quem sabe o valor de cada pequeno progresso e de alguém que viu seu lar ser reconstituído, tijolo por tijolo.
Hoje, Pedro tem vinte e quatro anos, terminou a faculdade de administração de empresas e segue morando com seu pai. Paula já está totalmente limpa a mais de dez e finalmente “pode correr atrás”, dentro do possível, de recuperar o tempo perdido com seu filho. Marco continua trabalhando, agora com uma jornada mais realizável, o dinheiro, que por tempos era contado, e em algumas vezes vinha emprestado de amigos, agora parece sobrar. Não é muito, mas Marco já não deixa mais de comprar suas coisas para sustentar Pedro e a casa. O tempo para si, que hoje sobra e vale mais que ouro, Marco usufrui ao lado de Pedro, já que por tanto trabalho, ele mal foi capaz de acompanhar seu filho crescer, quiçá, de absorver esse crescimento.
Por uma outra íris, a história de Vitorino Fagundes retrata um homem que precisou reconstruir sua vida a partir do luto. Com um bebê nos braços e um país nas costas que pouco enxerga pais como ele. Fagundes, como é conhecido entre amigos, sempre levou uma vida simples e feliz ao lado de sua esposa, Teresa. Depois de sete anos casados e mais “não sei quantos” namorando, decidiram ter um filho para completar a família e finalmente realizar o sonho de Teca, como era conhecida. Durante a gestação, prepararam tudo com carinho: berço parcelado, paredes pintadas de azul claro, e o nome escolhido à dedo, para lembrar as memórias do avô materno — Caio.
Após meses de gestação, a realidade foi chocante, fúnebre, ao passo que, de alguma maneira, foi iluminada. Quando o bebê veio ao mundo, Teresa se foi. Complicações no parto ceifaram sua vida de forma repentina, deixando Vitorino viúvo e pai solo em um dos momentos mais frágeis da existência. Poucos momentos na vida conseguem ser tão ambíguos quanto o vivido por Vitorino. E ainda viria o desafio de criar sozinho.
Nos meses seguintes, Vitorino teve que equilibrar dois mundos em paralelo: o luto e a paternidade. O trabalho, antes motivo de orgulho, se tornou fonte de tensão. Não existia possibilidade de abrir a loja e cuidar de um recém-nascido ao mesmo tempo. Babás não cabiam no orçamento, que aliás mal existia no início da vida de caio. Tudo que Vitorino havia acumulado de dinheiro sumiu de sua frente como mágica.
A creche pública mais próxima? Lista de espera com mais de cem nomes. Não tinha para onde correr, com poucos recursos e sem direito a licença-paternidade estendida por ser autônomo, ele passou a trabalhar com o filho nos fundos da loja, de início, improvisando um berço entre caixas de papelão. Muitas vezes, precisava interromper o atendimento para trocar fraldas ou acalmar o choro de Caio.
Clientes compreensivos se tornaram raridade. A vida financeira desandou. Contas atrasadas, a loja mal vendia para se sustentar, quem diria lucro… Foram muitas noites em claro. E o mais difícil: a sensação de que ninguém o via. O caso de Vitorino revela um buraco nas políticas públicas brasileiras: a quase total ausência de suporte voltado a pais solo. A licença-paternidade é limitada (geralmente de cinco dias), sem previsão adequada para casos de viuvez. Creches públicas são escassas, especialmente em tempo integral e a maioria dos programas de assistência social, muitas vezes, tem o costume de escantear homens como cuidadores principais. Segundo dados do IBGE, o número de lares chefiados por homens com filhos pequenos, embora ainda menor que o de mulheres, tem crescido gradativamente nos últimos anos. Ainda assim, a estrutura de apoio segue problemática e , extremamente frágil, básica, tanto para pais, quanto para mães sozinhas(os), e em casos como o de Vitorino, praticamente inexistente.
O tempo passava e Caio crescia. Vitorino já não passava por dificuldades, os custos com o garoto diminuíram e o tempo para cuidar da loja foi gradativamente voltando ao normal. Quando Caio cresceu o suficiente, o pai lhe deu um presente que mudaria sua vida futuramente; montou na sala dos fundos do estoque, um espaço apertado com uma televisão de tubo e um SNES (videogame) e caio passava horas e horas desbravando o mundo dos games enquanto crescia no espaço de trabalho de seu pai. Muitos anos depois, esse amor de caio se tornaria sua profissão, desenvolver jogos para videogames. Vitorino chegou a buscar ajuda em unidades do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), mas enfrentou burocracias, falta de orientação e escassez de serviços voltados para homens em sua situação.
Vinte cinco anos depois da tragédia, Caio está prestes à ser pai e Fagundes não poderia se sentir mais honrado em ter, finalmente, um neto. A loja já não existe, mas rendeu um dinheiro razoável para que o pré-vovô possa se aposentar em paz. Vitorino ainda carrega a saudade de Teca, mas também a certeza de que está honrando o amor dela da melhor forma possível: tendo netos, com amor.
A história de Marco e Vitorino é a de milhares de pais pelo país: silenciosos, sobrecarregados, invisíveis. Homens que se reinventam para serem presentes e o sustento de suas casas ao mesmo tempo, que amam profundamente seus filhos e que, mesmo diante das adversidades, escolhem ficar, trazer todo e qualquer suporte que seja necessário para o desenvolvimento de uma criança.
A realidade de pais solteiros como estes evidencia a necessidade urgente de ações de incentivo aos pais e mães em situação monoparental, especialmente com a ampliação das licenças paternidades em casos desse cunho, com pelo menos 90 dias de afastamento garantido. Aumentar o número de vagas em creches públicas e criar turnos noturnos para trabalhadores em jornada estendida seriam que formatações sociais interessantes para gerar maior suporte a esses indivíduos, bem como criar projetos estatais de auxílio financeiro mensal específico para famílias monoparentais de baixa renda, semelhante ao modelo do “Child Benefit”, presente no Reino Unido.
Para além de mudanças palpáveis, também é importante que quebre-se certas hegemonias. Campanhas públicas que normalizam e incentivam a corresponsabilidade masculina no cuidado com os filhos, combatendo estigmas sociais são fundamentais para que haja uma mudança de mentalidade efetiva e mais pais formem-se aptos para o cuidado de seus filhos. A construção de uma sociedade mais justa passa pelo reconhecimento e apoio aos que, como Marco, Vitorino e muitos outros, fazem o possível e o impossível todos os dias; entre silêncios, lágrimas e, sobretudo, amor.
Por Philipe Mor
A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.
Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.
Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.
Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.
Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.
Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.
Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.
Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.
Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

Por Ana Julia Bertolaccini
A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.
No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA). Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria.
Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora.

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais.
Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria.

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer.
A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de futebol pela televisão são a maneira como ele decide usufruir desses momentos.
Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.
Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado.
Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário.
Por Giulia Fontes
São 5 da manhã e a cozinha de dona Elza já está aquecida. O cheirinho doce de bolo assando se mistura com o café que, em cada gole, traz a promessa do dia seguinte. Em cima da mesa, uma receita que tem o gosto da infância, da avó, da mãe - aquela receita que ela sabe de cor, mas que seu ritual de cozinha não permite que ela a deixe de lado. Como alguém para quem o mundo corporativo jamais foi uma escolha, não por falta de caminhos, mas porque deixar morrer a tradição de sua família seria como renunciar ao próprio nome. Não foi uma escolha impulsiva, nem uma busca por uma renda extra. Para dona Elza, a confeitaria tornou-se a única forma de sustento. O prazer de cozinhar era só a base do que a movia, mas o peso de um legado familiar de afeto, de lembranças que se carregam de geração em geração é algo muito maior, como a lida com o milho.
A história do bolo de fubá começou com a avó, no fogão à lenha de Lupionópolis, no Paraná, um município de menos de 5 mil habitantes. Ela, menina, ajudava a mãe a preparar os pães e bolos que alimentavam a casa e os vizinhos. Desde então, a receita passou de mãos, mas o sabor sempre foi o mesmo que marcou a infância de Elza. Hoje, já adulta, transformou aquele aprendizado em um negócio. No começo, ela vendia apenas para vizinhos, mas com o tempo, a pequena loja foi crescendo. Não uma grande loja, mas um espaço simples, um lugar que nunca chama muita atenção, mas que sempre tem fila na porta. O bolo de fubá, com a goiabada que derrete por dentro, se tornou o grande atrativo. Cada fatia, uma mistura de lembrança e afeto. A loja de Elza não é apenas um ponto de venda. Ela é uma ponte entre o presente e o passado, entre a tradição e a sobrevivência.
Embora seu trabalho seja essencial para o sustento de sua família, a vida de quem depende da confeitaria para viver não é fácil. Dona Elza acorda antes do sol nascer, começa a mistura dos ingredientes, ajeita as formas e faz o forno funcionar, tudo para garantir que o bolo esteja pronto para o começo do dia. A clientela é fiel, mas o custo do trabalho não vem só na medida dos ingredientes. O preço do aluguel, os gastos com fornecedores e a constante preocupação de manter a qualidade, sem perder a identidade que construiu ao longo dos anos, são desafios que ninguém vê.
Segundo dados do IBGE, seis em cada dez profissionais autônomos estão na informalidade. No setor da confeitaria, esse número representa cerca de 46% do mercado, segundo o estudo conduzido pela Zupgo em parceria com a Associação Brasileira de Comércio de Artigos para Festas. Dona Elza faz parte dessa porcentagem — trabalha sem garantias, sem férias, sem direito a descanso. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias.
Na pandemia, quando o mundo parou e a cidade silenciou, dona Elza não teve esse luxo. Fechou a loja, mas não a cozinha. Continuou assando bolos e entregando de porta em porta, com a ajuda de um sobrinho de bicicleta. Os dias pareciam mais longos, e o medo, seja de pegar o vírus, de não vender, ou de faltar leite e fubá, virou ingrediente invisível em cada receita. A farinha subiu, a goiabada sumiu das prateleiras e tudo parecia acabado. Mas o forno não apagou. No improviso das entregas com máscara de pano e potinhos reciclados, ela manteve a tradição funcionando como uma resistência silenciosa, dessas que só se percebe quando tudo ameaça ruir.
E embora o bolo de fubá com goiabada tenha virado símbolo da pequena loja, outros doces também fazem parte desse acervo afetivo: o pão de mel com cobertura de chocolate meio amargo, feito em datas especiais; os biscoitinhos de polvilho, que ela aprendeu com uma vizinha mineira; e o doce de abóbora com coco, enrolado em papel celofane colorido, que só aparece na época de festa junina. Cada receita tem uma história, uma origem que atravessa quintais, comadres e panelas antigas. Dona Elza diz que quando cozinha, ouve vozes da avó dizendo para não abrir o forno antes da hora, da mãe lembrando de peneirar duas vezes o fubá, do pai pedindo o canto do tabuleiro, onde o bolo fica mais crocante.
Foi com esses doces que ela criou os filhos. E é com eles que agora sustenta os netos. A memória do que se come também constrói a memória de quem se é. Quando uma cliente pede o “bolo do costume”, não está pedindo só um sabor, está pedindo a continuidade de um tempo que parece cada vez mais distante. Um tempo em que as receitas passaram de boca em boca, em que o corpo sabia o ponto certo da massa sem precisar de cronômetro. Dona Elza, com sua touca branca e avental florido, é mais do que uma doceira. É guardiã de um saber que mistura sobrevivência, afeto e resistência. E talvez, nesse país onde tudo que é simples vira luxo, o verdadeiro privilégio seja ainda poder sentir o cheiro do bolo antes do café esfriar.