Por Felipe Bragagnolo
Reginaldo, caminhoneiro desde 2006, foi enfático ao afirmar que muitos de seus amigos acreditaram que Bolsonaro iria fazer alguma coisa de concreto pela categoria, até mesmo porque ele se mostrava próximo da sua condição profissional. Ele mesmo chegou a acreditar que sua vida poderia melhorar com a diminuição dos preços de pedágio e com o controle do preço do diesel. Disse que Bolsonaro estaria ao lado da categoria, mas que na prática não ocorrera assim. Os problemas se mantiveram. Comentou sobre a situação dos autônomos, em que eles não tem nenhuma proteção, Reginaldo contou que sendo autônomo se vê sempre preocupado e que sem garantia de aposentadoria e sem auxílio-doença o deixa inseguro sobre o futuro, e que não existe plano de carreira para autônomo, é trabalhar até onde o corpo e a mente aguentam.
Afirma que a condição de "empreendedor" em que outros autônomos se colocam parece piada, Reginaldo disse que eles dizem serem donos do próprio negócio, mas em que não têm controle sobre nada e que na verdade eles não empreendem, e sim apenas sobrevivem. Muitos se iludem com esta ideia de "empreendedorismo".
No Brasil, pessoas que trabalham de forma autônoma e informal desempenham um papel crucial na economia, contudo, essa contribuição é caracterizada pela ausência de direitos e segurança. Caminhoneiros, motoristas de aplicativos como Uber e entregadores de alimentos lidam todos os dias com uma dura realidade: são profissionais indispensáveis, porém ainda muito vulneráveis com a falta de proteção social e trabalhista. Este tipo de mão de obra representa milhões de brasileiros que sustentam os serviços em operação. Mas o futuro dessas atividades continua incerto, colocando em risco a dignidade e a sobrevivência de milhões de famílias.
Iimpulsionado pelo avanço das plataformas digitais o mercado de trabalho independente e informal aumentou rapidamente, sobretudo nas metrópoles. Diante do desemprego e da escassez de empregos formais, muitos brasileiros encontram nessas profissões a única alternativa para sustentar suas famílias. Contudo, a precariedade é clara: motoristas de caminhão, motoristas de aplicativo e entregadores de comida enfrentam extensas jornadas de trabalho sem benefícios como assistência médica, férias pagas, aposentadoria e até mesmo a garantia de um salário mínimo.
Segundo dados recentes do IBGE, o Brasil conta com aproximadamente 24 milhões de trabalhadores independentes, sendo que muitos deles atuam no setor de transporte e entregas, exercendo funções que, na realidade, não asseguram direitos fundamentais. A remuneração e as condições laborais, estabelecidas por empresas e algoritmos, flutuam de maneira imprevisível, tornando esses empregados suscetíveis e sem voz.
Os motoristas de caminhão desempenham um papel crucial na logística do País, transportando uma grande parcela da produção de alimentos, matérias-primas e produtos industrializados, mas lidam com desafios como os altos preços de combustível, más condições das vias e despesas de manutenção. E, mesmo prestando um serviço crucial para a nação precisam lidar com baixos salários e perigos para a saúde e a segurança.
Ações de greve, como a emblemática greve de 2018, evidenciaram a insatisfação e a vulnerabilidade dessa classe. No passado, os caminhoneiros reivindicaram aprimoramentos nas condições de trabalho e o controle dos preços dos combustíveis. No entanto, muitas promessas ainda não foram realizadas, deixando a categoria à mercê das flutuações dos preços de mercado e das políticas econômicas governamentais, que, até o momento, pouco fizeram para assegurar melhores condições a esses profissionais.
A situação dos motoristas de aplicativo e entregadores de alimentos não é diferente. Essas plataformas proporcionam uma opção ao trabalho formal, porém sem garantias. O que inicialmente era uma "economia compartilhada" rapidamente evoluiu para uma relação desigual, onde os trabalhadores encaram longas jornadas de trabalho para conseguir um salário mínimo. Ademais, são encarregados de todas as despesas laborais, incluindo a manutenção de veículos, combustível e, em diversas situações, até mesmo seguros.
A exploração é clara: os algoritmos controlam quem recebe corridas ou entregas e estabelecem o valor que cada um recebe, sem margem para negociação. Portanto, aqueles que trabalham com Uber, iFood, Rappi e outras plataformas se encontram em uma situação de subordinação, já que o lucro da empresa está sempre acima das necessidades do funcionário. Estes aplicativos se desenvolvem e prosperam, contudo, seu êxito é construído à custa de indivíduos que necessitam de várias horas de trabalho diário para obter uma renda que frequentemente não excede o mínimo indispensável para a sobrevivência.
Entretanto existe uma grande diferença entre os entregadores de aplicativo com os Ubers no cenário político, os motoristas de aplicativo seguem o mesmo pensamento dos caminhoneiros, em que são chefes deles mesmo e que isto é uma forma de empreender, citam que podem trabalhar quando quer e não precisam acordar cedo para "bater cartão", já os entregadores criaram movimentos que vêm ganhando força, como por exemplo os entregadores antifascistas que denunciam a exploração e buscam direitos trabalhistas.
A assistência social deve abranger os trabalhadores autônomos e informais e requer reformas que expandam a abrangência dos benefícios laborais e da previdência social para aqueles que operam em regimes não convencionais. É crucial que o governo, em colaboração com sindicatos e entidades sindicais, estabeleça um sistema que resguarde os trabalhadores autônomos, valorizando sua função crucial e assegurando condições de trabalho justas. Se não, continuaremos a reforçar uma estrutura desigual, onde corporações se favorecem sem investir no bem-estar daqueles que sustentam a economia.
A agenda política brasileira deve reconhecer a relevância desses trabalhadores e buscar um modelo econômico mais inclusivo. Iniciativas como a normatização dos trabalhadores de aplicativos, já debatidas no Congresso, são apenas o começo. A batalha pelos direitos dos trabalhadores independentes, caminhoneiros e entregadores precisa progredir para diminuir a desigualdade e proporcionar a eles a dignidade que merecem. Caso contrário, a economia continuará sendo alimentada por uma mão de obra explorada e desamparada, obstaculizando o progresso social e o avanço econômico justo e sustentável que o país tanto necessita.
Por Guilherme Alavase
Ao longo do tempo, com o desenvolvimento tecnológico, novas máquinas e equipamentos transformaram o mundo do trabalho. Profissionais com funções manuais e repetitivas perderam espaço para a automação nos processos de fabricação. Muitas profissões foram se adaptando aos novos tempos, mas outras deixaram de existir. Este é um processo natural e irreversível. Antigas profissões perderam a razão de existir, como datilógrafos, ascensoristas, lanterninhas de cinema, entre tantas outras. Algumas antigas como sapateiros e alfaiates ainda lutam contra o risco de desaparecer.
A profissão de sapateiro, uma das mais antigas do mundo, percorreu séculos de evolução na arte de confeccionar calçados. Sua essência não sofreu alterações em cada novo processo evolutivo da humanidade. Egípcios, gregos e romanos já dominavam a técnica da fabricação de calçados feitos à mão.
Os sapateiros eram artesãos reconhecidos e valorizados por suas habilidades e criatividade, produzindo calçados personalizados, atendendo ao gosto estético dos clientes. O declínio da profissão de sapateiro, que parece caminhar para a sua extinção, é consequência da revolução tecnológica, com novos processos de fabricação padronizados, com produção em larga escala. Os sapatos produzidos pela indústria moderna utilizam matérias primas industriais (couro sintético e outros materiais), que reduzem os custos de fabricação. São produtos baratos, padronizados e descartáveis.
Consciente da decadência de sua profissão, Dejair Ribeiro, 74 anos, há 62 anos trabalhando com restauração de sapatos e bolsas, falou sobre o auge da profissão, do processo do trabalho artesanal para confeccionar sapatos, relembrou o início de sua jornada profissional, da educação dos filhos, da família e da expectativa para o futuro.
Ele diz que a sapataria é um ofício que se herda, mas hoje é cada vez mais raro encontrar alguém que se dedique a ela. Filho de sapateiro, ele e seus quatro irmãos aprenderam o ofício ajudando o pai em sua sapataria. Relatou que a oficina produzia calçados femininos de forma artesanal, sob medida e feito à mão. Disse que até filha de governador do Estado era cliente de seu pai. Relatou que na infância teve uma vida muito boa, que o trabalho de sapateiro permitia que todos os irmãos estudassem e que tinham uma vida confortável. Todos os seus irmãos seguiram na profissão e todos, no início conseguiam viver bem do trabalho que herdaram. Conta que antigamente, como o sapato era caro, valia a pena restaurar, trocava-se a sola, o salto, costurava, colava, pintava, enfim, pequenos serviços que rendia um bom valor no fim do mês.
Ribeiro relatou que de uns trinta anos para cá, a profissão tem tido uma queda significativa, com a importação de calçados baratos, feitos com materiais de baixo valor e qualidade, portanto descartáveis. A mudança de hábito da sociedade, que vestem roupas informais em todos os eventos, trocando o sapato por tênis reduziram significativamente o número de clientes que trazem calçados para reformar, pois o valor de uma restauração de um sapato de baixo custo não é vantajoso. Afirma que o sapato de hoje é para usar e descartar quando apresentar qualquer problema.
Ribeiro é pessimista com relação ao futuro da profissão. Alega que dos seus quatro filhos (três mulheres e um homem), nenhum se interessou pela profissão. Diz que ele continuará trabalhando enquanto tiver saúde e quando não puder mais trabalhar, abaixará as portas de sua sapataria e encerrará uma tradição profissional familiar. Por outro lado é possível perceber uma mudança de comportamento em uma parcela da população. Há pessoas que voltam a enxergar nos produtos de alta durabilidade, que podem ser restaurados várias vezes, uma solução sustentável. Neste sentido, há um renascimento do interesse pelo sapato feito à mão, sob medida e de alta qualidade. De qualquer modo não é possível antever se haverá tempo hábil para os antigos sapateiros ensinarem a profissão para os mais jovens, pois não há escolas que ensinem este ofício milenar.
Por Isabelle Maieru
O som da porta se abrindo foi o início de um pesadelo para Adriano, um jovem estudante cuja vida foi virada de cabeça para baixo. Ele recorda que os militares invadiram seu apartamento, trazendo uma dor ainda presente. A brutalidade do regime, simbolizada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como Major Tibiriçá, exemplifica o terror vivido por milhões de brasileiros.
Em um ambiente marcado pela nostalgia e por lembranças de tempos difíceis, Adriano Diogo se torna porta-voz de um dos períodos mais sombrios da história brasileira: a ditadura militar. Sua voz ressoa com emoção, ecoando verdades dolorosas que a sociedade muitas vezes prefere ignorar. Adriano narra não apenas sua experiência pessoal, mas também um relato profundo de uma era de repressão e censura. Com um olhar perspicaz e uma memória aguçada, ele descreve as atrocidades cometidas por um regime que, embora parecesse invencível, ocultava uma realidade aterradora de tortura e medo. As histórias de amigos e companheiros perseguidos, aprisionados e desaparecidos permanecem como feridas abertas que nunca cicatrizaram.
Sua narrativa, quase poética, transforma o horror em reflexão sobre a luta incessante pela liberdade. Para Adriano lutar pela liberdade era um ato de amor, um sentimento que se estendia a uma nação inteira em busca de justiça e dignidade. Mesmo nas sombras da opressão, havia uma luz: a determinação de um povo que se uniu contra a injustiça.
Ao recordar encontros clandestinos e manifestações, Adriano evoca a camaradagem entre aqueles que desafiaram o regime. Ele destaca a solidariedade e a coragem que emergiram em meio à adversidade, lembrando que as conversas eram sussurradas, sempre com o medo de serem ouvidas. A coragem pulsava em cada coração que se recusava a permanecer em silêncio.
Adriano enfatiza a importância de transmitir essas recordações às novas gerações. Para ele, a memória coletiva não deve ser vista como um fardo, mas como uma herança valiosa a ser cultivada. Tornando-se um guardião do passado, ele se compromete a garantir que os erros não se repitam, reconhecendo que as questões de justiça e reparação são exigências urgentes do presente.
À medida que o sol se põe, suas reflexões destacam que a luta pela democracia e pelos direitos humanos é contínua, requerendo vigilância constante. Embora a ditadura militar tenha sido derrotada em suas formas mais evidentes, suas cicatrizes permanecem visíveis na sociedade brasileira, lembranças dolorosas de um tempo de autoritarismo.
Adriano convida todos a olharem para o passado com honestidade e a se unirem na busca por um futuro mais justo. Suas palavras reverberam, incutindo um senso de urgência em preservar a memória coletiva. No Brasil, onde a história é um bem precioso, ele se destaca como um farol, iluminando o caminho para que os erros do passado não sejam esquecidos e para que a esperança de um futuro mais democrático e igualitário possa florescer.
O relato de Adriano é uma crônica da brutalidade. Ele foi agredido e levado à Operação Bandeirantes, uma delegacia notória na rua Tutóia. Ali, um homem armado o recebeu com uma ameaça, afirmando que ia estourar seus miolos, como havia feito com seu colega Alexandre Banucchi. O terror aumentava ao saber que Alexandre estava agonizando em uma cela. Um auxiliar lhe disse que ele estava estrebuchando sangue por todos os lados, revelando a brutalidade do regime.
Após a desativação do DOPS, a delegacia se transformou no Memorial da Resistência, preservando a memória das vítimas e promovendo a reflexão sobre os horrores do passado. Hoje, a memória das lutas passadas é mais relevante do que nunca, especialmente diante da ascensão da intolerância e da violência, como demonstrado pelo ataque ao Congresso Nacional em 8 de janeiro de 2023.
Lembrar é um ato de resistência. Cada relato serve como um lembrete de que a luta pela liberdade e pela justiça nunca deve ser esquecida. A música que ecoa nas lembranças de Adriano reafirma a importância da dignidade humana e dos direitos civis, desafiando a escuridão da opressão. A luz da memória continua a brilhar, guiando a sociedade na busca por um futuro mais justo.
Por Bianca Athaíde
Uma camiseta custando no máximo R$5 pode ser a única peça de roupa que Celeste, de 48 anos, pode comprar para seu filho até o ano que vem. Enquanto escava em meio a uma montanha vestuário olha discretamente para sua competição com uma outra mulher, aparentando ser um pouco mais velha, vasculhando na mesma velocidade e intensidade a pilha de roupas. Mesmo sendo de família humilde, foi criada para ter nojo de "roupa velha", mas, por necessidade, depois de perder seu emprego em janeiro deste ano, ouviu os conselhos de uma vizinha e recorreu a compras no bazar, pois os meninos estão crescendo rápido demais. O bazar da Paróquia e Santuário São Judas, na zona Sul, é a saída para enfrentar a falta de dinheiro para vestimenta.
A presença física do santuário católico na região toma um imenso quarteirão e estabelecimentos próximos, um deles, o Bazar de São Judas Tadeu. Uma pequena porta de ferro esconde uma sala abarrotada de peças de vestuário, calçados e afins, do chão ao teto. Mergulhadas entre os itens, em sua maioria, mulheres de meia idade, de visual simples, cavam nas grandes rochas têxteis a sua frente por algum bom achado, irredutíveis por sua determinação cristã.
Entrar em um bazar comunitário, com caráter social, pode colocar em xeque a crença de atitude cool e estilo urbano pragmatizada pela recente onda de brechós. Muitos ainda acreditam que os ambos estabelecimentos sustentam o mesmo tipo de público e propósito. Um brechó localizado no alto do bairro Jardins, um dos mais caros da capital paulista, comercializa peças de luxo, angariadas em leilões específicos, frequentados por magos do estilo pessoal e entendedores da moda e suas principais referências, com consumidores que não possuem o menor receio em pagar altos valores apenas por desejo íntimo.
Ao contrário, em um bazar, que muitas vezes oriunda de instituições das mais variadas religiões, a compra é por necessidade. As opções dispostas entre o chão e alguns cabideiros, são resultado de doações realizadas por fieis, cansados da mesmice de seus guarda-roupas e com um desejo interno de nutrir seu ego atuando em caridade. Assim, no Bazar São Judas, a tabela na porta mostra, de maneira organizada, em contraponto ao caos instaurado seguinte, os preços de cada tipo de item, para evitar confusões.
A ampla fissura entre o conceito de brechós e de bazares ainda é embaçada para quem não frequenta os dois. Confundidos muitas vezes, o imaginário popular ainda recai na premissa negativa de roupas velhas jogadas fora. E enquanto a elite se vangloria do recycling e garimpos valiosos, preenchendo o desejo de apimentar sua estética visual, a outra maior parcela da população encontra nos bazares, além de peças acessíveis, uma nova oportunidade de obtenção de renda.
No Bazar São Judas, na mesma tabela de preços, abaixo dos valores, em negrito está escrito: "SACOLEIRAS - Compras em grandes quantidades apenas nas SEXTAS". O dia específico é também, não por coincidência, o dia que semanalmente dois caminhões lotados param na frente da porta do bazar e despejam dezenas de sacos de lixos lotados de peças de vestuários doadas. Em maioria, mulheres formam uma fila, esperando a liberação de entrada, para alcançarem as melhores peças para revender em seus "comércios remotos".
Claúdia, a 3 anos, realiza essa mesma procissão uma vez por mês, para abastecer a vitrine que estende no chão, em cima de uma lona, na frente da saída do metrô Jabaquara, a poucos metros dali. Depois de perder seu emprego como babá durante a pandemia, ela se viu perdida por não conseguir outra oportunidade. Então, no boca a boca do final da missa das 19h00min, descobriu o "dia das sacoleiras" e foi conferir na sexta seguinte. Aos 42 anos, Claúdia é orgulhosa de seu comércio e luta para conseguir as melhores peças semi novas, como ela mesmo denomina, para sua clientela.
O estrelato de uma tendência fashion de elite dos brechós se choca com a caridade e necessidade de muitos que frequentam bazares. Assim, entram em combate, novamente, os valores da indústria. O ciclo no mundo da moda é muito rápido, e o que hoje é desejado, amanhã é descartado. Cabe aos bazares manterem firme o pilar de amparo social, que perdura desde de seus surgimentos, para sustentar a queda brusca que um dia os brechós de luxo podem sofrer, para, quem sabe, a moda seja menos excludente.
Por Yasmin Solon
Todo mês, perto do dia 20, dona Vilma, uma idosa de 80 anos ia ao banco com o seu filho Antonio para sacar sua aposentadoria. Naquele mês de junho não foi diferente. Vestiu seu casaco de lã que levava para todos os cantos e encontrou o filho em uma segunda-feira à tarde para sacar o dinheiro a que tinha direito. No entanto, ela percebeu que o caminho desta vez era diferente. Seu filho, que sempre chamava dona Vilma de ‘matka’ (mãe em polonês), dessa vez a estava levando para uma Instituição de Longa Permanência para Idosos.
Ao chegar na Casa Residencial ela não compreendeu de imediato o que estava acontecendo. Depois aceitou. Antonio não tinha condições mais de lidar com a demência senil de sua matka e precisou buscar por algum apoio nos cuidados. Na verdade, segundo as enfermeiras da Instituição, Vilma sabia da mudança há meses, mas não se recordava. Antonio, com as demandas do trabalho e sem poder considerar um apoio de seus outros dois irmãos, precisou tomar uma atitude que não se orgulhava. Nas visitas semanais, sentia um misto de amor, saudades, alegria e dor.
Dona Vilma tem uma rotina agitada no residencial. Bingos, jantares dançantes, festas, carteados e muitas outras distrações fazem com que ela viva com mais companhia. Esse alto astral às vezes contribui para que a idosa de descendência polonesa se lembre mais do passado. Com muita nostalgia, Vilma se recorda do tempo em que era ativa e muito ocupada quando mais jovem. Tinha que lidar com os afazeres de casa, cuidar dos filhos e dar aulas de natação. Toda rotina é lembrada com um sorriso no rosto. Vilma lembra de seus ‘dzieci’ (filhos em polonês) com muito amor. Apesar de ter um contato mais próximo com Antonio ela não se sente rancorosa com os demais.
Às seis da manhã as enfermeiras já acordam todo o andar com um sino. Logo em seguida é feita a organização de quarto em quarto, e na sequência, os idosos são levados ao banho. Às sete, o café da manhã é servido no refeitório, onde todos aqueles que podem ir até lá, são guiados. Em seguida, as sessões de fisioterapia são iniciadas. Depois, em dias rotineiros sem novidades, os idosos ficam no quarto assistindo TV, até o horário da próxima refeição. A Casa possui um jardim interno muito bonito, um dos poucos lugares em que não se sente o cheiro forte de urina e que é possível tomar um sol durante o dia. Lá, Vilma conheceu Miriam. Uma senhora um pouco mais nova que, apesar de ter a Casa como o mesmo destino, teve uma história diferente.
Miriam lidava com um filho abusivo e agressivo. Ele não permitia a visita de outras pessoas e cuidava de sua mãe por mera necessidade financeira. Como ele conseguia um tipo de salário, não permitia que sua mãe fosse cuidada por outras pessoas da família ou fora. Sua agressividade assustava qualquer um que pudesse tentar contato com a sua mãe e por isso, com ajuda de outros familiares, Miriam buscou uma Instituição.
Elas sempre passam o fim da tarde juntas. Após o lanche da tarde, pegam o restinho do sol e colocam o papo (ou a memória) em dia. Em seguida, assistem a novela juntas para depois jantarem e por fim, irem dormir. Sempre que Dona Vilma recebe a visita de Antonio, faz questão de incluir Miriam nas conversas e, quando possível, nos passeios. Vilma confessou que às vezes, prefere dizer ao filho que não se sente bem para sair para seguir na companhia de Miriam. Mesmo sendo diabética, Vilma traz docinhos para Miriam. Ela defende que é uma das formas de sua amiga tão especial se sentir amada.
As duas criaram um laço de amizade forte capaz de superar qualquer tédio e melancolia que possa existir na casa que tem tantos quartos. Poucos quartos da instituição estão desocupados. Isso significa que, apesar do estigma social, existem muitos idosos cheios de vida e amor para dar e receber. O refeitório cheio traz na memória de Vilma o quentinho no coração de “casa cheia”, como era de costume nos domingos passados. De repente, como no caso de Vilma e Miriam a lembrançca de uma família reunida.