Uma paixão que pode ajudar na construção de conexões emocionais e auxiliar no autoconhecimento, mas que deve vir acompanhada de equilíbrio e autorregulação
por
Ana Julia Bertolaccini
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08/05/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

A vida de Victoria Siqueira, de 39 anos, foi moldada e insipirada pela cultura do fã, através do mundo digital, que  permitiu com que suas paixões se transformassem em uma carreira. Vic, como é conhecida pelos amigos, trabalha há 17 anos como social media, e descobriu sua paixão pela comunicação através dos chamados “fandoms” (comunidade de fãs). Aos 11, ela presidiu  o “Wanna be”, fã-clube do grupo britânico Spice Girls e aos 16, viveu a época dos blogs, criando o seu próprio posteriormente, o qual foi alimentado durante anos.

Com a evolução das redes digitais e da Internet, Vic passou a desenvolver habilidades em design e programação para personalizar as postagens que compartilhava através do blog. No início, ela chegou a fazer parte de iniciativas que hoje se comparam às atividades dos influenciadores digitais, mas que na época ainda não levavam esse nome. Como o futuro desse tipo de carreira ainda era muito incerto, Vic deciciu que levaria todo esse aprendizado para o meio acadêmico, através da comunicação. 

Foto do jornal em que Victoria participou
Arquivo Pessoal: foto de um jornal para o qual Victória deu entrevista quando criança 

Victoria Siqueira é formada em publicidade e trabalha em uma empresa que cuida de duas marcas de roupas. Dos vários desdobramentos que um hobby poderia ter tido, Vic direcionou-o para o meio acadêmico e para o marketing digital no mercado de trabalho, desenvolvendo sua carreira através das mídias, do branding (identidade visual, valores missão e comunicação de uma marca), e cuidando também do relacionamento com influenciadores, transitando entre funções que algum dia já teve durante os tempos do blog

Aos 28 anos, a jornada do fã é algo novo para a jornalista e criadora de conteúdo Yakine Reis Paixão. Ela voltou a ter inspiração para criar seus próprios conteúdos no Instagram e no TikTok quando passou a conhecer mais sobre grupos de kpop e outros estilos musicais. Depois de formada e com o início da vida adulta, Yakine havia perdido um pouco dessa motivação, o que mudou completamente depois que ela passou a se conectar com si mesma em espaços virtuais coletivos que ela nem se quer lembrava que existiam.

Yaks, como gosta de ser chamada nas redes, acredita que ser fã é poder enxergar em outras pessoas um motivo ou uma inspiração para anseios pessoais. Para ela, essa cultura também traz o senso de comunidade muito forte, ao proporcionar uma troca de pensamentos e sentimentos entre as pessoas. Um interesse que é coletivo, e que ao mesmo tempo, é compreendido por cada um à sua própria maneira, talvez não possa ser descrito em poucas regras ou em uma curta definição.

Juliana Capel, psicóloga e especialista em psicologia positiva pela PUC-RS, explica que um dos fatores desse estilo de vida é a construção da identidade pessoal. Muitas pessoas descobrem talentos e paixões ao admirar um artista, podendo despertar o interesse por música, dança, fotografia, escrita, design, edição de vídeo, produção de conteúdo e até mesmo por áreas acadêmicas, como é o caso de Vic. 

Essa paixão pode ser algo benéfico do ponto de vista psicológico, uma vez que a relação emocional com um artista proporciona sentimentos de alegria, entusiasmo e conexão, podendo auxiliar no estímulo da criatividade e até fortalecer a autoestima. Além disso, essa atividade também pode ativar memórias afetivas, fortalecer a empatia e até contribuir para o autoconhecimento. O segredo para uma boa experiência, no entanto, é o equilíbrio.

A ridicularização do entretenimento feminino

Aline Sodré, de 44 anos, foi conhecida por muitos anos como “a fã dos Beatles” na escola, na faculdade e no trabalho. Desde 2010, ela viaja e assiste a maior quantidade de shows possível de seu principal ídolo, Paul McCartney. Ao todo, ela já viu 35 shows do artista no Brasil, na América do Sul e nos Estados Unidos. Aline tatuou o autógrafo dele no braço e também tem tatuado trechos de músicas de Paul e dos Beatles no corpo. 

Depois de todos esses anos inserida nesse ambiente, ela percebeu que há um preconceito direcionado principalmente aos ídolos adolescentes, como cantores do gênero pop: Justin Bieber, Taylor Swift e outras boybands. Apesar disso, ela não se incomoda com essa visão distorcida em relação aos gostos predominantemente femininos.

Foto de Aline em um dos shows de seu ídolo
Reprodução/redes sociais: Aline Sodré em um show do seu ídolo, Paul McCartney  

A criadora de conteúdo Yakine sente que tudo que é feminino nunca é suficiente para a sociedade. Do trabalho ao lazer, não importa o quão saudável seja um costume ou um hobby, ele sempre será menosprezado, diminuído ou dado como inútil e infantil para a grande mídia e para a opinião pública. O mesmo, porém, não acontece na mesma intensidade com gostos de grupos majoritariamente masculinos.

Quando se fala em futebol, não é difícil de ouvir por aí grupos de homens adultos discutindo quem está à frente no campeonato e quais jogadores têm feito um bom trabalho. Para quem convive diariamente com torcedores, é notável a mudança de humor e de temperamento dessas pessoas, o que muitas vezes tem relação direta com jogos ganhos ou perdidos do time do coração. 

Mesmo ao abordar o futebol como uma forma de entretenimento, ignorando possíveis atividades que se relacionem diretamente com o esporte e focando completamente em discussões sobre ídolos e equipes, os homens raramente são tratados como crianças ou julgados por falar sobre esse assunto em encontros de família e até mesmo em ambientes corporativos. 

Existe um machismo estrutural que tende a desvalorizar ou ridicularizar tudo que um grupo de mulheres gosta intensamente, enquanto hobbies masculinos são vistos como legítimos e costumam ser respeitados. Esse tipo de preconceito acontece em culturas como a do K-pop, doramas e até com o consumo de literatura romântica Todavia, qualquer tipo de arte ou entretenimento deve ser encarada como algo legítimo, independentemente de quem a consome. A psicóloga Juliana Capel reforça que gostos pessoais não precisam de validação externa para serem considerados válidos.

A Idolatria 

Uma colega de Aline, que já tinha na época mais de 40 anos na época, era obcecada por uma dupla sertaneja famosa e os seguia pelo Brasil todo. Mandava presentes caros e ficava na porta do prédio deles esperando. Era um amor platônico tão grande que ela tinha certeza que ia se casar com um dos moços da dupla e essa obsessão vinha acompanhada de um sofrimento intenso. 

Aline Sodré tem hoje um olhar mais crítico e analítico sobre o fã. Ela continua a fazer parte dessa cultura, mas como ela mesma destaca, é uma paixão alimentada de uma forma menos fervorosa e mais responsável do que era na adolescência, por exemplo, quando tudo é mais intenso. Essa transição, no entanto, não ocorre para todos.

Em alguns episódios, esse interesse passa a dominar todos os aspectos da vida da pessoa, se transformando em um comportamento obsessivo, onde a pessoa deposita sua identidade e felicidade exclusivamente no ídolo, perdendo o equilíbrio emocional. Esse tipo de envolvimento pode acontecer quando há um vazio emocional, baixa autoestima ou dificuldades em lidar com a própria realidade. Diante disso, o trabalho, os estudos e as relações pessoais passam a ser negligenciadas. 

Há um estigma de que “ser fã” é sempre algo doentio, relacionado a uma idolatria cega, o que não procede em grande parte das circunstâncias. Ainda assim, é fato que um transtorno obsessivo possa vir a se desenvolver em casos extremos. O contraponto de uma vida saudável, com gostos e paixões pessoais, é o desequilíbrio. Nesse contexto, algumas pessoas podem chegar a gastar dinheiro de forma compulsiva, comprometendo a própria estabilidade financeira.

Como evitar um possível desequilíbrio? 

Conhecendo a si própria e tendo vivido diversas experiências em razão dessa cultura, Aline se deu conta de que ela não quer ultrapassar as barreiras que existem entre um fã e o seu ídolo a ponto de desenvolver uma amizade e uma proximidade maior com os artistas que admira. Ela conta que quando começou a perceber que os cantores pelos quais ela era fascinada se tratavam de pessoas reais, com dias bons e ruins, ela entendeu que deveria recuar e estabelecer limites que permitissem com que ela os admirasse apenas como artistas, não interferindo na vida pessoal deles. 

Hoje, aos 44 anos, ela continua indo a shows e viajando para ver seus artistas e bandas preferidos. Em sua percepção do futuro, Aline acredita que sempre terá essa necessidade de tietagem e pretende continuar a investir seu dinheiro com esse tipo de entretenimento. No atual momento de sua vida e daqui pra frente, porém, Aline não tem mais a intenção de acampar em portas de estádios, ficar nos mesmos hotéis que esses artistas, ou ser adepta de atividades que interfiram profundamente na sua rotina e no seu estilo de vida. 

É importante entender essa linha tênue entre adoração absoluta quase religiosa e admiração profunda. Para isso, os principais tipos de conduta que devem ser levados em conta são o autoconhecimento e a autorregulação. É preciso observar se o envolvimento com o ídolo está vindo de um lugar saudável ou se está sendo usado para evitar lidar com desafios da própria vida.

Ter outros interesses e atividades além da participação em grupos de fãs é imprescindível. O esporte, os livros, o cinema e outras ocupações culturais ou de lazer são boas alternativas. Manter conexões reais com amigos e familiares também é essencial. Definir limites de tempo e dinheiro gastos com esse tipo de entretenimento são parte da estratégia de autocontrole, o que evita a desestabilidade financeira.

Outro fator importante para o fã é o consumo consciente de conteúdo. Sentir um sofrimento intenso ao não conseguir acompanhar tudo o que o artista faz não é um bom sinal. Ter consciência de que os ídolos são seres humanos e de que a admiração não deve se tornar uma idealização irreal é o segredo de uma paixão equilibrada, que pode ser extremamente positiva para o bem-estar psicológico e social, sem impedir a vivência de outras experiências. 
 

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Quando o corpo vira território e a memória se transforma em luta
por
Vitor Simas
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22/04/2025

Por Vitor Simas

 

No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.

Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.

Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.

Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.

Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.

A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.

Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.

A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.

Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.

Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.

Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.

 

 

Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé

 

Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.

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A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
por
Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Comportamento

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Cultura e Entretenimento

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No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
por
Julia da Justa Berkovitz
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10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

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Entre o alívio da fuga e as incertezas do futuro, a sobrevivência de uma familia libanesa em território brasileiro revela a resiliência dos refugiados
por
Laura Celis Brandão
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15/04/2025

Por Laura Celis

 

O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.

A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.

Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.

Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.

Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.

Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária. 

A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade. 

A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente. 

O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.

 

 

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Política Internacional

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

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Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

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Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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Comportamento

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comportamento
São 800 quilômetros percorridos em 10 horas de viagem pela dona Zenaide.
por
Giulia Fontes Dadamo
|
20/03/2025

Por Giulia Dadamo

 

É madrugada, e a cidade de São Paulo ainda resiste ao sono. No terminal rodoviário da Barra Funda, a sacoleira Zenaide ajeita a mochila nas costas e observa o movimento frenético ao seu redor. O alarde dos vendedores ambulantes que fazem o último grito de seus produtos se mistura ao som metálico do embarque. Ela, no entanto, já está com o olhar e os ouvidos acostumados. Aquele não é o seu objetivo. O dela é o longo trajeto que começa ali, no Terminal, mas vai muito além. Ela é uma dos milhares de sacoleiros que fazem o vai e vem entre a 25 de Março e suas cidades de origem. A dela, porém, é mais longe do que a da maioria. Todo mês, pelo menos uma vez, ela segue com sua mercadoria abarrotada de bijuterias, roupas e acessórios para abastecer sua lojinha em Umuarama, interior do Paraná. Seja por viagens organizadas com ônibus fretado com grupo de pessoas da região, ou às vezes pelo transporte da Viação Garcia, ela nunca deixou a desejar no estoque, que é o sustento da sua família apesar do longo tempo de estrada.

Durante as 10 horas de viagem, ela atravessa os 800 km em direção ao lugar onde as calçadas são mais largas e o ritmo da vida é mais lento, mas igualmente apertado. Observa a estrada como quem conhece cada curva, cada quebra de pista. Ela pensa nos clientes de cidades pequenas, que nunca se cansam de olhar as mesmas peças, os mesmos produtos, e que talvez nunca terão acesso à imensidão do comércio de São Paulo.

Ao contrário do que o nome sugere, a imagem do sacoleiro carregando sacos pesados nas costas é um tanto desatualizada. Zenaide, por exemplo, transporta suas mercadorias em mochilas robustas, com zíperes resistentes e alças reforçadas. Não há muito romantismo na rotina que envolve essa jornada: o trabalho exige resistência, mas é também uma questão de estratégia e adaptação. No trajeto, ela e seus colegas de profissão têm o corpo todo moldado pela necessidade de carregar e proteger as mercadorias. A mochila vai apertando os ombros, as costelas começam a reclamar do peso. 

Ela aprendeu, com o tempo, a organizar melhor os itens, buscando distribuir o peso de forma mais uniforme para evitar a dor do cansaço. Mesmo assim, os quadris doem. O alívio vem apenas quando ela pode fazer a primeira pausa na viagem, ainda que breve. Mas a jornada não é só física. Cada quilômetro percorrido a leva a repensar sua vida e o que significam, de fato, essas mercadorias que carrega nas costas. Roupas, calçados, bijuterias e acessórios fazem parte daquela imensidão de mochilas. Apesar de serem itens pequenos, eles ocupam um grande espaço no mercado, principalmente nas cidades menores. 

Por mais que o comércio da 25 de Março seja um universo de possibilidades infinitas de estoque, muitas das peças ali vendidas são repetitivas, mudam apenas de cor ou detalhe. Os clientes de Zenaide, em Umuarama, talvez não tenham ideia de que, ao comprar uma simples bolsa de camurça, estão adquirindo um produto que percorreu mais de 800 km, atravessando estradas sinuosas e absorvendo os solavancos do ônibus fretado. Talvez nem imagine que a vendedora que lhe oferece o item teve que negociar cada centavo no mercado paulista, empurrando, mais uma vez, a fronteira do preço justo.

A sacoleira é uma figura de certa forma invisível, uma trabalhadora que transita entre mundos sem ser notada por completo. Sua loja é o reflexo de sua resiliência, mas é o peso da mochila e da jornada, invisíveis aos olhos dos clientes, que definem sua realidade. O mercado de sacoleiros, longe dos holofotes e da glamourização de alguns setores do comércio, sobrevive da repetição das idas e vindas, da reconstrução constante de suas rotinas, onde cada viagem, seja ela feita em grupo ou sozinha, carrega em si uma bagagem emocional e física densa.

Essa bagagem vai além do peso das mochilas e sacolas que preenchem os ônibus de passageiros lotados. É o peso das expectativas, dos sonhos de crescimento, de ser mais do que a vendedora ambulante, de se colocar no mesmo patamar de quem transita nos centros comerciais da metrópole, longe da poeira das estradas. Mas, no fundo, cada sacoleira tem uma missão íntima que transita entre o pragmatismo do sustento e o desejo de empreender algo além da rotina.

À medida que Zenaide se aproxima de seu destino, as paisagens vão mudando. Asfalto dá lugar a estradas simples, sinalizando que o ritmo da vida local se aproxima. Mas ela não pensa nisso enquanto observa as paradas e pequenas cidades que surgem à beira do caminho. O que invade sua mente são as pequenas apostas que fez, as estratégias que criou para diversificar seu estoque e garantir que, quando ela voltar à sua loja em Umuarama, possa ver novamente o sorriso dos seus clientes e o reconhecimento de seu esforço.

O sacoleiro é, acima de tudo, alguém que sabe lidar com as idas e vindas da vida, com os desafios de quem está sempre no movimento, sem nunca parar. Zenaide segue sua jornada, entre os sorrisos de seus amigos de estrada e as ruas que chamam seu nome. O destino talvez nem seja o ponto final da viagem. Talvez, o que importa, é o trajeto em si. O constante ir e vir, o desafio do trabalho invisível, da carga carregada com tanto esforço, e o olhar atento de quem, como ela, sabe que no vai e vem do mundo, sempre há algo a aprender e a construir.


 

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O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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Esportes

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
por
Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
por
Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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