A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
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Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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Entre sintomas, aprendizados e novas percepções sobre o próprio corpo, mulheres contam como estão enfrentando a fase da menopausa.
por
Mohara Ogando Cherubin
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04/11/2025

Por Mohara Cherubin

 

Janaina Martins lembra com um sorriso do dia em que “virou mocinha”. Tinha apenas onze anos quando o sangue apareceu pela primeira vez, em casa, e correu para contar à mãe. As amigas também já começavam a menstruar e a empresária ficou feliz, era como se tivesse se tornado mulher de um dia para o outro. Nos primeiros meses, tudo parecia novidade, mas a euforia logo deu lugar à realidade dos ciclos longos, de sete dias, acompanhados de cólicas intensas que a faziam interromper o que estivesse fazendo.

Na adolescência, conciliava a rotina da escola com os treinos de natação. O medo de que a menstruação vazasse na piscina a acompanhava em cada mergulho. Usava apenas absorventes comuns, e as preocupações com manchas e constrangimentos eram constantes. Desde cedo, aprendeu que menstruar era também lidar com o desconforto de algo que não era capaz de controlar.

Os anos seguiram marcados por essa relação complexa com o corpo. As dores e o fluxo intenso persistiam, mas ela se adaptava a cada novo ciclo, sem deixar de lado os compromissos, o trabalho e a vida ativa. Teve duas gestações, aos 27 e aos 32 anos. A primeira foi tranquila, mas a segunda trouxe complicações, como varizes na vulva e dores fortes que a obrigavam a reduzir o ritmo. No parto cesárea, os médicos identificaram varizes pélvicas, condição rara e de risco. Anos mais tarde, um exame vascular revelou uma estenose na veia renal esquerda. O diagnóstico a levou a um cateterismo e a novas cirurgias de varizes.

Mesmo com os tratamentos, as dores não cessaram. Em 2016, seu ginecologista sugeriu a histerectomia, procedimento que consistiu na retirada do útero, das trompas e de um dos ovários. A cirurgia trouxe alívio imediato do fluxo e das cólicas que a acompanharam por quase trinta anos. Foi a primeira vez que se sentiu livre do ciclo que marcava sua rotina desde a infância.

Por alguns anos, o corpo permaneceu o mesmo. Até que, aos 45, as mudanças voltaram a se manifestar de outro modo. O sono, antes contínuo, tornou- se leve, interrompido por despertares no meio da noite. Ondas de calor surgiam de repente, e o humor oscilava sem explicação. Mais do que os sintomas físicos, o que mais a angustiava era o esquecimento. Sempre pontual, começou a perder compromissos e a confundir horários. Os exames hormonais confirmaram que Janaina estava entrando na menopausa. A notícia não provocou medo, mas exigiu aceitação, já que percebeu que não conhecia muito sobre essa fase, e que os médicos pouco falavam sobre ela. Acredita que a mulher deveria ser preparada ainda no período fértil, para compreender melhor as mudanças do corpo e da mente. Por conta das condições vasculares, não pode recorrer aos tratamentos hormonais convencionais, o que torna a adaptação ainda mais desafiadora.

Os filhos e amigos logo notaram as mudanças. A empresária, antes sempre organizada e de humor constante, passou a se mostrar mais irritada e distraída. As reações de espanto ao seu redor a fizeram perceber o quanto a menopausa altera não apenas o corpo, mas também a forma como os outros a enxergam. Hoje, aos 47 anos, Janaina encara a menopausa como um exercício de autoconhecimento. Aprendeu a reconhecer os próprios limites e a compreender as mensagens do corpo. Procura não se cobrar tanto, mesmo diante dos esquecimentos e das falhas de memória que ainda a incomodam. Vê nessa fase um convite à escuta e à reconciliação consigo mesma.

Como foi o que aconteceu com a jornalista Neivia Justa, que sangrou pela primeira vez aos 11 anos. Ela se recorda com nitidez da madrugada em que acordou com fortes cólicas e acreditou estar com um problema intestinal. Estudava em um colégio de freiras, daqueles em que as meninas usavam saias plissadas e o uniforme de educação física incluía uma sunga de jogadora de vôlei. Com medo de se sujar, improvisou enchendo a calcinha de papel. Foi o que a salvou. Ao chegar em casa, percebeu o sangue e chamou a mãe, que reagiu com euforia, e logo a notícia se espalhou por Fortaleza, local onde morava. 

Desde pequena, sabia o que significava menstruar. Entendia o processo biológico, que o sangramento viria todos os meses, e que fazia parte do crescimento. A mãe a havia preparado para isso, já que seu corpo começou a se desenvolver bem cedo. Mas, além da explicação biológica, não houve grandes conversas. O tema da menstruação estava cercado de tabus, especialmente no que dizia respeito ao corpo feminino, à sexualidade e à virgindade, assuntos que não se discutiam abertamente em casa.

Na adolescência, Neivia passou a lidar com o ciclo menstrual de forma prática, mas sem afeto. Contou que nunca gostou de menstruar. O cheiro, o fluxo intenso, o desconforto, nada nisso lhe parecia natural. O medo de manchar a roupa era constante, principalmente nos dois primeiros dias de sangramento. Não conseguia usar absorvente interno e via a menstruação como um incômodo a ser suportado. Quando começou a vida sexual, o período menstrual continuava sendo uma barreira, era algo que preferia esconder, manter distante de qualquer relação.

Se lembra que, na época, a menstruação carregava ainda mais tabu do que hoje. Evitava praias, roupas claras, e dificilmente comentava sobre o assunto. Foi a primeira da turma a menstruar, o que a colocou, involuntariamente, no centro das atenções, uma posição que a incomodava. Com o tempo, aprendeu a reconhecer o próprio corpo, a identificar sintomas e ritmos. Seu ciclo era regular como um relógio, e essa previsibilidade lhe trazia certo controle sobre si mesma. As cólicas a acompanharam até a primeira gravidez, aos 32 anos; depois da segunda, desapareceram de vez.

Por volta de 47 anos os sintomas da menopausa começaram a dar sinais. O primeiro foi o calor noturno, acordava suada toda madrugada, sem entender o que acontecia. Vieram também a irritação constante e a sensação de estar em uma TPM que nunca terminava. Mesmo antes de os exames confirmarem, ela insistia com o médico que o corpo já estava mudando. Sabia reconhecer seus sinais, e estava certa. Neivia nunca tratou a menopausa como tabu. Pelo contrário, queria lidar com os sintomas o quanto antes. Iniciou a reposição hormonal logo que as alterações começaram e segue com o tratamento até hoje. Para ela, é uma questão de equilíbrio e bem-estar, sem medo nem preconceito.

Para ela, a falta de informação ainda é um dos maiores desafios. Acredita que, embora haja avanços, o tema continua cercado de desconhecimento e até negação. Muitas mulheres ainda não entendem o que estão sentindo ou acreditam estar adoecendo. Os médicos especializados são poucos, e o acolhimento é insuficiente. Por isso, enxerga na menopausa uma oportunidade de transformação coletiva, de falar mais, educar e incluir também as famílias — maridos, esposas, filhos, colegas e chefes — nesse diálogo.

Neivia encara o assunto com humor e naturalidade. Costuma brincar com o marido, que dorme enrolado em cobertores, como um pinguim, enquanto ela precisa do ar-condicionado ligado no máximo. Fala abertamente sobre estar na menopausa, sobre o corpo e a idade, como forma de desmistificar o envelhecimento feminino. Já escreveu sobre o tema e faz questão de mostrar que essa é apenas mais uma etapa que deve ser vivida com leveza.

Hoje, aos 56 anos, ela entende a menopausa como parte da sua identidade atual. Depois de retirar o útero, passou a compreender com mais clareza as transformações do corpo e do metabolismo. Acredita que aceitar e cuidar de si é o caminho para atravessar essa fase com serenidade. Para ela, a menopausa representa maturidade e liberdade. Deseja viver os melhores anos de sua vida agora, sem nostalgia e sem ansiedade. Encarar o presente como ele é, com seus desafios e descobertas, tem sido sua forma de existir plenamente, abraçando o corpo e o tempo como aliados, não inimigos.

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A trajetória de Rafael Rodrigues expõe as marcas da exclusão e revela como a transfobia ainda limita oportunidades.
por
Ingrid Lacerda
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16/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

No meio da correria diária de Guarulhos, Rafael se sente invisível. Assim que acorda às 5h da manhã, vê seus certificados, e centralizado na parede de seu quarto, um diploma. Graduado em Administração e tecnólogo em RH, Rafael acumula qualificações que poderiam colocá-lo em bons cargos, aliás, concluiu a faculdade, buscou cursos, investiu em sua formação como qualquer profissional. Ele sabe que suas conquistas não foram poucas, mas também sente o peso das barreiras impostas por uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar com a diversidade no mundo do trabalho.

Atualmente, trabalha como vendedor em uma franquia de tintas, mas, ainda deseja ir além. Com receio constante de ser reconhecido como uma pessoa trans no ambiente de trabalho, o medo não se restringe apenas ao julgamento dos colegas, mas se estende à reação de clientes, que muitas vezes podem reproduzir preconceitos de forma direta ou velada. Para ele, esta ansiedade funciona como um distanciamento, que reforça o sentimento de não pertencimento. O episódio não é isolado. Um levantamento revelou que 60% das pessoas trans empregadas no Brasil já sofreram algum tipo de constrangimento ou assédio no ambiente de trabalho.

Antes mesmo de buscar um emprego, pessoas trans encontram resistência no espaço escolar. Ele lembra como o preconceito, manifestado em forma de bullying, uso forçado do nome de registro e ausência de acolhimento institucional, faz com que muitos abandonem os estudos. Pesquisadores como Richard Miskolci definem esse processo não como evasão, mas como uma verdadeira expulsão, já que a escola se torna insustentável para aqueles que não se encaixam nos padrões de “normalidade” impostos pela sociedade. Isso evidencia que não se trata de falta de qualificação, mas de um ciclo de marginalização que começa cedo, assim, chegam à vida adulta já em desvantagem, empurrados para a informalidade ou para a prostituição compulsória.

Mesmo com dificuldades, Rafael conseguiu concluir a graduação e reconhece que sua trajetória é uma exceção. Muitos de seus amigos trans não conseguiram concluir o ensino médio, não por falta de vontade, mas porque a violência e o preconceito tornaram-se um caminho quase impossível de seguir.

A transfobia é caracterizada em ações de violência física, moral ou psicológica. É uma aversão aos trans,  sendo  manifesta  em  atos  explícitos ou velados. São todos os tipos de rejeição, ódio e medo, partindo de uma visão distorcida de que a transexualidade não é  algo humano. Ainda pode  ser expressado em crimes de ódio, em alguma forma de ataque, já que o crime de ódio é uma ação de violência movida pelo ódio do grupo social ao qual a vítima faz parte, com o objetivo de atacar um grupo ou minoria social e não a pessoa que sofre o ataque.

Apesar  da  maior  visibilidade  do  movimento  LGBTQIA+, percebe-se  que a violência contra essa população atinge níveis extremamente altos. O preconceito contra os transexuais provoca impactos em diversas áreas de suas vidas, como na educação escolar e no mercado de trabalho. Essa dificuldade é frequentemente relatada através das experiências vividas pela própria  comunidade transgênera que não atinge o resultado desejado ao passar por processos seletivos na maioria das empresas, não  sabendo, muitas das vezes, por qual motivo, além da transfobia, não alcançou o sucesso naquele momento e isto favorece à falta  de  mais  preparo  para  uma  possível  próxima  seletiva,  pois  ao  saber onde pecou, o sujeito procura melhorar naquele quesito  para obter êxito na sua busca por uma oportunidade profissional. 

A ausência de oportunidades para pessoas trans não compromete apenas a renda, mas também a saúde emocional. Rafael, por exemplo, relata viver em constante dúvida sobre si mesmo - uma insegurança que não nasce de suas capacidades, mas do preconceito que enfrenta diariamente. Seu maior sonho é poder garantir uma vida digna para sua família, mas a barreira da exclusão profissional torna esse caminho mais árduo. 

Pesquisas recentes confirmam essa realidade: pessoas trans estão entre as mais afetadas por ansiedade e depressão, frequentemente em decorrência da rejeição social e da instabilidade financeira. Especialistas ressaltam que a exclusão do mercado de trabalho não deve ser vista apenas como uma questão econômica, mas como uma violação de cidadania e dignidade.

Mesmo buscando oportunidades em áreas ligadas à sua formação ele percebe que a exclusão segue presente, ainda que mascarada por discursos de inclusão. Observa que muitas empresas estampam a diversidade em campanhas publicitárias, porém, na prática, esse discurso, majoritariamente, ultrapassa a porta de entrada.

Esperança

Rafael mantém a esperança de que o cenário possa mudar. Ele defende a criação de políticas públicas mais robustas e programas de capacitação que ultrapassem o campo do simbolismo, destacando que a demanda não é por privilégios, mas por oportunidades reais. Para ele, o objetivo é simples: demonstrar capacidade sem que a identidade de gênero se torne um obstáculo.

Algumas iniciativas já começam a surgir em diferentes cidades brasileiras, como programas de estágio voltados especificamente para pessoas trans e editais de concursos públicos com cotas afirmativas. Entretanto, o alcance dessas ações ainda é limitado diante da dimensão do problema e da persistência das barreiras estruturais. Enquanto isso, ele segue sua caminhada, e, no tempo em que essa transformação social não acontece de forma ampla, Rafael continua resistindo, transformando sua trajetória individual em símbolo das lutas coletivas que ainda precisam ser travadas no mercado de trabalho brasileiro.

Ao falar sobre exclusão e inclusão social é inevitável pensar nas pessoas transgêneras, um dos grupos mais afetados pela  discriminação. Dessa forma, nota-se que a realidade desta comunidade é envolta por um tipo de transfobia que é estrutural. O preconceito e a violência contra trans são enormes e prejudiciais, acarretando em diversos empecilhos para que este grupo tenha acesso à educação escolar, à saúde e ao mercado de trabalho. No Brasil, algumas políticas públicas e projetos promovem a inclusão social dessa comunidade tão marginalizada, porém, ao observar que ela precisa de ajuda, percebe-se que essas políticas e projetos ainda caminham a passos lentos. A população transgênera carece de mais apelo à sua visibilidade para que suas necessidades sejam atendidas, garantindo uma vida digna. Acima de tudo isso, acredita-se que o primeiro passo para a qualidade de  vida das pessoas trans está pautado no respeito, pois, por meio dele é possível compreender que cada indivíduo tem a sua importância e valor na sociedade e todos merecem a oportunidade de encontrar seu lugar no mundo.

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Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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Brasil registra média de dois casos de abandono de idosos por dia em 2025.
por
Arthur Rocha
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16/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A luz da tarde despeja um ouro velho sobre salas de convivência em centenas de instituições pelo País, iluminando partículas de poeira que dançam como memórias leves no ar parado. São nesses horários que os asilos respiram diferente, ou melhor, tentam respirar entre suspiros e os ruídos de mentes que se perdem. Em uma sala qualquer, mulheres idosas se reúnem ao redor de mesas cobertas de retalhos, tentando sobrepor o som de suas agulhas aos gritos que vêm do corredor. De alguma ala, sempre ecoam vozes conversando com fantasmas de entes falecidos há décadas, enquanto outras arrastam malas imaginárias na espera eterna por alguém que nunca virá.

Os que mantêm a lucidez trocam olhares de uma cumplicidade cansada, um silêncio que diz mais que palavras. Em outra sala, um homem tenta recordar o amigo da melodia de O Show tem que continuar, do Grupo Fundo de Quintal, mas a memória escorre pelos dedos a cada cinco minutos, como água entre as mãos. Lágrimas silenciosas molham instrumentos desafinados enquanto acordes simples se perdem nos labirintos do esquecimento. São cenas que se repetem diariamente em milhares de quartos e corredores pelo Brasil, histórias não contadas de resistência silenciosa.

O cenário é alimentado por números que assustam: segundo o Censo da Pessoa Idosa 2023, existem mais de 5,7 milhões de idosos vivendo sozinhos no Brasil, muitos deles completamente abandonados por suas famílias. A Fundação Perseu Abramo revela que cerca de 4 milhões de idosos não recebem visitas de familiares, nem mesmo em datas especiais como Natal ou aniversários.

Os refeitórios dessas instituições se transformam em palcos de dramas silenciosos. Em uma mesa, um homem empurra o prato com suspeita de veneno inexistente. Em outra, uma senhora perambula entre as cadeiras perguntando incessantemente pela filha que morreu há anos. Nos cantos, outros balançam travesseiros como se fossem bebês, cantarolando canções de ninar para fantasmas do passado. São cenas que se multiplicam por milhares de instituições, cada uma com seus personagens anônimos presos em labirintos mentais.

Os dados da Organização Mundial da Saúde mostram que o Brasil tem uma das maiores taxas de depressão entre idosos institucionalizados das Américas, chegando a 40%. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019 aponta que 29,1% dos idosos relatam sentir solidão, um sentimento que se intensifica dramaticamente entre os que vivem em instituições.

Quando a noite chega, os corredores escuros se enchem de sons que testam a sanidade dos que ainda a mantêm. Gritos intermitentes ecoam pelo silêncio , pesadelos que se confundem com realidade, confusões mentais que se agravam com a escuridão, dores da alma que encontram voz quando não há mais distrações diurnas. Em quartos espalhados por todo o País, homens reorganizam as mesmas roupas repetidamente, mulheres conversam com quadros nas paredes, vozes discutem com sombras.

O Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, registra cerca de 40 mil denúncias de violação de direitos dos idosos anualmente, sendo o abandono uma das principais queixas. Os Conselhos Estaduais do Idoso estimam que para cada caso notificado, outros dez permanecem invisíveis , histórias que nunca chegam aos registros oficiais, se perdendo nos muros das instituições.

A verdade mais dura é que esses números representam apenas a ponta de um iceberg de abandono e sofrimento. Por trás de cada estatística, há dezenas de histórias não contadas , homens e mulheres que desaparecem da memória coletiva enquanto ainda respiram, que se tornam fantasmas em vida em instituições esquecidas nos quatro cantos do país.

Ainda assim, como pequenos milagres cotidianos, a resistência persiste. Em salas de atividades por todo o Brasil, mãos idosas continuam tecendo não apenas pontos e melodias, mas redes frágeis de sanidade que os mantêm à tona. Quando ajudam um companheiro a encontrar notas perdidas na escala musical, ou quando acalmam um vizinho em crise com palavras suaves, esses anônimos afirmam silenciosamente que mesmo onde a razão deserta, a humanidade ainda pode florescer em gestos simples.

Nessa teia invisível de afetos e paciência, entre gritos noturnos e lágrimas diurnas que nunca serão registrados em nenhuma pesquisa, milhares encontram a força suave que os impede de desistir completamente. E talvez essa seja a maior resistência de todas: permanecer são em ambientes que constantemente testam os limites da sanidade, dia após dia, sem plateia, sem reconhecimento, sem que ninguém lá fora sequer saiba que existem.

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Comportamento

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comportamento
A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
|
23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Cidades

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Comportamento

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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