O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Sem garantias trabalhistas, autônomos tentam sobreviver.
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Felipe Bragagnolo Barbosa
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11/11/2024

Por Felipe Bragagnolo

 

Reginaldo, caminhoneiro desde 2006, foi enfático ao afirmar que muitos de seus amigos acreditaram que Bolsonaro iria fazer alguma coisa de concreto pela categoria, até mesmo porque ele se mostrava próximo da sua condição profissional. Ele mesmo chegou a acreditar que sua vida poderia melhorar com a diminuição dos preços de pedágio e com o controle do preço do diesel. Disse que Bolsonaro estaria ao lado da categoria, mas que na prática não ocorrera assim. Os problemas se mantiveram. Comentou sobre a situação dos autônomos, em que eles não tem nenhuma proteção, Reginaldo contou que sendo autônomo se vê sempre preocupado e que sem garantia de aposentadoria e sem auxílio-doença o deixa inseguro sobre o futuro, e que não existe plano de carreira para autônomo, é trabalhar até onde o corpo e a mente aguentam.

Afirma que a condição de "empreendedor" em que outros autônomos se colocam parece piada, Reginaldo disse que eles dizem serem donos do próprio negócio, mas em que não têm controle sobre nada e que na verdade eles não empreendem, e sim apenas sobrevivem. Muitos se iludem com esta ideia de "empreendedorismo".
 

No Brasil, pessoas que trabalham de forma autônoma e informal desempenham um papel crucial na economia, contudo, essa contribuição é caracterizada pela ausência de direitos e segurança. Caminhoneiros, motoristas de aplicativos como Uber e entregadores de alimentos lidam todos os dias com uma dura realidade: são profissionais indispensáveis, porém ainda muito vulneráveis com a falta de proteção social e trabalhista. Este tipo de mão de obra representa milhões de brasileiros que sustentam os serviços em operação. Mas o futuro dessas atividades continua incerto, colocando em risco a dignidade e a sobrevivência de milhões de famílias.

Iimpulsionado pelo avanço das plataformas digitais o mercado de trabalho independente e informal aumentou rapidamente, sobretudo nas metrópoles. Diante do desemprego e da escassez de empregos formais, muitos brasileiros encontram nessas profissões a única alternativa para sustentar suas famílias. Contudo, a precariedade é clara: motoristas de caminhão, motoristas de aplicativo e entregadores de comida enfrentam extensas jornadas de trabalho sem benefícios como assistência médica, férias pagas, aposentadoria e até mesmo a garantia de um salário mínimo.

Segundo dados recentes do IBGE, o Brasil conta com aproximadamente 24 milhões de trabalhadores independentes, sendo que muitos deles atuam no setor de transporte e entregas, exercendo funções que, na realidade, não asseguram direitos fundamentais. A remuneração e as condições laborais, estabelecidas por empresas e algoritmos, flutuam de maneira imprevisível, tornando esses empregados suscetíveis e sem voz.
 
Os motoristas de caminhão desempenham um papel crucial na logística do País, transportando uma grande parcela da produção de alimentos, matérias-primas e produtos industrializados, mas lidam com desafios como os altos preços de combustível, más condições das vias e despesas de manutenção. E, mesmo prestando um serviço crucial para a nação precisam lidar com baixos salários e perigos para a saúde e a segurança. 
  
Ações de greve, como a emblemática greve de 2018, evidenciaram a insatisfação e a vulnerabilidade dessa classe. No passado, os caminhoneiros reivindicaram aprimoramentos nas condições de trabalho e o controle dos preços dos combustíveis. No entanto, muitas promessas ainda não foram realizadas, deixando a categoria à mercê das flutuações dos preços de mercado e das políticas econômicas governamentais, que, até o momento, pouco fizeram para assegurar melhores condições a esses profissionais.

A situação dos motoristas de aplicativo e entregadores de alimentos não é diferente. Essas plataformas proporcionam uma opção ao trabalho formal, porém sem garantias. O que inicialmente era uma "economia compartilhada" rapidamente evoluiu para uma relação desigual, onde os trabalhadores encaram longas jornadas de trabalho para conseguir um salário mínimo. Ademais, são encarregados de todas as despesas laborais, incluindo a manutenção de veículos, combustível e, em diversas situações, até mesmo seguros.

A exploração é clara: os algoritmos controlam quem recebe corridas ou entregas e estabelecem o valor que cada um recebe, sem margem para negociação. Portanto, aqueles que trabalham com Uber, iFood, Rappi e outras plataformas se encontram em uma situação de subordinação, já que o lucro da empresa está sempre acima das necessidades do funcionário. Estes aplicativos se desenvolvem e prosperam, contudo, seu êxito é construído à custa de indivíduos que necessitam de várias horas de trabalho diário para obter uma renda que frequentemente não excede o mínimo indispensável para a sobrevivência. 
 
Entretanto existe uma grande diferença entre os entregadores de aplicativo com os Ubers no cenário político, os motoristas de aplicativo seguem o mesmo pensamento dos caminhoneiros, em que são chefes deles mesmo e que isto é uma forma de empreender, citam que podem trabalhar quando quer e não precisam acordar cedo para "bater cartão", já os entregadores criaram movimentos que vêm ganhando força, como por exemplo os entregadores antifascistas que denunciam a exploração e buscam direitos trabalhistas. 

A assistência social deve abranger os trabalhadores autônomos e informais e requer reformas que expandam a abrangência dos benefícios laborais e da previdência social para aqueles que operam em regimes não convencionais. É crucial que o governo, em colaboração com sindicatos e entidades sindicais, estabeleça um sistema que resguarde os trabalhadores autônomos, valorizando sua função crucial e assegurando condições de trabalho justas. Se não, continuaremos a reforçar uma estrutura desigual, onde corporações se favorecem sem investir no bem-estar daqueles que sustentam a economia.

A agenda política brasileira deve reconhecer a relevância desses trabalhadores e buscar um modelo econômico mais inclusivo. Iniciativas como a normatização dos trabalhadores de aplicativos, já debatidas no Congresso, são apenas o começo. A batalha pelos direitos dos trabalhadores independentes, caminhoneiros e entregadores precisa progredir para diminuir a desigualdade e proporcionar a eles a dignidade que merecem. Caso contrário, a economia continuará sendo alimentada por uma mão de obra explorada e desamparada, obstaculizando o progresso social e o avanço econômico justo e sustentável que o país tanto necessita.

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Cidades

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Comportamento

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Uma das profissões mais antigas do mundo, luta contra o risco de desaparecer
por
Guilherme Lima Alavase
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05/11/2024

Por Guilherme Alavase

 

Ao longo do tempo, com o desenvolvimento tecnológico, novas máquinas e equipamentos transformaram o mundo do trabalho. Profissionais com funções manuais e repetitivas perderam espaço para a automação nos processos de fabricação. Muitas profissões foram se adaptando aos novos tempos, mas outras deixaram de existir. Este é um processo natural e irreversível. Antigas profissões perderam a razão de existir, como datilógrafos, ascensoristas, lanterninhas de cinema, entre tantas outras. Algumas antigas como sapateiros e alfaiates ainda lutam contra o risco de desaparecer.

A profissão de sapateiro, uma das mais antigas do mundo, percorreu séculos de evolução na arte de confeccionar calçados. Sua essência não sofreu alterações em cada novo processo evolutivo da humanidade. Egípcios, gregos e romanos já dominavam a técnica da fabricação de calçados feitos à mão.

 

Sapateiro: trabalho artesanal
Ferramenta para o ofício de sapateiro: Bigorna de ferro fundido. Foto: Guilherme Alavase

Os sapateiros eram artesãos reconhecidos e valorizados por suas habilidades e criatividade, produzindo calçados personalizados, atendendo ao gosto estético dos clientes. O declínio da profissão de sapateiro, que parece caminhar para a sua extinção, é consequência da revolução tecnológica, com novos processos de fabricação padronizados, com produção em larga escala. Os sapatos produzidos pela indústria moderna utilizam matérias primas industriais (couro sintético e outros materiais), que reduzem os custos de fabricação. São produtos baratos, padronizados e descartáveis.

Consciente da decadência de sua profissão, Dejair Ribeiro, 74 anos, há 62 anos trabalhando com restauração de sapatos e bolsas, falou sobre o auge da profissão, do processo do trabalho artesanal para confeccionar sapatos, relembrou o início de sua jornada profissional, da educação dos filhos, da família e da expectativa para o futuro.

 

Sapatos feito à mâo
Sapatos e sandálias em formas após processo de colagem. Foto: Guilherme Alavase

Ele diz que a sapataria é um ofício que se herda, mas hoje é cada vez mais raro encontrar alguém que se dedique a ela. Filho de sapateiro, ele e seus quatro irmãos aprenderam o ofício ajudando o pai em sua sapataria. Relatou que a oficina produzia calçados femininos de forma artesanal, sob medida e feito à mão. Disse que até filha de governador do Estado era cliente de seu pai. Relatou que na infância teve uma vida muito boa, que o trabalho de sapateiro permitia que todos os irmãos estudassem e que tinham uma vida confortável. Todos os seus irmãos seguiram na profissão e todos, no início conseguiam viver bem do trabalho que herdaram. Conta que antigamente, como o sapato era caro, valia a pena restaurar, trocava-se a sola, o salto, costurava, colava, pintava, enfim, pequenos serviços que rendia um bom valor no fim do mês.

 

Sapato costurado à mão
Trabalho artesanal de reparo de calçados com costura manual. Foto: Guilherme Alavase

Ribeiro relatou que de uns trinta anos para cá, a profissão tem tido uma queda significativa, com a importação de calçados baratos, feitos com materiais de baixo valor e qualidade, portanto descartáveis. A mudança de hábito da sociedade, que vestem roupas informais em todos os eventos, trocando o sapato por tênis reduziram significativamente o número de clientes que trazem calçados para reformar, pois o valor de uma restauração de um sapato de baixo custo não é vantajoso. Afirma que o sapato de hoje é para usar e descartar quando apresentar qualquer problema.  

 

Máquinas de uma sapataria
Processo de lixamento de sapatos após troca de solado. Foto: Guilherme Alavase

Ribeiro é pessimista com relação ao futuro da profissão. Alega que dos seus quatro filhos (três mulheres e um homem), nenhum se interessou pela profissão. Diz que ele continuará trabalhando enquanto tiver saúde e quando não puder mais trabalhar, abaixará as portas de sua sapataria e encerrará uma tradição profissional familiar. Por outro lado é possível perceber uma mudança de comportamento em uma parcela da população. Há pessoas que voltam a enxergar nos produtos de alta durabilidade, que podem ser restaurados várias vezes, uma solução sustentável.  Neste sentido, há um renascimento do interesse pelo sapato feito à mão, sob medida e de alta qualidade. De qualquer modo não é possível antever se haverá tempo hábil para os antigos sapateiros ensinarem a profissão para os mais jovens, pois não há escolas que ensinem este ofício milenar. 

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Sobrevivente da ditadura militar, Adriano Diogo relembra episódios de tortura e repressão.
por
Isabelle Maieru
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04/11/2024

Por Isabelle Maieru

 

 

O som da porta se abrindo foi o início de um pesadelo para Adriano, um jovem estudante cuja vida foi virada de cabeça para baixo. Ele recorda que os militares invadiram seu apartamento, trazendo uma dor ainda presente. A brutalidade do regime, simbolizada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como Major Tibiriçá, exemplifica o terror vivido por milhões de brasileiros.

Em um ambiente marcado pela nostalgia e por lembranças de tempos difíceis, Adriano Diogo se torna porta-voz de um dos períodos mais sombrios da história brasileira: a ditadura militar. Sua voz ressoa com emoção, ecoando verdades dolorosas que a sociedade muitas vezes prefere ignorar. Adriano narra não apenas sua experiência pessoal, mas também um relato profundo de uma era de repressão e censura. Com um olhar perspicaz e uma memória aguçada, ele descreve as atrocidades cometidas por um regime que, embora parecesse invencível, ocultava uma realidade aterradora de tortura e medo. As histórias de amigos e companheiros perseguidos, aprisionados e desaparecidos permanecem como feridas abertas que nunca cicatrizaram.

Sua narrativa, quase poética, transforma o horror em reflexão sobre a luta incessante pela liberdade. Para Adriano lutar pela liberdade era um ato de amor, um sentimento que se estendia a uma nação inteira em busca de justiça e dignidade. Mesmo nas sombras da opressão, havia uma luz: a determinação de um povo que se uniu contra a injustiça.

Ao recordar encontros clandestinos e manifestações, Adriano evoca a camaradagem entre aqueles que desafiaram o regime. Ele destaca a solidariedade e a coragem que emergiram em meio à adversidade, lembrando que as conversas eram sussurradas, sempre com o medo de serem ouvidas. A coragem pulsava em cada coração que se recusava a permanecer em silêncio.

Adriano enfatiza a importância de transmitir essas recordações às novas gerações. Para ele, a memória coletiva não deve ser vista como um fardo, mas como uma herança valiosa a ser cultivada. Tornando-se um guardião do passado, ele se compromete a garantir que os erros não se repitam, reconhecendo que as questões de justiça e reparação são exigências urgentes do presente.

À medida que o sol se põe, suas reflexões destacam que a luta pela democracia e pelos direitos humanos é contínua, requerendo vigilância constante. Embora a ditadura militar tenha sido derrotada em suas formas mais evidentes, suas cicatrizes permanecem visíveis na sociedade brasileira, lembranças dolorosas de um tempo de autoritarismo.

Adriano convida todos a olharem para o passado com honestidade e a se unirem na busca por um futuro mais justo. Suas palavras reverberam, incutindo um senso de urgência em preservar a memória coletiva. No Brasil, onde a história é um bem precioso, ele se destaca como um farol, iluminando o caminho para que os erros do passado não sejam esquecidos e para que a esperança de um futuro mais democrático e igualitário possa florescer.

O relato de Adriano é uma crônica da brutalidade. Ele foi agredido e levado à Operação Bandeirantes, uma delegacia notória na rua Tutóia. Ali, um homem armado o recebeu com uma ameaça, afirmando que ia estourar seus miolos, como havia feito com seu colega Alexandre Banucchi. O terror aumentava ao saber que Alexandre estava agonizando em uma cela. Um auxiliar lhe disse que ele estava estrebuchando sangue por todos os lados, revelando a brutalidade do regime.

Após a desativação do DOPS, a delegacia se transformou no Memorial da Resistência, preservando a memória das vítimas e promovendo a reflexão sobre os horrores do passado. Hoje, a memória das lutas passadas é mais relevante do que nunca, especialmente diante da ascensão da intolerância e da violência, como demonstrado pelo ataque ao Congresso Nacional em 8 de janeiro de 2023.

Lembrar é um ato de resistência. Cada relato serve como um lembrete de que a luta pela liberdade e pela justiça nunca deve ser esquecida. A música que ecoa nas lembranças de Adriano reafirma a importância da dignidade humana e dos direitos civis, desafiando a escuridão da opressão. A luz da memória continua a brilhar, guiando a sociedade na busca por um futuro mais justo.

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Contrariando o estrelato repentino dos brechós, bazares por São Paulo contemplam a carência social de muitos paulistanos.
por
Bianca P. Athaide
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18/11/2024

Por Bianca Athaíde

 

Uma camiseta custando no máximo R$5 pode ser a única peça de roupa que Celeste, de 48 anos, pode comprar para seu filho até o ano que vem. Enquanto escava em meio a uma montanha vestuário olha discretamente para sua competição com uma outra mulher, aparentando ser um pouco mais velha, vasculhando na mesma velocidade e intensidade a pilha de roupas. Mesmo sendo de família humilde, foi criada para ter nojo de "roupa velha", mas, por necessidade, depois de perder seu emprego em janeiro deste ano, ouviu os conselhos de uma vizinha e recorreu a compras no bazar, pois os meninos estão crescendo rápido demais. O bazar da Paróquia e Santuário São Judas, na zona Sul, é a saída para enfrentar a falta de dinheiro para vestimenta.

A presença física do santuário católico na região toma um imenso quarteirão e estabelecimentos próximos, um deles, o Bazar de São Judas Tadeu. Uma pequena porta de ferro esconde uma sala abarrotada de peças de vestuário, calçados e afins, do chão ao teto. Mergulhadas entre os itens, em sua maioria, mulheres de meia idade, de visual simples, cavam nas grandes rochas têxteis a sua frente por algum bom achado, irredutíveis por sua determinação cristã.  

Entrar em um bazar comunitário, com caráter social, pode colocar em xeque a crença de atitude cool e estilo urbano pragmatizada pela recente onda de brechós. Muitos ainda acreditam que os ambos estabelecimentos sustentam o mesmo tipo de público e propósito. Um brechó localizado no alto do bairro Jardins, um dos mais caros da capital paulista, comercializa peças de luxo, angariadas em leilões específicos, frequentados por magos do estilo pessoal e entendedores da moda e suas principais referências, com consumidores que não possuem o menor receio em pagar altos valores apenas por desejo íntimo.

Ao contrário, em um bazar, que muitas vezes oriunda de instituições das mais variadas religiões, a compra é por necessidade. As opções dispostas entre o chão e alguns cabideiros, são resultado de doações realizadas por fieis, cansados da mesmice de seus guarda-roupas e com um desejo interno de nutrir seu ego atuando em caridade. Assim, no Bazar São Judas, a tabela na porta mostra, de maneira organizada, em contraponto ao caos instaurado seguinte, os preços de cada tipo de item, para evitar confusões.

A ampla fissura entre o conceito de brechós e de bazares ainda é embaçada para quem não frequenta os dois. Confundidos muitas vezes, o imaginário popular ainda recai na premissa negativa de roupas velhas jogadas fora. E enquanto a elite se vangloria  do recycling e garimpos valiosos, preenchendo o desejo de apimentar sua estética visual, a outra maior parcela da população encontra nos bazares, além de peças acessíveis, uma nova oportunidade de obtenção de renda.

No Bazar São Judas, na mesma tabela de preços, abaixo dos valores, em negrito está escrito: "SACOLEIRAS - Compras em grandes quantidades apenas nas SEXTAS". O dia específico é também, não por coincidência, o dia que semanalmente dois caminhões lotados param na frente da porta do bazar e despejam dezenas de sacos de lixos lotados de peças de vestuários doadas. Em maioria, mulheres formam uma fila, esperando a liberação de entrada, para alcançarem as melhores peças para revender em seus "comércios remotos".

Claúdia, a 3 anos, realiza essa mesma procissão uma vez por mês, para abastecer a vitrine que estende no chão, em cima de uma lona, na frente da saída do metrô Jabaquara, a poucos metros dali. Depois de perder seu emprego como babá durante a pandemia, ela se viu perdida por não conseguir outra oportunidade. Então, no boca a boca do final da missa das 19h00min, descobriu o "dia das sacoleiras" e foi conferir na sexta seguinte. Aos 42 anos, Claúdia é orgulhosa de seu comércio e luta para conseguir as melhores peças semi novas, como ela mesmo denomina, para sua clientela.

O estrelato de uma tendência fashion de elite dos brechós se choca com a caridade e necessidade de muitos que frequentam bazares. Assim, entram em combate, novamente, os valores da indústria. O ciclo no mundo da moda é muito rápido, e o que hoje é desejado, amanhã é descartado. Cabe aos bazares manterem firme o pilar de amparo social, que perdura desde de seus surgimentos, para sustentar a queda brusca que um dia os brechós de luxo podem sofrer, para, quem sabe, a moda seja menos excludente.

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Residenciais ajudam a oferecer amor e afeto na velhice
por
Yasmin Solon
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12/11/2024

Por Yasmin Solon

 

Todo mês, perto do dia 20, dona Vilma, uma idosa de 80 anos ia ao banco com o seu filho Antonio para sacar sua aposentadoria. Naquele mês de junho não foi diferente. Vestiu seu casaco de lã que levava para todos os cantos e encontrou o filho em uma segunda-feira à tarde para sacar o dinheiro a que tinha direito. No entanto, ela percebeu que o caminho desta vez era diferente. Seu filho, que sempre chamava dona Vilma de ‘matka’ (mãe em polonês), dessa vez a estava levando para uma Instituição de Longa Permanência para Idosos.

Ao chegar na Casa Residencial ela não compreendeu de imediato o que estava acontecendo. Depois aceitou. Antonio não tinha condições mais de lidar com a demência senil de sua matka e precisou buscar por algum apoio nos cuidados. Na verdade, segundo as enfermeiras da Instituição, Vilma sabia da mudança há meses, mas não se recordava. Antonio, com as demandas do trabalho e sem poder considerar um apoio de seus outros dois irmãos, precisou tomar uma atitude que não se orgulhava. Nas visitas semanais, sentia um misto de amor, saudades, alegria e dor.

Dona Vilma tem uma rotina agitada no residencial. Bingos, jantares dançantes, festas, carteados e muitas outras distrações fazem com que ela viva com mais companhia. Esse alto astral às vezes contribui para que a idosa de descendência polonesa se lembre mais do passado. Com muita nostalgia, Vilma se recorda do tempo em que era ativa e muito ocupada quando mais jovem. Tinha que lidar com os afazeres de casa, cuidar dos filhos e dar aulas de natação. Toda rotina é lembrada com um sorriso no rosto. Vilma lembra de seus ‘dzieci’ (filhos em polonês) com muito amor. Apesar de ter um contato mais próximo com Antonio ela não se sente rancorosa com os demais.

Às seis da manhã as enfermeiras já acordam todo o andar com um sino. Logo em seguida é feita a organização de quarto em quarto, e na sequência, os idosos são levados ao banho. Às sete, o café da manhã é servido no refeitório, onde todos aqueles que podem ir até lá, são guiados. Em seguida, as sessões de fisioterapia são iniciadas. Depois, em dias rotineiros sem novidades, os idosos ficam no quarto assistindo TV, até o horário da próxima refeição. A Casa possui um jardim interno muito bonito, um dos poucos lugares em que não se sente o cheiro forte de urina e que é possível tomar um sol durante o dia. Lá, Vilma conheceu Miriam. Uma senhora um pouco mais nova que, apesar de ter a Casa como o mesmo destino, teve uma história diferente.

Miriam lidava com um filho abusivo e agressivo. Ele não permitia a visita de outras pessoas e cuidava de sua mãe por mera necessidade financeira. Como ele conseguia um tipo de salário, não permitia que sua mãe fosse cuidada por outras pessoas da família ou fora. Sua agressividade assustava qualquer um que pudesse tentar contato com a sua mãe e por isso, com ajuda de outros familiares, Miriam buscou uma Instituição.

Elas sempre passam o fim da tarde juntas. Após o lanche da tarde, pegam o restinho do sol e colocam o papo (ou a memória) em dia. Em seguida, assistem a novela juntas para depois jantarem e por fim, irem dormir. Sempre que Dona Vilma recebe a visita de Antonio, faz questão de incluir Miriam nas conversas e, quando possível, nos passeios. Vilma confessou que às vezes, prefere dizer ao filho que não se sente bem para sair para seguir na companhia de Miriam. Mesmo sendo diabética, Vilma traz docinhos para Miriam. Ela defende que é uma das formas de sua amiga tão especial se sentir amada.

As duas criaram um laço de amizade forte capaz de superar qualquer tédio e melancolia que possa existir na casa que tem tantos quartos. Poucos quartos da instituição estão desocupados. Isso significa que, apesar do estigma social, existem muitos idosos cheios de vida e amor para dar e receber. O refeitório cheio traz na memória de Vilma o quentinho no coração de “casa cheia”, como era de costume nos domingos passados. De repente, como no caso de Vilma e Miriam a lembrançca de uma família reunida.

 

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