Uma paixão que pode ajudar na construção de conexões emocionais e auxiliar no autoconhecimento, mas que deve vir acompanhada de equilíbrio e autorregulação
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Ana Julia Bertolaccini
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08/05/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

A vida de Victoria Siqueira, de 39 anos, foi moldada e insipirada pela cultura do fã, através do mundo digital, que  permitiu com que suas paixões se transformassem em uma carreira. Vic, como é conhecida pelos amigos, trabalha há 17 anos como social media, e descobriu sua paixão pela comunicação através dos chamados “fandoms” (comunidade de fãs). Aos 11, ela presidiu  o “Wanna be”, fã-clube do grupo britânico Spice Girls e aos 16, viveu a época dos blogs, criando o seu próprio posteriormente, o qual foi alimentado durante anos.

Com a evolução das redes digitais e da Internet, Vic passou a desenvolver habilidades em design e programação para personalizar as postagens que compartilhava através do blog. No início, ela chegou a fazer parte de iniciativas que hoje se comparam às atividades dos influenciadores digitais, mas que na época ainda não levavam esse nome. Como o futuro desse tipo de carreira ainda era muito incerto, Vic deciciu que levaria todo esse aprendizado para o meio acadêmico, através da comunicação. 

Foto do jornal em que Victoria participou
Arquivo Pessoal: foto de um jornal para o qual Victória deu entrevista quando criança 

Victoria Siqueira é formada em publicidade e trabalha em uma empresa que cuida de duas marcas de roupas. Dos vários desdobramentos que um hobby poderia ter tido, Vic direcionou-o para o meio acadêmico e para o marketing digital no mercado de trabalho, desenvolvendo sua carreira através das mídias, do branding (identidade visual, valores missão e comunicação de uma marca), e cuidando também do relacionamento com influenciadores, transitando entre funções que algum dia já teve durante os tempos do blog

Aos 28 anos, a jornada do fã é algo novo para a jornalista e criadora de conteúdo Yakine Reis Paixão. Ela voltou a ter inspiração para criar seus próprios conteúdos no Instagram e no TikTok quando passou a conhecer mais sobre grupos de kpop e outros estilos musicais. Depois de formada e com o início da vida adulta, Yakine havia perdido um pouco dessa motivação, o que mudou completamente depois que ela passou a se conectar com si mesma em espaços virtuais coletivos que ela nem se quer lembrava que existiam.

Yaks, como gosta de ser chamada nas redes, acredita que ser fã é poder enxergar em outras pessoas um motivo ou uma inspiração para anseios pessoais. Para ela, essa cultura também traz o senso de comunidade muito forte, ao proporcionar uma troca de pensamentos e sentimentos entre as pessoas. Um interesse que é coletivo, e que ao mesmo tempo, é compreendido por cada um à sua própria maneira, talvez não possa ser descrito em poucas regras ou em uma curta definição.

Juliana Capel, psicóloga e especialista em psicologia positiva pela PUC-RS, explica que um dos fatores desse estilo de vida é a construção da identidade pessoal. Muitas pessoas descobrem talentos e paixões ao admirar um artista, podendo despertar o interesse por música, dança, fotografia, escrita, design, edição de vídeo, produção de conteúdo e até mesmo por áreas acadêmicas, como é o caso de Vic. 

Essa paixão pode ser algo benéfico do ponto de vista psicológico, uma vez que a relação emocional com um artista proporciona sentimentos de alegria, entusiasmo e conexão, podendo auxiliar no estímulo da criatividade e até fortalecer a autoestima. Além disso, essa atividade também pode ativar memórias afetivas, fortalecer a empatia e até contribuir para o autoconhecimento. O segredo para uma boa experiência, no entanto, é o equilíbrio.

A ridicularização do entretenimento feminino

Aline Sodré, de 44 anos, foi conhecida por muitos anos como “a fã dos Beatles” na escola, na faculdade e no trabalho. Desde 2010, ela viaja e assiste a maior quantidade de shows possível de seu principal ídolo, Paul McCartney. Ao todo, ela já viu 35 shows do artista no Brasil, na América do Sul e nos Estados Unidos. Aline tatuou o autógrafo dele no braço e também tem tatuado trechos de músicas de Paul e dos Beatles no corpo. 

Depois de todos esses anos inserida nesse ambiente, ela percebeu que há um preconceito direcionado principalmente aos ídolos adolescentes, como cantores do gênero pop: Justin Bieber, Taylor Swift e outras boybands. Apesar disso, ela não se incomoda com essa visão distorcida em relação aos gostos predominantemente femininos.

Foto de Aline em um dos shows de seu ídolo
Reprodução/redes sociais: Aline Sodré em um show do seu ídolo, Paul McCartney  

A criadora de conteúdo Yakine sente que tudo que é feminino nunca é suficiente para a sociedade. Do trabalho ao lazer, não importa o quão saudável seja um costume ou um hobby, ele sempre será menosprezado, diminuído ou dado como inútil e infantil para a grande mídia e para a opinião pública. O mesmo, porém, não acontece na mesma intensidade com gostos de grupos majoritariamente masculinos.

Quando se fala em futebol, não é difícil de ouvir por aí grupos de homens adultos discutindo quem está à frente no campeonato e quais jogadores têm feito um bom trabalho. Para quem convive diariamente com torcedores, é notável a mudança de humor e de temperamento dessas pessoas, o que muitas vezes tem relação direta com jogos ganhos ou perdidos do time do coração. 

Mesmo ao abordar o futebol como uma forma de entretenimento, ignorando possíveis atividades que se relacionem diretamente com o esporte e focando completamente em discussões sobre ídolos e equipes, os homens raramente são tratados como crianças ou julgados por falar sobre esse assunto em encontros de família e até mesmo em ambientes corporativos. 

Existe um machismo estrutural que tende a desvalorizar ou ridicularizar tudo que um grupo de mulheres gosta intensamente, enquanto hobbies masculinos são vistos como legítimos e costumam ser respeitados. Esse tipo de preconceito acontece em culturas como a do K-pop, doramas e até com o consumo de literatura romântica Todavia, qualquer tipo de arte ou entretenimento deve ser encarada como algo legítimo, independentemente de quem a consome. A psicóloga Juliana Capel reforça que gostos pessoais não precisam de validação externa para serem considerados válidos.

A Idolatria 

Uma colega de Aline, que já tinha na época mais de 40 anos na época, era obcecada por uma dupla sertaneja famosa e os seguia pelo Brasil todo. Mandava presentes caros e ficava na porta do prédio deles esperando. Era um amor platônico tão grande que ela tinha certeza que ia se casar com um dos moços da dupla e essa obsessão vinha acompanhada de um sofrimento intenso. 

Aline Sodré tem hoje um olhar mais crítico e analítico sobre o fã. Ela continua a fazer parte dessa cultura, mas como ela mesma destaca, é uma paixão alimentada de uma forma menos fervorosa e mais responsável do que era na adolescência, por exemplo, quando tudo é mais intenso. Essa transição, no entanto, não ocorre para todos.

Em alguns episódios, esse interesse passa a dominar todos os aspectos da vida da pessoa, se transformando em um comportamento obsessivo, onde a pessoa deposita sua identidade e felicidade exclusivamente no ídolo, perdendo o equilíbrio emocional. Esse tipo de envolvimento pode acontecer quando há um vazio emocional, baixa autoestima ou dificuldades em lidar com a própria realidade. Diante disso, o trabalho, os estudos e as relações pessoais passam a ser negligenciadas. 

Há um estigma de que “ser fã” é sempre algo doentio, relacionado a uma idolatria cega, o que não procede em grande parte das circunstâncias. Ainda assim, é fato que um transtorno obsessivo possa vir a se desenvolver em casos extremos. O contraponto de uma vida saudável, com gostos e paixões pessoais, é o desequilíbrio. Nesse contexto, algumas pessoas podem chegar a gastar dinheiro de forma compulsiva, comprometendo a própria estabilidade financeira.

Como evitar um possível desequilíbrio? 

Conhecendo a si própria e tendo vivido diversas experiências em razão dessa cultura, Aline se deu conta de que ela não quer ultrapassar as barreiras que existem entre um fã e o seu ídolo a ponto de desenvolver uma amizade e uma proximidade maior com os artistas que admira. Ela conta que quando começou a perceber que os cantores pelos quais ela era fascinada se tratavam de pessoas reais, com dias bons e ruins, ela entendeu que deveria recuar e estabelecer limites que permitissem com que ela os admirasse apenas como artistas, não interferindo na vida pessoal deles. 

Hoje, aos 44 anos, ela continua indo a shows e viajando para ver seus artistas e bandas preferidos. Em sua percepção do futuro, Aline acredita que sempre terá essa necessidade de tietagem e pretende continuar a investir seu dinheiro com esse tipo de entretenimento. No atual momento de sua vida e daqui pra frente, porém, Aline não tem mais a intenção de acampar em portas de estádios, ficar nos mesmos hotéis que esses artistas, ou ser adepta de atividades que interfiram profundamente na sua rotina e no seu estilo de vida. 

É importante entender essa linha tênue entre adoração absoluta quase religiosa e admiração profunda. Para isso, os principais tipos de conduta que devem ser levados em conta são o autoconhecimento e a autorregulação. É preciso observar se o envolvimento com o ídolo está vindo de um lugar saudável ou se está sendo usado para evitar lidar com desafios da própria vida.

Ter outros interesses e atividades além da participação em grupos de fãs é imprescindível. O esporte, os livros, o cinema e outras ocupações culturais ou de lazer são boas alternativas. Manter conexões reais com amigos e familiares também é essencial. Definir limites de tempo e dinheiro gastos com esse tipo de entretenimento são parte da estratégia de autocontrole, o que evita a desestabilidade financeira.

Outro fator importante para o fã é o consumo consciente de conteúdo. Sentir um sofrimento intenso ao não conseguir acompanhar tudo o que o artista faz não é um bom sinal. Ter consciência de que os ídolos são seres humanos e de que a admiração não deve se tornar uma idealização irreal é o segredo de uma paixão equilibrada, que pode ser extremamente positiva para o bem-estar psicológico e social, sem impedir a vivência de outras experiências. 
 

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Quando o corpo vira território e a memória se transforma em luta
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Vitor Simas
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22/04/2025

Por Vitor Simas

 

No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.

Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.

Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.

Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.

Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.

A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.

Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.

A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.

Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.

Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.

Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.

 

 

Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé

 

Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.

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Apesar da falta de apoio e estrutura, jogadores e organizadores brasileiros constroem com paixão um cenário de E-sports independente, competitivo e solidário.
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Thomas Fernandez
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15/05/2025

Por Thomas Fernandez

 

Na Rua Augusta as luzes do bar Vitrine piscam em sintonia com o som dos controles. É uma noite de terça-feira e, como toda semana, o ambiente se transforma em uma pequena arena: jogadores posicionam seus consoles, conectam controles e afinam os reflexos. Ali, acontece o torneio semanal de Super Smash Bros. Ultimate e Melee, organizado pela Team Dash. Não há arquibancadas lotadas ou grandes prêmios em dinheiro, mas há algo mais poderoso: o sonho de viver dos jogos.

No meio da multidão está Theo Levi, 24 anos, conhecido como Pastel. Os olhos atentos à tela denunciam sua paixão pelo jogo. Embora alimente o desejo de se tornar um jogador profissional, ele reconhece os limites do cenário atual no Brasil. Por isso, começou a atuar como organizador de torneios no ambiente universitário, com a esperança de, futuramente, se consolidar no meio profissional. Vê nessa trajetória uma forma de unir sustento e paixão, além de contribuir para que outros jogadores tenham a chance de alcançar esse mesmo sonho.

A história de Theo se entrelaça com a da própria Team Dash. Luis Fernando Torriello dos Santos, 29 anos, mais conhecido como Phoca, relembra que os torneios começaram por iniciativa própria, após os antigos organizadores abandonarem seus projetos. Em 2014, reuniam cerca de 30 jogadores por mês, um grupo fiel que aos poucos foi crescendo, trazendo novos participantes. Hoje,os campeonatos semanais reúnem cerca de 60 jogadores, enquanto os mensais chegam a 80. Em 2016, realizaram um evento que atraiu mais de 200 pessoas, incluindo jogadores de fora do País.

No entanto, manter essa estrutura ativa exige investimento, geralmente saído do próprio bolso dos organizadores. Um campeonato de médio porte requer pelo menos dois setups completos – consoles, monitores e cópias do jogo – o que representa um custo inicial de cerca de R$3.500, sem contar os gastos extras com transporte, alimentação e organização. Muitos projetos acabam não resistindo a essa carga. Mesmo assim, o cenário brasileiro de E-sports mostra sinais de amadurecimento. Além dos torneios, iniciativas como o BrAT – Brazilians Against Time – têm ampliado o alcance do universo gamer. O evento de speedrun, realizado durante o carnaval, arrecadou aproximadamente R$20.000 para a APAE, demonstrando o potencial da comunidade em mobilizar apoio e gerar impacto social. Também se tornou uma vitrine importante para jogadores que desejam ingressar na criação de conteúdo e buscar visibilidade além da competição.

Enquanto títulos consagrados como Counter-Strike e League of Legends atraem investimentos milionários e audiências internacionais, outras comunidades lutam para se manter vivas por meio do esforço coletivo. As universidades começam a se interessar pelos E-sports, formando times e promovendo campeonatos estudantis, o que abre espaço para uma possível profissionalização futura. Para muitos desses jovens, um jogo é muito mais do que um jogo. É carreira, é comunidade, é resistência. O Brasil talvez ainda esteja nos estágios iniciais dessa corrida global, mas seus jogadores e organizadores seguem insistindo, sonhando e construindo – um campeonato por vez

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Cultura e Entretenimento

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A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
por
Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Comportamento

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Cultura e Entretenimento

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O afago dos agentes da saúde que se tornam psicólogos, amigos de bar, tio ou tia, filho ou filha, ou o próprio acompanhante de cada paciente
por
Beatriz Alencar
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15/05/2025

Por Beatriz Alencar

 

Vitoria encarou de perto estar de frente entre a vida e a morte. Ela já ficou por mais de 40 minutos fazendo massagem cardíaca em um paciente. O braço dolorido, mas a consciência e a luta pela vida não podia ser perdida. Injeta adrenalina, põe ventilador, usa de tudo o que tem disponível para fazer ele voltar, e mesmo assim, não adiantar. Os sentimentos de impotência e incapacidade não vão embora com o passar dos anos.

Enfermeiros e técnicos de enfermagem nada mais são do que artistas, que têm nas mãos o poder de aparar um pedaço de cada parte que forma o corpo humano, desde a pele aos sentimentos, sendo aquele que proporciona conforto e uma certa segurança. Vitória é técnica, e já presenciou dois ‘mundos’: um em hospital particular e outro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Falando de ambas as experiências, transmitia esperança em meio a um caldo de inseguranças que os diagnósticos diários que encara proporcionam. Dentro do SUS, ela relata que foi onde teve as experiências mais incríveis. Não de um jeito positivo, mas de se impressionar. Apesar de muitas vezes faltar materiais e suprimentos, o contato com o paciente sempre foi o zelo.

Fazendo jus a arte da profissão, a improvisação na falta era um ato recorrente. Até mesmo a hora do banho do enfermo podia ser afetada. Sem ter esponjas para a higiene pessoal do paciente, a criatividade virava melhor amiga. Às vezes, era preciso fazer até mesmo uma bucha de banho usando faixas, luvas e o que estivesse ao alcance. Até o copo descartável virava balde na falta de um para levar água até o leito do paciente.

Em contrapartida, os processos dentro do hospital particular são mais extensos. Tudo é catalogado, desde uma agulha a um soro. Nada pode passar batido já que se trata do dinheiro de cada convênio. Todo medicamento, ampolas, suprimentos utilizados do hospital, são descontados e cobrados do plano de saúde dos pacientes, sendo assim, a papelada nunca parece ter fim. O dinheiro é algo em comum entre ambos, porém, enquanto em um há escassez, no outro há contabilidade. Mas para Vitória, o que importa é proporcionar cuidado a cada pessoa que está ali doente, já que o principal papel de um agente da saúde é fazer de tudo para os pacientes se sentirem melhor. 

A relação entre paciente e enfermeiro é o mais trabalhoso. Não somente com os difíceis, mas também com os bondosos. A criação de laços é o que mais acontece, apesar de ser recomendado o contrário, pois o apego deixa o profissional suscetível ao sofrimento em conjunto. Mas, para Vitória, é inevitável. Encarar todos os dias rostos de quem não sabe se verá de novo chega a ser injusto.

Porém, para a técnica, o lado mais dificultoso é tratar de quem não aceita que precisa ser tratado. Já para Rita de Cássia, chefe da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) Cardio e de outros setores de um hospital particular, a parte mais difícil é cuidar de quem cuida. Saber que tem o poder de tomar decisões, mas ter limitações. Escutar, mas também se fazer ser escutada. A burocracia, perto disso, não passa de papel.

Todos dessa profissão se encontram na linha de frente, e Rita abraça todas elas. A enfermeira chefe relata que, tomar partido de situações dentro de um hospital é tão sufocante quanto precisar de oxigênio. Ela chegou a repensar o cargo, mas a ideia passa como brisa. Apesar das dificuldades da função, o que prevalece para ela é entender que precisa estar lá pela e para as pessoas. Não só pacientes, mas das colegas de profissão e equipe. Claro, há quem não trabalha por amor. Mas é como Rita afirma: não é só de sentimento que enchemos o prato. Apesar disso, o trabalho sem zelo dificulta a humanização que, para a chefe, é essencial para se tornar um bom enfermeiro. 

Marcas

Vitória trabalha na UTI Cardio, tratando de especificidades graves. Quase toda semana presencia um paciente ir a óbito. Nesse setor, a rotatividade nos leitos é grande, então não é comum a internação durar muito mais do que poucas semanas mas, uma vez, ela cuidou de uma idosa por dois meses. A moça precisava de um transplante de coração e estava na fila para receber uma doação de órgãos. De acordo com a legislação brasileira, a prioridade para transplantes de órgão são para crianças e jovens até 18 anos de idade. A senhora não resistiu à espera e foi a óbito. Foi a primeira vez que Vitória se apegou a uma paciente e chorou por não saber o que fazer ou como contar à família.

Esse cenário foi muito recorrente durante a pandemia da Covid-19. Uma palavra e um período assustador que ninguém imaginaria que duraria tanto e que, ao mesmo tempo, passasse tão rápido. Em 2025, se passaram cinco anos desde que foi declarado pelo governo o sistema de lockdown devido a um vírus mortal que ainda não tinha meios para ser combatido e nem como ser evitado. Uma das vivências mais marcantes de Rita foi durante o começo da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), como foi nominada pela OMS. 

Ela se deparou com um jovem que viu o pai dele poucos instantes antes da morte. Os dois tinham contraído o vírus e apresentavam os mesmos sintomas. Por ainda não terem tanto conhecimento de tratamento e que a idade poderia ser um agravante da doença, os dois tiveram a mesma assistência, mas não o mesmo fim. O jovem passou a desacreditar da ciência, dos profissionais da saúde, da vida. Uma pessoa que costumava falar mesmo no leito da emergência, se calou. E vendo tantas pessoas da equipe tentando reanimá-lo, Rita fez o que a empatia da profissão exige: acalentou. Com esse gesto em silêncio, mas ativo, a enfermeira chefe percebeu que muitos dos seus conceitos sobre a profissão precisavam mudar, e que a calmaria de uma companhia às vezes pode curar mais do que uma seringa.    

As pessoas do mundo inteiro, durante os três longos anos da pandemia e do lockdown, esqueceram o que eram esse acalento. Há cinco anos era rotina lavar tudo o que viesse de fora para não contaminar os ambientes da casa. Era chegar e deixar o sapato para fora. Passar álcool em gel em tudo o que fosse possível e não só nas mãos. Vitória relata que, por mais que tivesse receio de conviver com a Covid todos os dias, o que mais temia não era morrer, e sim levar o vírus para dentro de casa e contaminar quem ama. Era não conseguir fazer nada para salvar os pacientes que chegavam nos profissionais de saúde com uma última súplica de poder sair do hospital curado e podendo acreditar que ainda presenciaria uma vida sem ter que conviver com a Covid. 

O calor humano físico foi revertido em apoio online aos profissionais de saúde. A Internet se tornou crucialmente o meio de conexão. Panelaços foram planejados, feitos, gravados e postados. Hashtags em apoio aos médicos, enfermeiros, técnicos, foram lançadas. Monólogos e poesias foram escritos em homenagem. Hoje, sobraram somente lembranças desse movimento. Rita relata que foi emocionante ver tantas pessoas reconhecendo a importância da profissão dela, mas triste o fato de precisar de uma crise sanitária para que olhassem com admiração o setor da saúde. Vitória compartilha do mesmo sentimento e, mesmo assim, ambas não souberam responder o que de fato as faz continuar. Mas uma coisa puderam afirmar: largar a profissão não é uma opção.

No fim, acabaram-se os panelaços e os aplausos, mas o afago dos agentes da saúde, que se tornam psicólogos, amigos de bar, tios, filhos ou o próprio acompanhante de cada paciente, continuam presente no dia a dia de todos aqueles que decidiram fazer da própria vida um propósito de ser a síntese do cuidado de tantos. 

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
por
Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Meio Ambiente

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Sem garantias trabalhistas, autônomos tentam sobreviver.
por
Felipe Bragagnolo Barbosa
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11/11/2024

Por Felipe Bragagnolo

 

Reginaldo, caminhoneiro desde 2006, foi enfático ao afirmar que muitos de seus amigos acreditaram que Bolsonaro iria fazer alguma coisa de concreto pela categoria, até mesmo porque ele se mostrava próximo da sua condição profissional. Ele mesmo chegou a acreditar que sua vida poderia melhorar com a diminuição dos preços de pedágio e com o controle do preço do diesel. Disse que Bolsonaro estaria ao lado da categoria, mas que na prática não ocorrera assim. Os problemas se mantiveram. Comentou sobre a situação dos autônomos, em que eles não tem nenhuma proteção, Reginaldo contou que sendo autônomo se vê sempre preocupado e que sem garantia de aposentadoria e sem auxílio-doença o deixa inseguro sobre o futuro, e que não existe plano de carreira para autônomo, é trabalhar até onde o corpo e a mente aguentam.

Afirma que a condição de "empreendedor" em que outros autônomos se colocam parece piada, Reginaldo disse que eles dizem serem donos do próprio negócio, mas em que não têm controle sobre nada e que na verdade eles não empreendem, e sim apenas sobrevivem. Muitos se iludem com esta ideia de "empreendedorismo".
 

No Brasil, pessoas que trabalham de forma autônoma e informal desempenham um papel crucial na economia, contudo, essa contribuição é caracterizada pela ausência de direitos e segurança. Caminhoneiros, motoristas de aplicativos como Uber e entregadores de alimentos lidam todos os dias com uma dura realidade: são profissionais indispensáveis, porém ainda muito vulneráveis com a falta de proteção social e trabalhista. Este tipo de mão de obra representa milhões de brasileiros que sustentam os serviços em operação. Mas o futuro dessas atividades continua incerto, colocando em risco a dignidade e a sobrevivência de milhões de famílias.

Iimpulsionado pelo avanço das plataformas digitais o mercado de trabalho independente e informal aumentou rapidamente, sobretudo nas metrópoles. Diante do desemprego e da escassez de empregos formais, muitos brasileiros encontram nessas profissões a única alternativa para sustentar suas famílias. Contudo, a precariedade é clara: motoristas de caminhão, motoristas de aplicativo e entregadores de comida enfrentam extensas jornadas de trabalho sem benefícios como assistência médica, férias pagas, aposentadoria e até mesmo a garantia de um salário mínimo.

Segundo dados recentes do IBGE, o Brasil conta com aproximadamente 24 milhões de trabalhadores independentes, sendo que muitos deles atuam no setor de transporte e entregas, exercendo funções que, na realidade, não asseguram direitos fundamentais. A remuneração e as condições laborais, estabelecidas por empresas e algoritmos, flutuam de maneira imprevisível, tornando esses empregados suscetíveis e sem voz.
 
Os motoristas de caminhão desempenham um papel crucial na logística do País, transportando uma grande parcela da produção de alimentos, matérias-primas e produtos industrializados, mas lidam com desafios como os altos preços de combustível, más condições das vias e despesas de manutenção. E, mesmo prestando um serviço crucial para a nação precisam lidar com baixos salários e perigos para a saúde e a segurança. 
  
Ações de greve, como a emblemática greve de 2018, evidenciaram a insatisfação e a vulnerabilidade dessa classe. No passado, os caminhoneiros reivindicaram aprimoramentos nas condições de trabalho e o controle dos preços dos combustíveis. No entanto, muitas promessas ainda não foram realizadas, deixando a categoria à mercê das flutuações dos preços de mercado e das políticas econômicas governamentais, que, até o momento, pouco fizeram para assegurar melhores condições a esses profissionais.

A situação dos motoristas de aplicativo e entregadores de alimentos não é diferente. Essas plataformas proporcionam uma opção ao trabalho formal, porém sem garantias. O que inicialmente era uma "economia compartilhada" rapidamente evoluiu para uma relação desigual, onde os trabalhadores encaram longas jornadas de trabalho para conseguir um salário mínimo. Ademais, são encarregados de todas as despesas laborais, incluindo a manutenção de veículos, combustível e, em diversas situações, até mesmo seguros.

A exploração é clara: os algoritmos controlam quem recebe corridas ou entregas e estabelecem o valor que cada um recebe, sem margem para negociação. Portanto, aqueles que trabalham com Uber, iFood, Rappi e outras plataformas se encontram em uma situação de subordinação, já que o lucro da empresa está sempre acima das necessidades do funcionário. Estes aplicativos se desenvolvem e prosperam, contudo, seu êxito é construído à custa de indivíduos que necessitam de várias horas de trabalho diário para obter uma renda que frequentemente não excede o mínimo indispensável para a sobrevivência. 
 
Entretanto existe uma grande diferença entre os entregadores de aplicativo com os Ubers no cenário político, os motoristas de aplicativo seguem o mesmo pensamento dos caminhoneiros, em que são chefes deles mesmo e que isto é uma forma de empreender, citam que podem trabalhar quando quer e não precisam acordar cedo para "bater cartão", já os entregadores criaram movimentos que vêm ganhando força, como por exemplo os entregadores antifascistas que denunciam a exploração e buscam direitos trabalhistas. 

A assistência social deve abranger os trabalhadores autônomos e informais e requer reformas que expandam a abrangência dos benefícios laborais e da previdência social para aqueles que operam em regimes não convencionais. É crucial que o governo, em colaboração com sindicatos e entidades sindicais, estabeleça um sistema que resguarde os trabalhadores autônomos, valorizando sua função crucial e assegurando condições de trabalho justas. Se não, continuaremos a reforçar uma estrutura desigual, onde corporações se favorecem sem investir no bem-estar daqueles que sustentam a economia.

A agenda política brasileira deve reconhecer a relevância desses trabalhadores e buscar um modelo econômico mais inclusivo. Iniciativas como a normatização dos trabalhadores de aplicativos, já debatidas no Congresso, são apenas o começo. A batalha pelos direitos dos trabalhadores independentes, caminhoneiros e entregadores precisa progredir para diminuir a desigualdade e proporcionar a eles a dignidade que merecem. Caso contrário, a economia continuará sendo alimentada por uma mão de obra explorada e desamparada, obstaculizando o progresso social e o avanço econômico justo e sustentável que o país tanto necessita.

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