Por Laura Paro
Uma faca apontada para o pescoço de Luísa marcava o final de um relacionamento abusivo e violento. E não era a primeira vez. Em mais ou menos dois anos ela viveu a experiência de reatar e terminar a convivência afetiva com um homem que havia conhecido na Igreja que frequenta – Renato, que fora apresentado à ela pelo Pastor como um homem bom, atencioso e companheiro. Luísa não sabia que, algum tempo depois, ele demonstraria ser uma pessoa completamente diferente: um sujeito violento, possessivo e manipulador. Ele a transformou em mais uma das oito mulheres que são vítimas de violência doméstica a cada 24 horas no Brasil.
Luísa dizia que tudo havia começado muito bem. Ela conta que, no início da sua relação com Renato, ele era parceiro, ajudava nas tarefas domésticas de casa, dava presentes e a levava para sair; porém, o tempo lhe mostrou o contrário. Renato vinha se tornando um homem totalmente fora de si, principalmente nos momentos em que ingeria bebida alcoólica – como se o seu verdadeiro “eu” ficasse escondido todo esse tempo e viesse à tona em seus momentos de fragilidade. Mesmo com esses sinais e decidida a terminar a relação, Luísa insistiu: Renato era muito querido por sua filha caçula e a sua mãe acreditava que ele era o melhor genro para ela. O Pastor de sua igreja também dizia ser seu maior conselheiro e a convenceu de continuar o relacionamento. “Ele é um homem bom e gosta muito de você”, afirmava.
Eles se casaram em dezembro de 2022, depois do Pastor e sua mãe tanto insistirem – de início, ela não pensava em se casar. No dia que oficializaram a união, Luísa foi consagrada a Pastora da Igreja, e ele, Diácono, e foi a partir daí que ela se sentiu cada vez mais presa em uma relação que, antes, era cheia de expectativas. Como pastora, a igreja lhe exigia um comportamento exemplar, uma imagem que não poderia se quebrar diante da comunidade que a admirava. Mas só ela sabia que os sorrisos nas reuniões da Igreja contrastavam com os momentos tensos que ela vivenciava em casa: a cada vez que Renato se tornava agressivo, a sensação de solidão dentro dela se intensificava.
As brigas começaram a piorar por questões financeiras. Renato prometeu ajudar com mil reais mensais e essa promessa foi cumprida apenas no primeiro mês. Ela precisava de ajuda para se manter, já que, por influência dele, começou a fazer parte de um partido político para se candidatar como Deputada Federal – e a campanha lhe custava muito tempo e dinheiro.
Como se já não bastassem as várias obrigações que tinha de estar a frente, um trabalho cansativo e uma campanha intensa como candidata na política, Luísa passou a ser cobrada por sexo ao chegar em casa – como se fosse da sua obrigação entregar o seu corpo à um homem, apenas para satisfazê-lo. O homem, que no início demonstrava atenciosidade, se tornava cada vez mais irreconhecível aos seus olhos. Ela, que estava levando uma “vida reta e santa diante do altar e estudando mais a bíblia”, afirma que ele dizia à ela que ela fazia pouco (sexo). Luísa dizia que nos dias em que ministrava precisava estar em santidade e, mesmo afirmando isso à ele, Renato insistia, como se apenas as vontades dele importassem na relação e como se Luísa fosse um objeto de satisfação.
Luísa, assim como todas as mulheres, são muito mais do que um simples corpo – ela possui uma história e toda uma vida carregada de muita luta, determinação e esperança. Ela, uma mulher alta de 48 anos, de cabelos longos e olhos castanhos, antes não tinha uma profissão. Desde que se formou em ser mãe, ela sempre se apoiou em trabalhos autônomos, além de ter tido que criar as filhas sozinha e não ter com quem deixar a mais nova – a mais velha ficou aos cuidados da avó e a caçula havia sido diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o que fez com que ela, como mãe, tivesse mais vontade de estar presente.
Um tempo depois, passou a fazer um curso de Tecnólogo Superior em Psicomotricidade e Ludicidade na Educação Infantil – e foi onde ela se encontrou, nos estudos, para tentar ocupar a mente em meio a situação caótica que se encontrava dentro de casa. O ambiente acadêmico, repleto de ideias e discussões sobre assuntos que a interessavam, proporcionou a ela um espaço seguro onde podia explorar não apenas o conhecimento, mas também suas emoções reprimidas. Pela primeira vez, ela passou a ter uma sensação de pertencimento, da qual ela não estava sentindo dentro de casa.
Além disso, a Igreja era outra grande parte de sua vida: Luísa era muito religiosa e tinha muita fé. Ela tinha interesse em ser uma boa Pastora, mas sentia que Renato atrapalhava sua trajetória na religião. Ele, que chegava tarde em casa todos os dias e sempre levava bebida alcoólica para a sua residência, dizia que passava o dia trabalhando; mas ela se questionava perguntando se ele realmente era o homem bom que o Pastor tanto lhe dizia, se realmente era devoto à sua religião e, principalmente, se era um bom marido.
Luísa se encontrava com um misto de sensações. A angústia e a solidão por vivenciar tudo isso sozinha tomavam conta de sua mente e a obsessão do marido por sexo a deixava atordoada, com raiva. Obsessão essa que tornou Renato cada vez mais em um homem mal humorado, sem educação, sempre com as respostas na ponta da língua; mas o típico indivíduo que, quando conseguia o que queria, tudo mudava. Chegava em casa e ao dar dois tapas nas costas de Luísa, sempre dizia: “Hoje eu quero, viu?”.
Muitas vezes imaginava que o problema estaria nela mesma. Sentia uma mistura de sentimentos opostos. Ora culpada por não sentir vontade de sexo nela mesma, ora sentia ódio e uma repulsa muito grande pela mesma situação. Um relacionamento que a prendia não só financeiramente, mas psicologicamente. Por vezes considerava que a separação poderia complicar sua situação na Igreja, sem contar que sua filha caçula, que é neurotípica, havia criado uma boa relação com ele. Muitas vezes ela dizia se sentir “um lixo de mulher”.
Sentia um ódio descomunal de seu parceiro. Ela chorava muito e não conseguia mais dar atenção às tarefas de casa. A única coisa que mantinha sua mente distraída do sofrimento eram os estudos. Mergulhando na Psicanálise ela se formou e quis fazer o curso de Terapeuta para ajudar outras mulheres. No fundo, ela queria ajudar outras pessoas que também eram vítimas, mas sem entender que quem precisava de ajuda primeiro, na verdade, era ela mesma.
Relacionamento tóxico
As brigas se intensificavam cada vez mais. O que no começo era amor, se tornou em um sentimento de repulsa muito grande: Luísa não aguentava ficar sequer perto de Renato, que vivia tendo crises de ciúme extremamente possessivas – ela não podia ser vista conversando com qualquer conhecido da Igreja, que já era motivo de discussões intermináveis em casa. Foi quando decidiu buscar ajuda.
Através de pessoas que já conhecia, descobriu uma ONG que dava amparo e assistência psicológica e jurídica a mulheres e famílias vítimas de violência doméstica. Ela queria ser ouvida e também queria ouvir outras mulheres e, por isso, começou a fazer parte de um atendimento em grupo: ela falava abertamente sobre suas angústias, a raiva que lhe consumia, mas também se sentia melhor ouvindo outras mulheres contando sobre os problemas que sofriam em casa. Ali, cada uma carregava suas próprias cicatrizes, mas Luísa percebeu que suas histórias, embora únicas, compartilhavam uma dor comum. Foi quando ela passou a não se sentir tão sozinha.
Ela estava em atendimento psicológico pelas mulheres da ONG, mas ainda não havia rompido com Renato. Algo dentro dela sentia que a relação poderia melhorar em algum momento. Luísa resolveu contar o que estava acontecendo para o antigo Pastor da Igreja, o qual havia apresentado o homem à ela. Contou também para sua mãe. Mas não adiantou muito, pelo contrário: ela se sentiu ainda mais desmotivada a reerguer sua força, que ela ainda nem sabia que existia. Todos que souberam da história diziam que ela deveria “orar mais e buscar mais de Deus” para salvar o casamento.
A essa altura, parecia que ela sempre acabava retornando para o caminho que ela mesma tentava escapar. Ela se sentia sem forças. Mesmo com o acompanhamento psicológico e as terapias em grupo fornecidas pela ONG, voltar para a sua casa ao final do dia era sempre difícil: as agressões, os xingamentos, a manipulação… Tudo começava de novo. E não poder contar com o apoio de sua família e da própria Igreja, o lugar que mais a confortava, fazia com que ela se sentisse impotente. Mas algo no fundo lhe dizia para continuar com o acompanhamento psicológico, pois acreditava que, em algum momento, conseguiria sair desse ciclo sem fim.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, uma mulher é vítima de violência a cada 4 minutos no Brasil. Além disso, mulheres que enfrentam violência doméstica têm até três vezes mais chances de desenvolver transtornos mentais, como depressão e ansiedade, de acordo com dados do World Health Organization. Mesmo assim, muitas reatam o relacionamento com o agressor ou têm dificuldade em terminar a relação.
O ciclo sem fim
Após mais um dia exaustivo, Luísa chega em casa física e emocionalmente abatida Teve que lidar novamente com os atos frios e violentos de Renato. Mas a gota d’água estava mais perto do que ela imaginava.
Ele disse ter tido um sonho em que ela o traía com um colega da Igreja. Renato sempre repetia essa história e, Luísa, cansada de sempre ouvir as mesmas coisas, achava que tudo não passava de uma brincadeira. Mas, para ele, que queria ser um homem “forte e poderoso” para demonstrar domínio sobre ela, tudo era muito levado a sério: ele sempre acreditava que os seus sonhos eram reais e que ela estaria sendo infiel. Parecia até mesmo que, ele, na verdade, era muito inseguro de si mesmo, e precisava externalizar um comportamento para camuflar sua própria fraqueza.
Acreditando ser uma simples brincadeira Luísa disse que era de sua vontade se relacionar com o tal sujeito do sonho. Furioso, em um tom debochado e na maior frieza possível, sem conseguir controlar suas emoções, Renato abriu a primeira gaveta que encontrou e apontou uma faca no pescoço dela. Luísa não conseguiu demonstrar reações nesse momento. Após algum tempo, a atitude marcou o fim do relacionamento.
Ela conseguiu pedir o divórcio do casamento com Renato, que havia durado 10 meses. Se sentia livre. Mesmo com as dificuldades financeiras para manter a casa, ela continuou se dedicando aos estudos. Começou a dar palestras sobre a saúde mental da mulher. Mas tudo ainda não parecia ter fim: ele continuava indo atrás dela. Mesmo desgastada emocionalmente, voltou a se relacionar com ele. “Ele me venceu pelo cansaço”, dizia.
O relacionamento de Renato e Luísa foi marcado por muitas idas e vindas e a retomada do relacionamento não durou por muito tempo: duas semanas depois, e ela decidiu colocar um ponto final definitivo. Luísa finalmente se questionava se esse seria o seu recomeço; se ela finalmente teria paz para focar em seus estudos; e, principalmente, se conseguiria ser feliz de novo.
A realidade que leva tantas mulheres a voltarem para seus agressores é uma teia complexa de emoções, medos e esperanças. É como se, em meio ao caos, houvesse um conforto em algum resquício de boa lembrança da relação, mesmo que o fim tenha sido prejudicial. A promessa de mudança, a lembrança dos momentos bons e a esperança de que tudo possa ser diferente alimentam um ciclo que parece interminável.
Para muitas, a ideia de um futuro solitário ou o medo da rejeição são mais opressivos do que as marcas deixadas pela violência. As vítimas lutam entre o desejo de liberdade e a grande dúvida sobre seu próprio valor. Esse retorno é um grito silencioso por compreensão e apoio, uma busca por amor em um lugar que, ironicamente, muitas vezes oferece apenas dor. Para cada vez que resolvem reatar há uma história de resiliência e fragilidade, de uma mulher que ainda acredita na possibilidade de um final feliz. Mesmo que isso signifique se perder novamente.
Por Daniel Santana Delfino
O sol da tarde, um disco incandescente no céu, lançava raios de fogo sobre a areia da praia, mas o vento fresco do mar trazia um alívio para o calor escaldante. Era um dia tranquilo, com o mar calmo e a brisa suave acariciando os rostos dos poucos banhistas que se aventuravam nas areias. Era nesse cenário que a figura imponente de José, um senhor de 87 anos, pairava como um farol de história e resiliência.
José Antônio da Silva, ou "Seu Zé", como era carinhosamente chamado, era um homem de poucas palavras, mas de olhar penetrante que carregava o peso de uma vida rica em experiências. Seus cabelos grisalhos, quase brancos, emolduravam um rosto marcado pelo tempo, mas ainda forte e cheio de vida. Em seu peito, reluzia uma pequena medalha, um lembrete silencioso de um passado que o assombrava e o enchia de orgulho ao mesmo tempo: a Segunda Guerra Mundial.
Seu Zé nasceu e cresceu em uma pequena vila conhecida por amigos como "Vale do Sol" no interior de Goiás, onde a vida era simples e a natureza exuberante. Ele aprendeu a pescar com seu pai, a cuidar da horta com sua mãe e a brincar com os amigos nas margens do rio que cortava a vila. Era um menino travesso e aventureiro, que adorava explorar as matas e os campos, sempre em busca de novas descobertas. A vida na vila era pacata, mas Seu Zé sonhava em conhecer o mundo, em ver o mar de perto e em ter novas experiências. Quando completou 18 anos, decidiu se alistar no exército, movido pela promessa de uma vida melhor e pela vontade de servir à pátria.
A decisão foi tomada com um misto de emoções. A alegria de finalmente realizar seu sonho de conhecer o mundo se misturava com a tristeza de deixar para trás a vida simples e familiar que sempre conheceu. A ansiedade e a insegurança de enfrentar o desconhecido o acompanhavam, mas a coragem e a determinação de servir à sua nação o impulsionavam para frente. Ele se despediu da família e dos amigos com a promessa de voltar para casa, mas o destino tinha outros planos para ele.
A Segunda Guerra Mundial eclodiu e Seu Zé foi enviado para o front, onde enfrentou situações extremas e viu a morte de perto. A guerra foi um período de grande sofrimento e privações. Ele passou fome, frio e medo. Teve que lutar em condições adversas, em meio a explosões, tiros e a constante ameaça da morte que o marcou profundamente, deixando cicatrizes físicas e emocionais. Ele viu amigos morrerem, sofreu com a perda de inocentes e teve que lidar com a violência e a crueldade do conflito.
Era uma noite fria e escura, a neve caía incessante, e Seu Zé e seus companheiros estavam escondidos em uma trincheira, esperando o ataque inimigo. De repente, o céu se iluminou com explosões e tiros, a terra tremia sob seus pés. O coração batendo forte no peito, se levantou para defender sua posição, mas uma bala o atingiu no braço. A dor foi intensa, mas ele não podia se dar ao luxo de se entregar à dor. ele precisava continuar lutando. Com a ajuda de um amigo, ele conseguiu se arrastar para um local seguro, onde recebeu os primeiros socorros. A bala foi retirada, mas a marca que ela deixou em seu braço, e em sua alma, o acompanhou para sempre.
Mas a guerra também lhe proporcionou momentos de felicidade, como a noite em que ele e seus companheiros, após uma batalha árdua, conseguiram capturar um depósito de alimentos do inimigo. A fome era constante, e a alegria de encontrar comida, mesmo que simples, era imensa. Eles dividiram os alimentos entre todos, e a sensação de união e camaradagem naquele momento, em meio ao caos da guerra, foi um bálsamo para suas almas. No entanto, a tristeza também o acompanhava. A perda de um amigo, um jovem que havia chegado ao front cheio de sonhos, o afligia profundamente. Ele se lembrava da última conversa com ele, da esperança que ele carregava no olhar, e da dor que sentiu ao vê-lo sucumbir aos ferimentos. A guerra, além de tirar vidas, também roubava sonhos e esperanças.
Durante a guerra, Seu Zé experimentou uma gama complexa de emoções. medo com a constante ameaça da morte o assombrava, a tristeza com a perda de amigos e a violência que testemunhava, a raiva pela injustiça e a crueldade da guerra e em contrapartida, a solidariedade com a necessidade de ajudar seus companheiros e a busca por um pouco de humanidade em meio ao caos e a esperança, apesar de todas as dificuldades.
A força e a resiliência que cultivava desde a infância o ajudaram a superar as dificuldades da vida. Ele até tinha medo da guerra, mas ele via como um espelho de sua própria vida: cheio de desafios, mas também de beleza e esperança. Seu Zé era um exemplo de vida, um homem que havia vivido intensamente, que havia enfrentado a guerra e a vida com coragem e determinação. Ele era um guardião de memórias, um contador de histórias e um símbolo de esperança para todos que o conheciam.
Por Renan Barcellos
Era uma noite abafada de 1971, quando Márcio Toledo percebeu que seu tempo estava chegando ao fim. Ao redor dele, os olhares de seus companheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) já não eram os mesmos. A desconfiança, antes uma sombra discreta, tornava-se palpável, quase tangível. Ele sabia que havia se tornado um alvo. Não por traição, mas por discordar. Aquela diferença de opinião, num cenário de guerra velada, seria suficiente para selar seu destino.
Eles não podiam mais confiar em ninguém, nem mesmo em Toledo, que havia lutado ao lado deles desde o início. A paranoia que consumia a resistência armada era mais cruel que a tortura do inimigo. Naquela noite, ele seria julgado. Não pela ditadura, mas pelos próprios companheiros, em um tribunal revolucionário onde o veredito já estava traçado: a morte.
Carlos Alberto Cardoso teve uma chance que Toledo não teve. Preso pelos militares, foi torturado e tentaram dobrá-lo, oferecendo-lhe um acordo: "Seja nosso homem lá dentro, nos ajude a destruir a ALN". A oferta pairava como um veneno entre a dor e o desespero. Mas Cardoso, fiel à sua luta, recusou. Mesmo assim, sabia que precisava contar a seus companheiros o que havia ocorrido, acreditando que a lealdade mútua os protegeria.
Ele relatou tudo aos seus colegas de resistência, certo de que o entenderiam. No entanto, seus companheiros não acreditaram. Para eles, uma vez abordado, ele já estava manchado, corrompido. No julgamento, foi sentenciado a 21 tiros, uma execução violenta. Seus pais, por anos, acreditariam que ele havia sido mais uma vítima da ditadura. A verdade viria muito tempo depois.
Salatiel Rolim e Francisco Alvarenga carregavam no corpo as cicatrizes da tortura. Torturados brutalmente pelos militares, foram obrigados a ceder informações. As pancadas, os choques e as queimaduras não deixavam margem para resistência. Sob coação, falaram. Mesmo assim, seus próprios companheiros os condenaram, ignorando as marcas visíveis da violência estatal. A sentença, como nas demais vezes, foi a mesma: a morte.
Salatiel questionou, em seus momentos finais, o que qualquer um faria em seu lugar, em uma tentativa desesperada de buscar empatia nos corações endurecidos pela luta armada. Mas a lógica revolucionária era implacável. A suspeita de traição equivalia à traição. E isso era imperdoável.
Esses relatos, se fossem narrados pelos próprios mortos, ecoariam como testemunhos silenciosos de um capítulo que a esquerda prefere não remexer. Era mais fácil confrontar o terror do regime militar do que olhar para os erros que surgiam no calor da luta pela liberdade. Francisco Alvarenga, Salatiel Rolim, Carlos Alberto Cardoso e Márcio Toledo tornaram-se símbolos trágicos de um tempo em que a verdade era constantemente distorcida, não apenas pela ditadura, mas também pelos próprios revolucionários.
No calor daquela guerra interna, Carlos Eugênio, um dos líderes da ALN, jamais se arrependeu. Para ele, aquelas mortes eram dores da guerra, justificadas como parte de um ciclo inevitável, onde o medo de infiltrações superava qualquer consideração de humanidade. Maria Amparo, uma sobrevivente, tinha uma visão diferente. Ela reconhecia que poderiam ter sido mais cautelosos, investigado melhor. No entanto, diante da realidade implacável da ditadura, as execuções pareciam a única saída.
As famílias das vítimas dos justiçamentos, assim como as vítimas da repressão militar, buscam até hoje respostas. A dor do silêncio pesa tanto quanto a ausência dos entes queridos. Para muitas dessas famílias, a memória dos filhos, maridos e irmãos é marcada pela confusão entre o que se acreditava ser uma morte heroica e a dura verdade de que foram traídos pelos próprios companheiros de luta.
Essas histórias revelam o quanto o passado ainda se impõe sobre o presente. O Brasil, ansioso por enterrar o período da ditadura, ainda se esquiva de reconhecer que, em meio à justa resistência contra o regime, ocorreram erros imperdoáveis. Ao mergulharmos nas sombras dos justiçamentos, forçamos a sociedade a encarar o incômodo de uma guerra onde todos, de alguma forma, saíram derrotados. A justiça, por sua vez, não pode esperar por mais silêncio.
Por Rodrigo Marques
Filho de pescadores, as manhãs de Luís de Jesus, hoje com 39 anos, eram marcadas pelo som das ondas e o cheiro do mar de Anchieta, no litoral Espírito Santo. Quando criança, sonhava em ser marinheiro. Aos dezoito anos, mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades, mas logo percebeu a dureza da vida na cidade grande. Inicialmente, tentou alistar-se na Marinha para realizar seu sonho, mas foi dispensado por excesso de contingente. Trabalhou como garçom, mas um incidente no trabalho o deixou sem emprego e, eventualmente, sem moradia. Nos anos seguintes, Luís enfrentou o frio, a fome e a indiferença vivendo nas ruas de São Paulo.
Mesmo sendo sub-representada nas estatísticas oficiais, a população em situação de rua começou a ter sua condição eleitoral mais analisada nos últimos anos. Isso ocorre devido ao fato de menos da metade dessas pessoas possuírem título de eleitor. Em São Paulo, o Censo da prefeitura revelou que, no fim de 2023, cerca de quarenta mil pessoas viviam nas ruas. Entre as entrevistadas pelos agentes municipais, menos de cinquenta por cento declararam ter o título de eleitor.
Ainda assim, essa barreira não impediu os que tinham título de comparecer e exercer seu direito ao voto na última eleição para a Prefeitura paulistana. Luís tentou sobreviver com pequenos "bicos", mas estes eram insuficientes para seu sustento. Quando o período eleitoral se aproximou, ele começou a se interessar pelos candidatos à prefeitura. Determinado a votar, procurou um centro de acolhimento para obter o título de eleitor em São Paulo, uma vez que não era natural do estado. Durante o processo, conheceu uma pessoa que o ajudou a encontrar um teto após quase nove anos nas ruas em um centro de acolhimento de moradores de rua. Luís então escolheu votar em Ricardo Nunes, do MDB, por considerar que o candidato tinha uma postura mais realista. Justificou sua decisão dizendo que via Guilherme Boulos, do PSOL, como "um filhinho de papai" que, segundo ele, jamais passara por dificuldades reais. Luís também comentou que via potencial em Tabata Amaral, candidata do PSB.
Em contraste, Fernando Almeida, de 55 anos, conhecido como Nandinho, é da segunda geração de imigrantes nordestinos que vieram em busca de emprego em São Paulo. Hoje, trabalha como zelador de escola, mas viveu mais de quinze anos nas ruas devido ao problema com uso de drogas, como crack e anfetaminas. Antes disso, atuava como concursado, mas começou a usar substâncias para suportar o estresse do trabalho. Após anos sem votar, seu título foi suspenso, obrigando-o a regularizá-lo para esta eleição. Nandinho escolheu Guilherme Boulos, especialmente pela proposta de criar um Poupatempo da Saúde, visando zerar as filas do SUS. Relatou que, sete anos atrás, teve uma infecção por compartilhamento de seringa e só foi atendido após desmaiar por conta da gravidade do problema. Além disso, enxergava Nunes como um inútil que encontrou uma oportunidade de assumir o posto que era do falecido ex-prefeito, Bruno Covas.
Esses são apenas dois exemplos entre milhares de moradores ou ex-moradores de rua que, apesar das adversidades, decidiram exerceram seu direito de votar como cidadãos aptos a decidirem o futuro da cidade com parte de suas histórias pessoais.
Por Leonardo Caporalini
O despertador toca às 6h30min. O iPhone 15 Pro Max do serviço, que parece valer mais do que a sua tranquilidade, está sempre por perto. Felipe Campos, jovem fotógrafo de 29 anos, corintiano, fã de rock e amante de um tradicional Marlboro Vermelho, vive em uma realidade onde o glamour esperado por quem está nos bastidores da política se dissipa rapidamente, engolido por uma pressão invisível que nunca o abandona. Ele ainda não despertou por completo, mas o cigarro já está aceso. O silêncio da manhã, quebrado pela fumaça, é o único alívio antes de enfrentar mais um dia na Assembleia. Seu apartamento no Cambuci, apertado e aconchegante, é o oposto do imenso Palácio 9 de Julho, para onde ele se dirige de ônibus todos os dias. No caminho, tenta se preparar mentalmente para o que virá, embora essa breve calmaria já não faça sentido. No ‘busão’, costuma ficar na primeira parte do automóvel. Pela manhã, ainda tem dificuldade de passar para o outro lado do ônibus, após a conferência da passagem, para evitar contato com o cobrador e outros passageiros. O horário faz com que o transporte público esteja lotado e sem olhares que não demonstram esperança.
Desta vez o caminho foi para o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista e casa do governador Tarcísio de Freitas, antes de ir para Assembleia Legislativa. O alarme das 7h30min tocou, o último dos dez que ele programou a cada cinco minutos para ter certeza de que teria forças para acordar. O evento é para comemorar o Dia do Auditor Fiscal. São Paulo arrecadou mais de R$ 280 bilhões em tributos neste 2024, e os auditores preparam um grande evento para louvar os profissionais do confisco. Na entrada, Felipe fez o cadastro após a segunda escada do saguão. Ele conhece o Palácio tanto quanto um cidadão deveria conhecer. Cada espaço, andar, funcionários. Mesmo não sendo sua sede profissional, já veio tanto por aqui que adquiriu intimidade.
Seu chefe, deputado estadual, não pode comparecer ao evento oficial pois não havia chegado à capital. Ele estava no seu reduto eleitoral, sua cidade natal há 475 quilômetros de São Paulo, no Centro-Oeste do Estado. Lá não tem aeroporto comercial, apenas um hangar para translado privativo – caso do deputado, já que ele tem um avião particular. O parlamentar também é um empresário de sucesso no interior, sendo sócio-proprietário de uma das maiores comerciantes frigoríficas no segmento. A viagem aérea dura uma hora e vinte minutos, mas por conta de compromissos pessoais, não deu para o deputado chegar. Felipe disse que isso é bem comum e acaba não sendo tão ruim. Não que ele vá trabalhar menos para cobrir o evento, apenas que não vai ter tanta pressão.
Com a chegada do governador Tarcísio, os cliques começam. Assim como em um balé, Felipe dança pelo saguão do Palácio na busca pela melhor captura. A diferença que, ao contrário da sincronia perfeita determinada por uma orquestra para um balé perfeito, um fotógrafo tem apenas sua câmera e o que adquiriu de experiência. Ao lado do governador, estava um homem que parecia ter alta patente. Um chute: Secretário de Desenvolvimento Econômico. O rosto parece familiar e Felipe garante que o já viu. Logo, o foco não é apenas de Tarcísio. Uma foto com os dois então, perfeito. Já garantiu o feed para o post nas redes do deputado. Ao fim do discurso do secretário, ele se junta a Tarcísio para a entrega de Challenge Coins – uma espécie de moeda comemorativa e que por muito tempo teve caráter apenas militar.
Com o fim do evento, as festividades começaram. O deputado chegou para acompanhar o brinde especial pela arrecadação recorde, já Felipe precisou voltar para a Assembleia Legislativa afim de terminar a decupagem de seu material e subir os arquivos na nuvem. Além do deputado, ele também é cobrado pela sua equipe de comunicação, que preza pela excelência e rapidez no serviço. Um contrato na visão do fotógrafo, que sempre cobra melhores orientações e agilidade na resposta de suas tantas perguntas. Quando ele chega à ALESP, o ambiente é o mesmo. O ar é denso, carregado de interesses ocultos que nunca são vistos a olho nu. Sua relação com seus chefes, parece tranquila, mas por trás de cada imagem está uma cobrança constante. O parlamentar é de direita e prega o básico do extremo desse espectro político: Deus, Pátria e Família. Ele não quer apenas fotos; quer o controle de como será retratado. Felipe, sempre ao lado do deputado, sente o peso do poder a cada respiração, como se fosse uma presença sufocante, que nunca o deixa em paz. O primeiro encontro do dia com o parlamentar é sempre silencioso, sem “bom dia”, enquanto a presença dos dois seguranças armados do político o lembra constantemente que ele está ali para servir, não importa o que aconteça.
A rotina na (ALESP) é um campo minado. O local é a casa do Poder Legislativo e o maior parlamento do hemisfério sul. Entre o disparo de sua câmera e os segredos que carrega, ele se mantém de pé e sem respaldo, enfrentando o caos diário como quem encara uma tempestade sem guarda-chuva. São Paulo o acolheu em 2019, quando ele saiu de São José dos Campos para trabalhar na Prefeitura da capital. Ele até chegou a começar uma faculdade de Publicidade e Propaganda, mas não teve tempo para concluir. Preferiu seguir a vida e pular etapas na quarta maior cidade do mundo. Nos tempos de Prefeitura, a política ainda parecia ter algum vestígio de veracidade. No entanto, ao chegar na ALESP, Felipe foi rapidamente arrastado para as camadas mais sombrias do poder. Sua missão parece simples: capturar a política em sua forma mais crua. Mas a verdade é que a realidade raramente pode ser completamente revelada.
A cada clique de sua câmera, o fotógrafo carrega um dilema. Muitas dessas imagens jamais verão a luz do dia. Elas são destinadas ao esquecimento, deletadas antes de serem publicadas. Em meio ao caos dos bastidores, ele tenta manter o foco na realidade, mas sabe que, às vezes, sua ética é moldada pelas circunstâncias. O que ele vê nem sempre pode ser mostrado. Inclusive, tem histórias tão íntimas ouvidas nos corredores do poder, que nem um padre no confessionário poderia imaginar. Felipe conhece cada centímetro da ALESP. Ele sabe onde estar para captar o melhor ângulo dos discursos, das tensões e das conversas que ocorrem a portas fechadas. No entanto, ele também conhece bem a censura sutil que paira sobre suas fotos. Uma imagem pode valer mais do que mil palavras, mas também pode destruir uma carreira. Campos entende isso melhor do que ninguém. Ele não é apenas um fotógrafo; ele é o guardião dos segredos que não podem ser revelados.
Durante os intervalos entre as sessões, reuniões, Felipe escapa para os fundos do prédio, onde encontra outros fotógrafos. Quase todos fumam, aproveitando uma pausa rápida para respirar entre um cigarro e outro. É o único momento em que realmente ele desliga, sem perceber a ironia de que o alívio que procura está lentamente consumindo sua saúde. Esses breves momentos de tranquilidade são interrompidos pela próxima sessão ou pela próxima exigência. Dentro da ALESP, o clima é sufocante. A política ali é mais brutal do que nos corredores da Prefeitura de São Paulo, onde tudo era mais direto. Na Assembleia, as coisas são diferentes; o jogo de poder é mais dissimulado, e as regras mudam a cada segundo. Felipe sabe que não pode confiar em ninguém que tenha um cargo acima do seu. Aliás, ele reforça que é bom ficar de olho em quem está emergindo também. A política o desgasta, mas também o mantém vivo. É uma relação tóxica, sustentada pela imprevisibilidade do que pode acontecer a cada novo dia. A resposta para o descaso é o sentido de uma rotina madura, com responsabilidades.
O dia se arrasta, e quando as luzes dos gabinetes começam a apagar, Felipe Campos ainda está lá, revisando as centenas de fotos que tirou. Escolher as melhores é uma tarefa árdua, que vai muito além da técnica. Muitas vezes, a melhor foto é aquela que nunca será vista. A imagem mais verdadeira geralmente é a primeira a ser deletada. A vida política o desgasta, e ele não tem certeza de quanto tempo mais poderá suportar. Às vezes, pensa em voltar para São José dos Campos, onde a vida era mais simples, menos opressiva. Mas algo sempre o prende. Talvez seja a sensação de estar no epicentro dos acontecimentos, documentando momentos que podem mudar alguma história – mesmo que ele tenha que apagar essa história com um toque no "delete" antes que ela veja a luz do dia. Já passa das 22h00min quando ele finalmente sai do Palácio, sempre o último a deixar o gabinete. O vento frio da noite paulista bate em seu rosto, mas ele mal o sente. A rotina é mecânica. No caminho até o ponto de ônibus, seis quadras distante porque nessa parada o ônibus vai direto para casa, Felipe acende o último cigarro do dia. Foi um dia longo, mas a montanha-russa não para. Amanhã, tudo recomeça. Afirma que só precisa de um cigarro, pois o resto ele dá um jeito de tragar.