Quando o corpo vira território e a memória se transforma em luta
por
Vitor Simas
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22/04/2025

Por Vitor Simas

 

No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.

Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.

Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.

Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.

Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.

A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.

Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.

A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.

Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.

Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.

Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.

 

 

Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé

 

Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.

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A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
por
Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Cultura e Entretenimento

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No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
por
Julia da Justa Berkovitz
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10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

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Entre o alívio da fuga e as incertezas do futuro, a sobrevivência de uma familia libanesa em território brasileiro revela a resiliência dos refugiados
por
Laura Celis Brandão
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15/04/2025

Por Laura Celis

 

O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.

A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.

Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.

Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.

Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.

Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária. 

A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade. 

A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente. 

O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.

 

 

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Política Internacional

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

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Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

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Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Sem garantias trabalhistas, autônomos tentam sobreviver.
por
Felipe Bragagnolo Barbosa
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11/11/2024

Por Felipe Bragagnolo

 

Reginaldo, caminhoneiro desde 2006, foi enfático ao afirmar que muitos de seus amigos acreditaram que Bolsonaro iria fazer alguma coisa de concreto pela categoria, até mesmo porque ele se mostrava próximo da sua condição profissional. Ele mesmo chegou a acreditar que sua vida poderia melhorar com a diminuição dos preços de pedágio e com o controle do preço do diesel. Disse que Bolsonaro estaria ao lado da categoria, mas que na prática não ocorrera assim. Os problemas se mantiveram. Comentou sobre a situação dos autônomos, em que eles não tem nenhuma proteção, Reginaldo contou que sendo autônomo se vê sempre preocupado e que sem garantia de aposentadoria e sem auxílio-doença o deixa inseguro sobre o futuro, e que não existe plano de carreira para autônomo, é trabalhar até onde o corpo e a mente aguentam.

Afirma que a condição de "empreendedor" em que outros autônomos se colocam parece piada, Reginaldo disse que eles dizem serem donos do próprio negócio, mas em que não têm controle sobre nada e que na verdade eles não empreendem, e sim apenas sobrevivem. Muitos se iludem com esta ideia de "empreendedorismo".
 

No Brasil, pessoas que trabalham de forma autônoma e informal desempenham um papel crucial na economia, contudo, essa contribuição é caracterizada pela ausência de direitos e segurança. Caminhoneiros, motoristas de aplicativos como Uber e entregadores de alimentos lidam todos os dias com uma dura realidade: são profissionais indispensáveis, porém ainda muito vulneráveis com a falta de proteção social e trabalhista. Este tipo de mão de obra representa milhões de brasileiros que sustentam os serviços em operação. Mas o futuro dessas atividades continua incerto, colocando em risco a dignidade e a sobrevivência de milhões de famílias.

Iimpulsionado pelo avanço das plataformas digitais o mercado de trabalho independente e informal aumentou rapidamente, sobretudo nas metrópoles. Diante do desemprego e da escassez de empregos formais, muitos brasileiros encontram nessas profissões a única alternativa para sustentar suas famílias. Contudo, a precariedade é clara: motoristas de caminhão, motoristas de aplicativo e entregadores de comida enfrentam extensas jornadas de trabalho sem benefícios como assistência médica, férias pagas, aposentadoria e até mesmo a garantia de um salário mínimo.

Segundo dados recentes do IBGE, o Brasil conta com aproximadamente 24 milhões de trabalhadores independentes, sendo que muitos deles atuam no setor de transporte e entregas, exercendo funções que, na realidade, não asseguram direitos fundamentais. A remuneração e as condições laborais, estabelecidas por empresas e algoritmos, flutuam de maneira imprevisível, tornando esses empregados suscetíveis e sem voz.
 
Os motoristas de caminhão desempenham um papel crucial na logística do País, transportando uma grande parcela da produção de alimentos, matérias-primas e produtos industrializados, mas lidam com desafios como os altos preços de combustível, más condições das vias e despesas de manutenção. E, mesmo prestando um serviço crucial para a nação precisam lidar com baixos salários e perigos para a saúde e a segurança. 
  
Ações de greve, como a emblemática greve de 2018, evidenciaram a insatisfação e a vulnerabilidade dessa classe. No passado, os caminhoneiros reivindicaram aprimoramentos nas condições de trabalho e o controle dos preços dos combustíveis. No entanto, muitas promessas ainda não foram realizadas, deixando a categoria à mercê das flutuações dos preços de mercado e das políticas econômicas governamentais, que, até o momento, pouco fizeram para assegurar melhores condições a esses profissionais.

A situação dos motoristas de aplicativo e entregadores de alimentos não é diferente. Essas plataformas proporcionam uma opção ao trabalho formal, porém sem garantias. O que inicialmente era uma "economia compartilhada" rapidamente evoluiu para uma relação desigual, onde os trabalhadores encaram longas jornadas de trabalho para conseguir um salário mínimo. Ademais, são encarregados de todas as despesas laborais, incluindo a manutenção de veículos, combustível e, em diversas situações, até mesmo seguros.

A exploração é clara: os algoritmos controlam quem recebe corridas ou entregas e estabelecem o valor que cada um recebe, sem margem para negociação. Portanto, aqueles que trabalham com Uber, iFood, Rappi e outras plataformas se encontram em uma situação de subordinação, já que o lucro da empresa está sempre acima das necessidades do funcionário. Estes aplicativos se desenvolvem e prosperam, contudo, seu êxito é construído à custa de indivíduos que necessitam de várias horas de trabalho diário para obter uma renda que frequentemente não excede o mínimo indispensável para a sobrevivência. 
 
Entretanto existe uma grande diferença entre os entregadores de aplicativo com os Ubers no cenário político, os motoristas de aplicativo seguem o mesmo pensamento dos caminhoneiros, em que são chefes deles mesmo e que isto é uma forma de empreender, citam que podem trabalhar quando quer e não precisam acordar cedo para "bater cartão", já os entregadores criaram movimentos que vêm ganhando força, como por exemplo os entregadores antifascistas que denunciam a exploração e buscam direitos trabalhistas. 

A assistência social deve abranger os trabalhadores autônomos e informais e requer reformas que expandam a abrangência dos benefícios laborais e da previdência social para aqueles que operam em regimes não convencionais. É crucial que o governo, em colaboração com sindicatos e entidades sindicais, estabeleça um sistema que resguarde os trabalhadores autônomos, valorizando sua função crucial e assegurando condições de trabalho justas. Se não, continuaremos a reforçar uma estrutura desigual, onde corporações se favorecem sem investir no bem-estar daqueles que sustentam a economia.

A agenda política brasileira deve reconhecer a relevância desses trabalhadores e buscar um modelo econômico mais inclusivo. Iniciativas como a normatização dos trabalhadores de aplicativos, já debatidas no Congresso, são apenas o começo. A batalha pelos direitos dos trabalhadores independentes, caminhoneiros e entregadores precisa progredir para diminuir a desigualdade e proporcionar a eles a dignidade que merecem. Caso contrário, a economia continuará sendo alimentada por uma mão de obra explorada e desamparada, obstaculizando o progresso social e o avanço econômico justo e sustentável que o país tanto necessita.

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Uma das profissões mais antigas do mundo, luta contra o risco de desaparecer
por
Guilherme Lima Alavase
|
05/11/2024

Por Guilherme Alavase

 

Ao longo do tempo, com o desenvolvimento tecnológico, novas máquinas e equipamentos transformaram o mundo do trabalho. Profissionais com funções manuais e repetitivas perderam espaço para a automação nos processos de fabricação. Muitas profissões foram se adaptando aos novos tempos, mas outras deixaram de existir. Este é um processo natural e irreversível. Antigas profissões perderam a razão de existir, como datilógrafos, ascensoristas, lanterninhas de cinema, entre tantas outras. Algumas antigas como sapateiros e alfaiates ainda lutam contra o risco de desaparecer.

A profissão de sapateiro, uma das mais antigas do mundo, percorreu séculos de evolução na arte de confeccionar calçados. Sua essência não sofreu alterações em cada novo processo evolutivo da humanidade. Egípcios, gregos e romanos já dominavam a técnica da fabricação de calçados feitos à mão.

 

Sapateiro: trabalho artesanal
Ferramenta para o ofício de sapateiro: Bigorna de ferro fundido. Foto: Guilherme Alavase

Os sapateiros eram artesãos reconhecidos e valorizados por suas habilidades e criatividade, produzindo calçados personalizados, atendendo ao gosto estético dos clientes. O declínio da profissão de sapateiro, que parece caminhar para a sua extinção, é consequência da revolução tecnológica, com novos processos de fabricação padronizados, com produção em larga escala. Os sapatos produzidos pela indústria moderna utilizam matérias primas industriais (couro sintético e outros materiais), que reduzem os custos de fabricação. São produtos baratos, padronizados e descartáveis.

Consciente da decadência de sua profissão, Dejair Ribeiro, 74 anos, há 62 anos trabalhando com restauração de sapatos e bolsas, falou sobre o auge da profissão, do processo do trabalho artesanal para confeccionar sapatos, relembrou o início de sua jornada profissional, da educação dos filhos, da família e da expectativa para o futuro.

 

Sapatos feito à mâo
Sapatos e sandálias em formas após processo de colagem. Foto: Guilherme Alavase

Ele diz que a sapataria é um ofício que se herda, mas hoje é cada vez mais raro encontrar alguém que se dedique a ela. Filho de sapateiro, ele e seus quatro irmãos aprenderam o ofício ajudando o pai em sua sapataria. Relatou que a oficina produzia calçados femininos de forma artesanal, sob medida e feito à mão. Disse que até filha de governador do Estado era cliente de seu pai. Relatou que na infância teve uma vida muito boa, que o trabalho de sapateiro permitia que todos os irmãos estudassem e que tinham uma vida confortável. Todos os seus irmãos seguiram na profissão e todos, no início conseguiam viver bem do trabalho que herdaram. Conta que antigamente, como o sapato era caro, valia a pena restaurar, trocava-se a sola, o salto, costurava, colava, pintava, enfim, pequenos serviços que rendia um bom valor no fim do mês.

 

Sapato costurado à mão
Trabalho artesanal de reparo de calçados com costura manual. Foto: Guilherme Alavase

Ribeiro relatou que de uns trinta anos para cá, a profissão tem tido uma queda significativa, com a importação de calçados baratos, feitos com materiais de baixo valor e qualidade, portanto descartáveis. A mudança de hábito da sociedade, que vestem roupas informais em todos os eventos, trocando o sapato por tênis reduziram significativamente o número de clientes que trazem calçados para reformar, pois o valor de uma restauração de um sapato de baixo custo não é vantajoso. Afirma que o sapato de hoje é para usar e descartar quando apresentar qualquer problema.  

 

Máquinas de uma sapataria
Processo de lixamento de sapatos após troca de solado. Foto: Guilherme Alavase

Ribeiro é pessimista com relação ao futuro da profissão. Alega que dos seus quatro filhos (três mulheres e um homem), nenhum se interessou pela profissão. Diz que ele continuará trabalhando enquanto tiver saúde e quando não puder mais trabalhar, abaixará as portas de sua sapataria e encerrará uma tradição profissional familiar. Por outro lado é possível perceber uma mudança de comportamento em uma parcela da população. Há pessoas que voltam a enxergar nos produtos de alta durabilidade, que podem ser restaurados várias vezes, uma solução sustentável.  Neste sentido, há um renascimento do interesse pelo sapato feito à mão, sob medida e de alta qualidade. De qualquer modo não é possível antever se haverá tempo hábil para os antigos sapateiros ensinarem a profissão para os mais jovens, pois não há escolas que ensinem este ofício milenar. 

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Sobrevivente da ditadura militar, Adriano Diogo relembra episódios de tortura e repressão.
por
Isabelle Maieru
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04/11/2024

Por Isabelle Maieru

 

 

O som da porta se abrindo foi o início de um pesadelo para Adriano, um jovem estudante cuja vida foi virada de cabeça para baixo. Ele recorda que os militares invadiram seu apartamento, trazendo uma dor ainda presente. A brutalidade do regime, simbolizada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como Major Tibiriçá, exemplifica o terror vivido por milhões de brasileiros.

Em um ambiente marcado pela nostalgia e por lembranças de tempos difíceis, Adriano Diogo se torna porta-voz de um dos períodos mais sombrios da história brasileira: a ditadura militar. Sua voz ressoa com emoção, ecoando verdades dolorosas que a sociedade muitas vezes prefere ignorar. Adriano narra não apenas sua experiência pessoal, mas também um relato profundo de uma era de repressão e censura. Com um olhar perspicaz e uma memória aguçada, ele descreve as atrocidades cometidas por um regime que, embora parecesse invencível, ocultava uma realidade aterradora de tortura e medo. As histórias de amigos e companheiros perseguidos, aprisionados e desaparecidos permanecem como feridas abertas que nunca cicatrizaram.

Sua narrativa, quase poética, transforma o horror em reflexão sobre a luta incessante pela liberdade. Para Adriano lutar pela liberdade era um ato de amor, um sentimento que se estendia a uma nação inteira em busca de justiça e dignidade. Mesmo nas sombras da opressão, havia uma luz: a determinação de um povo que se uniu contra a injustiça.

Ao recordar encontros clandestinos e manifestações, Adriano evoca a camaradagem entre aqueles que desafiaram o regime. Ele destaca a solidariedade e a coragem que emergiram em meio à adversidade, lembrando que as conversas eram sussurradas, sempre com o medo de serem ouvidas. A coragem pulsava em cada coração que se recusava a permanecer em silêncio.

Adriano enfatiza a importância de transmitir essas recordações às novas gerações. Para ele, a memória coletiva não deve ser vista como um fardo, mas como uma herança valiosa a ser cultivada. Tornando-se um guardião do passado, ele se compromete a garantir que os erros não se repitam, reconhecendo que as questões de justiça e reparação são exigências urgentes do presente.

À medida que o sol se põe, suas reflexões destacam que a luta pela democracia e pelos direitos humanos é contínua, requerendo vigilância constante. Embora a ditadura militar tenha sido derrotada em suas formas mais evidentes, suas cicatrizes permanecem visíveis na sociedade brasileira, lembranças dolorosas de um tempo de autoritarismo.

Adriano convida todos a olharem para o passado com honestidade e a se unirem na busca por um futuro mais justo. Suas palavras reverberam, incutindo um senso de urgência em preservar a memória coletiva. No Brasil, onde a história é um bem precioso, ele se destaca como um farol, iluminando o caminho para que os erros do passado não sejam esquecidos e para que a esperança de um futuro mais democrático e igualitário possa florescer.

O relato de Adriano é uma crônica da brutalidade. Ele foi agredido e levado à Operação Bandeirantes, uma delegacia notória na rua Tutóia. Ali, um homem armado o recebeu com uma ameaça, afirmando que ia estourar seus miolos, como havia feito com seu colega Alexandre Banucchi. O terror aumentava ao saber que Alexandre estava agonizando em uma cela. Um auxiliar lhe disse que ele estava estrebuchando sangue por todos os lados, revelando a brutalidade do regime.

Após a desativação do DOPS, a delegacia se transformou no Memorial da Resistência, preservando a memória das vítimas e promovendo a reflexão sobre os horrores do passado. Hoje, a memória das lutas passadas é mais relevante do que nunca, especialmente diante da ascensão da intolerância e da violência, como demonstrado pelo ataque ao Congresso Nacional em 8 de janeiro de 2023.

Lembrar é um ato de resistência. Cada relato serve como um lembrete de que a luta pela liberdade e pela justiça nunca deve ser esquecida. A música que ecoa nas lembranças de Adriano reafirma a importância da dignidade humana e dos direitos civis, desafiando a escuridão da opressão. A luz da memória continua a brilhar, guiando a sociedade na busca por um futuro mais justo.

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Contrariando o estrelato repentino dos brechós, bazares por São Paulo contemplam a carência social de muitos paulistanos.
por
Bianca P. Athaide
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18/11/2024

Por Bianca Athaíde

 

Uma camiseta custando no máximo R$5 pode ser a única peça de roupa que Celeste, de 48 anos, pode comprar para seu filho até o ano que vem. Enquanto escava em meio a uma montanha vestuário olha discretamente para sua competição com uma outra mulher, aparentando ser um pouco mais velha, vasculhando na mesma velocidade e intensidade a pilha de roupas. Mesmo sendo de família humilde, foi criada para ter nojo de "roupa velha", mas, por necessidade, depois de perder seu emprego em janeiro deste ano, ouviu os conselhos de uma vizinha e recorreu a compras no bazar, pois os meninos estão crescendo rápido demais. O bazar da Paróquia e Santuário São Judas, na zona Sul, é a saída para enfrentar a falta de dinheiro para vestimenta.

A presença física do santuário católico na região toma um imenso quarteirão e estabelecimentos próximos, um deles, o Bazar de São Judas Tadeu. Uma pequena porta de ferro esconde uma sala abarrotada de peças de vestuário, calçados e afins, do chão ao teto. Mergulhadas entre os itens, em sua maioria, mulheres de meia idade, de visual simples, cavam nas grandes rochas têxteis a sua frente por algum bom achado, irredutíveis por sua determinação cristã.  

Entrar em um bazar comunitário, com caráter social, pode colocar em xeque a crença de atitude cool e estilo urbano pragmatizada pela recente onda de brechós. Muitos ainda acreditam que os ambos estabelecimentos sustentam o mesmo tipo de público e propósito. Um brechó localizado no alto do bairro Jardins, um dos mais caros da capital paulista, comercializa peças de luxo, angariadas em leilões específicos, frequentados por magos do estilo pessoal e entendedores da moda e suas principais referências, com consumidores que não possuem o menor receio em pagar altos valores apenas por desejo íntimo.

Ao contrário, em um bazar, que muitas vezes oriunda de instituições das mais variadas religiões, a compra é por necessidade. As opções dispostas entre o chão e alguns cabideiros, são resultado de doações realizadas por fieis, cansados da mesmice de seus guarda-roupas e com um desejo interno de nutrir seu ego atuando em caridade. Assim, no Bazar São Judas, a tabela na porta mostra, de maneira organizada, em contraponto ao caos instaurado seguinte, os preços de cada tipo de item, para evitar confusões.

A ampla fissura entre o conceito de brechós e de bazares ainda é embaçada para quem não frequenta os dois. Confundidos muitas vezes, o imaginário popular ainda recai na premissa negativa de roupas velhas jogadas fora. E enquanto a elite se vangloria  do recycling e garimpos valiosos, preenchendo o desejo de apimentar sua estética visual, a outra maior parcela da população encontra nos bazares, além de peças acessíveis, uma nova oportunidade de obtenção de renda.

No Bazar São Judas, na mesma tabela de preços, abaixo dos valores, em negrito está escrito: "SACOLEIRAS - Compras em grandes quantidades apenas nas SEXTAS". O dia específico é também, não por coincidência, o dia que semanalmente dois caminhões lotados param na frente da porta do bazar e despejam dezenas de sacos de lixos lotados de peças de vestuários doadas. Em maioria, mulheres formam uma fila, esperando a liberação de entrada, para alcançarem as melhores peças para revender em seus "comércios remotos".

Claúdia, a 3 anos, realiza essa mesma procissão uma vez por mês, para abastecer a vitrine que estende no chão, em cima de uma lona, na frente da saída do metrô Jabaquara, a poucos metros dali. Depois de perder seu emprego como babá durante a pandemia, ela se viu perdida por não conseguir outra oportunidade. Então, no boca a boca do final da missa das 19h00min, descobriu o "dia das sacoleiras" e foi conferir na sexta seguinte. Aos 42 anos, Claúdia é orgulhosa de seu comércio e luta para conseguir as melhores peças semi novas, como ela mesmo denomina, para sua clientela.

O estrelato de uma tendência fashion de elite dos brechós se choca com a caridade e necessidade de muitos que frequentam bazares. Assim, entram em combate, novamente, os valores da indústria. O ciclo no mundo da moda é muito rápido, e o que hoje é desejado, amanhã é descartado. Cabe aos bazares manterem firme o pilar de amparo social, que perdura desde de seus surgimentos, para sustentar a queda brusca que um dia os brechós de luxo podem sofrer, para, quem sabe, a moda seja menos excludente.

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