Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
por
Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Em 2023, foram realizadas 401 adoções por casais homoafetivos, representando 6,35% do total de adoções desde 2019.
por
Caio Batelli
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20/06/2025

Por Caio Batelli

 

Na região metropolitana de São Paulo, Artur e Gabriel viram sua vida mudar completamente após uma espera de três anos e dois meses enfrentando processos burocráticos de adoção, olhares tortos e comentários maldosos. O sonho de formar uma família finalmente ganhou forma quando Marlon, um menino de 6 anos. Por trás desse momento de alegria, havia uma história de resistência, dor, coragem e amor incondicional.

Artur nasceu em Botucatu, e Gabriel, na capital de São Paulo. Ambos se conheceram na faculdade, e desde o início, compartilhavam a vontade de adotar uma criança. Sabiam que o processo seria complicado, especialmente por serem um casal homoafetivo em um País onde o preconceito, apesar de muitas conquistas legais, ainda se faz presente em olhares, atitudes e palavras. Mesmo assim, decidiram seguir adiante, confiantes de que o amor que tinham um pelo outro e o desejo de cuidar de uma criança seriam maiores que qualquer obstáculo.

Após alguns anos de relacionamento estável, começaram o processo de habilitação para adoção. Reuniram documentos, participaram das entrevistas, fizeram os cursos exigidos pelo sistema de justiça e aguardaram. Durante esse período, enfrentaram situações marcantes. Ao visitarem um abrigo pela primeira vez, foram recebidos com estranhamento. Uma funcionária do local os observava com desdém, e chegou a dizer, num tom ríspido dizendo que só aceitavam casais tradicionais. Aquela frase cortou como uma faca. Gabriel, com os olhos marejados, apertou forte a mão de Artur e, juntos, saíram do lugar com o coração apertado, mas com mais vontade ainda de provar que tinham, sim, o direito de serem pais.

Também dentro das próprias famílias houve momentos dolorosos. Durante um almoço de domingo, uma tia de Gabriel, acreditando estar apenas cochichando, comentou que criança precisa de uma mãe, e não de dois pais. Comentários assim se repetiram, às vezes com mais sutileza, outras vezes com agressividade. O que os outros não percebiam era que cada frase, cada julgamento, servia apenas como combustível para fortalecer o compromisso que tinham com seu projeto de família.

Até que um dia, depois de mais de dois anos de espera, uma assistente social entrou em contato com uma notícia que mudaria tudo. Havia uma criança disponível para adoção: Marlon, um menino doce, mas retraído, que havia passado por diversas instituições e guardava nos olhos uma mistura de medo e esperança. Ao conhecê-lo, Artur e Gabriel souberam, no mesmo instante, que ele era o filho deles. Nos primeiros encontros, Marlon se mostrava fechado. Falava pouco, evitava contato visual e se retraía com qualquer tentativa de aproximação. Mas Artur e Gabriel sabiam que a confiança não nasce de um dia para o outro. Com paciência e afeto, foram conquistando o menino aos poucos. Passaram a brincar no parque, ler histórias antes de dormir, desenhar juntos. Marlon começou a sorrir. Um dia, com a naturalidade de quem sente segurança, passou a chamá-los de pai Gabi e pai Tu. Foi um dos momentos mais emocionantes da vida do casal. A guarda provisória foi o primeiro passo. Durante essa fase, Marlon ainda frequentava a escola próxima ao abrigo, mas passava os fins de semana e feriados com os pais. A conexão entre os três crescia de forma constante e verdadeira.

Embora o processo legal tenha caminhado sem maiores obstáculos, a sociedade, por outro lado, continuava a impor barreiras. Em uma tarde comum, na escola, uma professora questionou Marlon diante da turma sobre a ausência de uma mãe. A pergunta, feita em tom curioso, deixou o menino sem graça. Ele abaixou os olhos, em silêncio. Em casa, naquela noite, não quis brincar, nem comer. Foi quando Artur e Gabriel perceberam que, além de amar e educar, também precisariam preparar seu filho para enfrentar um mundo que, por vezes, pode ser cruel com o que não entende. A partir daquele dia, conversas delicadas passaram a fazer parte da rotina. Falavam com Marlon sobre os diferentes tipos de família, explicavam que o mais importante era o amor e o cuidado. Reforçavam que algumas pessoas ainda não compreendiam isso, mas que ele nunca estaria sozinho. Prometiam que os três sempre estariam juntos, protegendo uns aos outros. E repetiam, enquanto o colocavam na cama: ter dois pais é uma coisa linda.

Meses depois, veio a oficialização da adoção. No dia da audiência, o juiz os recebeu com um sorriso sincero e anunciou que, a partir daquele momento, Marlon era, legalmente, filho deles embora, no coração, ele já ocupasse esse lugar há muito tempo. O trio se abraçou com força. Foi um choro silencioso, carregado de alívio, felicidade e gratidão. Hoje, Marlon estuda em uma nova escola, onde é respeitado e acolhido. Em casa, tem um quarto colorido, decorado com os próprios desenhos, brinquedos espalhados pelo chão e uma rotina repleta de afeto. Os fins de semana são recheados de passeios no parque e sessões de cinema no sofá. Artur e Gabriel estão sempre por perto, atentos a cada pequeno progresso, celebrando cada conquista do filho.

Com o passar dos meses, a convivência diária fortaleceu ainda mais os laços entre Artur, Gabriel e Marlon, transformando aquela união em algo que transcendia qualquer documento ou biologia. As pequenas rotinas como preparar o café da manhã juntos, inventar brincadeiras no parque ou simplesmente dividir o sofá em tardes de filme criaram um senso profundo de pertencimento. Marlon, antes tímido e desconfiado, passou a demonstrar afeto espontâneo, buscava o colo dos pais ao acordar e fazia desenhos em que se retratava entre os dois, sempre com sorrisos largos. Em certo momento, ele chegou a dizer que sentia como se sempre tivesse sido filho deles, como se tivesse nascido do coração dos dois. Para Artur e Gabriel, essa declaração foi a confirmação de que o vínculo construído com paciência, cuidado e amor incondicional era tão verdadeiro e forte quanto qualquer laço de sangue.

O preconceito, infelizmente, não desapareceu. De vez em quando, ainda precisam lidar com olhares atravessados em consultas médicas, comentários sussurrados em aniversários ou perguntas invasivas de desconhecidos. Mas encontraram na convivência e no amor a força necessária para seguir. Aprenderam a transformar a dor em resistência, e a resistência em ação.

No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal reconheça desde 2010 o direito de casais homoafetivos à adoção, o preconceito segue como uma barreira invisível, porém resistente. A história de Artur, Gabriel e Marlon é apenas uma entre tantas que provam que o amor é maior do que qualquer estrutura tradicional. Ser família não exige moldes fixos, rótulos nem permissões. Ser família é estar presente, cuidar e amar todos os dias, sem exceções.

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Como uma adoção pode mudar a vida da loja.
por
Octávio Alves
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20/05/2025

Por Octávio Alves

 

São Paulo, a maior metrópole do Brasil, é uma cidade que pulsa 24 horas por dia. O trânsito constante, os arranha-céus que recortam o céu, as buzinas incessantes e as multidões que cruzam as calçadas com pressa compõem o cenário de uma rotina frenética. No meio de tanta gente, paradoxalmente, a solidão também encontra espaço. Para muitos, é apenas mais um dia difícil; para outros, é o início de um processo de reconexão consigo mesmo. Curiosamente, esse reencontro tem acontecido, cada vez mais, por meio dos animais de estimação.

Hoje, os pets deixaram de ser apenas companheiros eventuais ou guardiões do quintal, tornaram-se parte essencial da vida emocional de milhares de pessoas. Em tempos de incerteza e dificuldades, são fonte de apoio, consolo, acolhimento e, acima de tudo, de amor genuíno, essa relação transformadora ficou evidente na história de Márcio Ricardo, dono de um pet shop localizado no bairro da Vila Matilde, na zona leste de São Paulo.

Márcio lembra com carinho de um episódio marcante que aconteceu há cerca de cinco anos, em plena pandemia de COVID-19, quando a cidade estava mergulhada em medo e isolamento. Ele vivenciou o que descreve como uma cena digna de filme. Era um dia como outro qualquer no pet shop, até que um homem , com roupas de açougueiro,  um funcionário do açougue da rua, entrou  na loja. Nos braços, segurava um gato visivelmente ferido, com as patas machucadas, o corpo magro e os olhos cansados.

Sem hesitar, Márcio e sua equipe interromperam o que estavam fazendo para cuidar do animal. Limparam os ferimentos, aplicaram pomadas cicatrizantes, ofereceram comida e água fresca. Prepararam uma gaiola limpa e acolhedora para que ele pudesse descansar em segurança. Sem saber sua origem, se era um gato perdido ou abandonado , deram a ele um nome simples, carinhoso e provisório, Gato.

Nos dias seguintes, todos notaram que o Gato era diferente, apesar dos traumas físicos, mostrava-se dócil, sociável e receptivo ao carrinho humano e demonstrava sinais claros de que já havia vivido em algum lar, mas, mesmo com tentativas de encontrar um possível tutor de cartazes, postagens em redes sociais, ligações para clínicas da região, ninguém apareceu, nenhum sinal de que alguém o estivesse procurando. A suspeita logo virou certeza: o Gato havia sido abandonado.

Infelizmente, essa não é uma realidade incomum. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2024, estimam que mais de 30 milhões de cães e gatos vivem em situação de abandono ou maus-tratos no Brasil. Muitos, como o Gato, são deixados à própria sorte nas ruas, expostos ao frio, à fome e aos perigos diários de uma cidade como São Paulo.

Comovido, Márcio decidiu acolher o Gato até encontrar um lar responsável. Garantiu vacinação, cuidados veterinários e comida de qualidade. Mas o que era para ser temporário acabou se transformando em algo  maior. Com o passar do tempo, o Gato foi ganhando espaço não apenas físico, mas emocional dentro do pet shop.

Ganhou um cantinho só dele nos fundos da loja, com tudo que precisava para viver com dignidade. Circulava livremente entre os corredores, deitava no balcão, recebia carinho de funcionários e clientes e conquistava todos com seu jeito brincalhão e observador.

Ele virou parte da equipe, diz Márcio. Mostra com  as fotos antigas do Gato dormindo entre pilhas de papel, se enroscando nas caixas de produtos ou observando curioso o movimento da rua. Tentando morder alguns clientes por brincadeira, se escondendo quando chegava matilha de goldens, praticamente um funcionário.

Mas nem tudo foram flores. Márcio conta que, todas as noites, o Gato ficava sozinho na loja, e, pela manhã, ele sempre o recebia com um miado insistente. Com o tempo, criaram um vínculo , baseado no afeto e na rotina compartilhada, com algumas brincadeiras e xingamentos. Até que, depois de quase três anos, a história do Gato ganhou um novo rumo.

Gabriele Tomé, que na época era funcionária do pet shop, tomou uma decisão que mudaria na loja. Mesmo depois de três anos e nada de alguem querer adotar o Gato,  já profundamente apegada ao animal, resolveu adotá-lo. Ela acreditava que, embora bem tratado na loja, o Gato merecia um lar definitivo, onde pudesse viver com ainda mais segurança e conforto. 

No início, a adaptação foi difícil, o Gato se mostrou tímido, evitava sair de casa e se escondia com frequência, o medo era visível em seus olhos, mas, com paciência, carinho e tempo, ele foi se abrindo. Começou a explorar o quintal, a dar pequenas voltas pelo bairro e, como todo gato, a se meter em encrencas com outros felinos da região. Sempre voltava para casa, às vezes arranhado, outras vezes cansado, mas sempre com o olhar de quem sabia onde pertencia.

Gabriele conta, entre risos, que depois de alguns meses o Gato praticamente a esqueceu e se apegou mesmo foi à mãe dela, com quem passa boa parte do tempo hoje. Ela diz que ele dorme no colo dela, a acompanha pela casa inteira, e parece entender tudo o que ela diz e Tomé diz que aquele Gato safado já a esqueceu. 

A história do Gato é mais do que um simples relato de resgate ou adoção, é uma narrativa que revela o poder dos vínculos inesperados, da empatia e da transformação. Em meio ao concreto frio da cidade, onde tantas vezes o humano se fecha em si mesmo, há espaço para gestos de cuidado e também para segundas chances.

Do balcão do pet shop até uma casa tranquila, o Gato deixou sua marca. Não apenas como um animal que sobreviveu e sim como um exemplo dos papeis dos animais é fundamental hoje em dia que podem dar um conforto para indivíduos onde jamais imaginaria.

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Na correria das grandes cidades, trabalhadores essenciais passam despercebidos e revelam o cotidiano de quem sustenta a cidade sem reconhecimento.
por
Ivan Marino Iannace
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10/06/2025

Por Ivan Marino

 

Antônio começa o dia antes do sol nascer. Acorda às 4h30min e, por volta das 6h00min, já está de uniforme, com o molho de chaves no bolso, pronto para abrir as portas do prédio comercial onde trabalha como zelador há mais de duas décadas. Ele é um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair, em uma rotina que, embora repetitiva, exige atenção constante. Nos seus poucos momentos de descanso aproveita a pausa durante o expediente para estudar sozinho. O celular na mão, o fone no ouvido e o olhar atento ao aplicativo de inglês. Explica que tem interesse em aprender o idioma porque, na região onde trabalha, circulam muitos estrangeiros. Já precisou indicar direções ou responder a perguntas básicas e sentiu dificuldade. Acredita que, com um vocabulário mínimo, a comunicação se tornaria mais fácil e, quem sabe, poderia até abrir portas.

Segundo o IBGE, mais de 12 milhões de brasileiros adultos não concluíram o ensino fundamental. Muitos deles estão em empregos que exigem esforço físico, longas jornadas e pouca qualificação formal. Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas. No Brasil, uma em cada quatro pessoas com escolaridade até o fundamental incompleto atua no setor de serviços, especialmente em cargos de apoio como limpeza, manutenção ou portaria. Segundo o Dieese, essas funções recebem, em média, pouco mais de 1,6 salário mínimo, mesmo em cidades como São Paulo, onde o custo de vida é um dos mais altos do país. Além disso, são postos de trabalho com baixa mobilidade e pouca chance de promoção. A desvalorização não é apenas salarial, ela também se traduz na forma como esses profissionais são tratados, vistos ou, muitas vezes, ignorados.  Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas.

Funções como as que exerce Antônio, como limpeza, manutenção, organização de espaços comuns são consideradas essenciais para o funcionamento das cidades, mas raramente recebem a devida valorização. Em prédios, condomínios, escolas e hospitais são esses profissionais que garantem que tudo esteja em ordem antes mesmo de os demais trabalhadores chegarem. São pilares invisíveis dentro da nossa sociedade de trabalho. Para quem passa pelo saguão do prédio, muitas vezes ele é apenas parte do cenário. A rotina dele inclui tarefas fundamentais, mas nem sempre perceptíveis: verificar as luzes, organizar a recepção, garantir que banheiros estejam limpos e que o ambiente esteja seguro. Poucos o cumprimentam ou o chamam pelo nome. Antônio não reclama disso — mas admite que se lembra de cada rosto que o trata com gentileza.

O psicólogo Daniel Andriani aponta que esse tipo de relação é mais comum do que se imagina. Segundo ele, profissionais que exercem funções operacionais em ambientes formais costumam ser ignorados não por maldade, mas por hábito. Explica também que a rotina acelerada das grandes cidades como São Paulo, contribuem para essa forma de cegueira social, um comportamento que torna certas presenças quase invisíveis. Ele observa que, com o tempo, isso pode afetar a autoestima e o senso de pertencimento desses trabalhadores. Embora nem todos manifestem insatisfação de forma explícita, é comum que carreguem uma sensação constante de estar à margem, mesmo fazendo parte do cotidiano de muita gente. Daniel afirma que quando alguém passa por uma pessoa todos os dias e nunca dirige uma palavra, a mensagem, mesmo que silenciosa, fica bem clara.

O prédio onde Antônio trabalha fica em uma região central da cidade, cercado por empresas, escritórios, cafés e clínicas. Por ali, o ritmo é acelerado e o silêncio entre as pessoas parece regra. Ele comenta que já decorou os horários dos frequentadores mais assíduos. Sabe quem chega sempre apressado, quem costuma sair esquecendo alguma coisa e aqueles que não respondem nem a um bom dia. Também não deixa de observar rotinas, perceber mudanças sutis e organizar pequenos reparos antes que alguém precise pedir. Entre tantos dias parecidos, Antônio guarda uma cena com carinho. Foi em um fim de ano, durante um amigo secreto organizado por funcionários de uma das empresas do prédio. Ele não participava, mas foi chamado ao salão e ganhou um presente simbólico de uma das colaboradoras, que fez questão de agradecer pela educação e disponibilidade diária. Foi um momento rápido, mas que, segundo ele, ficou na memória.

Entre uma tarefa e outra, costuma usar o celular para acompanhar vídeos e anotações sobre manutenção predial. Explica que gosta de entender melhor os equipamentos com que lida todos os dias, e que, quando consegue resolver um problema sozinho, sente que valeu o esforço.

Na maior parte do tempo, trabalha em silêncio. Cumpre funções que garantem o funcionamento do espaço, mas que raramente ganham destaque. Não se queixa, mas reconhece que há dias em que gostaria de ser mais escutado, principalmente quando sugere melhorias que poderiam facilitar o dia a dia de todos. No fim do expediente, Antônio costuma dar uma última volta pelo prédio. Fecha janelas esquecidas, apaga luzes acesas, confere se as portas estão trancadas. Depois, guarda o uniforme, recolhe suas coisas e vai embora como chegou: em silêncio.

A cidade, lá fora, continua correndo. Gente entra e sai dos prédios sem reparar quem cuida deles. Muitos talvez nem saibam quantas engrenagens invisíveis mantêm o cotidiano em ordem. Muitas dessas engrenagens têm nome, história e vontades. A trajetória de Antônio lança luz sobre uma realidade maior: o funcionamento das cidades depende de trabalhadores que, embora essenciais, passam despercebidos. São pessoas que garantem que os ambientes estejam limpos, seguros e organizados antes mesmo do expediente começar — e que, muitas vezes, só são notadas quando algo dá errado ou quando estão ausentes. O protagonismo dessas funções operacionais é silencioso, mas indispensável.

Mais do que ausência de reconhecimento, o que se revela é um padrão de desumanização cotidiana. Um simples “bom dia” ou um agradecimento, quando acontece, é suficiente para marcar a memória de quem costuma ser ignorado. Isso escancara uma falência nas relações sociais dentro dos espaços urbanos: a gentileza virou exceção, não regra. Ser visto, mais do que um gesto de educação, é um sinal de pertencimento.

Mesmo diante da desvalorização, muitos desses profissionais buscam crescer, aprender e se adaptar. Como no caso de Antônio, o esforço para estudar por conta própria e entender melhor as ferramentas do seu trabalho demonstra uma vontade de desenvolvimento que, muitas vezes, não encontra espaço para florescer. A mobilidade prometida a quem “corre atrás” nem sempre se concretiza, especialmente quando as estruturas sociais mantêm os mesmos de sempre à margem. No fim, a história de Antônio não é sobre alguém que se sente invisível, mas sobre o quanto nossa sociedade tem falhado em enxergar. Refletir sobre isso é reconhecer que pertencimento, dignidade e valorização não deveriam ser privilégios de poucos, mas garantias básicas para todos que constroem, todos os dias, o ritmo das nossas cidades.

Assim como Antônio, Everton - porteiro de um prédio residencial na Zona Leste de São Paulo há 22 anos - conhece cada morador pelo nome e cada hábito pelo som do elevador. Seus turnos noturnos já foram preenchidos com histórias e recados importantes, mas hoje testemunha silencioso enquanto residentes passam direto por sua cabine, desbloqueando o portão com um simples comando no celular. Com um gesto cuidadoso, Everton folheia o caderno onde durante anos registrou cada entrega e recado, observando que antes era a memória viva daquele prédio. Agora, percebe com amargura que se tornou apenas um plano B, lembrado apenas nos raros momentos em que a tecnologia falha.

A história de Everton se repete em diversos setores urbanos. Profissões consolidadas ao longo de décadas estão sendo eliminadas progressivamente por sistemas automatizados. Dados do Banco Mundial indicam que quase um quarto dos empregos formais no Brasil corre risco de automação até 2035, com os cargos operacionais e de atendimento sendo os mais vulneráveis. O fenômeno apresenta um paradoxo evidente: justamente as funções que exigem conhecimento empírico e interação humana são as mais suscetíveis à substituição tecnológica. Everton, com seus 22 anos de experiência, reconhece cada entregador regular e identifica padrões suspeitos nas encomendas - competências que os sistemas automatizados ainda não replicam com eficácia.

A transição tecnológica elimina não apenas postos de trabalho, mas também conhecimentos tácitos acumulados. Os novos sistemas de portaria digital não incorporam a percepção desenvolvida por Everton para identificar situações anômalas ou necessidades específicas dos moradores. A pressão por eficiência operacional continua a substituir gradualmente essas interações pessoais, levantando questões sobre o custo social dessa transformação. O processo em curso sugere a necessidade de equilibrar avanço tecnológico com a preservação de competências humanas insubstituíveis, particularmente em serviços que envolvem segurança, atendimento e convivência comunitária.

Casos como esse revelam uma contradição fundamental do nosso tempo: enquanto celebramos a "humanização" dos serviços através de chatbots com nomes afetivos e assistentes virtuais empáticos, eliminamos progressivamente as interações humanas genuínas. Essa substituição não ocorre por acaso, segue uma lógica econômica implacável onde o custo-benefício ignora variáveis intangíveis como conhecimento tácito, memória institucional e segurança comunitária. Os sistemas automatizados de portaria oferecem eficiência incontestável: registram entradas com precisão, não faltam ao trabalho, não exigem folgas pagas. Mas falham em perceber o que qualquer porteiro experiente capta imediatamente - a mudança no comportamento do morador que pode indicar desde um problema de saúde até uma situação de risco. Enquanto a tecnologia avança na coleta de dados, retrocede na interpretação de contextos.


O mercado de trabalho responde com soluções superficiais: requalificação profissional. Como se o problema fosse a falta de adaptabilidade dos trabalhadores, e não um sistema que trata pessoas como softwares desatualizados. As consequências se estendem além do desemprego. Prédios com portaria automatizada relatam aumento de 40% em entregas extraviadas e 35% mais ocorrências de segurança, segundo pesquisa do Secovi-SP. Moradores reclamam da falta do "filtro humano" que antes identificava visitas suspeitas. Cria-se então um novo mercado: sistemas de IA que tentam replicar - a custos elevados - justamente as habilidades que pessoas como Antônio e Everton desenvolveram organicamente ao longo de anos de experiência.

A resistência vem de onde menos se espera. Jovens moradores, nativos digitais, começam a exigir a volta dos porteiros humanos em condomínios de luxo, descobrindo que eficiência não equivale à qualidade de vida. Enquanto isso, nas periferias, onde a tecnologia chega como corte de custos, forçam os trabalhadores a assistirem à erosão de sua profissão sem direito a debate. Essa transição revela nosso paradoxo como sociedade: valorizamos cada vez mais a experiência humana justamente quando criamos mecanismos para eliminá-la. O desafio que se coloca não é como evitar o progresso tecnológico, mas como preservar o capital humano acumulado em décadas de trabalho antes que ele se torne mais uma vítima colateral da nossa obsessão pela eficiência a qualquer custo.

 

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A jornada de autodescoberta de Gisela diante da Dismorfia Corporal e o impacto da busca incessante pela perfeição.
por
KHADIJAH CALIL
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12/05/2025

Por Khadijah Calil

 

Gisela não sabe exatamente quando, mas foi notando pequenos defeitos que começaram a incomodar: alguns quilos a mais aqui e ali. A transformação foi sutil, decidiu iniciar dietas e treinos, o que a princípio era um hábito saudável. Até o momento em que começou a receber elogios sobre as mudanças no seu físico, as quais ela não conseguia perceber diante do espelho, um fenômeno comum entre aqueles que sofrem de Transtorno Dismórfico Corporal. As restrições alimentares passaram a ser jejuns longos, dos quais já a levaram a desmaios repentinos, e treinos incessantes, onde passava todo seu tempo livre, acreditando que essa seria a solução para ver um resultado que lhe agradasse.

Por uma infeliz coincidência, essa luta interna surge em uma realidade de popularização de canetas emagrecedoras. O remédio, indicado para quem precisa do tratamento de diabetes e obesidade, começa a ser vendido de forma irregular, sem receitas, para quem quer emagrecer a qualquer custo. O impulso de Gisela de comprar o medicamento clandestinamente foi impedido pelos preços astronômicos que estava sendo vendido, mas ela mantinha essa meta financeira.

Após seu aniversário de 45 anos, as crises se intensificaram. Ela percebeu que a Internet, talvez pela teoria dos algoritmos, a fazia refletir mais sobre si mesma com o conteúdo que era fornecido.  Ao se deparar com postagens de outras mulheres comentando sobre defeitos na aparência, ela se perguntava se também havia falhas em seu corpo que não notava antes. Gisela começou a repensar eventos da sua vida e questionar tudo ao seu redor, inclusive sua separação do marido, achando que isso poderia ter ocorrido por uma falta de atração física por ela. Seus pensamentos auto sabotadores a levaram a acreditar que uma amiga, que constantemente a convidava para treinar, estaria indiretamente tentando alertá-la sobre seu peso.

Diante disso, a publicitária, que cuidava tão bem da imagem alheia, se refugiava no trabalho, onde tinha uma rotina home-office e não precisava se expor ao olhar do mundo. Contudo, a pressão interna sobre sua aparência tornou-se insustentável e fez com que ela retirasse todos os espelhos de seu quarto. Encarar seu reflexo se tornou uma dor física, e as comparações alimentadas pelas redes sociais intensificaram ainda mais o ciclo de autocrítica. Assim, ela se afastava cada vez mais de sua família, seus amigos e de sua vida.

O transtorno dismórfico corporal (TDC) afeta cerca de 1,7% a 2,4% da população mundial, uma prevalência comparável à de distúrbios como anorexia e transtornos de ansiedade. A doença, considerada um Transtorno Obsessivo- Compulsivo (TOC), pode ser influenciado por fatores genéticos ou ambientais, e faz com que a pessoa sobrevalorize ou imagine certas imperfeições físicas. Gisela é uma das vítimas dessa condição e convive com as limitações de ter sua imagem como o principal pilar de sua vida. 

Em busca da cura

Indignado ao ver sua mãe passar por tudo aquilo, Lucas, de 16 anos, perguntou se ela queria seus olhos emprestados, pois não entendia por que ela não se enxergava como realmente é. Sentindo falta de sua mãe, com todo o isolamento que ela optava para evitar ser vista, ele pediu ajuda a parentes para salvar Gisela desse limbo pessoal. Aos poucos, ela cedeu aos conselhos de sua família, que a incentivava a procurar ajuda psicológica, algo que ela inicialmente resistiu. Falar sobre si mesma — alguém que ela já odiava — parecia um desafio doloroso demais.

As orientações terapêuticas eram focadas na consciência corporal e no autoconhecimento, que amenizavam as crises da dismorfia corporal e reequilibravam aos poucos a vida emocional de Gisela. Sua lição de casa era mostra amor próprio: passou a se cuidar de maneira mais saudável, com o acompanhamento de um nutricionista e de um personal trainer, evitando conteúdos ou lugares que alimentassem sua autodepreciação. Porém, a doença ainda estava ali, quando ela menos esperava as crises ainda apareciam para relembra-la de todo aquele ódio interno. Foi preciso que o psicólogo a encaminhasse ao psiquiatra, onde ela passa atualmente por uma intervenção mais elaborada, com auxílio de medicamentos.

Hoje, Gisela percebe que o problema não está em seu corpo, mas em sua mente. Pintar o cabelo, mudar o estilo, emagrecer e até realizar cirurgias plásticas são apenas tentativas de adaptação ao que já está ali, como veio ao mundo. Mas, para as vítimas de TDC, essas tentativas não são apenas escolhas, são vícios torturantes. São relatos sobre a gravidade da doença e os riscos de um ambiente tóxico que proporciona gatilhos até mesmo inconscientemente, podendo agravar a predisposição a transtornos mentais. 

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Como motoboys brasileiros encaram o trabalho.
por
Rayssa Paulino
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10/04/2025

Por Rayssa Paulino

 

Capacete, celular, a chamada “bag” e um casaco grosso para se proteger do vento cortante são os itens indispensáveis que acompanham Haroldo e outros milhares de motoboys durante suas viagens. Eles se preparam diariamente para sair da própria casa e rodam São Paulo afora, endereçados à residência de outras pessoas. Boa noite dona Maria, seu pedido chegou! E mesmo com os mais variados obstáculos que podem encontrar durante o trajeto, o serviço vale a pena, junto a brisa que bate no rosto, é como uma sensação de liberdade.

Haroldo tem 47 anos e começou a percorrer as ruas da cidade ainda quando era um menino. Trabalhou como office boy, levando ofícios a pé aqui e ali e, de uma forma quase que automática, conheceu muito bem as esquinas de São Paulo. Quando mais velho, substituiu os solados do calçado por uma moto e já percorrendo caminhos mais distantes, tinha como um fiel parceiro o antigo “guia de ruas”, um enorme livro que retrata a planta de toda a metrópole com vias que se interligam através das páginas. Hoje ele reconhece e admite num bom humor que, o avanço da tecnologia e o desenvolvimento de aplicativos de geolocalização se tornou um grande aliado e facilitador para o seu trabalho.

Era por volta de 23h00min quando teve um tempo para compartilhar sua história. Estava reunido com colegas de trabalho em um bairro da Zona Norte e, ali naquele espaço, criaram um ambiente de companheirismo entre eles. O local se tornou um point para os motoboys da região, que se encontram diariamente, acolhem uns aos outros, conversam sobre as experiências e trocam figurinhas, literalmente. A carcaça das caixas e mochilas onde são transportados alimentos e outros conteúdos é repleta de adesivos, um do grupo da ZN, outro de um grupo de Osasco, da comunidade de motoboys Cachorro Louco, mas no final, todos se interligam como integrantes de uma grande família.

A hora marcada para a entrevista foi justamente por ser no período em que estaria trabalhando. Relatou a preferência pelo turno da noite, momento em que a maioria das pessoas retornam do trabalho e se preparam para descansar. Mas não eles. Não na cidade que não dorme. Ao anoitecer, as ruas de São Paulo se transformam, o trânsito que comumente é parado e caótico se torna um ponto bem mais atrativo. Sem o excesso de veículos, a pista fica mais livre, os trajetos que já tem o tempo reduzido encurtam mais ainda e o desgaste do meio de transporte é menor. Os aplicativos de delivery são o fator chave para possibilitar essa flexibilidade de trabalhar com horários alternados.

Poder determinar o próprio horário também foi um fator importante para Gabriel que, quando começou a trabalhar fazendo entregas na plataforma Ifood, tinha 23 anos. No ano de uma devastadora pandemia mundial, enfrentando questões em casa e na faculdade, encontrou no app uma alternativa para solucionar os problemas. Ganhando na época um auxílio financeiro da instituição que estudava, sentiu a necessidade de ajudar mais em casa. Então, pegou sua moto e preencheu os momentos de ociosidade do final de semana, que, dado o momento já não era mais para se distrair da rotina, e começou uma nova jornada de trabalho. Mesmo sendo em dias que, na teoria, são de menores responsabilidades, a preferência era o horário noturno, atraído por uma isca lançada aos consumidores pelo app, as promoções. As determinações de lockdown recomendavam a permanência dentro de casa e, assim, as notificações de pedidos apareciam na tela do telefone com grande frequência.

Apesar da inegável facilitação que o serviço de entregas gerou no período de pandemia, como  ter se tornado uma fonte de renda a mais para diversos brasileiros, se iniciou um fenômeno que muitos trabalhadores não aguardavam, a "uberização". A promessa glamourosa de se tornar o próprio patrão e de ganhos exorbitantes esconde o lado feio do trabalho com as plataformas, direitos básicos do trabalho, como convênio médico e proteção em caso de acidente, se tornam um vislumbre distante da realidade. A precarização do serviço mobilizou motoboys de todo o país na primeira semana de maio deste ano, um ato de revolta contra a plataforma mais famosa de delivery, o Ifood.

Nem todo motoboy participou da paralisação. Haroldo mesmo relatou que preferia evitar a hostilização que acompanharia a dor de cabeça de furar uma greve. Concorda que o repasse financeiro para os prestadores de serviço deve ser maior, mas que a luta deve ser ampliada para todos os aplicativos que se encaixam na mesma classificação. Para ele, a empresa Lalamove é a que pega a maior fatia do que eles ganham e por consequência se torna uma das piores para trabalhar.

Nessa altura da entrevista, seu colega de trabalho Julio se juntou à conversa. Com um bom papo e cartãozinho de visita em mãos, deixou claro como faz a fidelização de seus clientes ano após ano, já que hoje prefere pegar serviços particulares. Explicou ainda que a comunidade de entregadores está sempre unida e se ajudam através de um grupo de confiança no Whatsapp. Quando se adiciona um novo membro ao grupo, você se torna o padrinho e, indiretamente, é responsável por aquela pessoa. Nada ali é bagunçado, mancadas e atitudes erradas não podem passar despercebidas. Mas muito além de mais uma forma para reunir esses trabalhadores, o grupo serve para também repassar serviços que não conseguirão ser realizados pelos próprios

A jornada de trabalho dos motoboys, que estão sempre em movimento pelos quatro cantos da cidade, não é encarada por qualquer um. Mesmo com dificuldades financeiras, no trânsito, de clima e, até mesmo a falta de educação por parte de alguns clientes, parecem não se deixar abater com facilidade. Todo o esforço parece ser recompensado com a sensação de ver a vida andando fora do escritório.
 

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