Por Philipe Mor
A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.
Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.
Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.
Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.
Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.
Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.
Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.
Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.
Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

Por Ana Julia Bertolaccini
A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.
No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA). Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria.
Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora.

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais.
Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria.

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer.
A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de futebol pela televisão são a maneira como ele decide usufruir desses momentos.
Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.
Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado.
Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário.
Por Giulia Fontes
São 5 da manhã e a cozinha de dona Elza já está aquecida. O cheirinho doce de bolo assando se mistura com o café que, em cada gole, traz a promessa do dia seguinte. Em cima da mesa, uma receita que tem o gosto da infância, da avó, da mãe - aquela receita que ela sabe de cor, mas que seu ritual de cozinha não permite que ela a deixe de lado. Como alguém para quem o mundo corporativo jamais foi uma escolha, não por falta de caminhos, mas porque deixar morrer a tradição de sua família seria como renunciar ao próprio nome. Não foi uma escolha impulsiva, nem uma busca por uma renda extra. Para dona Elza, a confeitaria tornou-se a única forma de sustento. O prazer de cozinhar era só a base do que a movia, mas o peso de um legado familiar de afeto, de lembranças que se carregam de geração em geração é algo muito maior, como a lida com o milho.
A história do bolo de fubá começou com a avó, no fogão à lenha de Lupionópolis, no Paraná, um município de menos de 5 mil habitantes. Ela, menina, ajudava a mãe a preparar os pães e bolos que alimentavam a casa e os vizinhos. Desde então, a receita passou de mãos, mas o sabor sempre foi o mesmo que marcou a infância de Elza. Hoje, já adulta, transformou aquele aprendizado em um negócio. No começo, ela vendia apenas para vizinhos, mas com o tempo, a pequena loja foi crescendo. Não uma grande loja, mas um espaço simples, um lugar que nunca chama muita atenção, mas que sempre tem fila na porta. O bolo de fubá, com a goiabada que derrete por dentro, se tornou o grande atrativo. Cada fatia, uma mistura de lembrança e afeto. A loja de Elza não é apenas um ponto de venda. Ela é uma ponte entre o presente e o passado, entre a tradição e a sobrevivência.
Embora seu trabalho seja essencial para o sustento de sua família, a vida de quem depende da confeitaria para viver não é fácil. Dona Elza acorda antes do sol nascer, começa a mistura dos ingredientes, ajeita as formas e faz o forno funcionar, tudo para garantir que o bolo esteja pronto para o começo do dia. A clientela é fiel, mas o custo do trabalho não vem só na medida dos ingredientes. O preço do aluguel, os gastos com fornecedores e a constante preocupação de manter a qualidade, sem perder a identidade que construiu ao longo dos anos, são desafios que ninguém vê.
Segundo dados do IBGE, seis em cada dez profissionais autônomos estão na informalidade. No setor da confeitaria, esse número representa cerca de 46% do mercado, segundo o estudo conduzido pela Zupgo em parceria com a Associação Brasileira de Comércio de Artigos para Festas. Dona Elza faz parte dessa porcentagem — trabalha sem garantias, sem férias, sem direito a descanso. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias.
Na pandemia, quando o mundo parou e a cidade silenciou, dona Elza não teve esse luxo. Fechou a loja, mas não a cozinha. Continuou assando bolos e entregando de porta em porta, com a ajuda de um sobrinho de bicicleta. Os dias pareciam mais longos, e o medo, seja de pegar o vírus, de não vender, ou de faltar leite e fubá, virou ingrediente invisível em cada receita. A farinha subiu, a goiabada sumiu das prateleiras e tudo parecia acabado. Mas o forno não apagou. No improviso das entregas com máscara de pano e potinhos reciclados, ela manteve a tradição funcionando como uma resistência silenciosa, dessas que só se percebe quando tudo ameaça ruir.
E embora o bolo de fubá com goiabada tenha virado símbolo da pequena loja, outros doces também fazem parte desse acervo afetivo: o pão de mel com cobertura de chocolate meio amargo, feito em datas especiais; os biscoitinhos de polvilho, que ela aprendeu com uma vizinha mineira; e o doce de abóbora com coco, enrolado em papel celofane colorido, que só aparece na época de festa junina. Cada receita tem uma história, uma origem que atravessa quintais, comadres e panelas antigas. Dona Elza diz que quando cozinha, ouve vozes da avó dizendo para não abrir o forno antes da hora, da mãe lembrando de peneirar duas vezes o fubá, do pai pedindo o canto do tabuleiro, onde o bolo fica mais crocante.
Foi com esses doces que ela criou os filhos. E é com eles que agora sustenta os netos. A memória do que se come também constrói a memória de quem se é. Quando uma cliente pede o “bolo do costume”, não está pedindo só um sabor, está pedindo a continuidade de um tempo que parece cada vez mais distante. Um tempo em que as receitas passaram de boca em boca, em que o corpo sabia o ponto certo da massa sem precisar de cronômetro. Dona Elza, com sua touca branca e avental florido, é mais do que uma doceira. É guardiã de um saber que mistura sobrevivência, afeto e resistência. E talvez, nesse país onde tudo que é simples vira luxo, o verdadeiro privilégio seja ainda poder sentir o cheiro do bolo antes do café esfriar.
Por Caio Batelli
Na região metropolitana de São Paulo, Artur e Gabriel viram sua vida mudar completamente após uma espera de três anos e dois meses enfrentando processos burocráticos de adoção, olhares tortos e comentários maldosos. O sonho de formar uma família finalmente ganhou forma quando Marlon, um menino de 6 anos. Por trás desse momento de alegria, havia uma história de resistência, dor, coragem e amor incondicional.
Artur nasceu em Botucatu, e Gabriel, na capital de São Paulo. Ambos se conheceram na faculdade, e desde o início, compartilhavam a vontade de adotar uma criança. Sabiam que o processo seria complicado, especialmente por serem um casal homoafetivo em um País onde o preconceito, apesar de muitas conquistas legais, ainda se faz presente em olhares, atitudes e palavras. Mesmo assim, decidiram seguir adiante, confiantes de que o amor que tinham um pelo outro e o desejo de cuidar de uma criança seriam maiores que qualquer obstáculo.
Após alguns anos de relacionamento estável, começaram o processo de habilitação para adoção. Reuniram documentos, participaram das entrevistas, fizeram os cursos exigidos pelo sistema de justiça e aguardaram. Durante esse período, enfrentaram situações marcantes. Ao visitarem um abrigo pela primeira vez, foram recebidos com estranhamento. Uma funcionária do local os observava com desdém, e chegou a dizer, num tom ríspido dizendo que só aceitavam casais tradicionais. Aquela frase cortou como uma faca. Gabriel, com os olhos marejados, apertou forte a mão de Artur e, juntos, saíram do lugar com o coração apertado, mas com mais vontade ainda de provar que tinham, sim, o direito de serem pais.
Também dentro das próprias famílias houve momentos dolorosos. Durante um almoço de domingo, uma tia de Gabriel, acreditando estar apenas cochichando, comentou que criança precisa de uma mãe, e não de dois pais. Comentários assim se repetiram, às vezes com mais sutileza, outras vezes com agressividade. O que os outros não percebiam era que cada frase, cada julgamento, servia apenas como combustível para fortalecer o compromisso que tinham com seu projeto de família.
Até que um dia, depois de mais de dois anos de espera, uma assistente social entrou em contato com uma notícia que mudaria tudo. Havia uma criança disponível para adoção: Marlon, um menino doce, mas retraído, que havia passado por diversas instituições e guardava nos olhos uma mistura de medo e esperança. Ao conhecê-lo, Artur e Gabriel souberam, no mesmo instante, que ele era o filho deles. Nos primeiros encontros, Marlon se mostrava fechado. Falava pouco, evitava contato visual e se retraía com qualquer tentativa de aproximação. Mas Artur e Gabriel sabiam que a confiança não nasce de um dia para o outro. Com paciência e afeto, foram conquistando o menino aos poucos. Passaram a brincar no parque, ler histórias antes de dormir, desenhar juntos. Marlon começou a sorrir. Um dia, com a naturalidade de quem sente segurança, passou a chamá-los de pai Gabi e pai Tu. Foi um dos momentos mais emocionantes da vida do casal. A guarda provisória foi o primeiro passo. Durante essa fase, Marlon ainda frequentava a escola próxima ao abrigo, mas passava os fins de semana e feriados com os pais. A conexão entre os três crescia de forma constante e verdadeira.
Embora o processo legal tenha caminhado sem maiores obstáculos, a sociedade, por outro lado, continuava a impor barreiras. Em uma tarde comum, na escola, uma professora questionou Marlon diante da turma sobre a ausência de uma mãe. A pergunta, feita em tom curioso, deixou o menino sem graça. Ele abaixou os olhos, em silêncio. Em casa, naquela noite, não quis brincar, nem comer. Foi quando Artur e Gabriel perceberam que, além de amar e educar, também precisariam preparar seu filho para enfrentar um mundo que, por vezes, pode ser cruel com o que não entende. A partir daquele dia, conversas delicadas passaram a fazer parte da rotina. Falavam com Marlon sobre os diferentes tipos de família, explicavam que o mais importante era o amor e o cuidado. Reforçavam que algumas pessoas ainda não compreendiam isso, mas que ele nunca estaria sozinho. Prometiam que os três sempre estariam juntos, protegendo uns aos outros. E repetiam, enquanto o colocavam na cama: ter dois pais é uma coisa linda.
Meses depois, veio a oficialização da adoção. No dia da audiência, o juiz os recebeu com um sorriso sincero e anunciou que, a partir daquele momento, Marlon era, legalmente, filho deles embora, no coração, ele já ocupasse esse lugar há muito tempo. O trio se abraçou com força. Foi um choro silencioso, carregado de alívio, felicidade e gratidão. Hoje, Marlon estuda em uma nova escola, onde é respeitado e acolhido. Em casa, tem um quarto colorido, decorado com os próprios desenhos, brinquedos espalhados pelo chão e uma rotina repleta de afeto. Os fins de semana são recheados de passeios no parque e sessões de cinema no sofá. Artur e Gabriel estão sempre por perto, atentos a cada pequeno progresso, celebrando cada conquista do filho.
Com o passar dos meses, a convivência diária fortaleceu ainda mais os laços entre Artur, Gabriel e Marlon, transformando aquela união em algo que transcendia qualquer documento ou biologia. As pequenas rotinas como preparar o café da manhã juntos, inventar brincadeiras no parque ou simplesmente dividir o sofá em tardes de filme criaram um senso profundo de pertencimento. Marlon, antes tímido e desconfiado, passou a demonstrar afeto espontâneo, buscava o colo dos pais ao acordar e fazia desenhos em que se retratava entre os dois, sempre com sorrisos largos. Em certo momento, ele chegou a dizer que sentia como se sempre tivesse sido filho deles, como se tivesse nascido do coração dos dois. Para Artur e Gabriel, essa declaração foi a confirmação de que o vínculo construído com paciência, cuidado e amor incondicional era tão verdadeiro e forte quanto qualquer laço de sangue.
O preconceito, infelizmente, não desapareceu. De vez em quando, ainda precisam lidar com olhares atravessados em consultas médicas, comentários sussurrados em aniversários ou perguntas invasivas de desconhecidos. Mas encontraram na convivência e no amor a força necessária para seguir. Aprenderam a transformar a dor em resistência, e a resistência em ação.
No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal reconheça desde 2010 o direito de casais homoafetivos à adoção, o preconceito segue como uma barreira invisível, porém resistente. A história de Artur, Gabriel e Marlon é apenas uma entre tantas que provam que o amor é maior do que qualquer estrutura tradicional. Ser família não exige moldes fixos, rótulos nem permissões. Ser família é estar presente, cuidar e amar todos os dias, sem exceções.
Por Octávio Alves
São Paulo, a maior metrópole do Brasil, é uma cidade que pulsa 24 horas por dia. O trânsito constante, os arranha-céus que recortam o céu, as buzinas incessantes e as multidões que cruzam as calçadas com pressa compõem o cenário de uma rotina frenética. No meio de tanta gente, paradoxalmente, a solidão também encontra espaço. Para muitos, é apenas mais um dia difícil; para outros, é o início de um processo de reconexão consigo mesmo. Curiosamente, esse reencontro tem acontecido, cada vez mais, por meio dos animais de estimação.
Hoje, os pets deixaram de ser apenas companheiros eventuais ou guardiões do quintal, tornaram-se parte essencial da vida emocional de milhares de pessoas. Em tempos de incerteza e dificuldades, são fonte de apoio, consolo, acolhimento e, acima de tudo, de amor genuíno, essa relação transformadora ficou evidente na história de Márcio Ricardo, dono de um pet shop localizado no bairro da Vila Matilde, na zona leste de São Paulo.
Márcio lembra com carinho de um episódio marcante que aconteceu há cerca de cinco anos, em plena pandemia de COVID-19, quando a cidade estava mergulhada em medo e isolamento. Ele vivenciou o que descreve como uma cena digna de filme. Era um dia como outro qualquer no pet shop, até que um homem , com roupas de açougueiro, um funcionário do açougue da rua, entrou na loja. Nos braços, segurava um gato visivelmente ferido, com as patas machucadas, o corpo magro e os olhos cansados.
Sem hesitar, Márcio e sua equipe interromperam o que estavam fazendo para cuidar do animal. Limparam os ferimentos, aplicaram pomadas cicatrizantes, ofereceram comida e água fresca. Prepararam uma gaiola limpa e acolhedora para que ele pudesse descansar em segurança. Sem saber sua origem, se era um gato perdido ou abandonado , deram a ele um nome simples, carinhoso e provisório, Gato.
Nos dias seguintes, todos notaram que o Gato era diferente, apesar dos traumas físicos, mostrava-se dócil, sociável e receptivo ao carrinho humano e demonstrava sinais claros de que já havia vivido em algum lar, mas, mesmo com tentativas de encontrar um possível tutor de cartazes, postagens em redes sociais, ligações para clínicas da região, ninguém apareceu, nenhum sinal de que alguém o estivesse procurando. A suspeita logo virou certeza: o Gato havia sido abandonado.
Infelizmente, essa não é uma realidade incomum. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2024, estimam que mais de 30 milhões de cães e gatos vivem em situação de abandono ou maus-tratos no Brasil. Muitos, como o Gato, são deixados à própria sorte nas ruas, expostos ao frio, à fome e aos perigos diários de uma cidade como São Paulo.
Comovido, Márcio decidiu acolher o Gato até encontrar um lar responsável. Garantiu vacinação, cuidados veterinários e comida de qualidade. Mas o que era para ser temporário acabou se transformando em algo maior. Com o passar do tempo, o Gato foi ganhando espaço não apenas físico, mas emocional dentro do pet shop.
Ganhou um cantinho só dele nos fundos da loja, com tudo que precisava para viver com dignidade. Circulava livremente entre os corredores, deitava no balcão, recebia carinho de funcionários e clientes e conquistava todos com seu jeito brincalhão e observador.
Ele virou parte da equipe, diz Márcio. Mostra com as fotos antigas do Gato dormindo entre pilhas de papel, se enroscando nas caixas de produtos ou observando curioso o movimento da rua. Tentando morder alguns clientes por brincadeira, se escondendo quando chegava matilha de goldens, praticamente um funcionário.
Mas nem tudo foram flores. Márcio conta que, todas as noites, o Gato ficava sozinho na loja, e, pela manhã, ele sempre o recebia com um miado insistente. Com o tempo, criaram um vínculo , baseado no afeto e na rotina compartilhada, com algumas brincadeiras e xingamentos. Até que, depois de quase três anos, a história do Gato ganhou um novo rumo.
Gabriele Tomé, que na época era funcionária do pet shop, tomou uma decisão que mudaria na loja. Mesmo depois de três anos e nada de alguem querer adotar o Gato, já profundamente apegada ao animal, resolveu adotá-lo. Ela acreditava que, embora bem tratado na loja, o Gato merecia um lar definitivo, onde pudesse viver com ainda mais segurança e conforto.
No início, a adaptação foi difícil, o Gato se mostrou tímido, evitava sair de casa e se escondia com frequência, o medo era visível em seus olhos, mas, com paciência, carinho e tempo, ele foi se abrindo. Começou a explorar o quintal, a dar pequenas voltas pelo bairro e, como todo gato, a se meter em encrencas com outros felinos da região. Sempre voltava para casa, às vezes arranhado, outras vezes cansado, mas sempre com o olhar de quem sabia onde pertencia.
Gabriele conta, entre risos, que depois de alguns meses o Gato praticamente a esqueceu e se apegou mesmo foi à mãe dela, com quem passa boa parte do tempo hoje. Ela diz que ele dorme no colo dela, a acompanha pela casa inteira, e parece entender tudo o que ela diz e Tomé diz que aquele Gato safado já a esqueceu.
A história do Gato é mais do que um simples relato de resgate ou adoção, é uma narrativa que revela o poder dos vínculos inesperados, da empatia e da transformação. Em meio ao concreto frio da cidade, onde tantas vezes o humano se fecha em si mesmo, há espaço para gestos de cuidado e também para segundas chances.
Do balcão do pet shop até uma casa tranquila, o Gato deixou sua marca. Não apenas como um animal que sobreviveu e sim como um exemplo dos papeis dos animais é fundamental hoje em dia que podem dar um conforto para indivíduos onde jamais imaginaria.