Por Caio Batelli
Na região metropolitana de São Paulo, Artur e Gabriel viram sua vida mudar completamente após uma espera de três anos e dois meses enfrentando processos burocráticos de adoção, olhares tortos e comentários maldosos. O sonho de formar uma família finalmente ganhou forma quando Marlon, um menino de 6 anos. Por trás desse momento de alegria, havia uma história de resistência, dor, coragem e amor incondicional.
Artur nasceu em Botucatu, e Gabriel, na capital de São Paulo. Ambos se conheceram na faculdade, e desde o início, compartilhavam a vontade de adotar uma criança. Sabiam que o processo seria complicado, especialmente por serem um casal homoafetivo em um País onde o preconceito, apesar de muitas conquistas legais, ainda se faz presente em olhares, atitudes e palavras. Mesmo assim, decidiram seguir adiante, confiantes de que o amor que tinham um pelo outro e o desejo de cuidar de uma criança seriam maiores que qualquer obstáculo.
Após alguns anos de relacionamento estável, começaram o processo de habilitação para adoção. Reuniram documentos, participaram das entrevistas, fizeram os cursos exigidos pelo sistema de justiça e aguardaram. Durante esse período, enfrentaram situações marcantes. Ao visitarem um abrigo pela primeira vez, foram recebidos com estranhamento. Uma funcionária do local os observava com desdém, e chegou a dizer, num tom ríspido dizendo que só aceitavam casais tradicionais. Aquela frase cortou como uma faca. Gabriel, com os olhos marejados, apertou forte a mão de Artur e, juntos, saíram do lugar com o coração apertado, mas com mais vontade ainda de provar que tinham, sim, o direito de serem pais.
Também dentro das próprias famílias houve momentos dolorosos. Durante um almoço de domingo, uma tia de Gabriel, acreditando estar apenas cochichando, comentou que criança precisa de uma mãe, e não de dois pais. Comentários assim se repetiram, às vezes com mais sutileza, outras vezes com agressividade. O que os outros não percebiam era que cada frase, cada julgamento, servia apenas como combustível para fortalecer o compromisso que tinham com seu projeto de família.
Até que um dia, depois de mais de dois anos de espera, uma assistente social entrou em contato com uma notícia que mudaria tudo. Havia uma criança disponível para adoção: Marlon, um menino doce, mas retraído, que havia passado por diversas instituições e guardava nos olhos uma mistura de medo e esperança. Ao conhecê-lo, Artur e Gabriel souberam, no mesmo instante, que ele era o filho deles. Nos primeiros encontros, Marlon se mostrava fechado. Falava pouco, evitava contato visual e se retraía com qualquer tentativa de aproximação. Mas Artur e Gabriel sabiam que a confiança não nasce de um dia para o outro. Com paciência e afeto, foram conquistando o menino aos poucos. Passaram a brincar no parque, ler histórias antes de dormir, desenhar juntos. Marlon começou a sorrir. Um dia, com a naturalidade de quem sente segurança, passou a chamá-los de pai Gabi e pai Tu. Foi um dos momentos mais emocionantes da vida do casal. A guarda provisória foi o primeiro passo. Durante essa fase, Marlon ainda frequentava a escola próxima ao abrigo, mas passava os fins de semana e feriados com os pais. A conexão entre os três crescia de forma constante e verdadeira.
Embora o processo legal tenha caminhado sem maiores obstáculos, a sociedade, por outro lado, continuava a impor barreiras. Em uma tarde comum, na escola, uma professora questionou Marlon diante da turma sobre a ausência de uma mãe. A pergunta, feita em tom curioso, deixou o menino sem graça. Ele abaixou os olhos, em silêncio. Em casa, naquela noite, não quis brincar, nem comer. Foi quando Artur e Gabriel perceberam que, além de amar e educar, também precisariam preparar seu filho para enfrentar um mundo que, por vezes, pode ser cruel com o que não entende. A partir daquele dia, conversas delicadas passaram a fazer parte da rotina. Falavam com Marlon sobre os diferentes tipos de família, explicavam que o mais importante era o amor e o cuidado. Reforçavam que algumas pessoas ainda não compreendiam isso, mas que ele nunca estaria sozinho. Prometiam que os três sempre estariam juntos, protegendo uns aos outros. E repetiam, enquanto o colocavam na cama: ter dois pais é uma coisa linda.
Meses depois, veio a oficialização da adoção. No dia da audiência, o juiz os recebeu com um sorriso sincero e anunciou que, a partir daquele momento, Marlon era, legalmente, filho deles embora, no coração, ele já ocupasse esse lugar há muito tempo. O trio se abraçou com força. Foi um choro silencioso, carregado de alívio, felicidade e gratidão. Hoje, Marlon estuda em uma nova escola, onde é respeitado e acolhido. Em casa, tem um quarto colorido, decorado com os próprios desenhos, brinquedos espalhados pelo chão e uma rotina repleta de afeto. Os fins de semana são recheados de passeios no parque e sessões de cinema no sofá. Artur e Gabriel estão sempre por perto, atentos a cada pequeno progresso, celebrando cada conquista do filho.
Com o passar dos meses, a convivência diária fortaleceu ainda mais os laços entre Artur, Gabriel e Marlon, transformando aquela união em algo que transcendia qualquer documento ou biologia. As pequenas rotinas como preparar o café da manhã juntos, inventar brincadeiras no parque ou simplesmente dividir o sofá em tardes de filme criaram um senso profundo de pertencimento. Marlon, antes tímido e desconfiado, passou a demonstrar afeto espontâneo, buscava o colo dos pais ao acordar e fazia desenhos em que se retratava entre os dois, sempre com sorrisos largos. Em certo momento, ele chegou a dizer que sentia como se sempre tivesse sido filho deles, como se tivesse nascido do coração dos dois. Para Artur e Gabriel, essa declaração foi a confirmação de que o vínculo construído com paciência, cuidado e amor incondicional era tão verdadeiro e forte quanto qualquer laço de sangue.
O preconceito, infelizmente, não desapareceu. De vez em quando, ainda precisam lidar com olhares atravessados em consultas médicas, comentários sussurrados em aniversários ou perguntas invasivas de desconhecidos. Mas encontraram na convivência e no amor a força necessária para seguir. Aprenderam a transformar a dor em resistência, e a resistência em ação.
No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal reconheça desde 2010 o direito de casais homoafetivos à adoção, o preconceito segue como uma barreira invisível, porém resistente. A história de Artur, Gabriel e Marlon é apenas uma entre tantas que provam que o amor é maior do que qualquer estrutura tradicional. Ser família não exige moldes fixos, rótulos nem permissões. Ser família é estar presente, cuidar e amar todos os dias, sem exceções.
Por Octávio Alves
São Paulo, a maior metrópole do Brasil, é uma cidade que pulsa 24 horas por dia. O trânsito constante, os arranha-céus que recortam o céu, as buzinas incessantes e as multidões que cruzam as calçadas com pressa compõem o cenário de uma rotina frenética. No meio de tanta gente, paradoxalmente, a solidão também encontra espaço. Para muitos, é apenas mais um dia difícil; para outros, é o início de um processo de reconexão consigo mesmo. Curiosamente, esse reencontro tem acontecido, cada vez mais, por meio dos animais de estimação.
Hoje, os pets deixaram de ser apenas companheiros eventuais ou guardiões do quintal, tornaram-se parte essencial da vida emocional de milhares de pessoas. Em tempos de incerteza e dificuldades, são fonte de apoio, consolo, acolhimento e, acima de tudo, de amor genuíno, essa relação transformadora ficou evidente na história de Márcio Ricardo, dono de um pet shop localizado no bairro da Vila Matilde, na zona leste de São Paulo.
Márcio lembra com carinho de um episódio marcante que aconteceu há cerca de cinco anos, em plena pandemia de COVID-19, quando a cidade estava mergulhada em medo e isolamento. Ele vivenciou o que descreve como uma cena digna de filme. Era um dia como outro qualquer no pet shop, até que um homem , com roupas de açougueiro, um funcionário do açougue da rua, entrou na loja. Nos braços, segurava um gato visivelmente ferido, com as patas machucadas, o corpo magro e os olhos cansados.
Sem hesitar, Márcio e sua equipe interromperam o que estavam fazendo para cuidar do animal. Limparam os ferimentos, aplicaram pomadas cicatrizantes, ofereceram comida e água fresca. Prepararam uma gaiola limpa e acolhedora para que ele pudesse descansar em segurança. Sem saber sua origem, se era um gato perdido ou abandonado , deram a ele um nome simples, carinhoso e provisório, Gato.
Nos dias seguintes, todos notaram que o Gato era diferente, apesar dos traumas físicos, mostrava-se dócil, sociável e receptivo ao carrinho humano e demonstrava sinais claros de que já havia vivido em algum lar, mas, mesmo com tentativas de encontrar um possível tutor de cartazes, postagens em redes sociais, ligações para clínicas da região, ninguém apareceu, nenhum sinal de que alguém o estivesse procurando. A suspeita logo virou certeza: o Gato havia sido abandonado.
Infelizmente, essa não é uma realidade incomum. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2024, estimam que mais de 30 milhões de cães e gatos vivem em situação de abandono ou maus-tratos no Brasil. Muitos, como o Gato, são deixados à própria sorte nas ruas, expostos ao frio, à fome e aos perigos diários de uma cidade como São Paulo.
Comovido, Márcio decidiu acolher o Gato até encontrar um lar responsável. Garantiu vacinação, cuidados veterinários e comida de qualidade. Mas o que era para ser temporário acabou se transformando em algo maior. Com o passar do tempo, o Gato foi ganhando espaço não apenas físico, mas emocional dentro do pet shop.
Ganhou um cantinho só dele nos fundos da loja, com tudo que precisava para viver com dignidade. Circulava livremente entre os corredores, deitava no balcão, recebia carinho de funcionários e clientes e conquistava todos com seu jeito brincalhão e observador.
Ele virou parte da equipe, diz Márcio. Mostra com as fotos antigas do Gato dormindo entre pilhas de papel, se enroscando nas caixas de produtos ou observando curioso o movimento da rua. Tentando morder alguns clientes por brincadeira, se escondendo quando chegava matilha de goldens, praticamente um funcionário.
Mas nem tudo foram flores. Márcio conta que, todas as noites, o Gato ficava sozinho na loja, e, pela manhã, ele sempre o recebia com um miado insistente. Com o tempo, criaram um vínculo , baseado no afeto e na rotina compartilhada, com algumas brincadeiras e xingamentos. Até que, depois de quase três anos, a história do Gato ganhou um novo rumo.
Gabriele Tomé, que na época era funcionária do pet shop, tomou uma decisão que mudaria na loja. Mesmo depois de três anos e nada de alguem querer adotar o Gato, já profundamente apegada ao animal, resolveu adotá-lo. Ela acreditava que, embora bem tratado na loja, o Gato merecia um lar definitivo, onde pudesse viver com ainda mais segurança e conforto.
No início, a adaptação foi difícil, o Gato se mostrou tímido, evitava sair de casa e se escondia com frequência, o medo era visível em seus olhos, mas, com paciência, carinho e tempo, ele foi se abrindo. Começou a explorar o quintal, a dar pequenas voltas pelo bairro e, como todo gato, a se meter em encrencas com outros felinos da região. Sempre voltava para casa, às vezes arranhado, outras vezes cansado, mas sempre com o olhar de quem sabia onde pertencia.
Gabriele conta, entre risos, que depois de alguns meses o Gato praticamente a esqueceu e se apegou mesmo foi à mãe dela, com quem passa boa parte do tempo hoje. Ela diz que ele dorme no colo dela, a acompanha pela casa inteira, e parece entender tudo o que ela diz e Tomé diz que aquele Gato safado já a esqueceu.
A história do Gato é mais do que um simples relato de resgate ou adoção, é uma narrativa que revela o poder dos vínculos inesperados, da empatia e da transformação. Em meio ao concreto frio da cidade, onde tantas vezes o humano se fecha em si mesmo, há espaço para gestos de cuidado e também para segundas chances.
Do balcão do pet shop até uma casa tranquila, o Gato deixou sua marca. Não apenas como um animal que sobreviveu e sim como um exemplo dos papeis dos animais é fundamental hoje em dia que podem dar um conforto para indivíduos onde jamais imaginaria.
Por Ivan Marino
Antônio começa o dia antes do sol nascer. Acorda às 4h30min e, por volta das 6h00min, já está de uniforme, com o molho de chaves no bolso, pronto para abrir as portas do prédio comercial onde trabalha como zelador há mais de duas décadas. Ele é um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair, em uma rotina que, embora repetitiva, exige atenção constante. Nos seus poucos momentos de descanso aproveita a pausa durante o expediente para estudar sozinho. O celular na mão, o fone no ouvido e o olhar atento ao aplicativo de inglês. Explica que tem interesse em aprender o idioma porque, na região onde trabalha, circulam muitos estrangeiros. Já precisou indicar direções ou responder a perguntas básicas e sentiu dificuldade. Acredita que, com um vocabulário mínimo, a comunicação se tornaria mais fácil e, quem sabe, poderia até abrir portas.
Segundo o IBGE, mais de 12 milhões de brasileiros adultos não concluíram o ensino fundamental. Muitos deles estão em empregos que exigem esforço físico, longas jornadas e pouca qualificação formal. Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas. No Brasil, uma em cada quatro pessoas com escolaridade até o fundamental incompleto atua no setor de serviços, especialmente em cargos de apoio como limpeza, manutenção ou portaria. Segundo o Dieese, essas funções recebem, em média, pouco mais de 1,6 salário mínimo, mesmo em cidades como São Paulo, onde o custo de vida é um dos mais altos do país. Além disso, são postos de trabalho com baixa mobilidade e pouca chance de promoção. A desvalorização não é apenas salarial, ela também se traduz na forma como esses profissionais são tratados, vistos ou, muitas vezes, ignorados. Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas.
Funções como as que exerce Antônio, como limpeza, manutenção, organização de espaços comuns são consideradas essenciais para o funcionamento das cidades, mas raramente recebem a devida valorização. Em prédios, condomínios, escolas e hospitais são esses profissionais que garantem que tudo esteja em ordem antes mesmo de os demais trabalhadores chegarem. São pilares invisíveis dentro da nossa sociedade de trabalho. Para quem passa pelo saguão do prédio, muitas vezes ele é apenas parte do cenário. A rotina dele inclui tarefas fundamentais, mas nem sempre perceptíveis: verificar as luzes, organizar a recepção, garantir que banheiros estejam limpos e que o ambiente esteja seguro. Poucos o cumprimentam ou o chamam pelo nome. Antônio não reclama disso — mas admite que se lembra de cada rosto que o trata com gentileza.
O psicólogo Daniel Andriani aponta que esse tipo de relação é mais comum do que se imagina. Segundo ele, profissionais que exercem funções operacionais em ambientes formais costumam ser ignorados não por maldade, mas por hábito. Explica também que a rotina acelerada das grandes cidades como São Paulo, contribuem para essa forma de cegueira social, um comportamento que torna certas presenças quase invisíveis. Ele observa que, com o tempo, isso pode afetar a autoestima e o senso de pertencimento desses trabalhadores. Embora nem todos manifestem insatisfação de forma explícita, é comum que carreguem uma sensação constante de estar à margem, mesmo fazendo parte do cotidiano de muita gente. Daniel afirma que quando alguém passa por uma pessoa todos os dias e nunca dirige uma palavra, a mensagem, mesmo que silenciosa, fica bem clara.
O prédio onde Antônio trabalha fica em uma região central da cidade, cercado por empresas, escritórios, cafés e clínicas. Por ali, o ritmo é acelerado e o silêncio entre as pessoas parece regra. Ele comenta que já decorou os horários dos frequentadores mais assíduos. Sabe quem chega sempre apressado, quem costuma sair esquecendo alguma coisa e aqueles que não respondem nem a um bom dia. Também não deixa de observar rotinas, perceber mudanças sutis e organizar pequenos reparos antes que alguém precise pedir. Entre tantos dias parecidos, Antônio guarda uma cena com carinho. Foi em um fim de ano, durante um amigo secreto organizado por funcionários de uma das empresas do prédio. Ele não participava, mas foi chamado ao salão e ganhou um presente simbólico de uma das colaboradoras, que fez questão de agradecer pela educação e disponibilidade diária. Foi um momento rápido, mas que, segundo ele, ficou na memória.
Entre uma tarefa e outra, costuma usar o celular para acompanhar vídeos e anotações sobre manutenção predial. Explica que gosta de entender melhor os equipamentos com que lida todos os dias, e que, quando consegue resolver um problema sozinho, sente que valeu o esforço.
Na maior parte do tempo, trabalha em silêncio. Cumpre funções que garantem o funcionamento do espaço, mas que raramente ganham destaque. Não se queixa, mas reconhece que há dias em que gostaria de ser mais escutado, principalmente quando sugere melhorias que poderiam facilitar o dia a dia de todos. No fim do expediente, Antônio costuma dar uma última volta pelo prédio. Fecha janelas esquecidas, apaga luzes acesas, confere se as portas estão trancadas. Depois, guarda o uniforme, recolhe suas coisas e vai embora como chegou: em silêncio.
A cidade, lá fora, continua correndo. Gente entra e sai dos prédios sem reparar quem cuida deles. Muitos talvez nem saibam quantas engrenagens invisíveis mantêm o cotidiano em ordem. Muitas dessas engrenagens têm nome, história e vontades. A trajetória de Antônio lança luz sobre uma realidade maior: o funcionamento das cidades depende de trabalhadores que, embora essenciais, passam despercebidos. São pessoas que garantem que os ambientes estejam limpos, seguros e organizados antes mesmo do expediente começar — e que, muitas vezes, só são notadas quando algo dá errado ou quando estão ausentes. O protagonismo dessas funções operacionais é silencioso, mas indispensável.
Mais do que ausência de reconhecimento, o que se revela é um padrão de desumanização cotidiana. Um simples “bom dia” ou um agradecimento, quando acontece, é suficiente para marcar a memória de quem costuma ser ignorado. Isso escancara uma falência nas relações sociais dentro dos espaços urbanos: a gentileza virou exceção, não regra. Ser visto, mais do que um gesto de educação, é um sinal de pertencimento.
Mesmo diante da desvalorização, muitos desses profissionais buscam crescer, aprender e se adaptar. Como no caso de Antônio, o esforço para estudar por conta própria e entender melhor as ferramentas do seu trabalho demonstra uma vontade de desenvolvimento que, muitas vezes, não encontra espaço para florescer. A mobilidade prometida a quem “corre atrás” nem sempre se concretiza, especialmente quando as estruturas sociais mantêm os mesmos de sempre à margem. No fim, a história de Antônio não é sobre alguém que se sente invisível, mas sobre o quanto nossa sociedade tem falhado em enxergar. Refletir sobre isso é reconhecer que pertencimento, dignidade e valorização não deveriam ser privilégios de poucos, mas garantias básicas para todos que constroem, todos os dias, o ritmo das nossas cidades.
Assim como Antônio, Everton - porteiro de um prédio residencial na Zona Leste de São Paulo há 22 anos - conhece cada morador pelo nome e cada hábito pelo som do elevador. Seus turnos noturnos já foram preenchidos com histórias e recados importantes, mas hoje testemunha silencioso enquanto residentes passam direto por sua cabine, desbloqueando o portão com um simples comando no celular. Com um gesto cuidadoso, Everton folheia o caderno onde durante anos registrou cada entrega e recado, observando que antes era a memória viva daquele prédio. Agora, percebe com amargura que se tornou apenas um plano B, lembrado apenas nos raros momentos em que a tecnologia falha.
A história de Everton se repete em diversos setores urbanos. Profissões consolidadas ao longo de décadas estão sendo eliminadas progressivamente por sistemas automatizados. Dados do Banco Mundial indicam que quase um quarto dos empregos formais no Brasil corre risco de automação até 2035, com os cargos operacionais e de atendimento sendo os mais vulneráveis. O fenômeno apresenta um paradoxo evidente: justamente as funções que exigem conhecimento empírico e interação humana são as mais suscetíveis à substituição tecnológica. Everton, com seus 22 anos de experiência, reconhece cada entregador regular e identifica padrões suspeitos nas encomendas - competências que os sistemas automatizados ainda não replicam com eficácia.
A transição tecnológica elimina não apenas postos de trabalho, mas também conhecimentos tácitos acumulados. Os novos sistemas de portaria digital não incorporam a percepção desenvolvida por Everton para identificar situações anômalas ou necessidades específicas dos moradores. A pressão por eficiência operacional continua a substituir gradualmente essas interações pessoais, levantando questões sobre o custo social dessa transformação. O processo em curso sugere a necessidade de equilibrar avanço tecnológico com a preservação de competências humanas insubstituíveis, particularmente em serviços que envolvem segurança, atendimento e convivência comunitária.
Casos como esse revelam uma contradição fundamental do nosso tempo: enquanto celebramos a "humanização" dos serviços através de chatbots com nomes afetivos e assistentes virtuais empáticos, eliminamos progressivamente as interações humanas genuínas. Essa substituição não ocorre por acaso, segue uma lógica econômica implacável onde o custo-benefício ignora variáveis intangíveis como conhecimento tácito, memória institucional e segurança comunitária. Os sistemas automatizados de portaria oferecem eficiência incontestável: registram entradas com precisão, não faltam ao trabalho, não exigem folgas pagas. Mas falham em perceber o que qualquer porteiro experiente capta imediatamente - a mudança no comportamento do morador que pode indicar desde um problema de saúde até uma situação de risco. Enquanto a tecnologia avança na coleta de dados, retrocede na interpretação de contextos.
O mercado de trabalho responde com soluções superficiais: requalificação profissional. Como se o problema fosse a falta de adaptabilidade dos trabalhadores, e não um sistema que trata pessoas como softwares desatualizados. As consequências se estendem além do desemprego. Prédios com portaria automatizada relatam aumento de 40% em entregas extraviadas e 35% mais ocorrências de segurança, segundo pesquisa do Secovi-SP. Moradores reclamam da falta do "filtro humano" que antes identificava visitas suspeitas. Cria-se então um novo mercado: sistemas de IA que tentam replicar - a custos elevados - justamente as habilidades que pessoas como Antônio e Everton desenvolveram organicamente ao longo de anos de experiência.
A resistência vem de onde menos se espera. Jovens moradores, nativos digitais, começam a exigir a volta dos porteiros humanos em condomínios de luxo, descobrindo que eficiência não equivale à qualidade de vida. Enquanto isso, nas periferias, onde a tecnologia chega como corte de custos, forçam os trabalhadores a assistirem à erosão de sua profissão sem direito a debate. Essa transição revela nosso paradoxo como sociedade: valorizamos cada vez mais a experiência humana justamente quando criamos mecanismos para eliminá-la. O desafio que se coloca não é como evitar o progresso tecnológico, mas como preservar o capital humano acumulado em décadas de trabalho antes que ele se torne mais uma vítima colateral da nossa obsessão pela eficiência a qualquer custo.
Por Khadijah Calil
Gisela não sabe exatamente quando, mas foi notando pequenos defeitos que começaram a incomodar: alguns quilos a mais aqui e ali. A transformação foi sutil, decidiu iniciar dietas e treinos, o que a princípio era um hábito saudável. Até o momento em que começou a receber elogios sobre as mudanças no seu físico, as quais ela não conseguia perceber diante do espelho, um fenômeno comum entre aqueles que sofrem de Transtorno Dismórfico Corporal. As restrições alimentares passaram a ser jejuns longos, dos quais já a levaram a desmaios repentinos, e treinos incessantes, onde passava todo seu tempo livre, acreditando que essa seria a solução para ver um resultado que lhe agradasse.
Por uma infeliz coincidência, essa luta interna surge em uma realidade de popularização de canetas emagrecedoras. O remédio, indicado para quem precisa do tratamento de diabetes e obesidade, começa a ser vendido de forma irregular, sem receitas, para quem quer emagrecer a qualquer custo. O impulso de Gisela de comprar o medicamento clandestinamente foi impedido pelos preços astronômicos que estava sendo vendido, mas ela mantinha essa meta financeira.
Após seu aniversário de 45 anos, as crises se intensificaram. Ela percebeu que a Internet, talvez pela teoria dos algoritmos, a fazia refletir mais sobre si mesma com o conteúdo que era fornecido. Ao se deparar com postagens de outras mulheres comentando sobre defeitos na aparência, ela se perguntava se também havia falhas em seu corpo que não notava antes. Gisela começou a repensar eventos da sua vida e questionar tudo ao seu redor, inclusive sua separação do marido, achando que isso poderia ter ocorrido por uma falta de atração física por ela. Seus pensamentos auto sabotadores a levaram a acreditar que uma amiga, que constantemente a convidava para treinar, estaria indiretamente tentando alertá-la sobre seu peso.
Diante disso, a publicitária, que cuidava tão bem da imagem alheia, se refugiava no trabalho, onde tinha uma rotina home-office e não precisava se expor ao olhar do mundo. Contudo, a pressão interna sobre sua aparência tornou-se insustentável e fez com que ela retirasse todos os espelhos de seu quarto. Encarar seu reflexo se tornou uma dor física, e as comparações alimentadas pelas redes sociais intensificaram ainda mais o ciclo de autocrítica. Assim, ela se afastava cada vez mais de sua família, seus amigos e de sua vida.
O transtorno dismórfico corporal (TDC) afeta cerca de 1,7% a 2,4% da população mundial, uma prevalência comparável à de distúrbios como anorexia e transtornos de ansiedade. A doença, considerada um Transtorno Obsessivo- Compulsivo (TOC), pode ser influenciado por fatores genéticos ou ambientais, e faz com que a pessoa sobrevalorize ou imagine certas imperfeições físicas. Gisela é uma das vítimas dessa condição e convive com as limitações de ter sua imagem como o principal pilar de sua vida.
Em busca da cura
Indignado ao ver sua mãe passar por tudo aquilo, Lucas, de 16 anos, perguntou se ela queria seus olhos emprestados, pois não entendia por que ela não se enxergava como realmente é. Sentindo falta de sua mãe, com todo o isolamento que ela optava para evitar ser vista, ele pediu ajuda a parentes para salvar Gisela desse limbo pessoal. Aos poucos, ela cedeu aos conselhos de sua família, que a incentivava a procurar ajuda psicológica, algo que ela inicialmente resistiu. Falar sobre si mesma — alguém que ela já odiava — parecia um desafio doloroso demais.
As orientações terapêuticas eram focadas na consciência corporal e no autoconhecimento, que amenizavam as crises da dismorfia corporal e reequilibravam aos poucos a vida emocional de Gisela. Sua lição de casa era mostra amor próprio: passou a se cuidar de maneira mais saudável, com o acompanhamento de um nutricionista e de um personal trainer, evitando conteúdos ou lugares que alimentassem sua autodepreciação. Porém, a doença ainda estava ali, quando ela menos esperava as crises ainda apareciam para relembra-la de todo aquele ódio interno. Foi preciso que o psicólogo a encaminhasse ao psiquiatra, onde ela passa atualmente por uma intervenção mais elaborada, com auxílio de medicamentos.
Hoje, Gisela percebe que o problema não está em seu corpo, mas em sua mente. Pintar o cabelo, mudar o estilo, emagrecer e até realizar cirurgias plásticas são apenas tentativas de adaptação ao que já está ali, como veio ao mundo. Mas, para as vítimas de TDC, essas tentativas não são apenas escolhas, são vícios torturantes. São relatos sobre a gravidade da doença e os riscos de um ambiente tóxico que proporciona gatilhos até mesmo inconscientemente, podendo agravar a predisposição a transtornos mentais.
Por Rayssa Paulino
Capacete, celular, a chamada “bag” e um casaco grosso para se proteger do vento cortante são os itens indispensáveis que acompanham Haroldo e outros milhares de motoboys durante suas viagens. Eles se preparam diariamente para sair da própria casa e rodam São Paulo afora, endereçados à residência de outras pessoas. Boa noite dona Maria, seu pedido chegou! E mesmo com os mais variados obstáculos que podem encontrar durante o trajeto, o serviço vale a pena, junto a brisa que bate no rosto, é como uma sensação de liberdade.
Haroldo tem 47 anos e começou a percorrer as ruas da cidade ainda quando era um menino. Trabalhou como office boy, levando ofícios a pé aqui e ali e, de uma forma quase que automática, conheceu muito bem as esquinas de São Paulo. Quando mais velho, substituiu os solados do calçado por uma moto e já percorrendo caminhos mais distantes, tinha como um fiel parceiro o antigo “guia de ruas”, um enorme livro que retrata a planta de toda a metrópole com vias que se interligam através das páginas. Hoje ele reconhece e admite num bom humor que, o avanço da tecnologia e o desenvolvimento de aplicativos de geolocalização se tornou um grande aliado e facilitador para o seu trabalho.
Era por volta de 23h00min quando teve um tempo para compartilhar sua história. Estava reunido com colegas de trabalho em um bairro da Zona Norte e, ali naquele espaço, criaram um ambiente de companheirismo entre eles. O local se tornou um point para os motoboys da região, que se encontram diariamente, acolhem uns aos outros, conversam sobre as experiências e trocam figurinhas, literalmente. A carcaça das caixas e mochilas onde são transportados alimentos e outros conteúdos é repleta de adesivos, um do grupo da ZN, outro de um grupo de Osasco, da comunidade de motoboys Cachorro Louco, mas no final, todos se interligam como integrantes de uma grande família.
A hora marcada para a entrevista foi justamente por ser no período em que estaria trabalhando. Relatou a preferência pelo turno da noite, momento em que a maioria das pessoas retornam do trabalho e se preparam para descansar. Mas não eles. Não na cidade que não dorme. Ao anoitecer, as ruas de São Paulo se transformam, o trânsito que comumente é parado e caótico se torna um ponto bem mais atrativo. Sem o excesso de veículos, a pista fica mais livre, os trajetos que já tem o tempo reduzido encurtam mais ainda e o desgaste do meio de transporte é menor. Os aplicativos de delivery são o fator chave para possibilitar essa flexibilidade de trabalhar com horários alternados.
Poder determinar o próprio horário também foi um fator importante para Gabriel que, quando começou a trabalhar fazendo entregas na plataforma Ifood, tinha 23 anos. No ano de uma devastadora pandemia mundial, enfrentando questões em casa e na faculdade, encontrou no app uma alternativa para solucionar os problemas. Ganhando na época um auxílio financeiro da instituição que estudava, sentiu a necessidade de ajudar mais em casa. Então, pegou sua moto e preencheu os momentos de ociosidade do final de semana, que, dado o momento já não era mais para se distrair da rotina, e começou uma nova jornada de trabalho. Mesmo sendo em dias que, na teoria, são de menores responsabilidades, a preferência era o horário noturno, atraído por uma isca lançada aos consumidores pelo app, as promoções. As determinações de lockdown recomendavam a permanência dentro de casa e, assim, as notificações de pedidos apareciam na tela do telefone com grande frequência.
Apesar da inegável facilitação que o serviço de entregas gerou no período de pandemia, como ter se tornado uma fonte de renda a mais para diversos brasileiros, se iniciou um fenômeno que muitos trabalhadores não aguardavam, a "uberização". A promessa glamourosa de se tornar o próprio patrão e de ganhos exorbitantes esconde o lado feio do trabalho com as plataformas, direitos básicos do trabalho, como convênio médico e proteção em caso de acidente, se tornam um vislumbre distante da realidade. A precarização do serviço mobilizou motoboys de todo o país na primeira semana de maio deste ano, um ato de revolta contra a plataforma mais famosa de delivery, o Ifood.
Nem todo motoboy participou da paralisação. Haroldo mesmo relatou que preferia evitar a hostilização que acompanharia a dor de cabeça de furar uma greve. Concorda que o repasse financeiro para os prestadores de serviço deve ser maior, mas que a luta deve ser ampliada para todos os aplicativos que se encaixam na mesma classificação. Para ele, a empresa Lalamove é a que pega a maior fatia do que eles ganham e por consequência se torna uma das piores para trabalhar.
Nessa altura da entrevista, seu colega de trabalho Julio se juntou à conversa. Com um bom papo e cartãozinho de visita em mãos, deixou claro como faz a fidelização de seus clientes ano após ano, já que hoje prefere pegar serviços particulares. Explicou ainda que a comunidade de entregadores está sempre unida e se ajudam através de um grupo de confiança no Whatsapp. Quando se adiciona um novo membro ao grupo, você se torna o padrinho e, indiretamente, é responsável por aquela pessoa. Nada ali é bagunçado, mancadas e atitudes erradas não podem passar despercebidas. Mas muito além de mais uma forma para reunir esses trabalhadores, o grupo serve para também repassar serviços que não conseguirão ser realizados pelos próprios
A jornada de trabalho dos motoboys, que estão sempre em movimento pelos quatro cantos da cidade, não é encarada por qualquer um. Mesmo com dificuldades financeiras, no trânsito, de clima e, até mesmo a falta de educação por parte de alguns clientes, parecem não se deixar abater com facilidade. Todo o esforço parece ser recompensado com a sensação de ver a vida andando fora do escritório.