Por Daniel Santana Delfino
O sol da tarde, um disco incandescente no céu, lançava raios de fogo sobre a areia da praia, mas o vento fresco do mar trazia um alívio para o calor escaldante. Era um dia tranquilo, com o mar calmo e a brisa suave acariciando os rostos dos poucos banhistas que se aventuravam nas areias. Era nesse cenário que a figura imponente de José, um senhor de 87 anos, pairava como um farol de história e resiliência.
José Antônio da Silva, ou "Seu Zé", como era carinhosamente chamado, era um homem de poucas palavras, mas de olhar penetrante que carregava o peso de uma vida rica em experiências. Seus cabelos grisalhos, quase brancos, emolduravam um rosto marcado pelo tempo, mas ainda forte e cheio de vida. Em seu peito, reluzia uma pequena medalha, um lembrete silencioso de um passado que o assombrava e o enchia de orgulho ao mesmo tempo: a Segunda Guerra Mundial.
Seu Zé nasceu e cresceu em uma pequena vila conhecida por amigos como "Vale do Sol" no interior de Goiás, onde a vida era simples e a natureza exuberante. Ele aprendeu a pescar com seu pai, a cuidar da horta com sua mãe e a brincar com os amigos nas margens do rio que cortava a vila. Era um menino travesso e aventureiro, que adorava explorar as matas e os campos, sempre em busca de novas descobertas. A vida na vila era pacata, mas Seu Zé sonhava em conhecer o mundo, em ver o mar de perto e em ter novas experiências. Quando completou 18 anos, decidiu se alistar no exército, movido pela promessa de uma vida melhor e pela vontade de servir à pátria.
A decisão foi tomada com um misto de emoções. A alegria de finalmente realizar seu sonho de conhecer o mundo se misturava com a tristeza de deixar para trás a vida simples e familiar que sempre conheceu. A ansiedade e a insegurança de enfrentar o desconhecido o acompanhavam, mas a coragem e a determinação de servir à sua nação o impulsionavam para frente. Ele se despediu da família e dos amigos com a promessa de voltar para casa, mas o destino tinha outros planos para ele.
A Segunda Guerra Mundial eclodiu e Seu Zé foi enviado para o front, onde enfrentou situações extremas e viu a morte de perto. A guerra foi um período de grande sofrimento e privações. Ele passou fome, frio e medo. Teve que lutar em condições adversas, em meio a explosões, tiros e a constante ameaça da morte que o marcou profundamente, deixando cicatrizes físicas e emocionais. Ele viu amigos morrerem, sofreu com a perda de inocentes e teve que lidar com a violência e a crueldade do conflito.
Era uma noite fria e escura, a neve caía incessante, e Seu Zé e seus companheiros estavam escondidos em uma trincheira, esperando o ataque inimigo. De repente, o céu se iluminou com explosões e tiros, a terra tremia sob seus pés. O coração batendo forte no peito, se levantou para defender sua posição, mas uma bala o atingiu no braço. A dor foi intensa, mas ele não podia se dar ao luxo de se entregar à dor. ele precisava continuar lutando. Com a ajuda de um amigo, ele conseguiu se arrastar para um local seguro, onde recebeu os primeiros socorros. A bala foi retirada, mas a marca que ela deixou em seu braço, e em sua alma, o acompanhou para sempre.
Mas a guerra também lhe proporcionou momentos de felicidade, como a noite em que ele e seus companheiros, após uma batalha árdua, conseguiram capturar um depósito de alimentos do inimigo. A fome era constante, e a alegria de encontrar comida, mesmo que simples, era imensa. Eles dividiram os alimentos entre todos, e a sensação de união e camaradagem naquele momento, em meio ao caos da guerra, foi um bálsamo para suas almas. No entanto, a tristeza também o acompanhava. A perda de um amigo, um jovem que havia chegado ao front cheio de sonhos, o afligia profundamente. Ele se lembrava da última conversa com ele, da esperança que ele carregava no olhar, e da dor que sentiu ao vê-lo sucumbir aos ferimentos. A guerra, além de tirar vidas, também roubava sonhos e esperanças.
Durante a guerra, Seu Zé experimentou uma gama complexa de emoções. medo com a constante ameaça da morte o assombrava, a tristeza com a perda de amigos e a violência que testemunhava, a raiva pela injustiça e a crueldade da guerra e em contrapartida, a solidariedade com a necessidade de ajudar seus companheiros e a busca por um pouco de humanidade em meio ao caos e a esperança, apesar de todas as dificuldades.
A força e a resiliência que cultivava desde a infância o ajudaram a superar as dificuldades da vida. Ele até tinha medo da guerra, mas ele via como um espelho de sua própria vida: cheio de desafios, mas também de beleza e esperança. Seu Zé era um exemplo de vida, um homem que havia vivido intensamente, que havia enfrentado a guerra e a vida com coragem e determinação. Ele era um guardião de memórias, um contador de histórias e um símbolo de esperança para todos que o conheciam.
Por Renan Barcellos
Era uma noite abafada de 1971, quando Márcio Toledo percebeu que seu tempo estava chegando ao fim. Ao redor dele, os olhares de seus companheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) já não eram os mesmos. A desconfiança, antes uma sombra discreta, tornava-se palpável, quase tangível. Ele sabia que havia se tornado um alvo. Não por traição, mas por discordar. Aquela diferença de opinião, num cenário de guerra velada, seria suficiente para selar seu destino.
Eles não podiam mais confiar em ninguém, nem mesmo em Toledo, que havia lutado ao lado deles desde o início. A paranoia que consumia a resistência armada era mais cruel que a tortura do inimigo. Naquela noite, ele seria julgado. Não pela ditadura, mas pelos próprios companheiros, em um tribunal revolucionário onde o veredito já estava traçado: a morte.
Carlos Alberto Cardoso teve uma chance que Toledo não teve. Preso pelos militares, foi torturado e tentaram dobrá-lo, oferecendo-lhe um acordo: "Seja nosso homem lá dentro, nos ajude a destruir a ALN". A oferta pairava como um veneno entre a dor e o desespero. Mas Cardoso, fiel à sua luta, recusou. Mesmo assim, sabia que precisava contar a seus companheiros o que havia ocorrido, acreditando que a lealdade mútua os protegeria.
Ele relatou tudo aos seus colegas de resistência, certo de que o entenderiam. No entanto, seus companheiros não acreditaram. Para eles, uma vez abordado, ele já estava manchado, corrompido. No julgamento, foi sentenciado a 21 tiros, uma execução violenta. Seus pais, por anos, acreditariam que ele havia sido mais uma vítima da ditadura. A verdade viria muito tempo depois.
Salatiel Rolim e Francisco Alvarenga carregavam no corpo as cicatrizes da tortura. Torturados brutalmente pelos militares, foram obrigados a ceder informações. As pancadas, os choques e as queimaduras não deixavam margem para resistência. Sob coação, falaram. Mesmo assim, seus próprios companheiros os condenaram, ignorando as marcas visíveis da violência estatal. A sentença, como nas demais vezes, foi a mesma: a morte.
Salatiel questionou, em seus momentos finais, o que qualquer um faria em seu lugar, em uma tentativa desesperada de buscar empatia nos corações endurecidos pela luta armada. Mas a lógica revolucionária era implacável. A suspeita de traição equivalia à traição. E isso era imperdoável.
Esses relatos, se fossem narrados pelos próprios mortos, ecoariam como testemunhos silenciosos de um capítulo que a esquerda prefere não remexer. Era mais fácil confrontar o terror do regime militar do que olhar para os erros que surgiam no calor da luta pela liberdade. Francisco Alvarenga, Salatiel Rolim, Carlos Alberto Cardoso e Márcio Toledo tornaram-se símbolos trágicos de um tempo em que a verdade era constantemente distorcida, não apenas pela ditadura, mas também pelos próprios revolucionários.
No calor daquela guerra interna, Carlos Eugênio, um dos líderes da ALN, jamais se arrependeu. Para ele, aquelas mortes eram dores da guerra, justificadas como parte de um ciclo inevitável, onde o medo de infiltrações superava qualquer consideração de humanidade. Maria Amparo, uma sobrevivente, tinha uma visão diferente. Ela reconhecia que poderiam ter sido mais cautelosos, investigado melhor. No entanto, diante da realidade implacável da ditadura, as execuções pareciam a única saída.
As famílias das vítimas dos justiçamentos, assim como as vítimas da repressão militar, buscam até hoje respostas. A dor do silêncio pesa tanto quanto a ausência dos entes queridos. Para muitas dessas famílias, a memória dos filhos, maridos e irmãos é marcada pela confusão entre o que se acreditava ser uma morte heroica e a dura verdade de que foram traídos pelos próprios companheiros de luta.
Essas histórias revelam o quanto o passado ainda se impõe sobre o presente. O Brasil, ansioso por enterrar o período da ditadura, ainda se esquiva de reconhecer que, em meio à justa resistência contra o regime, ocorreram erros imperdoáveis. Ao mergulharmos nas sombras dos justiçamentos, forçamos a sociedade a encarar o incômodo de uma guerra onde todos, de alguma forma, saíram derrotados. A justiça, por sua vez, não pode esperar por mais silêncio.
Por Rodrigo Marques
Filho de pescadores, as manhãs de Luís de Jesus, hoje com 39 anos, eram marcadas pelo som das ondas e o cheiro do mar de Anchieta, no litoral Espírito Santo. Quando criança, sonhava em ser marinheiro. Aos dezoito anos, mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades, mas logo percebeu a dureza da vida na cidade grande. Inicialmente, tentou alistar-se na Marinha para realizar seu sonho, mas foi dispensado por excesso de contingente. Trabalhou como garçom, mas um incidente no trabalho o deixou sem emprego e, eventualmente, sem moradia. Nos anos seguintes, Luís enfrentou o frio, a fome e a indiferença vivendo nas ruas de São Paulo.
Mesmo sendo sub-representada nas estatísticas oficiais, a população em situação de rua começou a ter sua condição eleitoral mais analisada nos últimos anos. Isso ocorre devido ao fato de menos da metade dessas pessoas possuírem título de eleitor. Em São Paulo, o Censo da prefeitura revelou que, no fim de 2023, cerca de quarenta mil pessoas viviam nas ruas. Entre as entrevistadas pelos agentes municipais, menos de cinquenta por cento declararam ter o título de eleitor.
Ainda assim, essa barreira não impediu os que tinham título de comparecer e exercer seu direito ao voto na última eleição para a Prefeitura paulistana. Luís tentou sobreviver com pequenos "bicos", mas estes eram insuficientes para seu sustento. Quando o período eleitoral se aproximou, ele começou a se interessar pelos candidatos à prefeitura. Determinado a votar, procurou um centro de acolhimento para obter o título de eleitor em São Paulo, uma vez que não era natural do estado. Durante o processo, conheceu uma pessoa que o ajudou a encontrar um teto após quase nove anos nas ruas em um centro de acolhimento de moradores de rua. Luís então escolheu votar em Ricardo Nunes, do MDB, por considerar que o candidato tinha uma postura mais realista. Justificou sua decisão dizendo que via Guilherme Boulos, do PSOL, como "um filhinho de papai" que, segundo ele, jamais passara por dificuldades reais. Luís também comentou que via potencial em Tabata Amaral, candidata do PSB.
Em contraste, Fernando Almeida, de 55 anos, conhecido como Nandinho, é da segunda geração de imigrantes nordestinos que vieram em busca de emprego em São Paulo. Hoje, trabalha como zelador de escola, mas viveu mais de quinze anos nas ruas devido ao problema com uso de drogas, como crack e anfetaminas. Antes disso, atuava como concursado, mas começou a usar substâncias para suportar o estresse do trabalho. Após anos sem votar, seu título foi suspenso, obrigando-o a regularizá-lo para esta eleição. Nandinho escolheu Guilherme Boulos, especialmente pela proposta de criar um Poupatempo da Saúde, visando zerar as filas do SUS. Relatou que, sete anos atrás, teve uma infecção por compartilhamento de seringa e só foi atendido após desmaiar por conta da gravidade do problema. Além disso, enxergava Nunes como um inútil que encontrou uma oportunidade de assumir o posto que era do falecido ex-prefeito, Bruno Covas.
Esses são apenas dois exemplos entre milhares de moradores ou ex-moradores de rua que, apesar das adversidades, decidiram exerceram seu direito de votar como cidadãos aptos a decidirem o futuro da cidade com parte de suas histórias pessoais.
Por Leonardo Caporalini
O despertador toca às 6h30min. O iPhone 15 Pro Max do serviço, que parece valer mais do que a sua tranquilidade, está sempre por perto. Felipe Campos, jovem fotógrafo de 29 anos, corintiano, fã de rock e amante de um tradicional Marlboro Vermelho, vive em uma realidade onde o glamour esperado por quem está nos bastidores da política se dissipa rapidamente, engolido por uma pressão invisível que nunca o abandona. Ele ainda não despertou por completo, mas o cigarro já está aceso. O silêncio da manhã, quebrado pela fumaça, é o único alívio antes de enfrentar mais um dia na Assembleia. Seu apartamento no Cambuci, apertado e aconchegante, é o oposto do imenso Palácio 9 de Julho, para onde ele se dirige de ônibus todos os dias. No caminho, tenta se preparar mentalmente para o que virá, embora essa breve calmaria já não faça sentido. No ‘busão’, costuma ficar na primeira parte do automóvel. Pela manhã, ainda tem dificuldade de passar para o outro lado do ônibus, após a conferência da passagem, para evitar contato com o cobrador e outros passageiros. O horário faz com que o transporte público esteja lotado e sem olhares que não demonstram esperança.
Desta vez o caminho foi para o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista e casa do governador Tarcísio de Freitas, antes de ir para Assembleia Legislativa. O alarme das 7h30min tocou, o último dos dez que ele programou a cada cinco minutos para ter certeza de que teria forças para acordar. O evento é para comemorar o Dia do Auditor Fiscal. São Paulo arrecadou mais de R$ 280 bilhões em tributos neste 2024, e os auditores preparam um grande evento para louvar os profissionais do confisco. Na entrada, Felipe fez o cadastro após a segunda escada do saguão. Ele conhece o Palácio tanto quanto um cidadão deveria conhecer. Cada espaço, andar, funcionários. Mesmo não sendo sua sede profissional, já veio tanto por aqui que adquiriu intimidade.
Seu chefe, deputado estadual, não pode comparecer ao evento oficial pois não havia chegado à capital. Ele estava no seu reduto eleitoral, sua cidade natal há 475 quilômetros de São Paulo, no Centro-Oeste do Estado. Lá não tem aeroporto comercial, apenas um hangar para translado privativo – caso do deputado, já que ele tem um avião particular. O parlamentar também é um empresário de sucesso no interior, sendo sócio-proprietário de uma das maiores comerciantes frigoríficas no segmento. A viagem aérea dura uma hora e vinte minutos, mas por conta de compromissos pessoais, não deu para o deputado chegar. Felipe disse que isso é bem comum e acaba não sendo tão ruim. Não que ele vá trabalhar menos para cobrir o evento, apenas que não vai ter tanta pressão.
Com a chegada do governador Tarcísio, os cliques começam. Assim como em um balé, Felipe dança pelo saguão do Palácio na busca pela melhor captura. A diferença que, ao contrário da sincronia perfeita determinada por uma orquestra para um balé perfeito, um fotógrafo tem apenas sua câmera e o que adquiriu de experiência. Ao lado do governador, estava um homem que parecia ter alta patente. Um chute: Secretário de Desenvolvimento Econômico. O rosto parece familiar e Felipe garante que o já viu. Logo, o foco não é apenas de Tarcísio. Uma foto com os dois então, perfeito. Já garantiu o feed para o post nas redes do deputado. Ao fim do discurso do secretário, ele se junta a Tarcísio para a entrega de Challenge Coins – uma espécie de moeda comemorativa e que por muito tempo teve caráter apenas militar.
Com o fim do evento, as festividades começaram. O deputado chegou para acompanhar o brinde especial pela arrecadação recorde, já Felipe precisou voltar para a Assembleia Legislativa afim de terminar a decupagem de seu material e subir os arquivos na nuvem. Além do deputado, ele também é cobrado pela sua equipe de comunicação, que preza pela excelência e rapidez no serviço. Um contrato na visão do fotógrafo, que sempre cobra melhores orientações e agilidade na resposta de suas tantas perguntas. Quando ele chega à ALESP, o ambiente é o mesmo. O ar é denso, carregado de interesses ocultos que nunca são vistos a olho nu. Sua relação com seus chefes, parece tranquila, mas por trás de cada imagem está uma cobrança constante. O parlamentar é de direita e prega o básico do extremo desse espectro político: Deus, Pátria e Família. Ele não quer apenas fotos; quer o controle de como será retratado. Felipe, sempre ao lado do deputado, sente o peso do poder a cada respiração, como se fosse uma presença sufocante, que nunca o deixa em paz. O primeiro encontro do dia com o parlamentar é sempre silencioso, sem “bom dia”, enquanto a presença dos dois seguranças armados do político o lembra constantemente que ele está ali para servir, não importa o que aconteça.
A rotina na (ALESP) é um campo minado. O local é a casa do Poder Legislativo e o maior parlamento do hemisfério sul. Entre o disparo de sua câmera e os segredos que carrega, ele se mantém de pé e sem respaldo, enfrentando o caos diário como quem encara uma tempestade sem guarda-chuva. São Paulo o acolheu em 2019, quando ele saiu de São José dos Campos para trabalhar na Prefeitura da capital. Ele até chegou a começar uma faculdade de Publicidade e Propaganda, mas não teve tempo para concluir. Preferiu seguir a vida e pular etapas na quarta maior cidade do mundo. Nos tempos de Prefeitura, a política ainda parecia ter algum vestígio de veracidade. No entanto, ao chegar na ALESP, Felipe foi rapidamente arrastado para as camadas mais sombrias do poder. Sua missão parece simples: capturar a política em sua forma mais crua. Mas a verdade é que a realidade raramente pode ser completamente revelada.
A cada clique de sua câmera, o fotógrafo carrega um dilema. Muitas dessas imagens jamais verão a luz do dia. Elas são destinadas ao esquecimento, deletadas antes de serem publicadas. Em meio ao caos dos bastidores, ele tenta manter o foco na realidade, mas sabe que, às vezes, sua ética é moldada pelas circunstâncias. O que ele vê nem sempre pode ser mostrado. Inclusive, tem histórias tão íntimas ouvidas nos corredores do poder, que nem um padre no confessionário poderia imaginar. Felipe conhece cada centímetro da ALESP. Ele sabe onde estar para captar o melhor ângulo dos discursos, das tensões e das conversas que ocorrem a portas fechadas. No entanto, ele também conhece bem a censura sutil que paira sobre suas fotos. Uma imagem pode valer mais do que mil palavras, mas também pode destruir uma carreira. Campos entende isso melhor do que ninguém. Ele não é apenas um fotógrafo; ele é o guardião dos segredos que não podem ser revelados.
Durante os intervalos entre as sessões, reuniões, Felipe escapa para os fundos do prédio, onde encontra outros fotógrafos. Quase todos fumam, aproveitando uma pausa rápida para respirar entre um cigarro e outro. É o único momento em que realmente ele desliga, sem perceber a ironia de que o alívio que procura está lentamente consumindo sua saúde. Esses breves momentos de tranquilidade são interrompidos pela próxima sessão ou pela próxima exigência. Dentro da ALESP, o clima é sufocante. A política ali é mais brutal do que nos corredores da Prefeitura de São Paulo, onde tudo era mais direto. Na Assembleia, as coisas são diferentes; o jogo de poder é mais dissimulado, e as regras mudam a cada segundo. Felipe sabe que não pode confiar em ninguém que tenha um cargo acima do seu. Aliás, ele reforça que é bom ficar de olho em quem está emergindo também. A política o desgasta, mas também o mantém vivo. É uma relação tóxica, sustentada pela imprevisibilidade do que pode acontecer a cada novo dia. A resposta para o descaso é o sentido de uma rotina madura, com responsabilidades.
O dia se arrasta, e quando as luzes dos gabinetes começam a apagar, Felipe Campos ainda está lá, revisando as centenas de fotos que tirou. Escolher as melhores é uma tarefa árdua, que vai muito além da técnica. Muitas vezes, a melhor foto é aquela que nunca será vista. A imagem mais verdadeira geralmente é a primeira a ser deletada. A vida política o desgasta, e ele não tem certeza de quanto tempo mais poderá suportar. Às vezes, pensa em voltar para São José dos Campos, onde a vida era mais simples, menos opressiva. Mas algo sempre o prende. Talvez seja a sensação de estar no epicentro dos acontecimentos, documentando momentos que podem mudar alguma história – mesmo que ele tenha que apagar essa história com um toque no "delete" antes que ela veja a luz do dia. Já passa das 22h00min quando ele finalmente sai do Palácio, sempre o último a deixar o gabinete. O vento frio da noite paulista bate em seu rosto, mas ele mal o sente. A rotina é mecânica. No caminho até o ponto de ônibus, seis quadras distante porque nessa parada o ônibus vai direto para casa, Felipe acende o último cigarro do dia. Foi um dia longo, mas a montanha-russa não para. Amanhã, tudo recomeça. Afirma que só precisa de um cigarro, pois o resto ele dá um jeito de tragar.
Por Cristian Buono
Quem passa pela Avenida Moura Ribeiro em Santos se espanta com o tamanho do condomínio Acqua Play, que conta com oito torres de 25 andares cada. Em frente ao conjunto de prédios, em uma apertada viela, reside Karina Nascimento, uma mulher de 54 anos com três filhos biológicos que dedica sua vida à doação. Em sua casa, que não deve passar de 40 m², ela recebe e divide com todos os seus "filhos adotivos" sacolas e sacolas de roupas, sapatos, brinquedos, medicamentos e material escolar. Da avenida não é possível perceber, mas quem mora no Acqua Play conhece bem a Karina. Na sala da administração do condomínio, caixas cheias de doações saem semanalmente para ajudar a missão de vida dela.
As doações começaram como uma forma de ajudar a própria família. Os três filhos da dona de casa fazem parte do espectro autista e requerem cuidados especiais. O salário do marido, trabalhador da área portuária de Santos, não estava sendo suficiente para todas as despesas. Muito amada e conhecida na região, passou a receber doações de mantimentos e roupas em meados de 2018. Quando percebeu que estava recebendo mais do que precisava, passou a compartilhar as contribuições com outras famílias na mesma situação que a dela.
Karina recorda o dia em que chegou o primeiro grande lote de doações. Era uma manhã chuvosa, e ela ainda não sabia onde armazenaria tantos itens que haviam sido entregues. A santista afirma que nem tinha onde colocar tanta coisa. Mas, ao perceber a necessidade urgente de muitas famílias ao redor, ela entendeu que aquilo era um sinal para iniciar algo maior. Daquele momento em diante, Karina começou a organizar melhor os itens, separando por categorias e chamando vizinhas para ajudar.
Ela afirma que se sentia desconfortável por receber tantas doações, ao mesmo tempo em que via tantas outras pessoas precisando de auxílio. Já conhecida na região, decidiu organizar e batizar a iniciativa. O nome não poderia ser mais assertivo: Pequeno Anjo. Com o advento da pandemia da Covid-19, as pessoas começaram a depender cada vez mais da Karina. É o caso da Marisa Vieira, moradora do Morro Nova Cintra, que afirma ter conhecido a Karina por indicações em 2021, quando estava desempregada. Hoje tem emprego e contribui com o dinheiro que podemensalmente, além de ajudar na distribuição. Só quem acompanha o trabalho sabe o quanto ela precisa dessa ajuda".
Quando a pandemia começou, a demanda pelas doações aumentou de forma assustadora. As famílias, muitas delas desempregadas e em situação ainda mais vulnerável, começaram a pedir não apenas roupas e brinquedos, mas alimentos e produtos de higiene. Karina e seu marido saíam todas as manhãs para buscar doações em bairros distantes, às vezes voltando para casa exaustos, carregando sacolas e caixas pesadas.
Com o crescimento da Pequeno Anjo, o marido de Karina também se envolveu na causa. Nos finais de semana, ele ajudava a buscar doações em outros bairros e comunidades distantes. Karina conta que ele sempre chegava exausto, mas com um sorriso no rosto, orgulhoso do impacto que estavam criando. Mesmo trabalhando tanto, ele ainda conseguia achar tempo para ajudar a dona da ONG.
Com o tempo, Pequeno Anjo se tornou uma rede de apoio e amizade para muitos. Além das doações, as reuniões semanais de organização se transformaram em um momento de partilha de histórias e experiências entre as mães. Uma vizinha de Karina e voluntária assídua, contou que a ONG é mais do que um trabalho para ela, é um espaço de apoio emocional. A fundadora da organização criou um espaço onde todas se sentem acolhidas, compartilhando suas dores e alegrias. Ela até pensou em organizar rodas de conversa e apoio emocional para as mães da comunidade.
Outra ação desenvolvida pela ONG é a realização de festas sazonais, como no Natal e no Dia das Crianças, até então feitas em espaços comunitários do bairro Marapé. Para tanto, os comerciantes da região contribuem com pães, refrigerantes, bolo e brinquedos. E os encontros são muitos aguardados pelas famílias.
A primeira festa organizada no Dia das Crianças foi pequena, improvisada na frente da própria casa, entregando comidas e brinquedos. Karina lembra de como, ao final da festa, uma criança se aproximou e perguntou se poderia voltar ano que vem. Foi aí que ela se deu conta do impacto que aquelas celebrações, mesmo simples, poderiam ter na vida dessas crianças. Desde então, ela se comprometeu a tornar as festas um marco anual na Pequeno Anjo.
Os voluntários já estão envolvidos com a próxima e mais aguardada festa: a de Natal, que será feita no final de novembro. Desta vez, com uma surpresa para as famílias: o evento será realizado dentro do condomínio Acqua Play, em salão de festas disponibilizado pelo síndico Fernando Borelli. Os participantes poderão confraternizar em espaço maior, climatizado e confortável. E as crianças terão acesso a área externa equipada com brinquedos.
Famílias acompanhadas pela Pequeno Anjo já enviaram as cartinhas para o Papai Noel. Nelas, crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria portadores de alguma deficiência física ou intelectual, expõem os mais variados desejos: brinquedos pedagógicos, jogos educativos, patins, bola... Mas a necessidade de suprir o básico a essas famílias fica evidente quando os pedidos contemplam também roupas, calçados e material escolar. As cartinhas foram encaminhadas ao condomínio Acqua Play, que vai realizar uma ação junto aos moradores.
Iniciativas visando necessidades específicas também são comuns entre a comunidade e o grupo coordenado pela Karina, como em casos de crianças de famílias de baixa renda que têm alguma doença e necessitam de alimentação diferenciada ou medicamentos de alto custo. Recentemente, a ONG conquistou uma grande vitória: o registro junto à Prefeitura de Santos, com CNPJ, o que possibilita receber verbas públicas da área de assistência social. Ela afirma que foram quase dois anos de luta, com advogados desonestos atrasando o processo, além da dificuldade de entender tanta burocracia.
Com o reconhecimento oficial da Pequeno Anjo pela Prefeitura, Karina agora sonha em ampliar o atendimento para além do bairro. Ela vislumbra a criação de uma sede própria, com espaço para armazenar melhor as doações e oferecer oficinas de capacitação para mães em situação vulnerável. Ela afirma querer que as famílias não só recebam ajuda, mas que também se tornem autônomas e possam ajudar outras pessoas. Para Karina, a solidariedade deve ser transformadora, não apenas paliativa, e a formalização da ONG é o primeiro passo para realizar esse desejo.
A história de Karina Nascimento e seus voluntários é um exemplo inspirador de como a solidariedade pode transformar vidas. Ter a capacidade de olhar para o próximo mesmo quando a própria situação é feita de tantas dificuldades. Seu compromisso com a comunidade, agora reconhecido oficialmente, permite vislumbrar um futuro em que sua ajuda possa alcançar ainda mais famílias, mostrando que, com amor, dedicação e uma rede de apoio, qualquer desafio pode ser superado.