Por Ana Julia Bertolaccini
A vida de Victoria Siqueira, de 39 anos, foi moldada e insipirada pela cultura do fã, através do mundo digital, que permitiu com que suas paixões se transformassem em uma carreira. Vic, como é conhecida pelos amigos, trabalha há 17 anos como social media, e descobriu sua paixão pela comunicação através dos chamados “fandoms” (comunidade de fãs). Aos 11, ela presidiu o “Wanna be”, fã-clube do grupo britânico Spice Girls e aos 16, viveu a época dos blogs, criando o seu próprio posteriormente, o qual foi alimentado durante anos.
Com a evolução das redes digitais e da Internet, Vic passou a desenvolver habilidades em design e programação para personalizar as postagens que compartilhava através do blog. No início, ela chegou a fazer parte de iniciativas que hoje se comparam às atividades dos influenciadores digitais, mas que na época ainda não levavam esse nome. Como o futuro desse tipo de carreira ainda era muito incerto, Vic deciciu que levaria todo esse aprendizado para o meio acadêmico, através da comunicação.

Victoria Siqueira é formada em publicidade e trabalha em uma empresa que cuida de duas marcas de roupas. Dos vários desdobramentos que um hobby poderia ter tido, Vic direcionou-o para o meio acadêmico e para o marketing digital no mercado de trabalho, desenvolvendo sua carreira através das mídias, do branding (identidade visual, valores missão e comunicação de uma marca), e cuidando também do relacionamento com influenciadores, transitando entre funções que algum dia já teve durante os tempos do blog.
Aos 28 anos, a jornada do fã é algo novo para a jornalista e criadora de conteúdo Yakine Reis Paixão. Ela voltou a ter inspiração para criar seus próprios conteúdos no Instagram e no TikTok quando passou a conhecer mais sobre grupos de kpop e outros estilos musicais. Depois de formada e com o início da vida adulta, Yakine havia perdido um pouco dessa motivação, o que mudou completamente depois que ela passou a se conectar com si mesma em espaços virtuais coletivos que ela nem se quer lembrava que existiam.
Yaks, como gosta de ser chamada nas redes, acredita que ser fã é poder enxergar em outras pessoas um motivo ou uma inspiração para anseios pessoais. Para ela, essa cultura também traz o senso de comunidade muito forte, ao proporcionar uma troca de pensamentos e sentimentos entre as pessoas. Um interesse que é coletivo, e que ao mesmo tempo, é compreendido por cada um à sua própria maneira, talvez não possa ser descrito em poucas regras ou em uma curta definição.
Juliana Capel, psicóloga e especialista em psicologia positiva pela PUC-RS, explica que um dos fatores desse estilo de vida é a construção da identidade pessoal. Muitas pessoas descobrem talentos e paixões ao admirar um artista, podendo despertar o interesse por música, dança, fotografia, escrita, design, edição de vídeo, produção de conteúdo e até mesmo por áreas acadêmicas, como é o caso de Vic.
Essa paixão pode ser algo benéfico do ponto de vista psicológico, uma vez que a relação emocional com um artista proporciona sentimentos de alegria, entusiasmo e conexão, podendo auxiliar no estímulo da criatividade e até fortalecer a autoestima. Além disso, essa atividade também pode ativar memórias afetivas, fortalecer a empatia e até contribuir para o autoconhecimento. O segredo para uma boa experiência, no entanto, é o equilíbrio.
A ridicularização do entretenimento feminino
Aline Sodré, de 44 anos, foi conhecida por muitos anos como “a fã dos Beatles” na escola, na faculdade e no trabalho. Desde 2010, ela viaja e assiste a maior quantidade de shows possível de seu principal ídolo, Paul McCartney. Ao todo, ela já viu 35 shows do artista no Brasil, na América do Sul e nos Estados Unidos. Aline tatuou o autógrafo dele no braço e também tem tatuado trechos de músicas de Paul e dos Beatles no corpo.
Depois de todos esses anos inserida nesse ambiente, ela percebeu que há um preconceito direcionado principalmente aos ídolos adolescentes, como cantores do gênero pop: Justin Bieber, Taylor Swift e outras boybands. Apesar disso, ela não se incomoda com essa visão distorcida em relação aos gostos predominantemente femininos.

A criadora de conteúdo Yakine sente que tudo que é feminino nunca é suficiente para a sociedade. Do trabalho ao lazer, não importa o quão saudável seja um costume ou um hobby, ele sempre será menosprezado, diminuído ou dado como inútil e infantil para a grande mídia e para a opinião pública. O mesmo, porém, não acontece na mesma intensidade com gostos de grupos majoritariamente masculinos.
Quando se fala em futebol, não é difícil de ouvir por aí grupos de homens adultos discutindo quem está à frente no campeonato e quais jogadores têm feito um bom trabalho. Para quem convive diariamente com torcedores, é notável a mudança de humor e de temperamento dessas pessoas, o que muitas vezes tem relação direta com jogos ganhos ou perdidos do time do coração.
Mesmo ao abordar o futebol como uma forma de entretenimento, ignorando possíveis atividades que se relacionem diretamente com o esporte e focando completamente em discussões sobre ídolos e equipes, os homens raramente são tratados como crianças ou julgados por falar sobre esse assunto em encontros de família e até mesmo em ambientes corporativos.
Existe um machismo estrutural que tende a desvalorizar ou ridicularizar tudo que um grupo de mulheres gosta intensamente, enquanto hobbies masculinos são vistos como legítimos e costumam ser respeitados. Esse tipo de preconceito acontece em culturas como a do K-pop, doramas e até com o consumo de literatura romântica Todavia, qualquer tipo de arte ou entretenimento deve ser encarada como algo legítimo, independentemente de quem a consome. A psicóloga Juliana Capel reforça que gostos pessoais não precisam de validação externa para serem considerados válidos.
A Idolatria
Uma colega de Aline, que já tinha na época mais de 40 anos na época, era obcecada por uma dupla sertaneja famosa e os seguia pelo Brasil todo. Mandava presentes caros e ficava na porta do prédio deles esperando. Era um amor platônico tão grande que ela tinha certeza que ia se casar com um dos moços da dupla e essa obsessão vinha acompanhada de um sofrimento intenso.
Aline Sodré tem hoje um olhar mais crítico e analítico sobre o fã. Ela continua a fazer parte dessa cultura, mas como ela mesma destaca, é uma paixão alimentada de uma forma menos fervorosa e mais responsável do que era na adolescência, por exemplo, quando tudo é mais intenso. Essa transição, no entanto, não ocorre para todos.
Em alguns episódios, esse interesse passa a dominar todos os aspectos da vida da pessoa, se transformando em um comportamento obsessivo, onde a pessoa deposita sua identidade e felicidade exclusivamente no ídolo, perdendo o equilíbrio emocional. Esse tipo de envolvimento pode acontecer quando há um vazio emocional, baixa autoestima ou dificuldades em lidar com a própria realidade. Diante disso, o trabalho, os estudos e as relações pessoais passam a ser negligenciadas.
Há um estigma de que “ser fã” é sempre algo doentio, relacionado a uma idolatria cega, o que não procede em grande parte das circunstâncias. Ainda assim, é fato que um transtorno obsessivo possa vir a se desenvolver em casos extremos. O contraponto de uma vida saudável, com gostos e paixões pessoais, é o desequilíbrio. Nesse contexto, algumas pessoas podem chegar a gastar dinheiro de forma compulsiva, comprometendo a própria estabilidade financeira.
Como evitar um possível desequilíbrio?
Conhecendo a si própria e tendo vivido diversas experiências em razão dessa cultura, Aline se deu conta de que ela não quer ultrapassar as barreiras que existem entre um fã e o seu ídolo a ponto de desenvolver uma amizade e uma proximidade maior com os artistas que admira. Ela conta que quando começou a perceber que os cantores pelos quais ela era fascinada se tratavam de pessoas reais, com dias bons e ruins, ela entendeu que deveria recuar e estabelecer limites que permitissem com que ela os admirasse apenas como artistas, não interferindo na vida pessoal deles.
Hoje, aos 44 anos, ela continua indo a shows e viajando para ver seus artistas e bandas preferidos. Em sua percepção do futuro, Aline acredita que sempre terá essa necessidade de tietagem e pretende continuar a investir seu dinheiro com esse tipo de entretenimento. No atual momento de sua vida e daqui pra frente, porém, Aline não tem mais a intenção de acampar em portas de estádios, ficar nos mesmos hotéis que esses artistas, ou ser adepta de atividades que interfiram profundamente na sua rotina e no seu estilo de vida.
É importante entender essa linha tênue entre adoração absoluta quase religiosa e admiração profunda. Para isso, os principais tipos de conduta que devem ser levados em conta são o autoconhecimento e a autorregulação. É preciso observar se o envolvimento com o ídolo está vindo de um lugar saudável ou se está sendo usado para evitar lidar com desafios da própria vida.
Ter outros interesses e atividades além da participação em grupos de fãs é imprescindível. O esporte, os livros, o cinema e outras ocupações culturais ou de lazer são boas alternativas. Manter conexões reais com amigos e familiares também é essencial. Definir limites de tempo e dinheiro gastos com esse tipo de entretenimento são parte da estratégia de autocontrole, o que evita a desestabilidade financeira.
Outro fator importante para o fã é o consumo consciente de conteúdo. Sentir um sofrimento intenso ao não conseguir acompanhar tudo o que o artista faz não é um bom sinal. Ter consciência de que os ídolos são seres humanos e de que a admiração não deve se tornar uma idealização irreal é o segredo de uma paixão equilibrada, que pode ser extremamente positiva para o bem-estar psicológico e social, sem impedir a vivência de outras experiências.
Por Vitor Simas
No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.
Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.
Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.
Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.
Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.
A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.
Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.
A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.
Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.
Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.
Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.
Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé
Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.
Por Arthur Rocha
Para Roberta Moura, o dia começa antes mesmo do sol nascer. O barulho do despertador ecoa no cômodo de seu apartamento na Zona Leste de São Paulo, onde vive com os filhos, Camila, de 17 anos e João, de 10. Ela precisa preparar o café das crianças em poucos minutos, ajeitar os materiais escolares e sair para mais um dia de trabalho como diarista. O cansaço pesa no corpo, mas a necessidade a empurra para frente. Dormir algumas horas a mais não é uma opção. Seu dia começa antes da maioria das pessoas e só termina ao apagar da cidade.
A diarista mora no distrito de São Mateus, junto com seus dois filhos, em um pequeno apartamento comprado com todo o trabalho árduo de Roberta. Todos os dias, ela caminha até o ponto de ônibus, sentido terminal Sapopemba, para atravessar a cidade até os bairros nos quais trabalha. A jornada no transporte público dura cerca de duas horas, e ela aproveita o tempo para descansar os olhos ou ocupar a mente com jogos no celular.
Quando chega ao apartamento de sua principal patroa, ela troca de roupa e inicia a faxina. O trabalho exige precisão: os vidros devem ficar sem manchas, o chão impecável e as roupas organizadas exatamente como a dona da casa deseja. A dona do local costuma deixar bilhetes com orientações e críticas. A diarista observa que raramente recebe um elogio. O silêncio, na maioria das vezes, significa que fez um bom trabalho.
A realidade de Roberta é compartilhada por milhares de mulheres no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres, e a maioria delas atua sem registro formal. Além disso, estima-se que cerca de 75% das diaristas estejam na informalidade, o que significa que não têm acesso a direitos básicos como licença remunerada, férias ou aposentadoria. A cada dia trabalhado, vivem a incerteza do amanhã. Se por algum motivo forem dispensadas, não há nenhuma segurança financeira que as ampare.
Sem benefícios trabalhistas, Roberta não pode se dar ao luxo de adoecer. Em uma ocasião, teve febre alta, mas mesmo assim foi trabalhar. Quando tentou remarcar o dia, a patroa a ignorou, deixando a diarista de lado. Ela explica que a insegurança é constante. Se alguém decide dispensá-la, não há indenização ou garantias. Trabalhar doente é uma realidade recorrente. Não há opção de atestado, repouso ou recuperação. Cada falta significa menos dinheiro no fim do mês e mais preocupações
Durante o trabalho, as horas passam em um ritmo intenso. Entre um cômodo e outro, ela pensa nos filhos, que crescem num piscar de olhos. Camila quer fazer faculdade de enfermagem, mas já pensa em trabalhar para ajudar em casa. Roberta comenta que seu maior medo é que a filha desista dos estudos por necessidade financeira. Essa preocupação é comum entre mães solo em situação de vulnerabilidade, que veem seus filhos precisando amadurecer cedo demais para ajudar nas despesas da família. A educação, que deveria ser um direito garantido, muitas vezes se torna um privilégio.
Roberta cria os filhos sozinha desde que o pai das crianças abandonou a família. Segundo ela, o marido saiu para procurar emprego e nunca mais voltou. No início, esperou notícias, mas depois entendeu que ele não voltaria. Nunca recebeu pensão ou qualquer tipo de ajuda. Quando João pergunta sobre o pai, ela muda de assunto ou responde que ele precisou partir, já que o filho mais novo nem sequer chegou a conhecê-lo. O abandono paterno é uma realidade silenciosa que pesa sobre milhares de mulheres no Brasil. Muitas tentam recorrer à Justiça para garantir a pensão alimentícia, mas os processos são longos, desgastantes e, em muitos casos, não resultam em pagamento efetivo.
Sua irmã e vizinhos foram fundamentais para reerguer Roberta, já que, ao sair para trabalhar, a diarista não tinha com quem contar para suprir as necessidades de Camila e João durante o dia. Conforme crescia, a filha mais velha assumia uma postura protetora com o irmão mais novo. Roberta percebe que a filha, muitas vezes, se priva de coisas para garantir que João tenha tudo de que precisa. A menina gosta de estudar e sonha em ser enfermeira, mas já sente o peso da responsabilidade. Ela ajuda nos afazeres de casa e cuida do irmão enquanto ainda não volta do trabalho.
O caçula, por outro lado, sente falta da presença da mãe, mesmo compreendendo sua ausência. Às vezes, reclama que queria que ela estivesse em casa para brincar ou ajudá-lo com as tarefas escolares.
Segundo o Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2024, de todos os adultos brasileiros que moram sozinhos com os filhos, 86,4% são mulheres. Tal informação aponta que mais de 10 milhões de lares brasileiros são chefiados por mães solo. E esse quadro se agrava no dia-a-dia das diaristas que estão nesta condição.
Por Thomas Fernandez
Na Rua Augusta as luzes do bar Vitrine piscam em sintonia com o som dos controles. É uma noite de terça-feira e, como toda semana, o ambiente se transforma em uma pequena arena: jogadores posicionam seus consoles, conectam controles e afinam os reflexos. Ali, acontece o torneio semanal de Super Smash Bros. Ultimate e Melee, organizado pela Team Dash. Não há arquibancadas lotadas ou grandes prêmios em dinheiro, mas há algo mais poderoso: o sonho de viver dos jogos.
No meio da multidão está Theo Levi, 24 anos, conhecido como Pastel. Os olhos atentos à tela denunciam sua paixão pelo jogo. Embora alimente o desejo de se tornar um jogador profissional, ele reconhece os limites do cenário atual no Brasil. Por isso, começou a atuar como organizador de torneios no ambiente universitário, com a esperança de, futuramente, se consolidar no meio profissional. Vê nessa trajetória uma forma de unir sustento e paixão, além de contribuir para que outros jogadores tenham a chance de alcançar esse mesmo sonho.
A história de Theo se entrelaça com a da própria Team Dash. Luis Fernando Torriello dos Santos, 29 anos, mais conhecido como Phoca, relembra que os torneios começaram por iniciativa própria, após os antigos organizadores abandonarem seus projetos. Em 2014, reuniam cerca de 30 jogadores por mês, um grupo fiel que aos poucos foi crescendo, trazendo novos participantes. Hoje,os campeonatos semanais reúnem cerca de 60 jogadores, enquanto os mensais chegam a 80. Em 2016, realizaram um evento que atraiu mais de 200 pessoas, incluindo jogadores de fora do País.
No entanto, manter essa estrutura ativa exige investimento, geralmente saído do próprio bolso dos organizadores. Um campeonato de médio porte requer pelo menos dois setups completos – consoles, monitores e cópias do jogo – o que representa um custo inicial de cerca de R$3.500, sem contar os gastos extras com transporte, alimentação e organização. Muitos projetos acabam não resistindo a essa carga. Mesmo assim, o cenário brasileiro de E-sports mostra sinais de amadurecimento. Além dos torneios, iniciativas como o BrAT – Brazilians Against Time – têm ampliado o alcance do universo gamer. O evento de speedrun, realizado durante o carnaval, arrecadou aproximadamente R$20.000 para a APAE, demonstrando o potencial da comunidade em mobilizar apoio e gerar impacto social. Também se tornou uma vitrine importante para jogadores que desejam ingressar na criação de conteúdo e buscar visibilidade além da competição.
Enquanto títulos consagrados como Counter-Strike e League of Legends atraem investimentos milionários e audiências internacionais, outras comunidades lutam para se manter vivas por meio do esforço coletivo. As universidades começam a se interessar pelos E-sports, formando times e promovendo campeonatos estudantis, o que abre espaço para uma possível profissionalização futura. Para muitos desses jovens, um jogo é muito mais do que um jogo. É carreira, é comunidade, é resistência. O Brasil talvez ainda esteja nos estágios iniciais dessa corrida global, mas seus jogadores e organizadores seguem insistindo, sonhando e construindo – um campeonato por vez
Por Thomas Fernandez
O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.
Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.
Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.
Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.
A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.
A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.