Por Isabelle Maieru
No início da tarde Mirella havia feito um exame de Ultrassom. Ela entrou na sala e foi bem recebida por uma médica tranquila e com um sorriso no rosto. O semblante da profissional da saúde mudou quando ela olhou para a tela. Agora, séria e com uma preocupação visível em seu rosto, a doutora saiu correndo da sala, sem nem se despedir. A partir daquele momento, Mirella, mesmo sem entender o que estava acontecendo, percebeu que a situação era grave.
O dia estava quente e ensolarado naquele 17 de março de 2023, em São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo. Mirella estava com 31 semanas de gestação quando foi realizar uma consulta pré-natal de rotina. Tudo corria como de costume na gestação da jovem de apenas 18 anos. Apesar do susto com a gravidez inesperada, aos poucos tudo se ajeitava e a ansiedade para conhecer a pequena Jade, só aumentava na família. Às 9 horas da manhã, durante a triagem, onde são realizadas as primeiras avaliações, algo chamou atenção da enfermeira: a pressão arterial de Mirella estava desregulada e bem mais alta do que deveria estar. Foi nesse momento, que a angústia começou. A mãe de Jade passou a receber medicações para que a pressão arterial baixasse e a fazer uma série de exames para tentar chegar ao diagnóstico do que estava acontecendo com mãe e filha.
O tempo se arrastava. A pressão não baixava. A médica que realizou o exame foi ao encontro do obstetra que acompanhou a gestação. A quebra de protocolo aconteceu pois Jade não poderia ficar nem mais um minuto dentro do útero, Mirella não poderia mais estar grávida. Foi naquele exame em que foi descoberto que não havia mais nada de líquido amniótico, o principal responsável pela oxigenação e alimentação do bebê dentro do útero da mãe. Havia ao menos cinco semanas que Jade não recebia nutrientes e perdia aos poucos sua oxigenação, seu tamanho era correspondente ao de um bebê de 25 semanas de gestação, Mirella estava grávida há 31. Nenhum dos exames realizados durante esse período apresentaram alteração.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil por ano. Um relatório divulgado em 2023, pela OMS, a Unicef e a parceria para a saúde materna, neonatal e infantil demonstrou que 10% dos nascimentos no mundo são prematuros. É considerado prematuro o bebê que nasce com menos de 37 semanas. Junto a esse marco temporal específico, há uma classificação mais detalhada das idades gestacionais segundo a OMS: entre a 34ª e 36ª semana e seis dias, é considerado como prematuro tardio; de 32 a 33 e seis dias, como moderados; muito prematuros entre 28 e 31 semanas e seis dias; e prematuros extremos para aqueles bebês nascidos abaixo de 28 semanas. Quanto menor a idade gestacional, maiores são os riscos de não sobreviverem.
A gente teve que tirar ela à força relembrou a mãe. O parto aconteceu e o bebê extremamente prematuro, pesando 800 gramas, foi levado às pressas para a UTI Neonatal. Esse foi o cenário dos cinco meses que seguiram o dia 17 de Março. A mãe, recém operada, passou os seus três dias de internação ao lado da incubadora, que foi a casa de Jade por todo esse tempo. O momento de deixar o hospital e retornar para casa chegou. Com ele, chegaram também o medo, a insegurança e a depressão.
O Medo
Mirella sempre enfrentou um medo profundo das notícias que poderia receber. Cada visita ao hospital era um desafio, uma batalha interna entre a ansiedade e a esperança. O elevador, um espaço claustrofóbico, se tornava um símbolo de sua angústia. Muitas vezes, ao subir, o medo a dominava e, ao invés de seguir em frente, ela acabava descendo novamente, fugindo para casa. A sensação de culpa a acompanhava, um peso constante que a fazia questionar sua coragem.
A sala de espera também se transformava em um campo de batalha. Em momentos de pânico, Mirella saía do elevador, mas se via parada, paralisada, sem conseguir avançar. No entanto havia um elemento que a mantinha firme: o apoio da equipe do hospital, das outras mães que compartilhavam sua dor e, principalmente, da sua família.
Os dias eram pesados, marcados por boletins médicos e uma expectativa constante. Para Mirella, a presença da família era essencial. A prematuridade de sua filha trouxe um trauma coletivo, uma quebra de expectativas que afetou a todos. Seus pais se revezavam nas visitas diárias, garantindo que a neta nunca estivesse sozinha, enquanto Mirella tentava estar ao lado dela sempre que sua saúde mental permitia. Era uma luta constante, ela pensava, mas se forçava a estar lá.
Seu marido, mesmo com as limitações de visitas, estava sempre presente. Ele entrava apenas uma vez ao dia, mas todos os dias, em momentos difíceis, ele esperava por ela no hospital. Quando não estava bem, ele a acompanhava, ficava lá, sempre ao seu lado. Essa rede de apoio era fundamental. Mirella sabia que, sem eles, teria sido impossível suportar tamanha carga. Eles a carregaram no colo. O apoio da família foi essencial a cada dia que se passava.
A Solidão
Embora contasse com o apoio inabalável de familiares e amigos, a solidão era uma constante na UTI-Neo do hospital em São Caetano. Para Mirella, a ausência da filha era uma dor que se manifestava fisicamente. Havia um vazio que parecia insuportável, um espaço que só a presença dela poderia preencher. Era ela, a única que poderia confortá-la e fazer seu coração se sentir completo. O desejo de levar a filha para casa a consumia, transformando cada dia em uma luta.
As noites eram os momentos mais difíceis. A separação entre mãe e filha se tornava ainda mais dolorosa na escuridão. Mirella se lembrava de como desejava ouvir o chorinho da pequena, mesmo que isso significasse perder o sono. Queria que ela estivesse ali, tirando o sono, em vez de estar longe, enquanto a saudade a mantinha acordada. Nesses instantes de solidão, a luta interna se tornava ainda mais intensa, uma batalha entre o amor profundo e a dor da distância. Cada noite era uma prova de resistência, enquanto a esperança de um reencontro a mantinha firme.
Enquanto estava na incubadora, o único contato possível entre mãe e filha eram as mãos, uma segurando a outra, por meio de uma abertura na lateral da caixa. Por serem extremamente frágeis, os recém nascidos prematuros só podem ser manuseados pelas enfermeiras. A prática do “canguru” foi liberada apenas quando Jade foi transferida para o berçário de médio risco, quatro meses após seu nascimento. Por poucos minutos e sob supervisão, Mirella podia sentir seu bebê em seu peito, como sempre sonhou. O método é extremamente defendido pela OMS e Sociedade Brasileira de Pediatria, pois oferece inúmeros benefícios tanto para a mãe, quanto para o bebê.

Fim da Solidão
Após cinco longos meses de espera, angústia, medo e inseguranças, mãe e filha puderam seguir juntas para casa. Embora estivesse bem e saudável, a luta das duas não terminava por ali. Jade, tomava cerca de doze remédios por dia e fazia uso de bombinhas de ar. Além disso, fazia acompanhamento multidisciplinar com pneumologista, neurologista, gastrologista, oftalmologista, fonoaudiólogo, pediatra neonatologista, cardiologista e cirurgião. Sua idade passou a ser contada de forma corrigida.
O Ministério da Saúde recomenda que se considere a idade cronológica (idade real que a criança tem desde o nascimento) junto com a idade corrigida (idade que a criança teria se tivesse nascido com 40 semanas), que deve ser utilizada principalmente ao avaliar o crescimento e os marcos do desenvolvimento da criança prematura. Para os prematuros extremos a recomendação é de utilizar a idade corrigida até os 3 anos de vida. para os demais prematuros a recomendação é utilizar a idade corrigida até os 2 anos.
Hoje, um ano depois, Jade e sua família têm marcas de tudo o que passaram, mas também a alegria de ter a família reunida em casa. A pequena menina teve alta de quase todos os médicos, atualmente ela só faz acompanhamento com a pediatra neonatologista, especialista em bebês que passaram pela UTI-NEO, que vai acompanhá-la até os cinco anos, e com a neurologista. Seus remédios, que antes eram doze, hoje é um só. A mãe, que havia se desencontrado e abdicado de si mesma para cuidar da filha, se reencontrou. Realizou a profissionalização em unhas e hoje tem seu espaço para receber seus clientes. Ao lado do pai, vivem acompanhando o desenvolvimento de Jade.
Até hoje, o som das máquinas da UTI ecoa na mente de Mirella, provocando uma aceleração instantânea do coração e uma respiração ofegante. O trauma da experiência ainda a persegue, uma ferida que ela tenta curar com a ajuda de psicólogos, psiquiatras e o apoio incondicional da família. Essa vivência se tornou uma marca indelével em sua história, moldando não apenas quem ela era antes da internação de Jade, mas também quem se tornou após esse período desafiador.
Mirella sente que essas memórias, apesar da dor que podem trazer, são parte essencial de sua identidade. Ela diz querer carregar para sempre alguma parte daquilo. Essa experiência não foi apenas uma fase difícil, mas um capítulo significativo da vida de sua filha e da sua própria trajetória. A história de Jade e a sua se entrelaçam de maneira profunda, e Mirella se recusa a deixar que esses momentos sejam esquecidos. Mesmo que às vezes doam, ela quer que essas lembranças façam parte de quem ela é, para sempre.

Por Bianca Athaíde
A fachada intriga quem passa na rua. Um portão de tom laranja forte, quando aberto, dá passagem visual para uma casa de arquitetura clássica da São Paulo da década de 50. Em tons bege e branco, as janelas e ornamentos criam a estética reversa do que se guarda ali dentro. Na varanda, o intelecto fica mais confuso e raciocínio custa a entender: manequins vestidos com peças que não combinam entre si; eletrodomésticos e itens de decoração que evidentemente completaram sua maioridade e uma placa de visual circense, com a tipografia embaralhada, escrito "Antiguidades Minha Avó Tinha". Já na frente da porta de entrada, compreende-se por completo o que pode ser encontrado lá dentro.
O brechó "Minha Avó Tinha", no coração do bairro de Perdizes, é um dos maiores na capital paulista, sendo referência do garimpo de luxo no Brasil. Hoje, ele faz parte do movimento de brechós que lucram cada vez mais com jovens interessados por moda, enquanto buscam itens valiosos e únicos, para fugirem da estética dominante e se destacarem na multidão. O ambiente, assim como muitos outros no ramo, constroi uma confusão visual, com excesso de informações e detalhes, os olhos dos visitantes são cativados pelo brilho extraordinário que as peças expostas reluzem. Ao entrar, é capaz sentir a vibração de cada item, cada história e cada destino, fazendo muitos, que se permitem, passearem durante horas a fio pelos dois andares e mais de sete salas recheados de objetos.
A estudante de arquitetura, de 23 anos, Marina Falleiros fica perplexa com a imensidão de informação existente naquele lugar e aponta para cada coisa que ganha seu olhar, como uma criança feliz. Diz ser viciada em brechós e acha que começou a frequentar um pouco depois da pandemia, lá em 2022. O que a deixa encantada é a diversidade das coisas, Ela afirma amar um lugarzinho diferentão enquanto caminha extasiada pelos corredores.
Mas pouco tempo atrás, a visão misteriosa e cativante que esse tipo de comércio atualmente recebe, era mitigada pelo cheiro de naftalina e a aversão a compra de produtos usados. Poucos do que criticavam, sabiam a história por trás desse movimento e o impacto que sua existência pode gerar em um futuro de consumo mais consciente.
Foi no final do século XIX, no Rio de Janeiro, que um alfaiate português abriu uma loja para compra e venda de produtos usados. Belchior obteve sucesso. Sua empreitada ficou tão conhecida, que rapidamente foi copiada e surgiram múltiplas "Lojas do Belchior". O cenário era tão recheado que até no conto de Machado de Assis, Ideias de Canário, publicado em 1889, esse tipo de negócio é citado. A ideia do alfaiate veio dos famosos mercados de pulgas europeus e como a língua é um ser orgânico, de evolução misteriosa, com o passar dos anos o termo "belchior" se transformou em "brechó".
A denominação carregou um peso negativo na cultura brasileira durante muito tempo. O proprietário do "Minha Avó Tinha", Franz Ambrósio comenta amargamente que era comum a ideia de que todo mundo queria abrir um brechó. Mas explica que não é fácil, pois não se trata de simplesmente pegar roupa e botar pra vender. Durante seus 34 anos de experiência com o mercado, o Belchior moderno adquiriu vasta expertise em curadoria, e seu sucesso foi tanto que já abriu uma segunda unidade, focado mais em peças de luxos, reconhecida e frequentada pelas principais blogueiras e entusiastas de moda de São Paulo.
O fato é que, apesar da tradição centenária desse tipo de comércio, apenas agora o identitário de algo velho, mofado e sujo, está sendo quebrado. Segundo números publicados pelo Sebrae, em 2019 já existiam mais de 14 mil brechós no Brasil, aumentando a quantidade ano a ano. Grande parte da onda de positivismo que está banhando esse tipo de comércio é graças a geração Z. Segundo a McKinsey & Company, empresa especializada em consultoria empresarial, a geração Z representa 40% dos consumidores globais de brechós. Aos 19 anos, a estudante Maria Luísa Armelin afirma a preferência pelo mercado crescente do second-hand. Ela diz que sempre preferiu o diferente e que era muito chato comprar em lojas de shopping. Foi quando começou a comprar peças em lojas de segunda mão online, mas ressalta que a peça tem que estar boa pois coisa feia e cara não dá para comprar.
Meio ambiente
Outro ponto positivo do aumento súbito pelo interesse em brechós é a consciência ambiental que a geração mais nova possui. A indústria da moda é fortemente apontada como uma das mais poluidoras do cenário atual, sendo responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono, número esse que a cada momento piora, com grandes aglomerados empresariais internacionais de fast fashion produzindo e descartando toneladas de materiais a cada minuto. Por isso, entre os mais jovens, comprar itens usados deixou de ser algo mal visto para elevar-se ao posto de descolado. O perfil médio do consumidor de peças de roupas usadas, diga-se, é formado por mulheres jovens, entre 18 e 45 anos, de classe média e antenadas nas discussões socioambientais.
Em resumo, o movimento só tende a crescer, independente dos motivos, todos contribuem para um futuro mais promissor no cenário fashion, além do ambiental. Se moda é expressão pessoal, movimento circular de tendências e uma corrida exaustante para se tornar uma referência fashion, o movimento de brechós é exatamente a resposta a ser procurada, com respeito ao passado e vontade de inovar no futuro. Um movimento capaz de substituir o cheiro de naftalina pelo brilho dos brechós.
Por Davi Garcia
A cidade de Lorena sofre com a deficiência de memória histórica dos acontecimentos da escravidão, principalmente pelo peso da região nesse processo e o quanto foi palco de crimes e preconceitos com as pessoas pretas. Ainda restam alguns poucos casarões do período do café, mal preservados e afastados das áreas urbanizadas da cidade. Porém, existe sim a possibilidade de associar o município ao passado escravocrata. Nicolas Marucco, historiador e pesquisador, morador do Vale do Paraíba, contextualiza o cenário da escravidão no século XIX.
Ele explica que em agosto e setembro faz muito calor e pouco chove na região do Vale do Paraíba, um clima seco e ruim de se respirar. No final do século XIX a estrada entre Cruzeiro e Lorena, era mais uma passagem de café rumo à capital paulista. Muitos sequer respondiam como seres humanos, mas como escravos. Corpos, ferramentas de trabalho estavam à disposição do mandatário. Com a chegada da noite, pode enfim descansar na fazenda, em uma região mais afastada de Lorena, onde se encontra a cidade de Canas nos dias de hoje. A fazenda era apenas uma das sessenta, que importava quase duas toneladas de café. O ano era 1854.
A presença da escravidão no Brasil remete ao período da colonização, e em meados do século XVI já havia registros dos primeiros navios tumbeiros atracando nos portos do Nordeste açucareiro. A escravidão foi direcionada para os indígenas e africanos, estes com maior atenção da coroa devido aos lucros maiores. Em Lorena, assim como no Vale do Paraíba, a escravidão tem registro desde a intensificação da ocupação e exploração da região, nos séculos XVIII e XIX. Nela, surge a história de quatro escravos que se reuniram como uma família, e viram ser separados como nos navios que os tiraram de casa e os fizeram perder suas identidades;
Naquela época os membros de uma família de escravos sequer tinham nomes. Uma “mãe” de 20 anos, por exemplo, se preocupava com as movimentações recentes de mulheres em direção ao município de Silveiras, que adquiria mais e mais escravas. Os garotos que ela adotara como filhos, ambos na faixa de 10 anos de idade, eram sua única esperança de ver o sol raiar atrás das montanhas da fazenda do Vale do Paraíba. Além disso, o cheiro de comida rica e farta que fazia para Julian Florence Meyer, alemão e Senhor que cuidava dessa fazenda, devia invadir seus sentidos, mas ela raramente tocava em algo que não fosse além de restos.
Nessa mesma família, o “pai”, em torno de seus 25 anos de idade, reservava suas poucas energias para divertir os pequenos após mais um dia de trabalho desumano no solo do cafezal da fazenda, nos subúrbios de Lorena. Como a mãe, também tinha medo de ver sua família se desmoronar. Afinal, a cidade de Guaratinguetá vivia uma intensa expansão das lavouras de café, em que demandava mão de obra incessantemente, e era, portanto a que mais adquiria escravos de sua idade naqueles anos de 1850 e 1860. As famílias escravizadas eram frequentemente desfeitas. Estima-se que em muitas fazendas do Vale do Paraíba, aproximadamente 40% das vendas de escravos envolviam a separação de famílias.
As noites eram o único momento em que conseguiam se reunir. No pequeno espaço da senzala, eles dividiam um canto escuro com outros cativos. Quando o silêncio caía sobre a fazenda e o único som era o zumbido de insetos no mato, os meninos se agarravam ao colo da mãe, tentando adiar o inevitável momento em que ela também teria que enfrentar os horrores do trabalho forçado. Ao amanhecer, aquela "mãe" recebe a terrível notícia que seria vendida pela quantia de 600 mil réis através da adjudicação no inventário da esposa de Julien Meyer. O comprador era um Senhor que daria para essa "mãe" um nome: Ignez. \E a tornaria sua esposa. A base da mulher havia desmoronado, e as crianças que assumiu orgulhosamente como filhos ficariam apenas como saudades eternas.
Aquele "pai" não fazia ideia de como seguir com essa notícia. Não tinha condições para cuidar dos dois pequenos, principalmente por conta do exaustivo trabalho na fazenda Meyer. Além disso, o pai entraria para a estatística de 81% dos homens escravos de Lorena que estavam solteiros, transformando a vida do rapaz uma verdadeira solidão e vazia naquelas noites geladas em que os ventos do Vale passavam pelo seu corpo sem camisa. Os "filhos" choraram pela despedida forçada de sua mãe, e mesmo tão novos, não era a primeira vez que teriam que passar pelo dolorido processo de separação.
Meses depois, e sem forças para seguir, o "pai" acabou falecendo devido a precarização e a humilhação que sofria todos os dias naquela. Morreu sem dignidade, sem o direito de experenciar a vida como deve ser vivida. Os seus 20 e poucos anos de idade foram tomados pela angústia, dor, suor e sangue do trabalho escravo de todos os dias em que pisou no solo do Vale do Paraíba. No entanto, não era um cenário atípico: a expectativa de vida de um escravo no Brasil era de 25 anos de idade. Por fim, acabou integrando o grupo que sofreu um dos maiores genocídios da história -- mais de 15 milhões de pessoas mortas, assassinadas pelo sistema escravocrata.
Os filhos do casal tiveram de "viver" mais uma vez sem uma figura de amor, que poderia fazer chegar perto de ter uma infância, assolados pela certeza de que, a partir daquele momento, construiriam suas vidas sozinhos. Com a chegada da Lei Áurea no ano de 1888, já adultos e com nomes, Pedro e Joaquim, se encontravam “livres”. Conseguiram avançar na idade e na faixa dos 40 anos, Joaquim trabalhava como pedreiro no antigo Engenho localizado na Vila Nunes, e ajudava a expandir o local construindo a moradia de seu chefe. Mesmo após a assinatura da lei que libertava os escravos, o preconceito continuava presente nas ruas, nas plantações e nas fábricas, e era visto com desdém por parte de brancos e alguns europeus que trabalhavam no local. A lei havia mudado no papel, mas o tratamento e o preconceito social permanecia cruel os ex-escravos.
Pedro, que ganhou um nome enquanto trabalhava na fazenda do filho do alemão, agora vivia nas ruas de Lorena, principalmente na região do Centro, onde a cidade foi construída para trás da igreja principal. Ser liberto pela Lei Áurea pouco mudou na vida do homem, que ainda não tinha o direito à vida, sendo tratado ainda com escravo pela população. Acabou se suicidando na ponte de madeira recém construída no rio Paraíba, e seu corpo foi só mais um dos tantos que morreram em decorrência do isolamento social.
Por Isabella Santos
A primeira coisa que vem à mente de quem tira parte do seu tempo para refletir sobre conflitos tão, aparentemente, distantes provavelmente são armas, bombas e exércitos e mais exércitos de homens destemidos, determinados a dar seu sangue pela nação. Mas, das trincheiras para dentro da casa deste soldado, pouco se fala sobre a vida daqueles que não foram à guerra, não escolheram ter sua vida revirada pela mesma, mas que,por conta de um ato de coragem de seus familiares, sofrem com as consequências por anos. A história que será contada poderia ser sobre alguma garota ucraniana, que luta para sobreviver em meio ao caos e vazio causado pela guerra e a falta de um familiar que se foi, mas é sobre Neide, uma menina que tinha apenas 7 anos de idade quando foi brutalmente obrigada pela vida a ter responsabilidades e deveres de uma pequena adulta.
O Brasil foi envolvido na Segunda Guerra Mundial em 1942, quando submarinos alemães torpedearam e afundaram cinco navios mercantes brasileiros, fato que provocou a ira de Getúlio Vargas, declarando guerra à Alemanha. E foi assim que "a cobra fumou", e a Força Expedicionária Brasileira (FEB) convocou aproximadamente 25 mil militares e os enviou para o front de batalha na Itália. Entre eles estava Salvador Figueiredo. pai da Neide. Ele foi surpreendido pela vida, quando aos 19 anos foi convocado pela FEB em 1944 para ir à guerra. O jovem, do 1° batalhão, 2° regime de Obuzes havia iniciado um namoro com sua amada Hermenegilda e se viu sem saída, tendo sua partida confirmada logo após sua convocação.
Por mais que sua vontade fosse ficar em Osasco, sua cidade natal, era quase impossível não defender o Brasl no maior conflito da história da humanidade. Seu amor por Hermenegilda se sustentou durante todo o ano em que ele residiu na Itália através de cartas, que sua filha hoje guarda como se fosse um tesouro, tomando todos os cuidados para mantê-las em seu melhor estado junto a outras lembranças do pai.
1944 foi um ano de incertezas para Hermenegilda. Acordar todos os dias sem ter notícias sobre a vida de seu amado foi desafiador e ao mesmo tempo perturbador, mas para ela, restava apenas ter fé e a esperança de que ele iria retornar para seus braços. E assim foi feito, um ano depois Salvador retornou do conflito, e a felicidade e alívio do casal foi tanta que o casório foi celebrado logo em seguida.

Em outubro do mesmo ano, Salvador e Hermenegilda tiveram a primeira de seus três filhos, Neide Aparecida Figueiredo. E quando o casal imaginava que teria colocado um ponto final na guerra, os reflexos dela começaram a invadir a mente e o corpo de Salvador, deixando muito mais que cicatrizes em sua família.
Neide conta de sua infância com dor e carinho, citando sempre sua brincadeira preferida que fazia com o pai. Ele era apaixonado por ginástica artística, e seu sonho era transformá-la em uma ginasta. Neide conta que treinava com o pai todos os dias, com cambalhotas, piruetas e manobras ensaiadas, reforçando sempre com brilho nos olhos o quanto gostava de ser criança com ele.
Porém, do dia para a noite os surtos repentinos de Salvador começaram a aparecer, e as visitas ao hospital se tornaram cada vez mais frequentes. O médico explicou à família que era normal surgir efeitos psicológicos em pessoas que retornaram da guerra, devido ao grande trauma causado pela batalha, e a partir daquelas palavras, Neide sabia que sua vida nunca mais seria a mesma.
Com tristeza no olhar e dor em sua voz, ela conta que seu pai sempre se trancava em um quarto quando sentia que os acessos de raiva iriam iniciar, Salvador tinha muito medo de machucar a família quando se descontrolava. Ela conta que ele ficava cerca de uma hora sozinho, e tudo que eles podiam ouvir do lado de fora eram gritos de pânico, pedidos de ajuda e sons de coisas sendo quebradas, eram tempos difíceis, em que Salvador quebrou as poucas coisas que a família lutou para ter. Porém, logo que seu pai se acalmava ele saia do quarto, voltava a tocar seu amado bandolim, e a família voltava a fingir uma normalidade perturbadora.
Depois de um tempo, os surtos começaram a piorar, e Hermenegilda voltou ao médico com Salvador, que recomendou que a família se mudasse de casa, visto que eles moravam em um bairro agitado de Osasco, e os barulhos da cidade provocavam reações preocupantes no ex soldado. E assim a família se mudou para Amador Bueno, em uma casa bem afastada e sem vizinhança alguma, e esse foi o início do fim de sua vida. Após a mudança, Salvador teve uma melhora significativa por um período, mas logo após sua terceira filha nascer sua doença se agravou, fazendo com que ele fosse internado em Tremembé.
Em mais um dia de visita rotineira ao marido internado, Hermenegilda notou uma melhora significativa; Já conseguia conversar, perguntar dos filhos e fazer a promessa de que sairia logo de lá. Porém, no instante em que ela entrou no trem rumo a Amador Bueno chegou a notícia através de um soldado enfermeiro de que seu marido havia falecido minutos após sua saída do hospital. No atestado de óbito o diagnóstico indicava morte por neurose de guerra dia 19 de outubro, deixando para trás a mulher, sua filha mais velha de 7 anos, o segundo filho com 4, a caçula de apenas 8 meses, muitas dívidas e uma infância complicada para seus filhos.

Neide conta que sua mãe, viúva muito jovem com 29 anos, decidiu ser fiel à memória do marido e nunca mais arrumou outro homem na vida. Apesar disso, a fidelidade trouxe dificuldade, já que Hermenegilda precisava deixar seus filhos sozinhos dar conta de seus dois empregos, fazendo com que Neide, aos 7 anos, fosse responsável por cuidar de seus dois irmãos mais novos e pela limpeza da casa. Além da perda da infância, Neide conta com tristeza no olhar sobre como foi obrigada pela vida a desistir de uma bolsa de estudos aos 14 anos para trabalhar e ajudar sua família. O pai havia deixado diversas dividas médicas com sua partida, e sua mãe não ganhava o suficiente para manter os três filhos. Por mais que ela fale que não se arrepende de ter feito tudo o que fez, diz que sempre imagina os rumos que sua vida teria tomado se seu pai não houvesse sido obrigado a ir para a guerra, se ele não tivesse partido, se ela tivesse aceitado a bolsa de estudos e se tudo fosse diferente.
Por Daniel Santana Delfino
O sol escaldante batia forte na areia dourada, enquanto o mar se agitava em um ritmo constante. Não era um dia típico de verão na praia, e a atmosfera era de frio. Poucas pessoas aproveitavam o litoral embaladas pelo som das ondas e das risadas dos banhistas. Foi nesse ambiente qued ma figura discreta, quase invisível aos olhos dos turistas, se movimentava com agilidade: Milene, de 78 anos, dona do quiosque, ou simplesmente, "Alagoana", como é conhecida.Acorda diariamente às 06h30min da manhã, espera seus 2 funcionários para trabalhar na areia e mais uma funcionária para ajudar na cozinha.
Seu quiosque, um pequeno paraíso de madeira, era um dos muitos que pontuavam a orla. A porta, desbotada pelo sol e pelo sal, abria para um espaço aconchegante, com mesas e cadeiras de plástico coloridas. No balcão, um cardápio rabiscado em um papelão anunciava os quitutes que ele preparava com tanto carinho: iscas de peixe, sucos, água de coco, pastel... Um banquete para saciar a fome e a sede dos frequentadores da praia. Seu prato da casa é a isca de peixe todos da região adoravam sua isca e é claro acompanhada da sua caipirinha.
Ela, uma mulher de estatura mediana, com o rosto bronzeado pelo sol e os cabelos grisalhos era uma verdadeira mestra da culinária praiana. Seus olhos, acostumados ao brilho do mar, transmitiam uma serenidade que contrastava com a agitação ao redor. Ela conhecia cada cliente pelo nome, sabia o que cada um gostava de pedir e, com um sorriso acolhedor, oferecia um atendimento personalizado que deixava todos à vontade.
Mas sua vida não era fácil. Desde o começo para abrir o quiosque afirma ter sido uma luta quando em 2004 abriu o seu estabelecimento. A esperança de dar certo estava na promessa que fez lá no passado para a Nossa Senhora de Aparecida de abrir o quiosque no dia 12 de Outubro naquele mesmo ano de 2004. Está firme até hoje, com sol ou chuva a dona Milene está sempre ali no seu cantinho para atender os turistas e moradores. O trabalho foi árduo, com longas jornadas sob o sol escaldante. A concorrência era grande, e os preços dos produtos oscilavam de acordo com a sazonalidade. No entanto, ele nunca se queixava. A paixão pela praia, a alegria de servir as pessoas e a satisfação de ver seus clientes satisfeitos eram os combustíveis que o impulsionavam a seguir em frente. Mesmo que seu quiosque tenha caído lá em 2017 por conta da ressaca ela não desistiu, mesmo sem verba os seus vizinhos, moradores do prédio em frente tinham o amor pela dona e conseguiram reerguer o seu estabelecimento.
O seu maior desafio sempre foi o mar, mas ela não tem medo, e a própria Alagoana disse ficar "até ele subir aqui dentro". Ela é uma verdadeira guardiã da praia, um elo entre o mar e a cidade, um ponto de referência para os turistas e uma amiga para os moradores locais. Seu quiosque, além de um local para se alimentar, ainda é um ponto de encontro, um espaço para conversar, para rir, para celebrar a vida. Não ligava para o dinheiro, a verba é importante para seu sustento mas valia mais um sorriso no rosto do que ganhar seu salário.
Ela é um exemplo de resiliência, de trabalho duro e de amor pelo que faz, contando como foi difícil manter o seu quiosque sem ajuda da Prefeitura. Sob lágrimas ela jura que só sai de lá quando não tiver mais condições de trabalho. Assim como o mar se renova a cada dia, ela também se reinventa, adaptando-se às mudanças, buscando novas receitas e aprimorando o atendimento, Em meio ao frenesi da praia, ela continua sendo um farol de paz, e seu quiosque um oásis de tranquilidade e um símbolo da simplicidade.