Por Beatriz Alencar
A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.
Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.
A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.
Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.
A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.
Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.
Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".
Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.
O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.
Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.
A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.
Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.
No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.
As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.
Como tudo começou
Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.
Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento.
Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.
Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.
Por Julia Quartim Barbosa
Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.
Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.
Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.
Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles.
Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.
O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.
Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema.
Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.
Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.
Por Rayssa Paulino
Fé. No dicionário brasileiro da língua portuguesa, a convicção da existência de algum fato ou da veracidade de alguma asserção; credulidade, crença. Algo que nos é atribuído antes mesmo de aprender a andar ou falar. Nenéns curiosos, de roupinha branca e com os olhinhos atentos em cada detalhe da igreja esperando, mesmo que ainda não saibam, a sua vez de ter a cabeça molhada pela água benta derramada pelo padre. Apesar do batismo católico ser quase uma experiência coletiva para os brasileiros e, muitas vezes, o primeiro contato com uma religião, tem pessoas que desviam dessa linha.
Vivian é uma jovem que nasceu e cresceu numa família judia e mantém com muito orgulho a fé na religião que um dia pertenceu aos seus antepassados. Tradicional é uma palavra que bem define o judaísmo, seus praticantes prezam por transmitir o legado para gerações futuras e, para a menina, os ensinamentos que aprendeu desde a infância se tornaram fundamentais ao desenvolver por inteiro o seu ser. Os valores do que acredita, atitudes de outras pessoas que agradam ou desagradam, interesses amorosos e opiniões se lapidaram através deles dia após dia.
Elencando as práticas que mais valoriza, o respeito a todos, sempre ajudar ao próximo e tratar as pessoas de maneira igualitária são os que mais se destacam e afirma com toda certeza que influenciam no seu dia a dia, inclusive perante a forma que enxerga as questões políticas. Ao passarmos por esses assuntos e adentrarmos questões sobre a laicidade, Vivian se mostrou bem compreensiva com algumas tradições gerais que o Brasil segue. A prevalência do calendário católico de feriados, por exemplo, é uma coisa que considera justa, já que a maioria dos brasileiros são católicos - incluindo os não praticantes - mas concorda que de maneira alguma deve ter a priorização de uma religião na legislação.
Já Giovanna é uma católica devota. Apesar da rotina complicada entre trabalho e os estudos, reserva ao menos um dia na semana para comparecer à missa. Estudante de marketing, encontrou uma forma de contribuir com seus conhecimentos acadêmicos participando da Pascom, a pastoral de comunicação da igreja que frequenta. Contando sobre sua rotina religiosa, afirma ser muito apegada a sua fé e, independente das fases boas ou ruins, sempre recorre ao sagrado. Inclusive conta com muito orgulho sobre a resiliência durante o período da quaresma, justamente por entender ser um período de penitência opta por escolher uma que a atingem, como uma forma de gratidão ao sacrifício de Jesus.
A gratidão, junto ao amor ao próximo são os ensinamentos que mais carrega em sua vida e, exatamente por isso, acredita que a religião que segue não a guia em assuntos políticos. Gosto de separar o que é a igreja e o que é a minha fé, não consigo correlacionar questões sociais com a igreja. O aborto é um tema que Giovanna entende como uma questão de saúde pública, portanto, os princípios conservadores perpetuados, principalmente pelos mais velhos, não deve influenciar nas decisões alheias. A influência católica nas leis poderia significar um grande retrocesso social.
Por Felipe Achoa
Marco conheceu Paula ainda no final da adolescência. Ambos tinham vinte anos quando começaram a namorar, e, como muitos casais jovens, foram tomados por uma paixão intensa e um senso de urgência diante da vida. Casaram-se pouco tempo depois. Marco trabalhava na área comercial e Paula cursava administração, ainda que com dificuldades para manter o foco. O nascimento de Pedro aconteceu quando os dois tinham apenas vinte e quatro anos. Marco se lembra até hoje da primeira vez que o segurou nos braços: o choro forte, a pele enrugada, os olhos ainda fechados. Foi o momento mais sublime de sua vida. Mas também foi o ponto em que tudo começou a mudar.
Nos primeiros meses, a rotina cansativa com um recém-nascido colocou à prova o relacionamento do casal. Paula passou a apresentar mudanças de humor constantes. Marco, ainda inexperiente, atribuía tudo ao "baby blues" (tristeza pós-parto), mas logo percebeu que havia algo mais profundo. As saídas noturnas características do passado conturbado de Paula voltaram, acompanhadas do cheiro de bebida em seu hálito, eventualmente, de substâncias que Marco não conseguia identificar, mas intuía. As brigas se tornaram diárias. Paula, por vezes, desaparecia por horas, voltando apenas na manhã seguinte, enquanto Marco, desesperado, cuidava de Pedro e tentava esconder do filho, ainda muito pequeno, da confusão que se instaurava em casa.
Com o tempo, Paula se ausentava por dias. Marco implorava por ajuda, por compreensão, por mudança. Tentou conversar, eles até chegaram ao consenso de interná-la voluntariamente. Em alguns momentos, ela parecia disposta a tentar, mas as recaídas vinham com força redobrada. Quando Pedro completou dois anos e seis meses, Paula saiu de casa após uma discussão particularmente ácida. Foi a última vez que Marco a viu sóbria por muito tempo. Depois desse episódio, o clima da casa era sinistro, Paula não ficava por lá, não se sentia confortável ali. Marco não trabalhava muito e cuidar de Pedro e Paula simultaneamente estava explicitamente lhe custando a alma. A decisão de interná-la veio após um episódio em que ela foi encontrada desacordada, sozinha, em uma praça próxima. O medo de que ela morresse falou mais alto. A mãe de Paula interviu e pela primeira vez, a moça aceitou ajuda de verdade. Eles assinaram os papeis da internação com o coração em pedaços. Ela precisava de cuidados, mas agora ele também precisava cuidar de Pedro e de si. Não havia tempo para refletir.
Um pai, só, cuidar de Pedro sozinho se revelou uma missão árdua. Marco passou a acordar às cinco da manhã para preparar o café, arrumar o filho, levá-lo à creche e correr para o trabalho. Quando Pedro adoeceu, Marco perdeu três dias de serviço. Chegou muito perto de ser demitido, afinal, não havia ninguém mais com quem deixar Pedro; sua ex-sogra, fazia questão de recebê-lo, mas estava idosa, muito mal de saúde. Não haviam opções viáveis. Sem rede de apoio, Marco viu seu salário ser consumido por babás improvisadas, consultas médicas, roupas, comida e brinquedos. No Brasil, segundo dados do IBGE, 11,6% das famílias são ordenadas por homens sozinhos e filhos, mas o debate sobre a vulnerabilidade desse grupo ainda é escasso. Para ele, o que restava era cobrança para dar conta, para não fraquejar, para resolver o problema. Faltava tempo para tudo. A cada final de semana, a lista de tarefas domésticas parecia se multiplicar; Marco tentou se relacionar de novo, mas a rotina caótica tornava tudo difícil. O tempo se tornou líquido, escorria por seus dedos como se fosse água, se esvaia como pó; ele mal tinha tempo para dormir, para pensar, quem diria para se preocupar consigo mesmo.
A vida virou um equilíbrio frágil entre boletos, compromissos escolares, crises de birra e noites mal dormidas. Mas alí também estavam os melhores momentos da vida de Marco. Os desenhos feitos por Pedro, os abraços espontâneos, as risadas compartilhadas na hora do banho, seu filho se tornou a família que ele queria tanto que existisse, a única com quem ele poderia contar no futuro, Marco sabia melhor que ninguém disso.
Eram esses instantes que o mantinham em pé. O peso invisível do mundo não parece feito para pais como Marco, ele nunca esteve verdadeiramente preparado. Auxílios governamentais para pais solteiros são escassos e muitas vezes inacessíveis por burocracias. A creche pública, quando disponível, tem vagas insuficientes; o Brasil ainda enfrenta déficit de mais de 1 milhão de vagas para crianças de até 3 anos, segundo o relatório do Todos Pela Educação (2023). Licenças-paternidade prolongadas são quase inexistentes, limitando o tempo de adaptação e cuidado e inviabilizando em diversos momentos que pais possam dar a devida atenção e criação aos seus filhos.
Em muitas nações do globo, especialmente em países nórdicos, onde a cultura de criação do pai para com o filho é uma diáspora cultural histórica, como na Suécia, a licença-paternidade é de 90 dias e pode ser estendida. Além disso, em diversos outros continentes, também existem outros países onde há subsídios mensais diretos às famílias monoparentais, além de creches subsidiadas com horários estendidos, o que fortalece não apenas pais solteiros, como mães solteiras.
Políticas como essas mudam realidades. Marco, no entanto, vivia em um Brasil onde isso era um sonho distante. Contava com a solidariedade ocasional de vizinhos e a paciência de alguns empregadores, que, nem sempre, compreendiam a sobrecarga. Pouco a pouco Pedro crescia. Aos sete anos, começou a fazer perguntas sobre a mãe e Marco sempre foi honesto, ainda que cuidadoso. Não queria magoar a criança, mas sabia que a ausência da figura materna magoava. E era verdade. Paula seguia internada, com períodos de melhora, em que passava na casa da mãe, e recaídas. Mas era difícil, poucos sinais de recomposição eram apresentados por Paula, que já vinha em decrescente vertiginosa.
Aos poucos, o lar de Marco foi ganhando contornos mais leves. Aprendeu a preparar receitas simples, preparar a lancheira com tudo que era necessário e até costurar botões. Além de tudo ele era pai de primeira viagem; tudo era novidade. Pedro foi diagnosticado com TDAH aos oito anos, o que trouxe novos desafios: psicólogos, remédios e reuniões escolares. Marco enfrentou tudo com o cansaço acumulado, mas com a ternura de quem sabe o valor de cada pequeno progresso e de alguém que viu seu lar ser reconstituído, tijolo por tijolo.
Hoje, Pedro tem vinte e quatro anos, terminou a faculdade de administração de empresas e segue morando com seu pai. Paula já está totalmente limpa a mais de dez e finalmente “pode correr atrás”, dentro do possível, de recuperar o tempo perdido com seu filho. Marco continua trabalhando, agora com uma jornada mais realizável, o dinheiro, que por tempos era contado, e em algumas vezes vinha emprestado de amigos, agora parece sobrar. Não é muito, mas Marco já não deixa mais de comprar suas coisas para sustentar Pedro e a casa. O tempo para si, que hoje sobra e vale mais que ouro, Marco usufrui ao lado de Pedro, já que por tanto trabalho, ele mal foi capaz de acompanhar seu filho crescer, quiçá, de absorver esse crescimento.
Por uma outra íris, a história de Vitorino Fagundes retrata um homem que precisou reconstruir sua vida a partir do luto. Com um bebê nos braços e um país nas costas que pouco enxerga pais como ele. Fagundes, como é conhecido entre amigos, sempre levou uma vida simples e feliz ao lado de sua esposa, Teresa. Depois de sete anos casados e mais “não sei quantos” namorando, decidiram ter um filho para completar a família e finalmente realizar o sonho de Teca, como era conhecida. Durante a gestação, prepararam tudo com carinho: berço parcelado, paredes pintadas de azul claro, e o nome escolhido à dedo, para lembrar as memórias do avô materno — Caio.
Após meses de gestação, a realidade foi chocante, fúnebre, ao passo que, de alguma maneira, foi iluminada. Quando o bebê veio ao mundo, Teresa se foi. Complicações no parto ceifaram sua vida de forma repentina, deixando Vitorino viúvo e pai solo em um dos momentos mais frágeis da existência. Poucos momentos na vida conseguem ser tão ambíguos quanto o vivido por Vitorino. E ainda viria o desafio de criar sozinho.
Nos meses seguintes, Vitorino teve que equilibrar dois mundos em paralelo: o luto e a paternidade. O trabalho, antes motivo de orgulho, se tornou fonte de tensão. Não existia possibilidade de abrir a loja e cuidar de um recém-nascido ao mesmo tempo. Babás não cabiam no orçamento, que aliás mal existia no início da vida de caio. Tudo que Vitorino havia acumulado de dinheiro sumiu de sua frente como mágica.
A creche pública mais próxima? Lista de espera com mais de cem nomes. Não tinha para onde correr, com poucos recursos e sem direito a licença-paternidade estendida por ser autônomo, ele passou a trabalhar com o filho nos fundos da loja, de início, improvisando um berço entre caixas de papelão. Muitas vezes, precisava interromper o atendimento para trocar fraldas ou acalmar o choro de Caio.
Clientes compreensivos se tornaram raridade. A vida financeira desandou. Contas atrasadas, a loja mal vendia para se sustentar, quem diria lucro… Foram muitas noites em claro. E o mais difícil: a sensação de que ninguém o via. O caso de Vitorino revela um buraco nas políticas públicas brasileiras: a quase total ausência de suporte voltado a pais solo. A licença-paternidade é limitada (geralmente de cinco dias), sem previsão adequada para casos de viuvez. Creches públicas são escassas, especialmente em tempo integral e a maioria dos programas de assistência social, muitas vezes, tem o costume de escantear homens como cuidadores principais. Segundo dados do IBGE, o número de lares chefiados por homens com filhos pequenos, embora ainda menor que o de mulheres, tem crescido gradativamente nos últimos anos. Ainda assim, a estrutura de apoio segue problemática e , extremamente frágil, básica, tanto para pais, quanto para mães sozinhas(os), e em casos como o de Vitorino, praticamente inexistente.
O tempo passava e Caio crescia. Vitorino já não passava por dificuldades, os custos com o garoto diminuíram e o tempo para cuidar da loja foi gradativamente voltando ao normal. Quando Caio cresceu o suficiente, o pai lhe deu um presente que mudaria sua vida futuramente; montou na sala dos fundos do estoque, um espaço apertado com uma televisão de tubo e um SNES (videogame) e caio passava horas e horas desbravando o mundo dos games enquanto crescia no espaço de trabalho de seu pai. Muitos anos depois, esse amor de caio se tornaria sua profissão, desenvolver jogos para videogames. Vitorino chegou a buscar ajuda em unidades do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), mas enfrentou burocracias, falta de orientação e escassez de serviços voltados para homens em sua situação.
Vinte cinco anos depois da tragédia, Caio está prestes à ser pai e Fagundes não poderia se sentir mais honrado em ter, finalmente, um neto. A loja já não existe, mas rendeu um dinheiro razoável para que o pré-vovô possa se aposentar em paz. Vitorino ainda carrega a saudade de Teca, mas também a certeza de que está honrando o amor dela da melhor forma possível: tendo netos, com amor.
A história de Marco e Vitorino é a de milhares de pais pelo país: silenciosos, sobrecarregados, invisíveis. Homens que se reinventam para serem presentes e o sustento de suas casas ao mesmo tempo, que amam profundamente seus filhos e que, mesmo diante das adversidades, escolhem ficar, trazer todo e qualquer suporte que seja necessário para o desenvolvimento de uma criança.
A realidade de pais solteiros como estes evidencia a necessidade urgente de ações de incentivo aos pais e mães em situação monoparental, especialmente com a ampliação das licenças paternidades em casos desse cunho, com pelo menos 90 dias de afastamento garantido. Aumentar o número de vagas em creches públicas e criar turnos noturnos para trabalhadores em jornada estendida seriam que formatações sociais interessantes para gerar maior suporte a esses indivíduos, bem como criar projetos estatais de auxílio financeiro mensal específico para famílias monoparentais de baixa renda, semelhante ao modelo do “Child Benefit”, presente no Reino Unido.
Para além de mudanças palpáveis, também é importante que quebre-se certas hegemonias. Campanhas públicas que normalizam e incentivam a corresponsabilidade masculina no cuidado com os filhos, combatendo estigmas sociais são fundamentais para que haja uma mudança de mentalidade efetiva e mais pais formem-se aptos para o cuidado de seus filhos. A construção de uma sociedade mais justa passa pelo reconhecimento e apoio aos que, como Marco, Vitorino e muitos outros, fazem o possível e o impossível todos os dias; entre silêncios, lágrimas e, sobretudo, amor.
Por Philipe Mor
A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.
Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.
Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.
Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.
Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.
Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.
Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.
Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.
Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

