Por Yasmin Solon
No começo as flores, chocolates e simples demonstrações de afeto eram tão corriqueiras e rotineiras que Maria se sentia até um pouco sufocada. Eles se conheceram em um culto da Igreja do bairro, em um domingo chuvoso. Maria e Francisco tiveram o início da história digna de cena de filmes de romance. Na saída do culto, ela havia esquecido seu guarda-chuva e então, Francisco teria oferecido uma carona debaixo da sombrinha.
Depois, o encontro semanal tomou proporções românticas e, em menos de um ano, estavam morando juntos numa casa alugada. A relação começou a ficar desgastada quando Francisco perdeu seu emprego. A professora ficou incomodada em como bancava todos os gastos da casa e as discussões se tornaram comuns, tomando lugar das demonstrações de amor. Conforme o incômodo crescia, as brigas tomavam proporções mais violentas, até que Francisco deferiu seu primeiro empurrão ao “amor da sua vida”, como assim ele chamava-a.
Segunda-feira é o dia da semana mais agitado na 6ª DDM, uma das nove Delegacias de Defesa da Mulher distribuídas por São Paulo, no bairro Campo Grande, na Zona Sul da capital. Um mês após a Lei Maria da Penha completar 18 anos, considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres, a violência de gênero ainda é um dos principais problemas sociais do País. Em 2023, a violência contra a mulher cresceu 22%. Isso significa que a cada 24 horas, oito brasileiras sofreram com agressões, torturas, ameaças e ofensas, assédio ou feminicídio. No ano passado, São Paulo foi o estado com mais de mil eventos violentos contra mulheres em relação aos demais estados do país. Em 2021, já foi o estado com o maior pico no número de registros de lesão corporal dolosa ou violência doméstica por estado - foram quase 52 mil em um período de apenas um ano.
Nesses mais de 51 mil casos, existe Maria. Professora em rede pública há mais de 30 anos, Ela sempre gostou de ensinar as crianças do Fundamental. Não só gostava de seu trabalho, como tinha um carinho exclusivo das crianças. Porém, Maria apenas encontrava seu elo na escola, em seus alunos, já que em casa convivia com um agressor.
A Maria que saía de casa nunca era a que voltava. Ao bater o portão da casa alugada em Campo Grande, abria seu coração para as oportunidades do mundo com desejo de viver. Mas ao voltar, depois de um longo dia trabalhando, recebia socos, chutes e pontapés que doíam a alma. Maria tem 42 anos e vive no mesmo País que a lei que intitula seu nome está em vigor desde 2006.
Os números assustadores não só se explicam pelo fato de 20% da população brasileira estar concentrada no Estado de São Paulo, mas também pela ausência de políticas de prevenção e contenção efetivas. Apenas 11 das 140 Delegacias da Mulher em SP funcionam 24 horas. As demais atuam de segunda a sexta-feira, das 9h00min às 19h00min. O projeto que prevê o atendimento ininterrupto das delegacias da mulher em todo o Brasil, incluindo domingos e feriados, foi sancionado pelo presidente Lula no ano passado.
Há cerca de 3 anos, Maria arranjava quase todos os dias uma desculpa para as crianças. Uma vez ela caiu da escada, outra distraída mexendo no celular na rua tropeçou, outra deixou uma panela de barro cair de cima da geladeira, e assim sucessivamente. Com os olhos marejados, Maria contou que, como qualquer paixão inicial, seu então namorado Francisco era tão romântico que aparentava ter saído de um livro de conto de fadas. No dia em que teve seu rosto desfigurado e seu nariz quebrado, tomou coragem às 3 da madrugada e foi à uma Delegacia da Mulher. Depois de muita relutância, a professora denunciou seu companheiro com quem vivia há cinco anos.
Desde então, Maria se sentia não só violentada e machucada, como abandonada. A professora não tinha apoio familiar e nem buscava ter, porque segundo ela, no Brasil é mais vergonhoso apanhar do que bater. Depois de muita coragem e burocracia, Maria conseguiu medida preventiva contra Francisco e segue quase sua vida de antes, dessa vez com algumas cicatrizes no corpo e alma.
A Lei Maria da Penha, com 18 anos de vigência, consegue salvar vidas de muitas Marias pelo Brasil. Entretanto, é importante que a educação seja implementada para que as mulheres possam conscientizar e relatar a violência que sofrem e identificar seus agressores. Além disso, as instituições responsáveis pela aplicação da lei devem oferecer um atendimento humanizado, respeitando a dignidade da mulher e proporcionando apoio psicossocial.
Maria continua em sua casa alugada, ensinando crianças do ensino fundamental e ainda admite estar procurando um novo amor. Ela diz que todo mundo tem uma Maria na vida e merece amar e ser amada. Ainda espera por alguém que a respeite como companheira. "Talvez um João" comenta a professora em meio aos risos.
Por Cristian Buono
Quem passa pela Avenida Moura Ribeiro em Santos se espanta com o tamanho do condomínio Acqua Play, que conta com oito torres de 25 andares cada. Em frente ao conjunto de prédios, em uma apertada viela, reside Karina Nascimento, uma mulher de 54 anos com três filhos biológicos que dedica sua vida à doação. Em sua casa, que não deve passar de 40 m², ela recebe e divide com todos os seus "filhos adotivos" sacolas e sacolas de roupas, sapatos, brinquedos, medicamentos e material escolar. Da avenida não é possível perceber, mas quem mora no Acqua Play conhece bem a Karina. Na sala da administração do condomínio, caixas cheias de doações saem semanalmente para ajudar a missão de vida dela.
As doações começaram como uma forma de ajudar a própria família. Os três filhos da dona de casa fazem parte do espectro autista e requerem cuidados especiais. O salário do marido, trabalhador da área portuária de Santos, não estava sendo suficiente para todas as despesas. Muito amada e conhecida na região, passou a receber doações de mantimentos e roupas em meados de 2018. Quando percebeu que estava recebendo mais do que precisava, passou a compartilhar as contribuições com outras famílias na mesma situação que a dela.
Karina recorda o dia em que chegou o primeiro grande lote de doações. Era uma manhã chuvosa, e ela ainda não sabia onde armazenaria tantos itens que haviam sido entregues. A santista afirma que nem tinha onde colocar tanta coisa. Mas, ao perceber a necessidade urgente de muitas famílias ao redor, ela entendeu que aquilo era um sinal para iniciar algo maior. Daquele momento em diante, Karina começou a organizar melhor os itens, separando por categorias e chamando vizinhas para ajudar.
Ela afirma que se sentia desconfortável por receber tantas doações, ao mesmo tempo em que via tantas outras pessoas precisando de auxílio. Já conhecida na região, decidiu organizar e batizar a iniciativa. O nome não poderia ser mais assertivo: Pequeno Anjo. Com o advento da pandemia da Covid-19, as pessoas começaram a depender cada vez mais da Karina. É o caso da Marisa Vieira, moradora do Morro Nova Cintra, que afirma ter conhecido a Karina por indicações em 2021, quando estava desempregada. Hoje tem emprego e contribui com o dinheiro que podemensalmente, além de ajudar na distribuição. Só quem acompanha o trabalho sabe o quanto ela precisa dessa ajuda".
Quando a pandemia começou, a demanda pelas doações aumentou de forma assustadora. As famílias, muitas delas desempregadas e em situação ainda mais vulnerável, começaram a pedir não apenas roupas e brinquedos, mas alimentos e produtos de higiene. Karina e seu marido saíam todas as manhãs para buscar doações em bairros distantes, às vezes voltando para casa exaustos, carregando sacolas e caixas pesadas.
Com o crescimento da Pequeno Anjo, o marido de Karina também se envolveu na causa. Nos finais de semana, ele ajudava a buscar doações em outros bairros e comunidades distantes. Karina conta que ele sempre chegava exausto, mas com um sorriso no rosto, orgulhoso do impacto que estavam criando. Mesmo trabalhando tanto, ele ainda conseguia achar tempo para ajudar a dona da ONG.
Com o tempo, Pequeno Anjo se tornou uma rede de apoio e amizade para muitos. Além das doações, as reuniões semanais de organização se transformaram em um momento de partilha de histórias e experiências entre as mães. Uma vizinha de Karina e voluntária assídua, contou que a ONG é mais do que um trabalho para ela, é um espaço de apoio emocional. A fundadora da organização criou um espaço onde todas se sentem acolhidas, compartilhando suas dores e alegrias. Ela até pensou em organizar rodas de conversa e apoio emocional para as mães da comunidade.
Outra ação desenvolvida pela ONG é a realização de festas sazonais, como no Natal e no Dia das Crianças, até então feitas em espaços comunitários do bairro Marapé. Para tanto, os comerciantes da região contribuem com pães, refrigerantes, bolo e brinquedos. E os encontros são muitos aguardados pelas famílias.
A primeira festa organizada no Dia das Crianças foi pequena, improvisada na frente da própria casa, entregando comidas e brinquedos. Karina lembra de como, ao final da festa, uma criança se aproximou e perguntou se poderia voltar ano que vem. Foi aí que ela se deu conta do impacto que aquelas celebrações, mesmo simples, poderiam ter na vida dessas crianças. Desde então, ela se comprometeu a tornar as festas um marco anual na Pequeno Anjo.
Os voluntários já estão envolvidos com a próxima e mais aguardada festa: a de Natal, que será feita no final de novembro. Desta vez, com uma surpresa para as famílias: o evento será realizado dentro do condomínio Acqua Play, em salão de festas disponibilizado pelo síndico Fernando Borelli. Os participantes poderão confraternizar em espaço maior, climatizado e confortável. E as crianças terão acesso a área externa equipada com brinquedos.
Famílias acompanhadas pela Pequeno Anjo já enviaram as cartinhas para o Papai Noel. Nelas, crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria portadores de alguma deficiência física ou intelectual, expõem os mais variados desejos: brinquedos pedagógicos, jogos educativos, patins, bola... Mas a necessidade de suprir o básico a essas famílias fica evidente quando os pedidos contemplam também roupas, calçados e material escolar. As cartinhas foram encaminhadas ao condomínio Acqua Play, que vai realizar uma ação junto aos moradores.
Iniciativas visando necessidades específicas também são comuns entre a comunidade e o grupo coordenado pela Karina, como em casos de crianças de famílias de baixa renda que têm alguma doença e necessitam de alimentação diferenciada ou medicamentos de alto custo. Recentemente, a ONG conquistou uma grande vitória: o registro junto à Prefeitura de Santos, com CNPJ, o que possibilita receber verbas públicas da área de assistência social. Ela afirma que foram quase dois anos de luta, com advogados desonestos atrasando o processo, além da dificuldade de entender tanta burocracia.
Com o reconhecimento oficial da Pequeno Anjo pela Prefeitura, Karina agora sonha em ampliar o atendimento para além do bairro. Ela vislumbra a criação de uma sede própria, com espaço para armazenar melhor as doações e oferecer oficinas de capacitação para mães em situação vulnerável. Ela afirma querer que as famílias não só recebam ajuda, mas que também se tornem autônomas e possam ajudar outras pessoas. Para Karina, a solidariedade deve ser transformadora, não apenas paliativa, e a formalização da ONG é o primeiro passo para realizar esse desejo.
A história de Karina Nascimento e seus voluntários é um exemplo inspirador de como a solidariedade pode transformar vidas. Ter a capacidade de olhar para o próximo mesmo quando a própria situação é feita de tantas dificuldades. Seu compromisso com a comunidade, agora reconhecido oficialmente, permite vislumbrar um futuro em que sua ajuda possa alcançar ainda mais famílias, mostrando que, com amor, dedicação e uma rede de apoio, qualquer desafio pode ser superado.
Por Isabelle Maieru
No início da tarde Mirella havia feito um exame de Ultrassom. Ela entrou na sala e foi bem recebida por uma médica tranquila e com um sorriso no rosto. O semblante da profissional da saúde mudou quando ela olhou para a tela. Agora, séria e com uma preocupação visível em seu rosto, a doutora saiu correndo da sala, sem nem se despedir. A partir daquele momento, Mirella, mesmo sem entender o que estava acontecendo, percebeu que a situação era grave.
O dia estava quente e ensolarado naquele 17 de março de 2023, em São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo. Mirella estava com 31 semanas de gestação quando foi realizar uma consulta pré-natal de rotina. Tudo corria como de costume na gestação da jovem de apenas 18 anos. Apesar do susto com a gravidez inesperada, aos poucos tudo se ajeitava e a ansiedade para conhecer a pequena Jade, só aumentava na família. Às 9 horas da manhã, durante a triagem, onde são realizadas as primeiras avaliações, algo chamou atenção da enfermeira: a pressão arterial de Mirella estava desregulada e bem mais alta do que deveria estar. Foi nesse momento, que a angústia começou. A mãe de Jade passou a receber medicações para que a pressão arterial baixasse e a fazer uma série de exames para tentar chegar ao diagnóstico do que estava acontecendo com mãe e filha.
O tempo se arrastava. A pressão não baixava. A médica que realizou o exame foi ao encontro do obstetra que acompanhou a gestação. A quebra de protocolo aconteceu pois Jade não poderia ficar nem mais um minuto dentro do útero, Mirella não poderia mais estar grávida. Foi naquele exame em que foi descoberto que não havia mais nada de líquido amniótico, o principal responsável pela oxigenação e alimentação do bebê dentro do útero da mãe. Havia ao menos cinco semanas que Jade não recebia nutrientes e perdia aos poucos sua oxigenação, seu tamanho era correspondente ao de um bebê de 25 semanas de gestação, Mirella estava grávida há 31. Nenhum dos exames realizados durante esse período apresentaram alteração.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil por ano. Um relatório divulgado em 2023, pela OMS, a Unicef e a parceria para a saúde materna, neonatal e infantil demonstrou que 10% dos nascimentos no mundo são prematuros. É considerado prematuro o bebê que nasce com menos de 37 semanas. Junto a esse marco temporal específico, há uma classificação mais detalhada das idades gestacionais segundo a OMS: entre a 34ª e 36ª semana e seis dias, é considerado como prematuro tardio; de 32 a 33 e seis dias, como moderados; muito prematuros entre 28 e 31 semanas e seis dias; e prematuros extremos para aqueles bebês nascidos abaixo de 28 semanas. Quanto menor a idade gestacional, maiores são os riscos de não sobreviverem.
A gente teve que tirar ela à força relembrou a mãe. O parto aconteceu e o bebê extremamente prematuro, pesando 800 gramas, foi levado às pressas para a UTI Neonatal. Esse foi o cenário dos cinco meses que seguiram o dia 17 de Março. A mãe, recém operada, passou os seus três dias de internação ao lado da incubadora, que foi a casa de Jade por todo esse tempo. O momento de deixar o hospital e retornar para casa chegou. Com ele, chegaram também o medo, a insegurança e a depressão.
O Medo
Mirella sempre enfrentou um medo profundo das notícias que poderia receber. Cada visita ao hospital era um desafio, uma batalha interna entre a ansiedade e a esperança. O elevador, um espaço claustrofóbico, se tornava um símbolo de sua angústia. Muitas vezes, ao subir, o medo a dominava e, ao invés de seguir em frente, ela acabava descendo novamente, fugindo para casa. A sensação de culpa a acompanhava, um peso constante que a fazia questionar sua coragem.
A sala de espera também se transformava em um campo de batalha. Em momentos de pânico, Mirella saía do elevador, mas se via parada, paralisada, sem conseguir avançar. No entanto havia um elemento que a mantinha firme: o apoio da equipe do hospital, das outras mães que compartilhavam sua dor e, principalmente, da sua família.
Os dias eram pesados, marcados por boletins médicos e uma expectativa constante. Para Mirella, a presença da família era essencial. A prematuridade de sua filha trouxe um trauma coletivo, uma quebra de expectativas que afetou a todos. Seus pais se revezavam nas visitas diárias, garantindo que a neta nunca estivesse sozinha, enquanto Mirella tentava estar ao lado dela sempre que sua saúde mental permitia. Era uma luta constante, ela pensava, mas se forçava a estar lá.
Seu marido, mesmo com as limitações de visitas, estava sempre presente. Ele entrava apenas uma vez ao dia, mas todos os dias, em momentos difíceis, ele esperava por ela no hospital. Quando não estava bem, ele a acompanhava, ficava lá, sempre ao seu lado. Essa rede de apoio era fundamental. Mirella sabia que, sem eles, teria sido impossível suportar tamanha carga. Eles a carregaram no colo. O apoio da família foi essencial a cada dia que se passava.
A Solidão
Embora contasse com o apoio inabalável de familiares e amigos, a solidão era uma constante na UTI-Neo do hospital em São Caetano. Para Mirella, a ausência da filha era uma dor que se manifestava fisicamente. Havia um vazio que parecia insuportável, um espaço que só a presença dela poderia preencher. Era ela, a única que poderia confortá-la e fazer seu coração se sentir completo. O desejo de levar a filha para casa a consumia, transformando cada dia em uma luta.
As noites eram os momentos mais difíceis. A separação entre mãe e filha se tornava ainda mais dolorosa na escuridão. Mirella se lembrava de como desejava ouvir o chorinho da pequena, mesmo que isso significasse perder o sono. Queria que ela estivesse ali, tirando o sono, em vez de estar longe, enquanto a saudade a mantinha acordada. Nesses instantes de solidão, a luta interna se tornava ainda mais intensa, uma batalha entre o amor profundo e a dor da distância. Cada noite era uma prova de resistência, enquanto a esperança de um reencontro a mantinha firme.
Enquanto estava na incubadora, o único contato possível entre mãe e filha eram as mãos, uma segurando a outra, por meio de uma abertura na lateral da caixa. Por serem extremamente frágeis, os recém nascidos prematuros só podem ser manuseados pelas enfermeiras. A prática do “canguru” foi liberada apenas quando Jade foi transferida para o berçário de médio risco, quatro meses após seu nascimento. Por poucos minutos e sob supervisão, Mirella podia sentir seu bebê em seu peito, como sempre sonhou. O método é extremamente defendido pela OMS e Sociedade Brasileira de Pediatria, pois oferece inúmeros benefícios tanto para a mãe, quanto para o bebê.
Fim da Solidão
Após cinco longos meses de espera, angústia, medo e inseguranças, mãe e filha puderam seguir juntas para casa. Embora estivesse bem e saudável, a luta das duas não terminava por ali. Jade, tomava cerca de doze remédios por dia e fazia uso de bombinhas de ar. Além disso, fazia acompanhamento multidisciplinar com pneumologista, neurologista, gastrologista, oftalmologista, fonoaudiólogo, pediatra neonatologista, cardiologista e cirurgião. Sua idade passou a ser contada de forma corrigida.
O Ministério da Saúde recomenda que se considere a idade cronológica (idade real que a criança tem desde o nascimento) junto com a idade corrigida (idade que a criança teria se tivesse nascido com 40 semanas), que deve ser utilizada principalmente ao avaliar o crescimento e os marcos do desenvolvimento da criança prematura. Para os prematuros extremos a recomendação é de utilizar a idade corrigida até os 3 anos de vida. para os demais prematuros a recomendação é utilizar a idade corrigida até os 2 anos.
Hoje, um ano depois, Jade e sua família têm marcas de tudo o que passaram, mas também a alegria de ter a família reunida em casa. A pequena menina teve alta de quase todos os médicos, atualmente ela só faz acompanhamento com a pediatra neonatologista, especialista em bebês que passaram pela UTI-NEO, que vai acompanhá-la até os cinco anos, e com a neurologista. Seus remédios, que antes eram doze, hoje é um só. A mãe, que havia se desencontrado e abdicado de si mesma para cuidar da filha, se reencontrou. Realizou a profissionalização em unhas e hoje tem seu espaço para receber seus clientes. Ao lado do pai, vivem acompanhando o desenvolvimento de Jade.
Até hoje, o som das máquinas da UTI ecoa na mente de Mirella, provocando uma aceleração instantânea do coração e uma respiração ofegante. O trauma da experiência ainda a persegue, uma ferida que ela tenta curar com a ajuda de psicólogos, psiquiatras e o apoio incondicional da família. Essa vivência se tornou uma marca indelével em sua história, moldando não apenas quem ela era antes da internação de Jade, mas também quem se tornou após esse período desafiador.
Mirella sente que essas memórias, apesar da dor que podem trazer, são parte essencial de sua identidade. Ela diz querer carregar para sempre alguma parte daquilo. Essa experiência não foi apenas uma fase difícil, mas um capítulo significativo da vida de sua filha e da sua própria trajetória. A história de Jade e a sua se entrelaçam de maneira profunda, e Mirella se recusa a deixar que esses momentos sejam esquecidos. Mesmo que às vezes doam, ela quer que essas lembranças façam parte de quem ela é, para sempre.
Por Bianca Athaíde
A fachada intriga quem passa na rua. Um portão de tom laranja forte, quando aberto, dá passagem visual para uma casa de arquitetura clássica da São Paulo da década de 50. Em tons bege e branco, as janelas e ornamentos criam a estética reversa do que se guarda ali dentro. Na varanda, o intelecto fica mais confuso e raciocínio custa a entender: manequins vestidos com peças que não combinam entre si; eletrodomésticos e itens de decoração que evidentemente completaram sua maioridade e uma placa de visual circense, com a tipografia embaralhada, escrito "Antiguidades Minha Avó Tinha". Já na frente da porta de entrada, compreende-se por completo o que pode ser encontrado lá dentro.
O brechó "Minha Avó Tinha", no coração do bairro de Perdizes, é um dos maiores na capital paulista, sendo referência do garimpo de luxo no Brasil. Hoje, ele faz parte do movimento de brechós que lucram cada vez mais com jovens interessados por moda, enquanto buscam itens valiosos e únicos, para fugirem da estética dominante e se destacarem na multidão. O ambiente, assim como muitos outros no ramo, constroi uma confusão visual, com excesso de informações e detalhes, os olhos dos visitantes são cativados pelo brilho extraordinário que as peças expostas reluzem. Ao entrar, é capaz sentir a vibração de cada item, cada história e cada destino, fazendo muitos, que se permitem, passearem durante horas a fio pelos dois andares e mais de sete salas recheados de objetos.
A estudante de arquitetura, de 23 anos, Marina Falleiros fica perplexa com a imensidão de informação existente naquele lugar e aponta para cada coisa que ganha seu olhar, como uma criança feliz. Diz ser viciada em brechós e acha que começou a frequentar um pouco depois da pandemia, lá em 2022. O que a deixa encantada é a diversidade das coisas, Ela afirma amar um lugarzinho diferentão enquanto caminha extasiada pelos corredores.
Mas pouco tempo atrás, a visão misteriosa e cativante que esse tipo de comércio atualmente recebe, era mitigada pelo cheiro de naftalina e a aversão a compra de produtos usados. Poucos do que criticavam, sabiam a história por trás desse movimento e o impacto que sua existência pode gerar em um futuro de consumo mais consciente.
Foi no final do século XIX, no Rio de Janeiro, que um alfaiate português abriu uma loja para compra e venda de produtos usados. Belchior obteve sucesso. Sua empreitada ficou tão conhecida, que rapidamente foi copiada e surgiram múltiplas "Lojas do Belchior". O cenário era tão recheado que até no conto de Machado de Assis, Ideias de Canário, publicado em 1889, esse tipo de negócio é citado. A ideia do alfaiate veio dos famosos mercados de pulgas europeus e como a língua é um ser orgânico, de evolução misteriosa, com o passar dos anos o termo "belchior" se transformou em "brechó".
A denominação carregou um peso negativo na cultura brasileira durante muito tempo. O proprietário do "Minha Avó Tinha", Franz Ambrósio comenta amargamente que era comum a ideia de que todo mundo queria abrir um brechó. Mas explica que não é fácil, pois não se trata de simplesmente pegar roupa e botar pra vender. Durante seus 34 anos de experiência com o mercado, o Belchior moderno adquiriu vasta expertise em curadoria, e seu sucesso foi tanto que já abriu uma segunda unidade, focado mais em peças de luxos, reconhecida e frequentada pelas principais blogueiras e entusiastas de moda de São Paulo.
O fato é que, apesar da tradição centenária desse tipo de comércio, apenas agora o identitário de algo velho, mofado e sujo, está sendo quebrado. Segundo números publicados pelo Sebrae, em 2019 já existiam mais de 14 mil brechós no Brasil, aumentando a quantidade ano a ano. Grande parte da onda de positivismo que está banhando esse tipo de comércio é graças a geração Z. Segundo a McKinsey & Company, empresa especializada em consultoria empresarial, a geração Z representa 40% dos consumidores globais de brechós. Aos 19 anos, a estudante Maria Luísa Armelin afirma a preferência pelo mercado crescente do second-hand. Ela diz que sempre preferiu o diferente e que era muito chato comprar em lojas de shopping. Foi quando começou a comprar peças em lojas de segunda mão online, mas ressalta que a peça tem que estar boa pois coisa feia e cara não dá para comprar.
Meio ambiente
Outro ponto positivo do aumento súbito pelo interesse em brechós é a consciência ambiental que a geração mais nova possui. A indústria da moda é fortemente apontada como uma das mais poluidoras do cenário atual, sendo responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono, número esse que a cada momento piora, com grandes aglomerados empresariais internacionais de fast fashion produzindo e descartando toneladas de materiais a cada minuto. Por isso, entre os mais jovens, comprar itens usados deixou de ser algo mal visto para elevar-se ao posto de descolado. O perfil médio do consumidor de peças de roupas usadas, diga-se, é formado por mulheres jovens, entre 18 e 45 anos, de classe média e antenadas nas discussões socioambientais.
Em resumo, o movimento só tende a crescer, independente dos motivos, todos contribuem para um futuro mais promissor no cenário fashion, além do ambiental. Se moda é expressão pessoal, movimento circular de tendências e uma corrida exaustante para se tornar uma referência fashion, o movimento de brechós é exatamente a resposta a ser procurada, com respeito ao passado e vontade de inovar no futuro. Um movimento capaz de substituir o cheiro de naftalina pelo brilho dos brechós.
Por Davi Garcia
A cidade de Lorena sofre com a deficiência de memória histórica dos acontecimentos da escravidão, principalmente pelo peso da região nesse processo e o quanto foi palco de crimes e preconceitos com as pessoas pretas. Ainda restam alguns poucos casarões do período do café, mal preservados e afastados das áreas urbanizadas da cidade. Porém, existe sim a possibilidade de associar o município ao passado escravocrata. Nicolas Marucco, historiador e pesquisador, morador do Vale do Paraíba, contextualiza o cenário da escravidão no século XIX.
Ele explica que em agosto e setembro faz muito calor e pouco chove na região do Vale do Paraíba, um clima seco e ruim de se respirar. No final do século XIX a estrada entre Cruzeiro e Lorena, era mais uma passagem de café rumo à capital paulista. Muitos sequer respondiam como seres humanos, mas como escravos. Corpos, ferramentas de trabalho estavam à disposição do mandatário. Com a chegada da noite, pode enfim descansar na fazenda, em uma região mais afastada de Lorena, onde se encontra a cidade de Canas nos dias de hoje. A fazenda era apenas uma das sessenta, que importava quase duas toneladas de café. O ano era 1854.
A presença da escravidão no Brasil remete ao período da colonização, e em meados do século XVI já havia registros dos primeiros navios tumbeiros atracando nos portos do Nordeste açucareiro. A escravidão foi direcionada para os indígenas e africanos, estes com maior atenção da coroa devido aos lucros maiores. Em Lorena, assim como no Vale do Paraíba, a escravidão tem registro desde a intensificação da ocupação e exploração da região, nos séculos XVIII e XIX. Nela, surge a história de quatro escravos que se reuniram como uma família, e viram ser separados como nos navios que os tiraram de casa e os fizeram perder suas identidades;
Naquela época os membros de uma família de escravos sequer tinham nomes. Uma “mãe” de 20 anos, por exemplo, se preocupava com as movimentações recentes de mulheres em direção ao município de Silveiras, que adquiria mais e mais escravas. Os garotos que ela adotara como filhos, ambos na faixa de 10 anos de idade, eram sua única esperança de ver o sol raiar atrás das montanhas da fazenda do Vale do Paraíba. Além disso, o cheiro de comida rica e farta que fazia para Julian Florence Meyer, alemão e Senhor que cuidava dessa fazenda, devia invadir seus sentidos, mas ela raramente tocava em algo que não fosse além de restos.
Nessa mesma família, o “pai”, em torno de seus 25 anos de idade, reservava suas poucas energias para divertir os pequenos após mais um dia de trabalho desumano no solo do cafezal da fazenda, nos subúrbios de Lorena. Como a mãe, também tinha medo de ver sua família se desmoronar. Afinal, a cidade de Guaratinguetá vivia uma intensa expansão das lavouras de café, em que demandava mão de obra incessantemente, e era, portanto a que mais adquiria escravos de sua idade naqueles anos de 1850 e 1860. As famílias escravizadas eram frequentemente desfeitas. Estima-se que em muitas fazendas do Vale do Paraíba, aproximadamente 40% das vendas de escravos envolviam a separação de famílias.
As noites eram o único momento em que conseguiam se reunir. No pequeno espaço da senzala, eles dividiam um canto escuro com outros cativos. Quando o silêncio caía sobre a fazenda e o único som era o zumbido de insetos no mato, os meninos se agarravam ao colo da mãe, tentando adiar o inevitável momento em que ela também teria que enfrentar os horrores do trabalho forçado. Ao amanhecer, aquela "mãe" recebe a terrível notícia que seria vendida pela quantia de 600 mil réis através da adjudicação no inventário da esposa de Julien Meyer. O comprador era um Senhor que daria para essa "mãe" um nome: Ignez. \E a tornaria sua esposa. A base da mulher havia desmoronado, e as crianças que assumiu orgulhosamente como filhos ficariam apenas como saudades eternas.
Aquele "pai" não fazia ideia de como seguir com essa notícia. Não tinha condições para cuidar dos dois pequenos, principalmente por conta do exaustivo trabalho na fazenda Meyer. Além disso, o pai entraria para a estatística de 81% dos homens escravos de Lorena que estavam solteiros, transformando a vida do rapaz uma verdadeira solidão e vazia naquelas noites geladas em que os ventos do Vale passavam pelo seu corpo sem camisa. Os "filhos" choraram pela despedida forçada de sua mãe, e mesmo tão novos, não era a primeira vez que teriam que passar pelo dolorido processo de separação.
Meses depois, e sem forças para seguir, o "pai" acabou falecendo devido a precarização e a humilhação que sofria todos os dias naquela. Morreu sem dignidade, sem o direito de experenciar a vida como deve ser vivida. Os seus 20 e poucos anos de idade foram tomados pela angústia, dor, suor e sangue do trabalho escravo de todos os dias em que pisou no solo do Vale do Paraíba. No entanto, não era um cenário atípico: a expectativa de vida de um escravo no Brasil era de 25 anos de idade. Por fim, acabou integrando o grupo que sofreu um dos maiores genocídios da história -- mais de 15 milhões de pessoas mortas, assassinadas pelo sistema escravocrata.
Os filhos do casal tiveram de "viver" mais uma vez sem uma figura de amor, que poderia fazer chegar perto de ter uma infância, assolados pela certeza de que, a partir daquele momento, construiriam suas vidas sozinhos. Com a chegada da Lei Áurea no ano de 1888, já adultos e com nomes, Pedro e Joaquim, se encontravam “livres”. Conseguiram avançar na idade e na faixa dos 40 anos, Joaquim trabalhava como pedreiro no antigo Engenho localizado na Vila Nunes, e ajudava a expandir o local construindo a moradia de seu chefe. Mesmo após a assinatura da lei que libertava os escravos, o preconceito continuava presente nas ruas, nas plantações e nas fábricas, e era visto com desdém por parte de brancos e alguns europeus que trabalhavam no local. A lei havia mudado no papel, mas o tratamento e o preconceito social permanecia cruel os ex-escravos.
Pedro, que ganhou um nome enquanto trabalhava na fazenda do filho do alemão, agora vivia nas ruas de Lorena, principalmente na região do Centro, onde a cidade foi construída para trás da igreja principal. Ser liberto pela Lei Áurea pouco mudou na vida do homem, que ainda não tinha o direito à vida, sendo tratado ainda com escravo pela população. Acabou se suicidando na ponte de madeira recém construída no rio Paraíba, e seu corpo foi só mais um dos tantos que morreram em decorrência do isolamento social.