Por Beatriz Alencar
Vitoria encarou de perto estar de frente entre a vida e a morte. Ela já ficou por mais de 40 minutos fazendo massagem cardíaca em um paciente. O braço dolorido, mas a consciência e a luta pela vida não podia ser perdida. Injeta adrenalina, põe ventilador, usa de tudo o que tem disponível para fazer ele voltar, e mesmo assim, não adiantar. Os sentimentos de impotência e incapacidade não vão embora com o passar dos anos.
Enfermeiros e técnicos de enfermagem nada mais são do que artistas, que têm nas mãos o poder de aparar um pedaço de cada parte que forma o corpo humano, desde a pele aos sentimentos, sendo aquele que proporciona conforto e uma certa segurança. Vitória é técnica, e já presenciou dois ‘mundos’: um em hospital particular e outro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Falando de ambas as experiências, transmitia esperança em meio a um caldo de inseguranças que os diagnósticos diários que encara proporcionam. Dentro do SUS, ela relata que foi onde teve as experiências mais incríveis. Não de um jeito positivo, mas de se impressionar. Apesar de muitas vezes faltar materiais e suprimentos, o contato com o paciente sempre foi o zelo.
Fazendo jus a arte da profissão, a improvisação na falta era um ato recorrente. Até mesmo a hora do banho do enfermo podia ser afetada. Sem ter esponjas para a higiene pessoal do paciente, a criatividade virava melhor amiga. Às vezes, era preciso fazer até mesmo uma bucha de banho usando faixas, luvas e o que estivesse ao alcance. Até o copo descartável virava balde na falta de um para levar água até o leito do paciente.
Em contrapartida, os processos dentro do hospital particular são mais extensos. Tudo é catalogado, desde uma agulha a um soro. Nada pode passar batido já que se trata do dinheiro de cada convênio. Todo medicamento, ampolas, suprimentos utilizados do hospital, são descontados e cobrados do plano de saúde dos pacientes, sendo assim, a papelada nunca parece ter fim. O dinheiro é algo em comum entre ambos, porém, enquanto em um há escassez, no outro há contabilidade. Mas para Vitória, o que importa é proporcionar cuidado a cada pessoa que está ali doente, já que o principal papel de um agente da saúde é fazer de tudo para os pacientes se sentirem melhor.
A relação entre paciente e enfermeiro é o mais trabalhoso. Não somente com os difíceis, mas também com os bondosos. A criação de laços é o que mais acontece, apesar de ser recomendado o contrário, pois o apego deixa o profissional suscetível ao sofrimento em conjunto. Mas, para Vitória, é inevitável. Encarar todos os dias rostos de quem não sabe se verá de novo chega a ser injusto.
Porém, para a técnica, o lado mais dificultoso é tratar de quem não aceita que precisa ser tratado. Já para Rita de Cássia, chefe da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) Cardio e de outros setores de um hospital particular, a parte mais difícil é cuidar de quem cuida. Saber que tem o poder de tomar decisões, mas ter limitações. Escutar, mas também se fazer ser escutada. A burocracia, perto disso, não passa de papel.
Todos dessa profissão se encontram na linha de frente, e Rita abraça todas elas. A enfermeira chefe relata que, tomar partido de situações dentro de um hospital é tão sufocante quanto precisar de oxigênio. Ela chegou a repensar o cargo, mas a ideia passa como brisa. Apesar das dificuldades da função, o que prevalece para ela é entender que precisa estar lá pela e para as pessoas. Não só pacientes, mas das colegas de profissão e equipe. Claro, há quem não trabalha por amor. Mas é como Rita afirma: não é só de sentimento que enchemos o prato. Apesar disso, o trabalho sem zelo dificulta a humanização que, para a chefe, é essencial para se tornar um bom enfermeiro.
Marcas
Vitória trabalha na UTI Cardio, tratando de especificidades graves. Quase toda semana presencia um paciente ir a óbito. Nesse setor, a rotatividade nos leitos é grande, então não é comum a internação durar muito mais do que poucas semanas mas, uma vez, ela cuidou de uma idosa por dois meses. A moça precisava de um transplante de coração e estava na fila para receber uma doação de órgãos. De acordo com a legislação brasileira, a prioridade para transplantes de órgão são para crianças e jovens até 18 anos de idade. A senhora não resistiu à espera e foi a óbito. Foi a primeira vez que Vitória se apegou a uma paciente e chorou por não saber o que fazer ou como contar à família.
Esse cenário foi muito recorrente durante a pandemia da Covid-19. Uma palavra e um período assustador que ninguém imaginaria que duraria tanto e que, ao mesmo tempo, passasse tão rápido. Em 2025, se passaram cinco anos desde que foi declarado pelo governo o sistema de lockdown devido a um vírus mortal que ainda não tinha meios para ser combatido e nem como ser evitado. Uma das vivências mais marcantes de Rita foi durante o começo da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), como foi nominada pela OMS.
Ela se deparou com um jovem que viu o pai dele poucos instantes antes da morte. Os dois tinham contraído o vírus e apresentavam os mesmos sintomas. Por ainda não terem tanto conhecimento de tratamento e que a idade poderia ser um agravante da doença, os dois tiveram a mesma assistência, mas não o mesmo fim. O jovem passou a desacreditar da ciência, dos profissionais da saúde, da vida. Uma pessoa que costumava falar mesmo no leito da emergência, se calou. E vendo tantas pessoas da equipe tentando reanimá-lo, Rita fez o que a empatia da profissão exige: acalentou. Com esse gesto em silêncio, mas ativo, a enfermeira chefe percebeu que muitos dos seus conceitos sobre a profissão precisavam mudar, e que a calmaria de uma companhia às vezes pode curar mais do que uma seringa.
As pessoas do mundo inteiro, durante os três longos anos da pandemia e do lockdown, esqueceram o que eram esse acalento. Há cinco anos era rotina lavar tudo o que viesse de fora para não contaminar os ambientes da casa. Era chegar e deixar o sapato para fora. Passar álcool em gel em tudo o que fosse possível e não só nas mãos. Vitória relata que, por mais que tivesse receio de conviver com a Covid todos os dias, o que mais temia não era morrer, e sim levar o vírus para dentro de casa e contaminar quem ama. Era não conseguir fazer nada para salvar os pacientes que chegavam nos profissionais de saúde com uma última súplica de poder sair do hospital curado e podendo acreditar que ainda presenciaria uma vida sem ter que conviver com a Covid.
O calor humano físico foi revertido em apoio online aos profissionais de saúde. A Internet se tornou crucialmente o meio de conexão. Panelaços foram planejados, feitos, gravados e postados. Hashtags em apoio aos médicos, enfermeiros, técnicos, foram lançadas. Monólogos e poesias foram escritos em homenagem. Hoje, sobraram somente lembranças desse movimento. Rita relata que foi emocionante ver tantas pessoas reconhecendo a importância da profissão dela, mas triste o fato de precisar de uma crise sanitária para que olhassem com admiração o setor da saúde. Vitória compartilha do mesmo sentimento e, mesmo assim, ambas não souberam responder o que de fato as faz continuar. Mas uma coisa puderam afirmar: largar a profissão não é uma opção.
No fim, acabaram-se os panelaços e os aplausos, mas o afago dos agentes da saúde, que se tornam psicólogos, amigos de bar, tios, filhos ou o próprio acompanhante de cada paciente, continuam presente no dia a dia de todos aqueles que decidiram fazer da própria vida um propósito de ser a síntese do cuidado de tantos.
Por Julia Berkovitz
Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.
Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.
A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre.
Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.
Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome.
Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade.
Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente. Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente.
Por Laura Celis
O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.
A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.
Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.
Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.
Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.
Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária.
A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade.
A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente.
O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.
Por Mohara Cherubin
Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.
Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.
Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.
O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.
Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.
A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho.

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.
Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.
E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia.
20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade.
Por Philipe Mor
Dulce Carmelina Ribeiro da Silva nasceu em 1956, no pequeno município de Cruzília - Minas Gerais. Criada pela mãe solo, Carmelina Francisca, e pelo avô, José Antônio, ela enfrentou desde cedo desafios que a levaram a contribuir para o sustento da família. Sua trajetória reflete a de muitas mulheres que, sem acesso à educação base ou a empregos estruturados, encontraram no setor informal, ainda que longe de suas origens, uma forma de sobrevivência, algo muito comum para quem vive na roça.
Na simplicidade do meio rural, Dulce conheceu precocemente as dificuldades da vida no campo. Ao lado dos cinco irmãos, dividia-se entre os afazeres domésticos e o trabalho na lavoura, onde cultivavam milho, arroz e feijão, para garantir o sustento da casa. O ambiente era cercado por fazendas e vastas áreas de vegetação, cenário que moldou sua relação com a terra e lhe ensinou o valor do esforço diário que o cuidado com a lavoura exige.

A lida no campo representava um compromisso com a família. A mãe foi sua maior referência, um exemplo de força e perseverança ao enfrentar sozinha as dificuldades para criar os filhos. Já o avô, com sua sabedoria, transmitiu a Dulce princípios que a acompanham por toda a vida: respeito, honestidade e dignidade. Valores que aprendeu fora da sala de aula.
Dulce não teve acesso à educação de qualidade. Em Cruzília, estudou apenas até a terceira série do Fundamental, mas é extremamente grata a sua professora de infância, Miá - quem lhe ensinou a ler e escrever. Ela viveu na roça até completar 17 anos. Nesta época, com a morte do avô, foi trabalhar na cidade em busca de ganhar dinheiro para, além de ajudar em casa, sanar suas vontades – como qualquer adolescente. Graças a mãe conseguiu o primeiro trabalho longe das lavouras e dos esforços do campo, como cuidadora de uma idosa. Durante três anos, Dulce viveu e trabalhou na mesma residência. Até que saturou. Apesar de receber mais do que no plantio, ela ficou de “saco cheio” da rotina e decidiu procurar por outra tarefa.
Após esse período, Dulce foi convidada a cuidar dos filhos do prefeito de Cruzília. Assim como antes, seu trabalho e seu descanso dividiam o mesmo espaço. Entre as crianças, um vínculo floresceu: um dos pequenos passou a chamá-la de “mãe”. Longe dos seus, cercada pela saudade, aquele afeto infantil foi um alento em seu coração.
Mas o destino reservava a Dulce um outro tipo de amor. Logo, seu peito se apertou de um jeito diferente, não de saudade, mas de encanto. Foi assim que conheceu Mário Sérgio. Em seis meses de namoro intenso, decidiram unir suas vidas e passaram a morar juntos na casa da mãe dele. Seguiu como babá, sem nunca ter tido sua carteira assinada, até então. Mário, por sua vez, trilhava um caminho semelhante. Entre um bico e outro, fosse como chapeiro ou descarregador de caminhão, ele garantia o sustento. Depois de juntar algumas economias, levou a esposa para um sítio, onde recomeçaram, lado a lado, uma nova história.
Foi nessa época que Flaviana nasceu. A primeira filha do casal chegou em meio a tempos difíceis, quando o dinheiro mal cobria o essencial. Logo, novos filhos vieram, e com eles, cresceram também as necessidades. Diante da pressão, uma decisão se impôs. Mário partiu para São Paulo, em busca de trabalho e de um futuro mais digno para a família. Enquanto isso, Dulce permaneceu em Cruzília, agora com quatro filhos nos braços. E assim, como em um ciclo que se repetia, a história de superação de sua mãe começava a ecoar em sua própria vida.
Como uma espécie de "mãe-solo", Dulce seguiu por 10 anos em uma rotina de educar as crianças e cuidar das tarefas domésticas, enquanto, Mário Sérgio mandava dinheiro suprir as necessidades básicas. Durante esse período, além dos afazeres da residência, ela não trabalhou. Para garantir algumas moedas e o aluguel, prestava serviços aos conhecidos da região mineira - auxiliava em reformas e costurava roupas. Neste contexto, as visitas entre o casal eram esporádicas e preciosas. Ao longo dos 10 anos em que Dulce permaneceu em Cruzília com os pequenos e Mário em São Paulo, ele aparecia cerca de uma vez por mês para visitá-la e ver os filhos.
O tempo passou. As urgências aumentaram e os filhos - agora adolescentes, começaram a dar trabalho. Foi aí que ela decidiu apostar todas suas fichas em uma mudança de vida: abandonar as dificuldades de Cruzília e se instalar na principal metrópole de Brasil, ao lado do marido. Em São Paulo, Mário, além de ajudar com o aspecto financeiro, contribuiria para educação das "crianças".

Foi num 12 de outubro, feriado das crianças, que a mudança aconteceu. Com as malas apertadas e os filhos nos braços, Dulce embarcou em um ônibus rodoviário com sentido a capital paulista. Não avisou. Não pediu permissão. Apenas foi, levada pela coragem.
Desceu na capital em 1996, com a esperança de se firmar financeiramente e estruturar a família, acolhida pela cunhada na Vila Carrão, na Zona Leste. Ainda com a poeira da estrada nos pés, ligou para Mário e contou: "cheguei". Ele, surpreso, apareceu ao anoitecer.
O primeiro fim de semana na cidade grande foi cheio de reencontros e promessas, passado na casa da irmã de Mário. Mas logo a segunda-feira chegou — e com ela, a realidade. Ele os levou para Perdizes, onde morava num espaço da firma. No começo, a moradia era quase vazia. Tinha alguns cômodos bem divididos, mas poucos recursos. Apenas uma pequena geladeira. Sem móveis, um sofá-cama e forros no chão acolhiam, como podiam, o descanso da família.
Aos poucos, o lar tomava forma — não apenas nas coisas, mas no cuidado que ela espalhava em cada canto. Entre idas e vindas para Minas, sempre trazia alguma coisinha: roupas e utensílios. Com a família enfim abrigada e um teto, ainda que modesto, Dulce partiu em busca de procurar trabalhos. Seu primeiro emprego na nova cidade foi como cuidadora em uma casa de família. Ficou apenas três meses por lá, mas foi o suficiente para dar o primeiro passo. Logo depois, surgiu uma nova oportunidade — dessa vez, em uma empresa de informática.
Nesse emprego Dulce teve seu primeiro trabalho fixo de carteira assinada. Entrou como auxiliar de serviços gerais, mas o que parecia simples, para ela era símbolo de conquista. Pela primeira vez, sentia que a vida começava a tomar um novo rumo. Dulce ficou na empresa entre meados de 1997 e 2007. Nesse tempo, com a ajuda do programa Escola de Jovens e Adultos - EJA, conseguiu concluir os estudos. Com o salário da empresa e os bicos feitos pelo marido, encontraram um aluguel na Zona Norte de São Paulo — onde vivem até hoje.
Mas quando tudo parecia, enfim, seguir um rumo mais tranquilo, a empresa fechou as portas. E, naquele momento, o seguro-desemprego era pouco diante das contas e das urgências que batiam à porta. Com o aperto das necessidades, Dulce passou a trabalhar como diarista. Cuidava da rotina de outros lares, para que nada faltasse no seu. Não era o emprego dos sonhos - sem garantias ou registros, mas as dificuldades falaram mais alto.
Por volta de 2010 foi prestar serviços na casa de seu antigo patrão. Na residência - onde atuava duas vezes por semana, Dulce era responsável pela limpeza geral e o preparo das refeições. O salário mínimo que recebia, apesar de importante, não era o ideal e, por isso, ela teve que buscar outras moradias para cuidar.
Com o passar dos anos, a rotina se tornou cada vez mais pesada, e o cansaço parecia não ter fim. Duas de suas filhas, já adultas, ainda moravam com ela. Uma delas teve dois filhos e a responsabilidade pela criação caiu direto em seu colo. Sem aviso precisaram dominar a situação no peito e seguir em frente.

Embora contrariada por dentro, nunca recusou o cuidado com os pequenos, Michelly e Miguel. No entanto, em seus pensamentos, sabe que essa responsabilidade dificultou o alcance de um pouco de sossego e prosperidade. Ainda mais em uma época que tudo é tão caro e os desejos dos pequenos são diversos. Essa nova responsabilidade faz com que Dulce não possa vacilar. Assim como seus filhos um dia dependeram dela em Cruzília, agora são os netos que precisam de seus cuidados. E ela não pretende falhar nessa missão.
Entre os panos, panelas e passos apressados Dulce carrega nos ombros uma vida que não foi aquela que sonhou. Quando deixou Minas e veio para São Paulo, pensava que aqui encontraria sossego e estabilidade. Achava que deixaria para trás todas as dificuldades da roça. Mas a realidade foi mais dura do que esperava. Na correria do dia-dia, Ela ainda guarda esperança e sonha com um futuro melhor e um cantinho só seu.
Em busca de uma casa digna, ela participa ativamente de um movimento social em prol de moradia, há mais de 10 anos. Agora, o tão esperado apartamento aparenta estar mais perto pra sair do que nunca. Mais que paredes, a mineira da pequena Cruzília quer tempo para si, para respirar e para viver com leveza. O corpo cansado das faxinas pede pausa. Mas a realidade insiste em chamar. E por aqueles que ama, ela segue firme e disposta a entregar tudo para garantir a paz e o bem-estar da família.