Por Khadijah Calil
Gisela não sabe exatamente quando, mas foi notando pequenos defeitos que começaram a incomodar: alguns quilos a mais aqui e ali. A transformação foi sutil, decidiu iniciar dietas e treinos, o que a princípio era um hábito saudável. Até o momento em que começou a receber elogios sobre as mudanças no seu físico, as quais ela não conseguia perceber diante do espelho, um fenômeno comum entre aqueles que sofrem de Transtorno Dismórfico Corporal. As restrições alimentares passaram a ser jejuns longos, dos quais já a levaram a desmaios repentinos, e treinos incessantes, onde passava todo seu tempo livre, acreditando que essa seria a solução para ver um resultado que lhe agradasse.
Por uma infeliz coincidência, essa luta interna surge em uma realidade de popularização de canetas emagrecedoras. O remédio, indicado para quem precisa do tratamento de diabetes e obesidade, começa a ser vendido de forma irregular, sem receitas, para quem quer emagrecer a qualquer custo. O impulso de Gisela de comprar o medicamento clandestinamente foi impedido pelos preços astronômicos que estava sendo vendido, mas ela mantinha essa meta financeira.
Após seu aniversário de 45 anos, as crises se intensificaram. Ela percebeu que a Internet, talvez pela teoria dos algoritmos, a fazia refletir mais sobre si mesma com o conteúdo que era fornecido. Ao se deparar com postagens de outras mulheres comentando sobre defeitos na aparência, ela se perguntava se também havia falhas em seu corpo que não notava antes. Gisela começou a repensar eventos da sua vida e questionar tudo ao seu redor, inclusive sua separação do marido, achando que isso poderia ter ocorrido por uma falta de atração física por ela. Seus pensamentos auto sabotadores a levaram a acreditar que uma amiga, que constantemente a convidava para treinar, estaria indiretamente tentando alertá-la sobre seu peso.
Diante disso, a publicitária, que cuidava tão bem da imagem alheia, se refugiava no trabalho, onde tinha uma rotina home-office e não precisava se expor ao olhar do mundo. Contudo, a pressão interna sobre sua aparência tornou-se insustentável e fez com que ela retirasse todos os espelhos de seu quarto. Encarar seu reflexo se tornou uma dor física, e as comparações alimentadas pelas redes sociais intensificaram ainda mais o ciclo de autocrítica. Assim, ela se afastava cada vez mais de sua família, seus amigos e de sua vida.
O transtorno dismórfico corporal (TDC) afeta cerca de 1,7% a 2,4% da população mundial, uma prevalência comparável à de distúrbios como anorexia e transtornos de ansiedade. A doença, considerada um Transtorno Obsessivo- Compulsivo (TOC), pode ser influenciado por fatores genéticos ou ambientais, e faz com que a pessoa sobrevalorize ou imagine certas imperfeições físicas. Gisela é uma das vítimas dessa condição e convive com as limitações de ter sua imagem como o principal pilar de sua vida.
Em busca da cura
Indignado ao ver sua mãe passar por tudo aquilo, Lucas, de 16 anos, perguntou se ela queria seus olhos emprestados, pois não entendia por que ela não se enxergava como realmente é. Sentindo falta de sua mãe, com todo o isolamento que ela optava para evitar ser vista, ele pediu ajuda a parentes para salvar Gisela desse limbo pessoal. Aos poucos, ela cedeu aos conselhos de sua família, que a incentivava a procurar ajuda psicológica, algo que ela inicialmente resistiu. Falar sobre si mesma — alguém que ela já odiava — parecia um desafio doloroso demais.
As orientações terapêuticas eram focadas na consciência corporal e no autoconhecimento, que amenizavam as crises da dismorfia corporal e reequilibravam aos poucos a vida emocional de Gisela. Sua lição de casa era mostra amor próprio: passou a se cuidar de maneira mais saudável, com o acompanhamento de um nutricionista e de um personal trainer, evitando conteúdos ou lugares que alimentassem sua autodepreciação. Porém, a doença ainda estava ali, quando ela menos esperava as crises ainda apareciam para relembra-la de todo aquele ódio interno. Foi preciso que o psicólogo a encaminhasse ao psiquiatra, onde ela passa atualmente por uma intervenção mais elaborada, com auxílio de medicamentos.
Hoje, Gisela percebe que o problema não está em seu corpo, mas em sua mente. Pintar o cabelo, mudar o estilo, emagrecer e até realizar cirurgias plásticas são apenas tentativas de adaptação ao que já está ali, como veio ao mundo. Mas, para as vítimas de TDC, essas tentativas não são apenas escolhas, são vícios torturantes. São relatos sobre a gravidade da doença e os riscos de um ambiente tóxico que proporciona gatilhos até mesmo inconscientemente, podendo agravar a predisposição a transtornos mentais.
Por Rayssa Paulino
Capacete, celular, a chamada “bag” e um casaco grosso para se proteger do vento cortante são os itens indispensáveis que acompanham Haroldo e outros milhares de motoboys durante suas viagens. Eles se preparam diariamente para sair da própria casa e rodam São Paulo afora, endereçados à residência de outras pessoas. Boa noite dona Maria, seu pedido chegou! E mesmo com os mais variados obstáculos que podem encontrar durante o trajeto, o serviço vale a pena, junto a brisa que bate no rosto, é como uma sensação de liberdade.
Haroldo tem 47 anos e começou a percorrer as ruas da cidade ainda quando era um menino. Trabalhou como office boy, levando ofícios a pé aqui e ali e, de uma forma quase que automática, conheceu muito bem as esquinas de São Paulo. Quando mais velho, substituiu os solados do calçado por uma moto e já percorrendo caminhos mais distantes, tinha como um fiel parceiro o antigo “guia de ruas”, um enorme livro que retrata a planta de toda a metrópole com vias que se interligam através das páginas. Hoje ele reconhece e admite num bom humor que, o avanço da tecnologia e o desenvolvimento de aplicativos de geolocalização se tornou um grande aliado e facilitador para o seu trabalho.
Era por volta de 23h00min quando teve um tempo para compartilhar sua história. Estava reunido com colegas de trabalho em um bairro da Zona Norte e, ali naquele espaço, criaram um ambiente de companheirismo entre eles. O local se tornou um point para os motoboys da região, que se encontram diariamente, acolhem uns aos outros, conversam sobre as experiências e trocam figurinhas, literalmente. A carcaça das caixas e mochilas onde são transportados alimentos e outros conteúdos é repleta de adesivos, um do grupo da ZN, outro de um grupo de Osasco, da comunidade de motoboys Cachorro Louco, mas no final, todos se interligam como integrantes de uma grande família.
A hora marcada para a entrevista foi justamente por ser no período em que estaria trabalhando. Relatou a preferência pelo turno da noite, momento em que a maioria das pessoas retornam do trabalho e se preparam para descansar. Mas não eles. Não na cidade que não dorme. Ao anoitecer, as ruas de São Paulo se transformam, o trânsito que comumente é parado e caótico se torna um ponto bem mais atrativo. Sem o excesso de veículos, a pista fica mais livre, os trajetos que já tem o tempo reduzido encurtam mais ainda e o desgaste do meio de transporte é menor. Os aplicativos de delivery são o fator chave para possibilitar essa flexibilidade de trabalhar com horários alternados.
Poder determinar o próprio horário também foi um fator importante para Gabriel que, quando começou a trabalhar fazendo entregas na plataforma Ifood, tinha 23 anos. No ano de uma devastadora pandemia mundial, enfrentando questões em casa e na faculdade, encontrou no app uma alternativa para solucionar os problemas. Ganhando na época um auxílio financeiro da instituição que estudava, sentiu a necessidade de ajudar mais em casa. Então, pegou sua moto e preencheu os momentos de ociosidade do final de semana, que, dado o momento já não era mais para se distrair da rotina, e começou uma nova jornada de trabalho. Mesmo sendo em dias que, na teoria, são de menores responsabilidades, a preferência era o horário noturno, atraído por uma isca lançada aos consumidores pelo app, as promoções. As determinações de lockdown recomendavam a permanência dentro de casa e, assim, as notificações de pedidos apareciam na tela do telefone com grande frequência.
Apesar da inegável facilitação que o serviço de entregas gerou no período de pandemia, como ter se tornado uma fonte de renda a mais para diversos brasileiros, se iniciou um fenômeno que muitos trabalhadores não aguardavam, a "uberização". A promessa glamourosa de se tornar o próprio patrão e de ganhos exorbitantes esconde o lado feio do trabalho com as plataformas, direitos básicos do trabalho, como convênio médico e proteção em caso de acidente, se tornam um vislumbre distante da realidade. A precarização do serviço mobilizou motoboys de todo o país na primeira semana de maio deste ano, um ato de revolta contra a plataforma mais famosa de delivery, o Ifood.
Nem todo motoboy participou da paralisação. Haroldo mesmo relatou que preferia evitar a hostilização que acompanharia a dor de cabeça de furar uma greve. Concorda que o repasse financeiro para os prestadores de serviço deve ser maior, mas que a luta deve ser ampliada para todos os aplicativos que se encaixam na mesma classificação. Para ele, a empresa Lalamove é a que pega a maior fatia do que eles ganham e por consequência se torna uma das piores para trabalhar.
Nessa altura da entrevista, seu colega de trabalho Julio se juntou à conversa. Com um bom papo e cartãozinho de visita em mãos, deixou claro como faz a fidelização de seus clientes ano após ano, já que hoje prefere pegar serviços particulares. Explicou ainda que a comunidade de entregadores está sempre unida e se ajudam através de um grupo de confiança no Whatsapp. Quando se adiciona um novo membro ao grupo, você se torna o padrinho e, indiretamente, é responsável por aquela pessoa. Nada ali é bagunçado, mancadas e atitudes erradas não podem passar despercebidas. Mas muito além de mais uma forma para reunir esses trabalhadores, o grupo serve para também repassar serviços que não conseguirão ser realizados pelos próprios
A jornada de trabalho dos motoboys, que estão sempre em movimento pelos quatro cantos da cidade, não é encarada por qualquer um. Mesmo com dificuldades financeiras, no trânsito, de clima e, até mesmo a falta de educação por parte de alguns clientes, parecem não se deixar abater com facilidade. Todo o esforço parece ser recompensado com a sensação de ver a vida andando fora do escritório.
Por Ana Julia Bertolaccini
A vida de Victoria Siqueira, de 39 anos, foi moldada e insipirada pela cultura do fã, através do mundo digital, que permitiu com que suas paixões se transformassem em uma carreira. Vic, como é conhecida pelos amigos, trabalha há 17 anos como social media, e descobriu sua paixão pela comunicação através dos chamados “fandoms” (comunidade de fãs). Aos 11, ela presidiu o “Wanna be”, fã-clube do grupo britânico Spice Girls e aos 16, viveu a época dos blogs, criando o seu próprio posteriormente, o qual foi alimentado durante anos.
Com a evolução das redes digitais e da Internet, Vic passou a desenvolver habilidades em design e programação para personalizar as postagens que compartilhava através do blog. No início, ela chegou a fazer parte de iniciativas que hoje se comparam às atividades dos influenciadores digitais, mas que na época ainda não levavam esse nome. Como o futuro desse tipo de carreira ainda era muito incerto, Vic deciciu que levaria todo esse aprendizado para o meio acadêmico, através da comunicação.

Victoria Siqueira é formada em publicidade e trabalha em uma empresa que cuida de duas marcas de roupas. Dos vários desdobramentos que um hobby poderia ter tido, Vic direcionou-o para o meio acadêmico e para o marketing digital no mercado de trabalho, desenvolvendo sua carreira através das mídias, do branding (identidade visual, valores missão e comunicação de uma marca), e cuidando também do relacionamento com influenciadores, transitando entre funções que algum dia já teve durante os tempos do blog.
Aos 28 anos, a jornada do fã é algo novo para a jornalista e criadora de conteúdo Yakine Reis Paixão. Ela voltou a ter inspiração para criar seus próprios conteúdos no Instagram e no TikTok quando passou a conhecer mais sobre grupos de kpop e outros estilos musicais. Depois de formada e com o início da vida adulta, Yakine havia perdido um pouco dessa motivação, o que mudou completamente depois que ela passou a se conectar com si mesma em espaços virtuais coletivos que ela nem se quer lembrava que existiam.
Yaks, como gosta de ser chamada nas redes, acredita que ser fã é poder enxergar em outras pessoas um motivo ou uma inspiração para anseios pessoais. Para ela, essa cultura também traz o senso de comunidade muito forte, ao proporcionar uma troca de pensamentos e sentimentos entre as pessoas. Um interesse que é coletivo, e que ao mesmo tempo, é compreendido por cada um à sua própria maneira, talvez não possa ser descrito em poucas regras ou em uma curta definição.
Juliana Capel, psicóloga e especialista em psicologia positiva pela PUC-RS, explica que um dos fatores desse estilo de vida é a construção da identidade pessoal. Muitas pessoas descobrem talentos e paixões ao admirar um artista, podendo despertar o interesse por música, dança, fotografia, escrita, design, edição de vídeo, produção de conteúdo e até mesmo por áreas acadêmicas, como é o caso de Vic.
Essa paixão pode ser algo benéfico do ponto de vista psicológico, uma vez que a relação emocional com um artista proporciona sentimentos de alegria, entusiasmo e conexão, podendo auxiliar no estímulo da criatividade e até fortalecer a autoestima. Além disso, essa atividade também pode ativar memórias afetivas, fortalecer a empatia e até contribuir para o autoconhecimento. O segredo para uma boa experiência, no entanto, é o equilíbrio.
A ridicularização do entretenimento feminino
Aline Sodré, de 44 anos, foi conhecida por muitos anos como “a fã dos Beatles” na escola, na faculdade e no trabalho. Desde 2010, ela viaja e assiste a maior quantidade de shows possível de seu principal ídolo, Paul McCartney. Ao todo, ela já viu 35 shows do artista no Brasil, na América do Sul e nos Estados Unidos. Aline tatuou o autógrafo dele no braço e também tem tatuado trechos de músicas de Paul e dos Beatles no corpo.
Depois de todos esses anos inserida nesse ambiente, ela percebeu que há um preconceito direcionado principalmente aos ídolos adolescentes, como cantores do gênero pop: Justin Bieber, Taylor Swift e outras boybands. Apesar disso, ela não se incomoda com essa visão distorcida em relação aos gostos predominantemente femininos.

A criadora de conteúdo Yakine sente que tudo que é feminino nunca é suficiente para a sociedade. Do trabalho ao lazer, não importa o quão saudável seja um costume ou um hobby, ele sempre será menosprezado, diminuído ou dado como inútil e infantil para a grande mídia e para a opinião pública. O mesmo, porém, não acontece na mesma intensidade com gostos de grupos majoritariamente masculinos.
Quando se fala em futebol, não é difícil de ouvir por aí grupos de homens adultos discutindo quem está à frente no campeonato e quais jogadores têm feito um bom trabalho. Para quem convive diariamente com torcedores, é notável a mudança de humor e de temperamento dessas pessoas, o que muitas vezes tem relação direta com jogos ganhos ou perdidos do time do coração.
Mesmo ao abordar o futebol como uma forma de entretenimento, ignorando possíveis atividades que se relacionem diretamente com o esporte e focando completamente em discussões sobre ídolos e equipes, os homens raramente são tratados como crianças ou julgados por falar sobre esse assunto em encontros de família e até mesmo em ambientes corporativos.
Existe um machismo estrutural que tende a desvalorizar ou ridicularizar tudo que um grupo de mulheres gosta intensamente, enquanto hobbies masculinos são vistos como legítimos e costumam ser respeitados. Esse tipo de preconceito acontece em culturas como a do K-pop, doramas e até com o consumo de literatura romântica Todavia, qualquer tipo de arte ou entretenimento deve ser encarada como algo legítimo, independentemente de quem a consome. A psicóloga Juliana Capel reforça que gostos pessoais não precisam de validação externa para serem considerados válidos.
A Idolatria
Uma colega de Aline, que já tinha na época mais de 40 anos na época, era obcecada por uma dupla sertaneja famosa e os seguia pelo Brasil todo. Mandava presentes caros e ficava na porta do prédio deles esperando. Era um amor platônico tão grande que ela tinha certeza que ia se casar com um dos moços da dupla e essa obsessão vinha acompanhada de um sofrimento intenso.
Aline Sodré tem hoje um olhar mais crítico e analítico sobre o fã. Ela continua a fazer parte dessa cultura, mas como ela mesma destaca, é uma paixão alimentada de uma forma menos fervorosa e mais responsável do que era na adolescência, por exemplo, quando tudo é mais intenso. Essa transição, no entanto, não ocorre para todos.
Em alguns episódios, esse interesse passa a dominar todos os aspectos da vida da pessoa, se transformando em um comportamento obsessivo, onde a pessoa deposita sua identidade e felicidade exclusivamente no ídolo, perdendo o equilíbrio emocional. Esse tipo de envolvimento pode acontecer quando há um vazio emocional, baixa autoestima ou dificuldades em lidar com a própria realidade. Diante disso, o trabalho, os estudos e as relações pessoais passam a ser negligenciadas.
Há um estigma de que “ser fã” é sempre algo doentio, relacionado a uma idolatria cega, o que não procede em grande parte das circunstâncias. Ainda assim, é fato que um transtorno obsessivo possa vir a se desenvolver em casos extremos. O contraponto de uma vida saudável, com gostos e paixões pessoais, é o desequilíbrio. Nesse contexto, algumas pessoas podem chegar a gastar dinheiro de forma compulsiva, comprometendo a própria estabilidade financeira.
Como evitar um possível desequilíbrio?
Conhecendo a si própria e tendo vivido diversas experiências em razão dessa cultura, Aline se deu conta de que ela não quer ultrapassar as barreiras que existem entre um fã e o seu ídolo a ponto de desenvolver uma amizade e uma proximidade maior com os artistas que admira. Ela conta que quando começou a perceber que os cantores pelos quais ela era fascinada se tratavam de pessoas reais, com dias bons e ruins, ela entendeu que deveria recuar e estabelecer limites que permitissem com que ela os admirasse apenas como artistas, não interferindo na vida pessoal deles.
Hoje, aos 44 anos, ela continua indo a shows e viajando para ver seus artistas e bandas preferidos. Em sua percepção do futuro, Aline acredita que sempre terá essa necessidade de tietagem e pretende continuar a investir seu dinheiro com esse tipo de entretenimento. No atual momento de sua vida e daqui pra frente, porém, Aline não tem mais a intenção de acampar em portas de estádios, ficar nos mesmos hotéis que esses artistas, ou ser adepta de atividades que interfiram profundamente na sua rotina e no seu estilo de vida.
É importante entender essa linha tênue entre adoração absoluta quase religiosa e admiração profunda. Para isso, os principais tipos de conduta que devem ser levados em conta são o autoconhecimento e a autorregulação. É preciso observar se o envolvimento com o ídolo está vindo de um lugar saudável ou se está sendo usado para evitar lidar com desafios da própria vida.
Ter outros interesses e atividades além da participação em grupos de fãs é imprescindível. O esporte, os livros, o cinema e outras ocupações culturais ou de lazer são boas alternativas. Manter conexões reais com amigos e familiares também é essencial. Definir limites de tempo e dinheiro gastos com esse tipo de entretenimento são parte da estratégia de autocontrole, o que evita a desestabilidade financeira.
Outro fator importante para o fã é o consumo consciente de conteúdo. Sentir um sofrimento intenso ao não conseguir acompanhar tudo o que o artista faz não é um bom sinal. Ter consciência de que os ídolos são seres humanos e de que a admiração não deve se tornar uma idealização irreal é o segredo de uma paixão equilibrada, que pode ser extremamente positiva para o bem-estar psicológico e social, sem impedir a vivência de outras experiências.
Por Vitor Simas
No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.
Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.
Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.
Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.
Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.
A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.
Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.
A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.
Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.
Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.
Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.
Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé
Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.
Por Arthur Rocha
Para Roberta Moura, o dia começa antes mesmo do sol nascer. O barulho do despertador ecoa no cômodo de seu apartamento na Zona Leste de São Paulo, onde vive com os filhos, Camila, de 17 anos e João, de 10. Ela precisa preparar o café das crianças em poucos minutos, ajeitar os materiais escolares e sair para mais um dia de trabalho como diarista. O cansaço pesa no corpo, mas a necessidade a empurra para frente. Dormir algumas horas a mais não é uma opção. Seu dia começa antes da maioria das pessoas e só termina ao apagar da cidade.
A diarista mora no distrito de São Mateus, junto com seus dois filhos, em um pequeno apartamento comprado com todo o trabalho árduo de Roberta. Todos os dias, ela caminha até o ponto de ônibus, sentido terminal Sapopemba, para atravessar a cidade até os bairros nos quais trabalha. A jornada no transporte público dura cerca de duas horas, e ela aproveita o tempo para descansar os olhos ou ocupar a mente com jogos no celular.
Quando chega ao apartamento de sua principal patroa, ela troca de roupa e inicia a faxina. O trabalho exige precisão: os vidros devem ficar sem manchas, o chão impecável e as roupas organizadas exatamente como a dona da casa deseja. A dona do local costuma deixar bilhetes com orientações e críticas. A diarista observa que raramente recebe um elogio. O silêncio, na maioria das vezes, significa que fez um bom trabalho.
A realidade de Roberta é compartilhada por milhares de mulheres no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres, e a maioria delas atua sem registro formal. Além disso, estima-se que cerca de 75% das diaristas estejam na informalidade, o que significa que não têm acesso a direitos básicos como licença remunerada, férias ou aposentadoria. A cada dia trabalhado, vivem a incerteza do amanhã. Se por algum motivo forem dispensadas, não há nenhuma segurança financeira que as ampare.
Sem benefícios trabalhistas, Roberta não pode se dar ao luxo de adoecer. Em uma ocasião, teve febre alta, mas mesmo assim foi trabalhar. Quando tentou remarcar o dia, a patroa a ignorou, deixando a diarista de lado. Ela explica que a insegurança é constante. Se alguém decide dispensá-la, não há indenização ou garantias. Trabalhar doente é uma realidade recorrente. Não há opção de atestado, repouso ou recuperação. Cada falta significa menos dinheiro no fim do mês e mais preocupações
Durante o trabalho, as horas passam em um ritmo intenso. Entre um cômodo e outro, ela pensa nos filhos, que crescem num piscar de olhos. Camila quer fazer faculdade de enfermagem, mas já pensa em trabalhar para ajudar em casa. Roberta comenta que seu maior medo é que a filha desista dos estudos por necessidade financeira. Essa preocupação é comum entre mães solo em situação de vulnerabilidade, que veem seus filhos precisando amadurecer cedo demais para ajudar nas despesas da família. A educação, que deveria ser um direito garantido, muitas vezes se torna um privilégio.
Roberta cria os filhos sozinha desde que o pai das crianças abandonou a família. Segundo ela, o marido saiu para procurar emprego e nunca mais voltou. No início, esperou notícias, mas depois entendeu que ele não voltaria. Nunca recebeu pensão ou qualquer tipo de ajuda. Quando João pergunta sobre o pai, ela muda de assunto ou responde que ele precisou partir, já que o filho mais novo nem sequer chegou a conhecê-lo. O abandono paterno é uma realidade silenciosa que pesa sobre milhares de mulheres no Brasil. Muitas tentam recorrer à Justiça para garantir a pensão alimentícia, mas os processos são longos, desgastantes e, em muitos casos, não resultam em pagamento efetivo.
Sua irmã e vizinhos foram fundamentais para reerguer Roberta, já que, ao sair para trabalhar, a diarista não tinha com quem contar para suprir as necessidades de Camila e João durante o dia. Conforme crescia, a filha mais velha assumia uma postura protetora com o irmão mais novo. Roberta percebe que a filha, muitas vezes, se priva de coisas para garantir que João tenha tudo de que precisa. A menina gosta de estudar e sonha em ser enfermeira, mas já sente o peso da responsabilidade. Ela ajuda nos afazeres de casa e cuida do irmão enquanto ainda não volta do trabalho.
O caçula, por outro lado, sente falta da presença da mãe, mesmo compreendendo sua ausência. Às vezes, reclama que queria que ela estivesse em casa para brincar ou ajudá-lo com as tarefas escolares.
Segundo o Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2024, de todos os adultos brasileiros que moram sozinhos com os filhos, 86,4% são mulheres. Tal informação aponta que mais de 10 milhões de lares brasileiros são chefiados por mães solo. E esse quadro se agrava no dia-a-dia das diaristas que estão nesta condição.
