Por Thomas Fernandez
Na Rua Augusta as luzes do bar Vitrine piscam em sintonia com o som dos controles. É uma noite de terça-feira e, como toda semana, o ambiente se transforma em uma pequena arena: jogadores posicionam seus consoles, conectam controles e afinam os reflexos. Ali, acontece o torneio semanal de Super Smash Bros. Ultimate e Melee, organizado pela Team Dash. Não há arquibancadas lotadas ou grandes prêmios em dinheiro, mas há algo mais poderoso: o sonho de viver dos jogos.
No meio da multidão está Theo Levi, 24 anos, conhecido como Pastel. Os olhos atentos à tela denunciam sua paixão pelo jogo. Embora alimente o desejo de se tornar um jogador profissional, ele reconhece os limites do cenário atual no Brasil. Por isso, começou a atuar como organizador de torneios no ambiente universitário, com a esperança de, futuramente, se consolidar no meio profissional. Vê nessa trajetória uma forma de unir sustento e paixão, além de contribuir para que outros jogadores tenham a chance de alcançar esse mesmo sonho.
A história de Theo se entrelaça com a da própria Team Dash. Luis Fernando Torriello dos Santos, 29 anos, mais conhecido como Phoca, relembra que os torneios começaram por iniciativa própria, após os antigos organizadores abandonarem seus projetos. Em 2014, reuniam cerca de 30 jogadores por mês, um grupo fiel que aos poucos foi crescendo, trazendo novos participantes. Hoje,os campeonatos semanais reúnem cerca de 60 jogadores, enquanto os mensais chegam a 80. Em 2016, realizaram um evento que atraiu mais de 200 pessoas, incluindo jogadores de fora do País.
No entanto, manter essa estrutura ativa exige investimento, geralmente saído do próprio bolso dos organizadores. Um campeonato de médio porte requer pelo menos dois setups completos – consoles, monitores e cópias do jogo – o que representa um custo inicial de cerca de R$3.500, sem contar os gastos extras com transporte, alimentação e organização. Muitos projetos acabam não resistindo a essa carga. Mesmo assim, o cenário brasileiro de E-sports mostra sinais de amadurecimento. Além dos torneios, iniciativas como o BrAT – Brazilians Against Time – têm ampliado o alcance do universo gamer. O evento de speedrun, realizado durante o carnaval, arrecadou aproximadamente R$20.000 para a APAE, demonstrando o potencial da comunidade em mobilizar apoio e gerar impacto social. Também se tornou uma vitrine importante para jogadores que desejam ingressar na criação de conteúdo e buscar visibilidade além da competição.
Enquanto títulos consagrados como Counter-Strike e League of Legends atraem investimentos milionários e audiências internacionais, outras comunidades lutam para se manter vivas por meio do esforço coletivo. As universidades começam a se interessar pelos E-sports, formando times e promovendo campeonatos estudantis, o que abre espaço para uma possível profissionalização futura. Para muitos desses jovens, um jogo é muito mais do que um jogo. É carreira, é comunidade, é resistência. O Brasil talvez ainda esteja nos estágios iniciais dessa corrida global, mas seus jogadores e organizadores seguem insistindo, sonhando e construindo – um campeonato por vez
Por Thomas Fernandez
O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.
Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.
Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.
Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.
A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.
A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.
Por Beatriz Alencar
Vitoria encarou de perto estar de frente entre a vida e a morte. Ela já ficou por mais de 40 minutos fazendo massagem cardíaca em um paciente. O braço dolorido, mas a consciência e a luta pela vida não podia ser perdida. Injeta adrenalina, põe ventilador, usa de tudo o que tem disponível para fazer ele voltar, e mesmo assim, não adiantar. Os sentimentos de impotência e incapacidade não vão embora com o passar dos anos.
Enfermeiros e técnicos de enfermagem nada mais são do que artistas, que têm nas mãos o poder de aparar um pedaço de cada parte que forma o corpo humano, desde a pele aos sentimentos, sendo aquele que proporciona conforto e uma certa segurança. Vitória é técnica, e já presenciou dois ‘mundos’: um em hospital particular e outro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Falando de ambas as experiências, transmitia esperança em meio a um caldo de inseguranças que os diagnósticos diários que encara proporcionam. Dentro do SUS, ela relata que foi onde teve as experiências mais incríveis. Não de um jeito positivo, mas de se impressionar. Apesar de muitas vezes faltar materiais e suprimentos, o contato com o paciente sempre foi o zelo.
Fazendo jus a arte da profissão, a improvisação na falta era um ato recorrente. Até mesmo a hora do banho do enfermo podia ser afetada. Sem ter esponjas para a higiene pessoal do paciente, a criatividade virava melhor amiga. Às vezes, era preciso fazer até mesmo uma bucha de banho usando faixas, luvas e o que estivesse ao alcance. Até o copo descartável virava balde na falta de um para levar água até o leito do paciente.
Em contrapartida, os processos dentro do hospital particular são mais extensos. Tudo é catalogado, desde uma agulha a um soro. Nada pode passar batido já que se trata do dinheiro de cada convênio. Todo medicamento, ampolas, suprimentos utilizados do hospital, são descontados e cobrados do plano de saúde dos pacientes, sendo assim, a papelada nunca parece ter fim. O dinheiro é algo em comum entre ambos, porém, enquanto em um há escassez, no outro há contabilidade. Mas para Vitória, o que importa é proporcionar cuidado a cada pessoa que está ali doente, já que o principal papel de um agente da saúde é fazer de tudo para os pacientes se sentirem melhor.
A relação entre paciente e enfermeiro é o mais trabalhoso. Não somente com os difíceis, mas também com os bondosos. A criação de laços é o que mais acontece, apesar de ser recomendado o contrário, pois o apego deixa o profissional suscetível ao sofrimento em conjunto. Mas, para Vitória, é inevitável. Encarar todos os dias rostos de quem não sabe se verá de novo chega a ser injusto.
Porém, para a técnica, o lado mais dificultoso é tratar de quem não aceita que precisa ser tratado. Já para Rita de Cássia, chefe da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) Cardio e de outros setores de um hospital particular, a parte mais difícil é cuidar de quem cuida. Saber que tem o poder de tomar decisões, mas ter limitações. Escutar, mas também se fazer ser escutada. A burocracia, perto disso, não passa de papel.
Todos dessa profissão se encontram na linha de frente, e Rita abraça todas elas. A enfermeira chefe relata que, tomar partido de situações dentro de um hospital é tão sufocante quanto precisar de oxigênio. Ela chegou a repensar o cargo, mas a ideia passa como brisa. Apesar das dificuldades da função, o que prevalece para ela é entender que precisa estar lá pela e para as pessoas. Não só pacientes, mas das colegas de profissão e equipe. Claro, há quem não trabalha por amor. Mas é como Rita afirma: não é só de sentimento que enchemos o prato. Apesar disso, o trabalho sem zelo dificulta a humanização que, para a chefe, é essencial para se tornar um bom enfermeiro.
Marcas
Vitória trabalha na UTI Cardio, tratando de especificidades graves. Quase toda semana presencia um paciente ir a óbito. Nesse setor, a rotatividade nos leitos é grande, então não é comum a internação durar muito mais do que poucas semanas mas, uma vez, ela cuidou de uma idosa por dois meses. A moça precisava de um transplante de coração e estava na fila para receber uma doação de órgãos. De acordo com a legislação brasileira, a prioridade para transplantes de órgão são para crianças e jovens até 18 anos de idade. A senhora não resistiu à espera e foi a óbito. Foi a primeira vez que Vitória se apegou a uma paciente e chorou por não saber o que fazer ou como contar à família.
Esse cenário foi muito recorrente durante a pandemia da Covid-19. Uma palavra e um período assustador que ninguém imaginaria que duraria tanto e que, ao mesmo tempo, passasse tão rápido. Em 2025, se passaram cinco anos desde que foi declarado pelo governo o sistema de lockdown devido a um vírus mortal que ainda não tinha meios para ser combatido e nem como ser evitado. Uma das vivências mais marcantes de Rita foi durante o começo da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), como foi nominada pela OMS.
Ela se deparou com um jovem que viu o pai dele poucos instantes antes da morte. Os dois tinham contraído o vírus e apresentavam os mesmos sintomas. Por ainda não terem tanto conhecimento de tratamento e que a idade poderia ser um agravante da doença, os dois tiveram a mesma assistência, mas não o mesmo fim. O jovem passou a desacreditar da ciência, dos profissionais da saúde, da vida. Uma pessoa que costumava falar mesmo no leito da emergência, se calou. E vendo tantas pessoas da equipe tentando reanimá-lo, Rita fez o que a empatia da profissão exige: acalentou. Com esse gesto em silêncio, mas ativo, a enfermeira chefe percebeu que muitos dos seus conceitos sobre a profissão precisavam mudar, e que a calmaria de uma companhia às vezes pode curar mais do que uma seringa.
As pessoas do mundo inteiro, durante os três longos anos da pandemia e do lockdown, esqueceram o que eram esse acalento. Há cinco anos era rotina lavar tudo o que viesse de fora para não contaminar os ambientes da casa. Era chegar e deixar o sapato para fora. Passar álcool em gel em tudo o que fosse possível e não só nas mãos. Vitória relata que, por mais que tivesse receio de conviver com a Covid todos os dias, o que mais temia não era morrer, e sim levar o vírus para dentro de casa e contaminar quem ama. Era não conseguir fazer nada para salvar os pacientes que chegavam nos profissionais de saúde com uma última súplica de poder sair do hospital curado e podendo acreditar que ainda presenciaria uma vida sem ter que conviver com a Covid.
O calor humano físico foi revertido em apoio online aos profissionais de saúde. A Internet se tornou crucialmente o meio de conexão. Panelaços foram planejados, feitos, gravados e postados. Hashtags em apoio aos médicos, enfermeiros, técnicos, foram lançadas. Monólogos e poesias foram escritos em homenagem. Hoje, sobraram somente lembranças desse movimento. Rita relata que foi emocionante ver tantas pessoas reconhecendo a importância da profissão dela, mas triste o fato de precisar de uma crise sanitária para que olhassem com admiração o setor da saúde. Vitória compartilha do mesmo sentimento e, mesmo assim, ambas não souberam responder o que de fato as faz continuar. Mas uma coisa puderam afirmar: largar a profissão não é uma opção.
No fim, acabaram-se os panelaços e os aplausos, mas o afago dos agentes da saúde, que se tornam psicólogos, amigos de bar, tios, filhos ou o próprio acompanhante de cada paciente, continuam presente no dia a dia de todos aqueles que decidiram fazer da própria vida um propósito de ser a síntese do cuidado de tantos.
Por Julia Berkovitz
Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.
Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.
A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre.
Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.
Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome.
Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade.
Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente. Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente.
Por Laura Celis
O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.
A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.
Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.
Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.
Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.
Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária.
A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade.
A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente.
O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.
