A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
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Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

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Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

arquivo 2
Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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Comportamento

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comportamento
Deslocamento para grandes centros urbanos não assegura qualidade de vida e expõe a precarização do trabalho.
por
Philipe Mor Belizário
|
10/04/2025

Por Philipe Mor

 

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva nasceu em 1956, no pequeno município de Cruzília - Minas Gerais. Criada pela mãe solo, Carmelina Francisca, e pelo avô, José Antônio, ela enfrentou desde cedo desafios que a levaram a contribuir para o sustento da família. Sua trajetória reflete a de muitas mulheres que, sem acesso à educação base ou a empregos estruturados, encontraram no setor informal, ainda que longe de suas origens, uma forma de sobrevivência, algo muito comum para quem vive na roça.

Na simplicidade do meio rural, Dulce conheceu precocemente as dificuldades da vida no campo. Ao lado dos cinco irmãos, dividia-se entre os afazeres domésticos e o trabalho na lavoura, onde cultivavam milho, arroz e feijão, para garantir o sustento da casa. O ambiente era cercado por fazendas e vastas áreas de vegetação, cenário que moldou sua relação com a terra e lhe ensinou o valor do esforço diário que o cuidado com a lavoura exige.

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce
Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce

A lida no campo representava um compromisso com a família. A mãe foi sua maior referência, um exemplo de força e perseverança ao enfrentar sozinha as dificuldades para criar os filhos. Já o avô, com sua sabedoria, transmitiu a Dulce princípios que a acompanham por toda a vida: respeito, honestidade e dignidade. Valores que aprendeu fora da sala de aula. 

Dulce não teve acesso à educação de qualidade. Em Cruzília, estudou apenas até a terceira série do Fundamental, mas é extremamente grata a sua professora de infância, Miá - quem lhe ensinou a ler e escrever. Ela viveu na roça até completar 17 anos. Nesta época, com a morte do avô, foi trabalhar na cidade em busca de ganhar dinheiro para, além de ajudar em casa, sanar suas vontades – como qualquer adolescente. Graças a mãe conseguiu o primeiro trabalho longe das lavouras e dos esforços do campo, como cuidadora de uma idosa. Durante três anos, Dulce viveu e trabalhou na mesma residência. Até que saturou. Apesar de receber mais do que no plantio, ela ficou de “saco cheio” da rotina e decidiu procurar por outra tarefa. 

Após esse período, Dulce foi convidada a cuidar dos filhos do prefeito de Cruzília. Assim como antes, seu trabalho e seu descanso dividiam o mesmo espaço. Entre as crianças, um vínculo floresceu: um dos pequenos passou a chamá-la de “mãe”. Longe dos seus, cercada pela saudade, aquele afeto infantil foi um alento em seu coração.

Mas o destino reservava a Dulce um outro tipo de amor. Logo, seu peito se apertou de um jeito diferente, não de saudade, mas de encanto. Foi assim que conheceu Mário Sérgio. Em seis meses de namoro intenso, decidiram unir suas vidas e passaram a morar juntos na casa da mãe dele. Seguiu como babá, sem nunca ter tido sua carteira assinada, até então. Mário, por sua vez, trilhava um caminho semelhante. Entre um bico e outro, fosse como chapeiro ou descarregador de caminhão, ele garantia o sustento. Depois de juntar algumas economias, levou a esposa para um sítio, onde recomeçaram, lado a lado, uma nova história.

Foi nessa época que Flaviana nasceu. A primeira filha do casal chegou em meio a tempos difíceis, quando o dinheiro mal cobria o essencial. Logo, novos filhos vieram, e com eles, cresceram também as necessidades. Diante da pressão, uma decisão se impôs. Mário partiu para São Paulo, em busca de trabalho e de um futuro mais digno para a família. Enquanto isso, Dulce permaneceu em Cruzília, agora com quatro filhos nos braços. E assim, como em um ciclo que se repetia, a história de superação de sua mãe começava a ecoar em sua própria vida.

Como uma espécie de "mãe-solo", Dulce seguiu por 10 anos em uma rotina de educar as crianças e cuidar das tarefas domésticas, enquanto, Mário Sérgio mandava dinheiro suprir as necessidades básicas. Durante esse período, além dos afazeres da residência, ela não trabalhou. Para garantir algumas moedas e o aluguel, prestava serviços aos conhecidos da região mineira - auxiliava em reformas e costurava roupas. Neste contexto, as visitas entre o casal eram esporádicas e preciosas. Ao longo dos 10 anos em que Dulce permaneceu em Cruzília com os pequenos e Mário em São Paulo, ele aparecia cerca de uma vez por mês para visitá-la e ver os filhos.

O tempo passou. As urgências aumentaram e os filhos - agora adolescentes, começaram a dar trabalho. Foi aí que ela decidiu apostar todas suas fichas em uma mudança de vida: abandonar as dificuldades de Cruzília e se instalar na principal metrópole de Brasil, ao lado do marido. Em São Paulo, Mário, além de ajudar com o aspecto financeiro, contribuiria para educação das "crianças".

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce
Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce

Foi num 12 de outubro, feriado das crianças, que a mudança aconteceu. Com as malas apertadas e os filhos nos braços, Dulce embarcou em um ônibus rodoviário com sentido a capital paulista. Não avisou. Não pediu permissão. Apenas foi, levada pela coragem.

Desceu na capital em 1996, com a esperança de se firmar financeiramente e estruturar a família, acolhida pela cunhada na Vila Carrão, na Zona Leste. Ainda com a poeira da estrada nos pés, ligou para Mário e contou: "cheguei". Ele, surpreso, apareceu ao anoitecer. 

O primeiro fim de semana na cidade grande foi cheio de reencontros e promessas, passado na casa da irmã de Mário. Mas logo a segunda-feira chegou — e com ela, a realidade. Ele os levou para Perdizes, onde morava num espaço da firma. No começo, a moradia era quase vazia. Tinha alguns cômodos bem divididos, mas poucos recursos. Apenas uma pequena geladeira. Sem móveis, um sofá-cama e forros no chão acolhiam, como podiam, o descanso da família.

Aos poucos, o lar tomava forma — não apenas nas coisas, mas no cuidado que ela espalhava em cada canto. Entre idas e vindas para Minas, sempre trazia alguma coisinha: roupas e utensílios. Com a família enfim abrigada e um teto, ainda que modesto, Dulce partiu em busca de procurar trabalhos. Seu primeiro emprego na nova cidade foi como cuidadora em uma casa de família. Ficou apenas três meses por lá, mas foi o suficiente para dar o primeiro passo. Logo depois, surgiu uma nova oportunidade — dessa vez, em uma empresa de informática.

Nesse emprego Dulce teve seu primeiro trabalho fixo de carteira assinada. Entrou como auxiliar de serviços gerais, mas o que parecia simples, para ela era símbolo de conquista. Pela primeira vez, sentia que a vida começava a tomar um novo rumo. Dulce ficou na empresa entre meados de 1997 e 2007. Nesse tempo, com a ajuda do programa Escola de Jovens e Adultos - EJA, conseguiu concluir os estudos. Com o salário da empresa e os bicos feitos pelo marido, encontraram um aluguel na Zona Norte de São Paulo — onde vivem até hoje.

Mas quando tudo parecia, enfim, seguir um rumo mais tranquilo, a empresa fechou as portas. E, naquele momento, o seguro-desemprego era pouco diante das contas e das urgências que batiam à porta. Com o aperto das necessidades, Dulce passou a trabalhar como diarista. Cuidava da rotina de outros lares, para que nada faltasse no seu. Não era o emprego dos sonhos - sem garantias ou registros, mas as dificuldades falaram mais alto. 

Por volta de 2010 foi prestar serviços na casa de seu antigo patrão. Na residência - onde atuava duas vezes por semana, Dulce era responsável pela limpeza geral e o preparo das refeições. O salário mínimo que recebia, apesar de importante, não era o ideal e, por isso, ela teve que buscar outras moradias para cuidar.

Com o passar dos anos, a rotina se tornou cada vez mais pesada, e o cansaço parecia não ter fim. Duas de suas filhas, já adultas, ainda moravam com ela. Uma delas teve dois filhos e a responsabilidade pela criação caiu direto em seu colo. Sem aviso precisaram dominar a situação no peito e seguir em frente.

 

Dulce, sua mãe Carmelina e sua neta Michelly Foto: Reprodução/Arquico Pessoal - Dulce
Dulce, sua mãe Carmelina e sua neta Michelly Foto: Reprodução/Arquico Pessoal - Dulce

Embora contrariada por dentro, nunca recusou o cuidado com os pequenos, Michelly e Miguel. No entanto, em seus pensamentos, sabe que essa responsabilidade dificultou o alcance de um pouco de sossego e prosperidade. Ainda mais em uma época que tudo é tão caro e os desejos dos pequenos são diversos. Essa nova responsabilidade faz com que Dulce não possa vacilar. Assim como seus filhos um dia dependeram dela em Cruzília, agora são os netos que precisam de seus cuidados. E ela não pretende falhar nessa missão.

Entre os panos, panelas e passos apressados Dulce carrega nos ombros uma vida que não foi aquela que sonhou. Quando deixou Minas e veio para São Paulo, pensava que aqui encontraria sossego e estabilidade. Achava que deixaria para trás todas as dificuldades da roça. Mas a realidade foi mais dura do que esperava. Na correria do dia-dia, Ela ainda guarda esperança e sonha com um futuro melhor e um cantinho só seu.

Em busca de uma casa digna, ela participa ativamente de um movimento social em prol de moradia, há mais de 10 anos. Agora, o tão esperado apartamento aparenta estar mais perto pra sair do que nunca. Mais que paredes, a mineira da pequena Cruzília quer tempo para si, para respirar e para viver com leveza. O corpo cansado das faxinas pede pausa. Mas a realidade insiste em chamar. E por aqueles que ama, ela segue firme e disposta a entregar tudo para garantir a paz e o bem-estar da família.

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São 800 quilômetros percorridos em 10 horas de viagem pela dona Zenaide.
por
Giulia Fontes Dadamo
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20/03/2025

Por Giulia Fontes

 

É madrugada, e a cidade de São Paulo ainda resiste ao sono. No terminal rodoviário da Barra Funda, a sacoleira Zenaide ajeita a mochila nas costas e observa o movimento frenético ao seu redor. O alarde dos vendedores ambulantes que fazem o último grito de seus produtos se mistura ao som metálico do embarque. Ela, no entanto, já está com o olhar e os ouvidos acostumados. Aquele não é o seu objetivo. O dela é o longo trajeto que começa ali, no Terminal, mas vai muito além. Ela é uma dos milhares de sacoleiros que fazem o vai e vem entre a 25 de Março e suas cidades de origem. A dela, porém, é mais longe do que a da maioria. Todo mês, pelo menos uma vez, ela segue com sua mercadoria abarrotada de bijuterias, roupas e acessórios para abastecer sua lojinha em Umuarama, interior do Paraná. Seja por viagens organizadas com ônibus fretado com grupo de pessoas da região, ou às vezes pelo transporte da Viação Garcia, ela nunca deixou a desejar no estoque, que é o sustento da sua família apesar do longo tempo de estrada.

Durante as 10 horas de viagem, ela atravessa os 800 km em direção ao lugar onde as calçadas são mais largas e o ritmo da vida é mais lento, mas igualmente apertado. Observa a estrada como quem conhece cada curva, cada quebra de pista. Ela pensa nos clientes de cidades pequenas, que nunca se cansam de olhar as mesmas peças, os mesmos produtos, e que talvez nunca terão acesso à imensidão do comércio de São Paulo.

Ao contrário do que o nome sugere, a imagem do sacoleiro carregando sacos pesados nas costas é um tanto desatualizada. Zenaide, por exemplo, transporta suas mercadorias em mochilas robustas, com zíperes resistentes e alças reforçadas. Não há muito romantismo na rotina que envolve essa jornada: o trabalho exige resistência, mas é também uma questão de estratégia e adaptação. No trajeto, ela e seus colegas de profissão têm o corpo todo moldado pela necessidade de carregar e proteger as mercadorias. A mochila vai apertando os ombros, as costelas começam a reclamar do peso. 

Ela aprendeu, com o tempo, a organizar melhor os itens, buscando distribuir o peso de forma mais uniforme para evitar a dor do cansaço. Mesmo assim, os quadris doem. O alívio vem apenas quando ela pode fazer a primeira pausa na viagem, ainda que breve. Mas a jornada não é só física. Cada quilômetro percorrido a leva a repensar sua vida e o que significam, de fato, essas mercadorias que carrega nas costas. Roupas, calçados, bijuterias e acessórios fazem parte daquela imensidão de mochilas. Apesar de serem itens pequenos, eles ocupam um grande espaço no mercado, principalmente nas cidades menores. 

Por mais que o comércio da 25 de Março seja um universo de possibilidades infinitas de estoque, muitas das peças ali vendidas são repetitivas, mudam apenas de cor ou detalhe. Os clientes de Zenaide, em Umuarama, talvez não tenham ideia de que, ao comprar uma simples bolsa de camurça, estão adquirindo um produto que percorreu mais de 800 km, atravessando estradas sinuosas e absorvendo os solavancos do ônibus fretado. Talvez nem imagine que a vendedora que lhe oferece o item teve que negociar cada centavo no mercado paulista, empurrando, mais uma vez, a fronteira do preço justo.

A sacoleira é uma figura de certa forma invisível, uma trabalhadora que transita entre mundos sem ser notada por completo. Sua loja é o reflexo de sua resiliência, mas é o peso da mochila e da jornada, invisíveis aos olhos dos clientes, que definem sua realidade. O mercado de sacoleiros, longe dos holofotes e da glamourização de alguns setores do comércio, sobrevive da repetição das idas e vindas, da reconstrução constante de suas rotinas, onde cada viagem, seja ela feita em grupo ou sozinha, carrega em si uma bagagem emocional e física densa.

Essa bagagem vai além do peso das mochilas e sacolas que preenchem os ônibus de passageiros lotados. É o peso das expectativas, dos sonhos de crescimento, de ser mais do que a vendedora ambulante, de se colocar no mesmo patamar de quem transita nos centros comerciais da metrópole, longe da poeira das estradas. Mas, no fundo, cada sacoleira tem uma missão íntima que transita entre o pragmatismo do sustento e o desejo de empreender algo além da rotina.

À medida que Zenaide se aproxima de seu destino, as paisagens vão mudando. Asfalto dá lugar a estradas simples, sinalizando que o ritmo da vida local se aproxima. Mas ela não pensa nisso enquanto observa as paradas e pequenas cidades que surgem à beira do caminho. O que invade sua mente são as pequenas apostas que fez, as estratégias que criou para diversificar seu estoque e garantir que, quando ela voltar à sua loja em Umuarama, possa ver novamente o sorriso dos seus clientes e o reconhecimento de seu esforço.

O sacoleiro é, acima de tudo, alguém que sabe lidar com as idas e vindas da vida, com os desafios de quem está sempre no movimento, sem nunca parar. Zenaide segue sua jornada, entre os sorrisos de seus amigos de estrada e as ruas que chamam seu nome. O destino talvez nem seja o ponto final da viagem. Talvez, o que importa, é o trajeto em si. O constante ir e vir, o desafio do trabalho invisível, da carga carregada com tanto esforço, e o olhar atento de quem, como ela, sabe que no vai e vem do mundo, sempre há algo a aprender e a construir.


 

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O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
por
Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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