No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
por
Julia da Justa Berkovitz
|
10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e, somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que ele sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu um homem trans. Diz ter passado a existir e viver realmente achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente ele poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que teve todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, adentrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam do jeito que você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

Tags:

Comportamento

path
comportamento
Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
|
10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

Arquivo 1
Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

arquivo 2
Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

Tags:

Comportamento

path
comportamento
São 800 quilômetros percorridos em 10 horas de viagem pela dona Zenaide.
por
Giulia Fontes Dadamo
|
20/03/2025

Por Giulia Dadamo

 

É madrugada, e a cidade de São Paulo ainda resiste ao sono. No terminal rodoviário da Barra Funda, a sacoleira Zenaide ajeita a mochila nas costas e observa o movimento frenético ao seu redor. O alarde dos vendedores ambulantes que fazem o último grito de seus produtos se mistura ao som metálico do embarque. Ela, no entanto, já está com o olhar e os ouvidos acostumados. Aquele não é o seu objetivo. O dela é o longo trajeto que começa ali, no Terminal, mas vai muito além. Ela é uma dos milhares de sacoleiros que fazem o vai e vem entre a 25 de Março e suas cidades de origem. A dela, porém, é mais longe do que a da maioria. Todo mês, pelo menos uma vez, ela segue com sua mercadoria abarrotada de bijuterias, roupas e acessórios para abastecer sua lojinha em Umuarama, interior do Paraná. Seja por viagens organizadas com ônibus fretado com grupo de pessoas da região, ou às vezes pelo transporte da Viação Garcia, ela nunca deixou a desejar no estoque, que é o sustento da sua família apesar do longo tempo de estrada.

Durante as 10 horas de viagem, ela atravessa os 800 km em direção ao lugar onde as calçadas são mais largas e o ritmo da vida é mais lento, mas igualmente apertado. Observa a estrada como quem conhece cada curva, cada quebra de pista. Ela pensa nos clientes de cidades pequenas, que nunca se cansam de olhar as mesmas peças, os mesmos produtos, e que talvez nunca terão acesso à imensidão do comércio de São Paulo.

Ao contrário do que o nome sugere, a imagem do sacoleiro carregando sacos pesados nas costas é um tanto desatualizada. Zenaide, por exemplo, transporta suas mercadorias em mochilas robustas, com zíperes resistentes e alças reforçadas. Não há muito romantismo na rotina que envolve essa jornada: o trabalho exige resistência, mas é também uma questão de estratégia e adaptação. No trajeto, ela e seus colegas de profissão têm o corpo todo moldado pela necessidade de carregar e proteger as mercadorias. A mochila vai apertando os ombros, as costelas começam a reclamar do peso. 

Ela aprendeu, com o tempo, a organizar melhor os itens, buscando distribuir o peso de forma mais uniforme para evitar a dor do cansaço. Mesmo assim, os quadris doem. O alívio vem apenas quando ela pode fazer a primeira pausa na viagem, ainda que breve. Mas a jornada não é só física. Cada quilômetro percorrido a leva a repensar sua vida e o que significam, de fato, essas mercadorias que carrega nas costas. Roupas, calçados, bijuterias e acessórios fazem parte daquela imensidão de mochilas. Apesar de serem itens pequenos, eles ocupam um grande espaço no mercado, principalmente nas cidades menores. 

Por mais que o comércio da 25 de Março seja um universo de possibilidades infinitas de estoque, muitas das peças ali vendidas são repetitivas, mudam apenas de cor ou detalhe. Os clientes de Zenaide, em Umuarama, talvez não tenham ideia de que, ao comprar uma simples bolsa de camurça, estão adquirindo um produto que percorreu mais de 800 km, atravessando estradas sinuosas e absorvendo os solavancos do ônibus fretado. Talvez nem imagine que a vendedora que lhe oferece o item teve que negociar cada centavo no mercado paulista, empurrando, mais uma vez, a fronteira do preço justo.

A sacoleira é uma figura de certa forma invisível, uma trabalhadora que transita entre mundos sem ser notada por completo. Sua loja é o reflexo de sua resiliência, mas é o peso da mochila e da jornada, invisíveis aos olhos dos clientes, que definem sua realidade. O mercado de sacoleiros, longe dos holofotes e da glamourização de alguns setores do comércio, sobrevive da repetição das idas e vindas, da reconstrução constante de suas rotinas, onde cada viagem, seja ela feita em grupo ou sozinha, carrega em si uma bagagem emocional e física densa.

Essa bagagem vai além do peso das mochilas e sacolas que preenchem os ônibus de passageiros lotados. É o peso das expectativas, dos sonhos de crescimento, de ser mais do que a vendedora ambulante, de se colocar no mesmo patamar de quem transita nos centros comerciais da metrópole, longe da poeira das estradas. Mas, no fundo, cada sacoleira tem uma missão íntima que transita entre o pragmatismo do sustento e o desejo de empreender algo além da rotina.

À medida que Zenaide se aproxima de seu destino, as paisagens vão mudando. Asfalto dá lugar a estradas simples, sinalizando que o ritmo da vida local se aproxima. Mas ela não pensa nisso enquanto observa as paradas e pequenas cidades que surgem à beira do caminho. O que invade sua mente são as pequenas apostas que fez, as estratégias que criou para diversificar seu estoque e garantir que, quando ela voltar à sua loja em Umuarama, possa ver novamente o sorriso dos seus clientes e o reconhecimento de seu esforço.

O sacoleiro é, acima de tudo, alguém que sabe lidar com as idas e vindas da vida, com os desafios de quem está sempre no movimento, sem nunca parar. Zenaide segue sua jornada, entre os sorrisos de seus amigos de estrada e as ruas que chamam seu nome. O destino talvez nem seja o ponto final da viagem. Talvez, o que importa, é o trajeto em si. O constante ir e vir, o desafio do trabalho invisível, da carga carregada com tanto esforço, e o olhar atento de quem, como ela, sabe que no vai e vem do mundo, sempre há algo a aprender e a construir.


 

Tags:
O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
|
18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

Tags:

Esportes

path
esportes

Meio Ambiente

path
meio-ambiente
A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
por
Marcello Toledo
|
18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

Tags:
Após repercussão dos ataques que ocorreram em abril deste ano nas mídias sociais, ministros ressaltam a importância do projeto de regulamentação das redes e do combate às fake news
por
Por Nicolly Novo Golz, João Victor Esposo Guimarães e Guilherme Lima Alavase
|
08/07/2023

“Os ataques às escolas estão totalmente ligados às redes sociais e a principal solução a curto prazo é a sua regulamentação”, essa é a avaliação de Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), um dos maiores especialistas em desinformação nas redes sociais.

Ele afirma que existem comunidades nas mídias sociais que celebram massacres e endeusam terroristas, isso demanda uma ação do Congresso Nacional para aprovar leis que obriguem as plataformas a agir.

Em abril deste ano um homem de 21 anos entrou em uma escola em Cambé e assassinou a aluna Karoline Verri Alves, 17, e o aluno Luan Augusto, 16, ambos foram baleados na cabeça. O criminoso foi preso logo após cometer o crime e na noite seguinte, o assassino foi encontrado morto na Casa de Custódia de Londrina.

Este não foi um caso isolado de ataque à escola no ano de 2023. No dia 5 de abril deste ano, um homem de 25 anos invadiu a creche Bom Pastor, na cidade de Blumenau, Santa Catarina e causou a morte de 4 crianças. O massacre foi feito menos de um mês depois que um adolescente de 13 anos matou uma professora a facadas em uma escola estadual em São Paulo.  

“Quando acontece um ataque bem sucedido e é veiculado na mídia do jeito que foi, faz com que os membros da comunidade se inspirem em um indivíduo que saiu do anonimato e passou a ser venerado, isso estimula pessoas a fazerem logo na sequência o mesmo tipo de ataque”, diz Ortellado. A True Crime Community é uma comunidade online popular que cultua esses tipos ataques e seus autores, uma fração de membros ficam muito próximos de cometer atentados para sair do anonimato.  

“A imensa maioria do que foi registrado nesse período foram trotes, eram meninos fazendo ameaças falsas para perder prova de matemática e coisas desse gênero.” O coordenador explica que foi o que aconteceu no caso do Brasil, gerando um pânico que se agravou por conta da quantidade de desinformação que circulou.

Ortellado conta que nos últimos 20 anos, o Brasil teve 93 vítimas de ataques a escolas, entre mortos e feridos e no último ano ocorreram mais episódios do que nos últimos 10 anos anteriores, então a reação das pessoas acabou sendo uma mistura de uma sociedade que não estava acostumada com essa sequência de ataques e trotes.

A dentista Márcia Pancini, mãe de Valentina, disse que mesmo sabendo que o WhatsApp não é a melhor ferramenta para se manter informada, utilizava o grupo das mães como fonte de informações. “O grupo das mães era uma loucura, disseram que dia 20 de abril ia acontecer massacre em todas as escolas, mandaram áudios, vídeos, e até fotos com ameaças e a gente na hora do desespero acredita em tudo que vê.”

“A Valentina descobriu dos ataques pelas redes sociais, ficou apavorada com os vídeos que viu pelo Tik Tok e não quis ir para escola com medo dos próprios colegas de classe”. Pancini explicou que com a rotina de trabalho, os pais acabam utilizando a tecnologia em busca de um momento de tranquilidade e entregam nas mãos das crianças o acesso livre à internet e não conseguem filtrar o tipo de conteúdo que os filhos têm acesso.

Somente depois do ataque à escola em Blumenau, no dia 5 de abril, 225 pessoas foram presas ou apreendidas, no caso de menores, por suspeitas de envolvimento no caso. Além disso, a Justiça já retirou ou suspendeu 756 perfis em redes digitais dedicados a difundir ódio.

Ricardo Kassin, advogado especialista em direito digital explica: “É sempre bom destacar que tanto a criação quanto a propagação dessas fake news são práticas criminosas e os responsáveis identificados responderão por tal ato”.

A delegacia de crimes cibernéticos iniciou investigações para responsabilizar quem propaga notícias falsas sobre ataques às escolas. Kassin explica que para se defender juridicamente é preciso identificar quem escreveu a fake news, em seguida deve ser feita uma notificação extrajudicial, que serve como uma prova preparatória e se caso o indivíduo não responder, se transforma em uma prova para um eventual procedimento judicial.

Quando perguntado sobre medidas efetivas para acabar com o ódio propagado nas redes sociais, o especialista de imediato cita a regulação das mídias: “É de extrema importância a regulação das mídias, mas a autorregulação das empresas não é o suficiente e enquanto não tiver um órgão fiscalizador com instrumentos para exigir a retirada desses conteúdos a gente vai seguir tendo um problema sério”.

Logo após os episódios em abril, o presidente Lula convocou uma reunião no Palácio do Planalto sobre combate à violência nas escolas. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse que a regulação da internet é fundamental para combater problemas como a violência nas escolas.

A proposta de regular redes sociais e serviços de mensagens, é considerada um instrumento importante para combater a violência nas escolas. Entre as regras que o projeto estabelece estão a retirada imediata, da internet, de conteúdos que possam causar dano iminente de difícil reparação ou que violem direitos de crianças e adolescentes. Também deverão ser imediatamente excluídas publicações que coloquem em risco a segurança do usuário ou que contenham crimes previstos na Lei do Racismo.

Tags:
Apesar de não ser o papel principal na questão da fome, a educação é um agente direto de garantir refeições às crianças
por
Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete e Henrique Baptista
|
08/07/2023

As escolas públicas têm um grande papel no combate à insegurança alimentar das crianças, pois é o local que garante a principal refeição do dia à elas: o almoço. Especialistas defendem aumentar a quantidade de tempo nas escolas para aumentar o número de refeições e a melhoria da qualidade de vida das mães em uma sociedade com alto abandono parental.

Mas o problema da fome é muito mais complexo do que oferecer refeições. Ele exige uma abordagem multidisciplinar que envolva não apenas a educação, mas também políticas públicas de saúde, assistência social e economia, visando garantir o acesso universal à alimentação adequada e saudável.

A merenda escolar é a ferramenta mais potente que as instituições de ensino têm atualmente para lidar com a crise da insegurança alimentar dos alunos. Ela assegura que os estudantes se alimentem durante o período das aulas. 

De acordo com o Censo da Educação Básica de 2022, a cidade de São Paulo abriga aproximadamente 5300 escolas. Cerca de 60% dos alunos fazem refeições no ambiente. Na teoria, a oferta da merenda serve para o desempenho da criança na escola. Na prática, muitos alunos continuam a frequentar o ambiente escolar justamente para ter acesso à alimentação. 

Existem formas de ampliar o poder da educação como agente de combate a este problema social.

O diretor da FGV Social Marcelo Neri explica que, assim como em outros países, a jornada escolar das crianças no Brasil deveria ser ampliada. “A partir do momento que você aumenta o tempo da criança na escola, ela tem como obrigação ofertar outras refeições, como café da manhã e lanche da tarde”, afirma. Estender a jornada escolar é uma das medidas cabíveis no cenário atual.

Vale destacar que, além de melhorar a quantidade, também há a necessidade de melhorar a qualidade do que é ofertado às crianças. O vereador Celso Giannazi explicou que essa mudança é possível no cenário atual da cidade de São Paulo: “O orçamento tem recursos para que a gente tenha uma alimentação saudável e em quantidade suficiente, falta vontade política de implementar uma ação voltada à alimentação escolar”. 

Portanto, o investimento em educação leva, necessariamente, ao investimento no combate à fome. Esses dois pilares estão diretamente interligados por vários fatores. A nutricionista infantil no Instituto de Desenvolvimento Infantil Dyandra Loureiro explica que crianças com déficit nutricional, estão com o desenvolvimento comprometido: “A parte cognitiva é a autora do desenvolvimento neurológico e precisa estar bem nutrida”. 

No ano passado, a lei 11.947, de 2009, recebeu uma proposta de alteração em São Paulo. No artigo, a alimentação escolar foi posta como um direito do aluno e dever do Estado. O projeto de 2022 propõe adicionar um novo parágrafo colocando a disponibilidade de duas refeições por dia para atender as necessidades nutricionais de cada faixa etária. 

Apesar de se encaixar perfeitamente no contexto atual, a medida não saiu do papel. Além do mais, é preciso analisar a situação a partir de outras vertentes, pois dois pratos de comida não resolvem o problema. É imprescindível considerar a questão maternal para entender outras raízes da fome infantil. 

Garantir alimento às mães para garantir aos filhos

Junto com o trabalho das escolas, é necessário o trabalho efetivo de políticas públicas, como por exemplo o Bolsa Família. Somado a esses, o combate à fome das mulheres deve ser priorizado para reduzir o problema da fome infantil. 

A quantidade de mães solo nos lares mais pobres é abundante, isso explica o porquê da importância do papel materno na alimentação infantil. Portanto, em muitos casos, a mãe é a única fonte de renda que a criança possui.

Segundo Neri, “empoderar as mães é a melhor forma de garantir a alimentação infantil”. Isso porque os filhos são extremamente dependentes das mães, ainda mais considerando um contexto de famílias em situação de extrema pobreza com um maior índice de abandono paternal (56%, de acordo com dados do IBGE). 

“De um lado, as escolas fechadas, de outro, mulheres ficando sem emprego. A situação só se agravou na pandemia”, relembrou o economista. O exemplo do que ocorreu durante a crise da Covid-19 esclarece o que ocorre quando tiram as crianças da escola e deixam as mães desempregadas. As mulheres ficam sem opções e os filhos, sem comida.

Por esse motivo, programas sociais como o Bolsa Família priorizam as mães no recebimento do auxílio. 

Políticas de combate à fome 

O Bolsa Família é o mais conhecido programa de combate à fome no Brasil. Os valores repassados às famílias são calculados de acordo com a quantidade de filhos que os tutores são encarregados de sustentar. Mas existem outros programas essenciais para prevenir o agravamento da fome infantil. 

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece refeições nas escolas e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. O governo federal repassa valores conforme o número de matriculados em cada rede de ensino.

Durante os governos Temer e Bolsonaro, o projeto foi abandonado. Sem reajustes desde 2017, o PNAE passou pelos anos mais críticos da história do país sem nenhum aumento em seu orçamento. 

Todavia, após 7 anos de boicote, o atual governo aumentou em 39% o valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), corrigindo o orçamento destinado à compra da merenda de 4 bilhões de reais para 5,5 bilhões. 

Tanto o Bolsa Família quanto o PNAE e outros programas com o mesmo viés complementam o trabalho de incentivo à garantia da alimentação nas escolas e ajudam a construir um cenário mais cauteloso e atento aos arredores da questão.

Em entrevista ao Jornal da USP, a economista Tereza Campello afirmou que “embora seja relevante para combater a fome no Brasil, o assistencialismo não substitui as políticas públicas, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo”.

Contudo, os indicadores ainda são escassos, o que dificulta os estudos. Segundo o pesquisador e doutorando da UFABC José Raimundo Souza, “esse é um assunto delicado e limitado em termos de pesquisa. É preciso avaliar o sistema como um todo para ajudar a encontrar soluções eficazes”. 

Uma melhoria foi garantida nos últimos dias.O Ministério do Desenvolvimento Social divulgou que vai iniciar uma pesquisa de mapeamento da insegurança alimentar no Brasil. O estudo é de extrema importância porque, a partir do momento que tivermos esse mapeamento, é possível identificar as regiões que precisam de uma atenção maior, qual a situação atual e quais melhorias serão eficazes na prática.

O ideal para combater a fome infantil seria um plano político que rompa com a influência do dinheiro e possibilite transformações sociais efetivas. Logo, o investimento em educação e empregabilidade de mulheres são primordiais para diminuir os índices da fome infantil. 

Investir no combate à insegurança alimentar infantil é investir no futuro do país. As crianças que não sofrerem com a fome, vão poder usufruir melhor da vida, que acabou de começar. Elas são os adultos do futuro, ou seja, quanto antes conseguirmos diminuir o problema, mais tempo e qualidade de vida daremos à população do nosso país.

Tags:

Economia e Negócios

path
economia-negocios
Após cinco meses da catástrofe, milhares de pessoas desalojadas e em situação de insegurança alimentar exigem esforços contínuos de assistência humanitária
por
Giuliana Nardi e Vitória Nunes
|
07/07/2023

“Muitas pessoas morreram por conta do frio e da fome, não pelo terremoto.” Conta Emrullah Güngör, estudante de 22 anos que mora perto da região. No dia 6 de fevereiro de 2023, um terremoto de magnitude de 7.8 atingiu o sul da Turquia e o noroeste da Síria.

Sendo um dos maiores já registrados desde 1939, os tremores atingiram principalmente Kahramanmaras e outras 10 cidades vizinhas, deixando pelo menos 2,5 milhões de pessoas desalojadas e 56 mil mortos, segundo dados da Reuters.

Güngör relata que muitos de seus amigos foram afetados pelo terremoto e ficaram sem domicílio da noite para o dia. “A população não tinha para onde ir, nem conseguiam achar moradia. Nem todo mundo foi resgatado dos destroços causados pelo terremoto.”

Ceren Lale, outra estudante de 21 anos, destaca que a ajuda demorou a chegar para aqueles que precisavam: “A princípio, eles [o governo] não encontraram transportes para ajudar as pessoas, e em certo momento, também não conseguiram encontrar pessoas para conduzirem estes transportes”.

A falta de abrigo e a destruição da infraestrutura dificultaram a entrega de alimentos e de assistência humanitária, por conta da dificuldade de mobilização. Emrullah avaliou que o governo turco só se preocupa com as consequências de curto prazo.

Ambos os estudantes afirmaram que o governo chegou tarde demais nos locais atingidos pelo terremoto, enquanto houve uma grande movimentação de ajuda e de arrecadação de fundos pelas redes sociais. Grande parte da população turca se comoveu e se juntaram para enviar voluntários, roupas e comida para as vítimas.

Luís Fernando Prestes Camargo, professor e mestre de História brasileira que está na Turquia há mais de 5 meses, teve a ideia de realizar uma arrecadação com os apoiadores de seu projeto "Pedalando na História".

Ele conseguiu arrecadar US$2.500 somente no Brasil, o qual foi utilizado para adquirir centenas de cobertores e alimentos entregues aos mais de 6 mil desabrigados em Esparta.

Foto: Reprodução - Luís Fernando Prestes Camargo e seu cachorro Belmiro com arrecadações

De acordo com  Luiz Keppe, subchefe da Coordenação-Geral de Segurança Alimentar e Nutricional do MRE, embora não haja dados recentes que confirmem o aumento da fome nesses países, pode-se presumir que as catástrofes reforçaram uma tendência de aumento geral nesse sentido. 

Ele destaca que os dados mais recentes do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) indicam que 12,1 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar, e 2,7 milhões estão em insegurança alimentar grave, um aumento de 300 mil pessoas em relação ao período anterior aos terremotos.

A Confederação dos Sindicatos da Turquia revela que, após os terremotos, a "linha da fome" ultrapassou o valor do salário mínimo, indicando a quantidade de renda necessária para uma família de quatro pessoas obter nutrição suficiente.

Segundo dados da ONU, aproximadamente 2,2 milhões de pessoas receberam ajuda alimentar, mais de 1 milhão de consultas médicas foram realizadas e cerca de 380 mil pessoas agora têm acesso a água e saneamento

O auxílio na Síria também foi essencial, graças à ajuda de sete agências da ONU, mais de 900 caminhões viajaram pela Turquia e levaram ajuda à região. As Nações Unidas também desembolsaram aproximadamente US$ 40 milhões em fundos de emergência.

O professor Camargo destaca que os desabrigados estão recebendo uma renda mensal de US$500 do governo, além de muitas doações. Ele enfatiza que a comunidade internacional já fez o possível, enviando pessoas para resgatar vítimas vivas sob os escombros.

Turquia x Síria: O problema da fome e as disputas de poder

As situações na Síria e na Turquia são bastante distintas, assim como suas experiências com a fome. Rodrigo Augusto Duarte Amaral, professor de Relações Internacionais e especialista em Estados Unidos e Oriente Médio da PUC-SP, afirma que a Turquia é um país mais estável e sólido em comparação com a Síria.

Por consequência da Primavera Árabe, a Síria passou por uma Guerra Civil nos últimos 12 anos, e atualmente a fome é vista como uma das consequências deste cenário de crise.

Segundo o PMA, mais de 50% da população síria, aproximadamente 12,1 milhões de pessoas, está em situação de insegurança alimentar, e 2,9 milhões correm o risco de enfrentar a fome.

De acordo com o professor Amaral da PUC-SP,  a Turquia, por sua vez, tem maior conexão com as estruturas das comunidades internacionais, além de ter um governo mais estável sob Recep Tayyip Erdoğan. Ele explica que isso facilita a chegada da ajuda de maneira mais eficiente em comparação com a Síria.

Ele esclarece que em cenários de catástrofe ambiental, como os terremotos, todas as formas mínimas de organização sociopolítica, logística, mercado e infraestrutura são destruídas. Nessas situações, a fome se torna ainda mais intensa nos estados já fragilizados.

Keppe ressalta que a insegurança alimentar e nutricional impacta principalmente as mulheres. Cerca de 60% das pessoas que passam fome seriam mulheres, que muitas vezes se sacrificam em prol de suas famílias, comendo menos e por último, especialmente em regiões de conflito e emergência humanitária.

O coordenador de segurança alimentar explica que os refugiados também seriam um grupo vulnerável afetado pelos terremotos na Turquia e na Síria, enfrentando dificuldades de acesso ao mercado formal de trabalho e falta de estrutura de moradia, saúde e saneamento.

O especialista Amaral ressalta que seria natural que a fome se intensifique em um país já fragilizado por um terremoto, especialmente em uma região mais vulnerável dentro de outro país estável, como a Turquia.

O terremoto na Turquia e na Síria teve consequências diferentes devido a suas condições financeiras distintas, conflitos geopolíticos e localizações que podem facilitar ou dificultar a chegada da ajuda necessária. No entanto, ambos os países enfrentaram o desafio da fome.

Luiz Keppe menciona que o Brasil tem se empenhado em auxiliar na reconstrução após os desastres naturais na Síria e na Turquia. "Logo após os terremotos, enviamos equipes de resgate para a região e, nas semanas seguintes, fornecemos doações de vacinas, medicamentos e alimentos."

O coordenador ressalta que o compromisso de aliviar o sofrimento desses povos com os quais o Brasil mantém laços de longa data persistirá, fornecendo toda a assistência possível para mitigar seu sofrimento.

Nesse contexto, Keppe enfatiza a importância de possibilitar a retomada da produção e a disponibilidade doméstica de alimentos, inclusive por meio de doações de alimentos e reconstrução de infraestruturas para irrigação de lavouras e processamento de produtos agrícolas.

Tags:
Aumento dos índices de fome na capital paulista entre 2020 e 2023 resulta em crise humanitária
por
João Victor Tiusso e João Pedro Lindolfo
|
01/07/2023

A crise econômica gerada pela pandemia aumentou a pobreza na cidade de São Paulo, dificultando o acesso à alimentos em regiões da periferia. Bairros como Perus, Brasilândia e Sapopemba, alguns dos mais afetados pelo vírus, apresentaram piora significativa nos quadros de fcrescimento no número de famílias em situação de vulnerabilidade. 

Levantamento da Secretaria de Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, de julho do ano passado, apontam 684.295 famílias em pobreza extrema na capital. Um aumento de 44% em relação a janeiro de 2021. O estudo foi feito com base em dados do Cadastro Único da Prefeitura, utilizado nos programas de assistência social. 

A redução da renda da população periférica, reflexo do aumento do desemprego e da inflação, está impossibilitando as pessoas de adquirirem alimentos básicos do cotidiano. 

Dossiê Sobre Casos Extremos de Fome na Cidade de São Paulo, organizado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), mostra que 25,3% das unidades de saúde que participaram do levantamento afirmaram possuir demanda de atendimento para indivíduos com sintomas decorrentes da fome entre 1 e 14 de dezembro de 2021. Casos assim só começaram a aparecer nas unidades a partir de setembro daquele ano, ainda no período de auge da pandemia. 

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), realizado pela Rede PENSSAN, revelou que 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, mas que em 2022 esse nível renda deixou de uma garantia contra a falta de alimentos. 

A pesquisa indica que 3% dos lares com essa renda tem seus moradores em situação de fome, 6% vivem com insegurança alimentar moderada e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação.

"Hoje, um dos principais desafios do combate à fome é identificar as localidades mais vulneráveis. E a periferia é, com certeza, o lugar mais descoberto [pelas políticas públicas]”, afirmou Soninha Francine, Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. 

A secretária explica que a questão da insegurança alimentar em regiões mais pobres é negligenciada. Há pessoas que mesmo mantendo o emprego e tendo moradia fixa, não conseguem comprar comida por conta dos preços altos, porém isso não é tão debatido. Ela também faz uma comparação com a situação dos moradores de rua, que se tornou cada vez mais visível ao longo dos anos, resultando em um número maior de ações voluntárias de combate à fome. 

Juliana Andrade Favacho, coordenadora da Cozinha Solidária do MTST, comenta sobre o perfil das pessoas atendidas pelo projeto em zonas periféricas e centrais da cidade: “Nas periferias vemos muitas mães solteiras, negras e com mais de um filho, além de muitas pessoas desempregadas. No centro há mais pessoas em situação de rua e usuários de drogas, que não recebem atendimento por nenhum programa social.”  

Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo e ex-assessor da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, pontua: "Vimos o quadro de insegurança alimentar se deteriorando em todo o mundo. Isso se deu em intensidades diferentes em cada região, quanto mais pobre a localidade, pior os índices."

Regiões com maior insegurança alimentar

Vila Brasilândia, bairro da zona Norte da cidade, e Sapopemba, zona Leste, foram os distritos que registraram maior número de óbitos por Covid-19 em 2020 e 2021. Ambas estão entre as regiões mais pobres de São Paulo e mais dependentes das políticas de combate à fome promovidas pela prefeitura. 

Já o bairro da zona Norte, Perus, possui a 7ª pior remuneração média mensal e foi a segunda localidade com maior número de óbitos por covid de acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, com 30,2% do número total de mortes sendo em decorrência da doença. 

Jardim Ângela, na zona Sul, iniciou 2022 com o maior número de casos de coronavírus na capital. Além de ser um bairro periférico, é o mais negro de São Paulo, com 60,1% de moradores negros na sua população, é o 12º com a remuneração média mensal e o 10º com o maior número de domicilios em favelas, mostrando que a questão racial que também circunda o problema da fome e de saúde pública na cidade. 

A periferia da zona Sul como um todo é uma área em estado crítico, abrigando 90% das famílias que passam fome. Os dados coletados pela prefeitura também mostram que 8% das famílias residem na zona oeste e 1% no centro se encontram na mesma situação. 

Grande parte dessas pessoas não conseguiram recuperar seus empregos ou se recuperar financeiramente após a pandemia, como afirma Vanessa Almeida, fundadora do projeto Periferia Sem Fome “Até hoje as pessoas não conseguiram se reestruturar, principalmente devido ao tempo em que ficaram sem emprego e ao aumento dos preços.”

"Eu ajudo pessoas que trabalham, que possuem uma residência. Mas com o valor dos alimentos hoje em dia, elas acabam tendo que escolher entre pagar o aluguel e comer”, disse Vanessa quando questionada a respeito do perfil das pessoas atendidas pelo projeto.

Inflação agrava ainda mais a situação 

A inflação de alimentos em todo o país é um dos grandes empecilhos à erradicação da fome. Segundo o IBGE, a inflação de alimentos e bebidas foi de 14%, 7,9% e 11% em 2020, 2021 e 2022, respectivamente. Além disso, no estado de São Paulo, o valor da cesta básica subiu de R$ 786,51 para R$ 1.014,63 no primeiro ano da pandemia. 

A alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo anulou parte do efeito das políticas de auxílio promovidas pelo governo. Iniciativas como o Auxílio Brasil, por exemplo, se demonstraram ineficazes. O retorno do Brasil ao mapa da fome no ano passado constata isso.

"Em 2020, a pandemia bate no mercado de alimentos de duas formas: do lado da oferta, porque há cadeias de distribuição congestionadas. E do lado da demanda, devido à incerteza inicial que levou muitos a estocar alimentos, aumentando os preços”, explica Felippe. 

O economista destaca que, além da pandemia, houve uma série de choques econômicos que contribuíram com a inflação. “No hemisfério sul, em 2021, tivemos problemas climáticos com uma onda de secas, fazendo com que os reservatórios operassem em um nível menor, geadas entre julho e agosto no Centro-sul, que prejudicaram a safra, e o início da Guerra da Ucrânia em 2022, que envolve grandes exportadores de grãos e fertilizantes.” 

O II Vigisan, revelou que 56% das pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar no estado de São Paulo. No Brasil, essa porcentagem é maior, com 58,7% da população brasileira convivendo com a insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas não tendo o que comer.

Ações de combate a fome durante a pandemia 

A Rede Cozinha Cidadã foi uma das principais iniciativas da prefeitura para aliviar o problema de insegurança alimentar em São Paulo. Iniciado em abril de 2020, o projeto distribui por dia 10 mil marmitas em diversas localidades da cidade e 5 mil apenas no centro. O programa também arrecada cerca de 5 mil cestas básicas diariamente. 

Contudo, a política pública ainda enfrenta algumas limitações, como aponta Soninha Francine “Quando são distribuídas marmitas ao longo da cidade, por muitas vezes serem entregues a lugares distantes e o tempo necessário para a entrega ser alto, a qualidade da comida é comprometida e é isso que a secretaria de direitos humanos e cidadania está tentando mudar.”

Ela também chama atenção para o aspecto social e cultural de cada população: "Situações culturais também têm grande parte nesse projeto, como o respeito a culturas diferentes. É impossível separar algumas cestas para colocar ingredientes específicos para certos povos. Como, por exemplo, as tribos guarani que, por opção, não querem farinha de mandioca, mas não é possível tirar apenas para eles.”

A localização é outro problema, pois a maioria dos programas de auxílio encontram-se no centro da cidade, forçando as pessoas a atravessarem a cidade atrás de comida. Isso reflete muito na questão da fome para os moradores da periferia, que precisam pagar aluguel em vez de comprar produtos e muitas vezes chegam no centro em busca de alimento para uma família inteira.

Juliana Favacho aponta para essa questão: “Hoje, as políticas que existem são muito esparsas. Tem distribuição de cestas básicas, o Bom Prato, mas ainda é muito pouco para a cidade de São Paulo e muita coisa também fechou.”

Com essas limitações, uma solução definitiva para o problema da insegurança alimentar na cidade não é possível apenas através de políticas de redução de preços ou de distribuição de alimentos, como as que estão sendo implementadas desde o início da pandemia. 

Juliana acredita que seria necessário um programa que traga os alimentos produzidos por pequenos produtores próximos da cidade e sem intermediários: “Isso evitaria desperdício, melhora a qualidade do alimento e melhora o preço tanto para o produtor quanto para o consumidor.” 

Ela também defende a construção de hortas urbanas ligadas aos centros de distribuição, já que assim os alimentos poderiam ser adquiridos por valores mais baixos, melhorando os índices de alimentação.

"Há toda uma cadeia em que podemos pensar, espaços que já existem e incentivos que não exigem custos altos. Nas próprias ocupações do MTST nós produzimos alimentos para os moradores, por exemplo”, complementa a coordenadora. 

Para Serigati projetos de transferência de renda seriam mais eficientes. “As políticas de distribuição de alimentos são legais, mas, no caso do Brasil, precisamos de algo mais horizontal, programas de transferência de renda bem focalizados para os mais necessitados. Por mais desafiador que seja, o problema está aí e precisamos atacá-lo.” 

Nessa mesma linha, Júlia Schuback, coordenadora de projetos da Ação da Cidadania, ONG que atua em todo o Brasil, afirma: "Embora o Brasil  tenha programas de combate à fome, muitas vezes eles são insuficientes ou mal implementados, frente à dimensão do problema.”

Ela também aponta para os cortes e reduções orçamentárias significativas nas iniciativas de combate à fome e algumas foram até extintas, como foi o caso do CONSEA. “A atuação de projetos independentes que visam o combate à fome não substituem as políticas públicas e a responsabilidade do Estado de garantir o direito à alimentação adequada, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo.”

Tags:
O projeto de lei tem um papel fundamental no conteúdo disponibilizado para crianças e adolescentes
por
Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete, João Tiusso e João Lindolfo
|
07/07/2023

O projeto de lei 2660/2020, conhecido como “PL das Fake News”, terá grande influência no combate à desinformação e quadro de saúde mental entre jovens, caso aprovado. É o que apontam especialistas ouvidos pelo Contraponto Digital. Eles afirmam que a regulamentação se mostra necessária para conter a ansiedade e estresse causados pela propagação de fake news. 

A falta de uma supervisão adequada do conteúdo que as crianças e adolescentes acessam na internet pode causar uma série de distúrbios para o grupo. Informações incorretas, equivocadas ou incompletas podem não apenas afetar o desenvolvimento cognitivo, mas também contribuir com comportamentos violentos que acabam sendo disseminados em fóruns e alcançam menores de idade, resultando em traumas psicológicos e físicos. 

A PL das Fake News é um projeto de lei que estabelece mecanismos para a regulamentação das redes sociais no Brasil, tal qual a restrição de fake news e publicações extremistas. Essa lei funcionará como um mecanismo para que as empresas de tecnologia sejam cautelosas e ágeis em derrubar conteúdos enganosos. 

A lei atuará diretamente no combate à desinformação e controle de conteúdos violentos a crianças e adolescentes. Isso porque, conforme esse tipo de conteúdo é regulado, a distribuição de publicações com efeitos nocivos aos menores será dificultada.

Segundo a jornalista e pós-doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Luciana Moherdaui, para avançar no debate é preciso fazer mais que ‘sufocar’ o alcance das postagens. ‘’O PL das Fake News será eficiente se conseguir melhorar os mecanismos de transparência e atuação das plataformas sociais”, explicou. Além disso, ela pontua que a lei poderá coibir o financiamento da disseminação em massa de desinformação e diminuir o alcance das postagens.

Perigos do Discord e fóruns de violência

Já na discussão sobre a violência cibernética, a maneira de conter os discursos de ódio seria limitar o número de usuários das plataformas registradas no Brasil, de acordo com o artigo 2 da PL. Com 3 milhões de usuários brasileiros, o Discord, aplicativo comum entre jogadores de games, tem sido usado para propagação de comportamentos de violência extrema. Em servidores fechados, jovens se automutilam, maltratam animais e propagam ódio para fazer parte do grupo. 

O combate a esses grupos já é uma realidade no Brasil, com a operação “Dark Room”, iniciada pela Polícia Civil em março de 2023, investigando três servidores do Discord utilizados para promover atos de violência extrema, incluindo estrupo virtual. A ação resultou na prisão de Ricardo Conceição Rocha, de 19 anos, no dia 04 de julho., responsável por administrar um dos espaços da plataforma onde os crimes eram cometidos. 

De acordo com dados da TIC Kids Online Brasil 2022, cerca de 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos utilizam a internet no país. O número representa 92% desse universo populacional. Segundo Luciana, a transparência em relação aos algoritmos seria mais eficaz que uma placa de ‘proibido para menores’ nas redes sociais. 

Um menor de idade que está em um momento de desenvolvimento tanto cognitivo quanto afetivo, lidando com questões emocionais desse período, fica mais vulnerável a esse tipo de conteúdo, podendo afetar suas relações e seu desenvolvimento emocional. 

"Neste período a criança-adolescente passa por um movimento de identificação com os pares, a busca de grupos, de pertencer a determinados contextos. Isso é algo necessário, mas apresenta riscos e desafios quando encontram conteúdos falsos e que incitam ódio e crimes’’, afirma Camila Fonteles, doutora em psicologia e professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Outro ator que contribui ainda mais para o problema é a articulação de notícias falsas como um mecanismo de promoção do medo. Alexandre Sayad, educador midiático e jornalista, explora a questão: “A desinformação como um fenômeno, pode deturpar alguns aspectos da qualidade de vida, incluindo o aspecto psicológico das pessoas.”

"Por exemplo, toda essa questão dos ataques nas escolas, a desinformação foi um elemento para a manutenção do medo, pois torna uma questão pontual em algo generalizado, dando uma falsa noção de proporcionalidade”, exemplifica Sayad.

Para a doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, Julci Rocha, é crucial expandir nosso letramento digital. “Compreender as nuances, ênfases, omissões e viés presente nas informações, pois isso adiciona uma dimensão significativa para que possamos nos tornar leitores e produtores críticos de conteúdo na internet”. Ela ainda ressalta que nós “não podemos nos limitar apenas à dicotomia simplista de "verdadeiro/falso", que geralmente é o foco das fake news. 

Fato é que esse projeto de lei vai muito além do combate às Fake News, de acordo com o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Murilo César Oliveira Ramos. O objetivo é dispor sobre a liberdade, responsabilidade e transparência na internet, naquilo que diz respeito às mídias digitais. “A questão das notícias falsas é apenas uma parte quando se trata de discutir a proteção das crianças e adolescentes no ambiente da internet”, comentou.

Para o especialista: “O que a internet fez foi potencializar em muito o risco para crianças, dada a velocidade com que foi entrando nas nossas vidas”. Seguindo essa lógica, se até nós adultos estamos suscetíveis a golpes ou vazamento de dados sensíveis, o perigo com os menores de idade é ainda maior.

Ele ressaltou que, no contexto da violência, a questão já era preocupante na era de ouro da televisão e outros veículos como cinema e rádio. Como ele disse, “As crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a todo tipo de informação não condizente com sua maturidade e preparo para a compreensão do que possam estar assistindo e ouvindo”. Por essa razão o acesso precisa ser regulado.

A importância da atenção aos conteúdos que crianças acessam

A eficácia do PL em evitar a propagação de Fake News dependerá dos mecanismos exatos propostos nesta lei em particular, explica o psicólogo Antonio Farelli. Uma abordagem efetiva poderia envolver a regulação das plataformas online, impondo consequências legais para aqueles que deliberadamente espalham informações falsas. 

Todavia, é crucial que haja também um investimento na educação e conscientização pública, especialmente considerando que uma parcela significativa da população brasileira possui baixa alfabetização e pode ser exposta a notícias das quais não compreendem totalmente o conteúdo.  

Farelli destaca que crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis à desinformação devido à inexperiência e falta de habilidades críticas de pensamento. "A PL pode ter um impacto significativo desde que seja implementada de maneira adequada”. O profissional ainda explica que “é essencial fornecer educação sobre como fazer um uso seguro da internet para essa faixa etária, capacitando-os com habilidades de pensamento crítico e discernimento para identificar informações confiáveis”

As crianças estão em aplicativos, jogos e nas redes sociais. Dessa forma, estão em mais em contato com notícias falsas que adultos. Enquanto os mais velhos estão instaurados no Whatsapp e no Facebook, para os mais jovens há uma gama de possibilidades, com várias opções de jogos, aplicativos e sites. A criança fica mais tempo em todas essas plataformas, por isso, tem mais contato com as informações falsas e violentas. 

Além das fake news que incitam o ódio, há mentiras que prejudicam o andamento da inteligência de uma criança. ‘’O público infantil é bombardeado por mensagens falsas que prejudicam o conhecimento e o raciocínio. Só o Chat GPT afeta intelectualmente o menor’’, diz a jornalista e doutora Magaly Prado, especialista em desinformação. Esse acesso traz prejuízos físicos, neurológicos e oftalmológicos pelo excesso de estímulos das telas.

Combate a desinformação

A educação midiática é um elemento necessário no combate à desinformação e precisa começar a ser implementada no currículo educacional o quanto antes. O ensino através dos meios digitais já é uma realidade, mas é necessário ser complementado com o aprendizado de técnicas de apuração e produção de informação de qualidade.  

"Há umm conjunto de habilidades que podemos chamar de educação midiática e precisam ser desenvolvidas na educação básica. Não ter projetos que abordem essas habilidades para navegar com fluidez, ética, análise e produção de informação de qualidade, deixa as pessoas parcialmente analfabetas e limitadas na leitura de mundo”, disse Alexandre Sayad.

Sayad também se posiciona em favor da articulação de várias medidas para combater as fake news. “As soluções contemplam uma constelação de ações, nunca é um tiro só. Eu não acho que educação midiática sozinha resolva a desinformação. Da mesma forma que eu não acho que a regulação das redes sozinha combate a desinformação.”

O educador complementa apontando para ações mais abrangentes que vão além do Estado, já que o que pode vir a ser verdade é complexo e exige uma mobilização de toda a sociedade civil acerca do tema. 

De acordo com Magaly ‘’Não adianta ficar só na superfície, ensinar o que é um computador, um algoritmo, tem que ensinar a criança a ter um pensamento crítico, a duvidar e não aceitar qualquer coisa. Ela tem que saber desconfiar.”

Ter controle no que a criança consome é essencial, principalmente por ela estar na fase de seguir exemplos. ‘’Qual é o canal do Youtube que ela assiste, quem ela segue no Instagram e TikTok? Lá vai ter tudo de abuso e desordem informacional”, pontua a jornalista. ‘’O ideal é que o acesso seja monitorado pelos familiares e educadores. O caminho para combater a desinformação seria esse trabalho de orientação e sobretudo prevenção’’, finaliza a psicóloga Camila Fonteles.

Tags: