Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
por
Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Projeto foi intensificado durante a pandemia.
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Cristian Buono
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11/11/2024

Por Cristian Buono

Quem passa pela Avenida Moura Ribeiro em Santos se espanta com o tamanho do condomínio Acqua Play, que conta com oito torres de 25 andares cada. Em frente ao conjunto de prédios, em uma apertada viela, reside Karina Nascimento, uma mulher de 54 anos com três filhos biológicos que dedica sua vida à doação. Em sua casa, que não deve passar de 40 m², ela recebe e divide com todos os seus "filhos adotivos" sacolas e sacolas de roupas, sapatos, brinquedos, medicamentos e material escolar. Da avenida não é possível perceber, mas quem mora no Acqua Play conhece bem a Karina. Na sala da administração do condomínio, caixas cheias de doações saem semanalmente para ajudar a missão de vida dela.


As doações começaram como uma forma de ajudar a própria família. Os três filhos da dona de casa fazem parte do espectro autista e requerem cuidados especiais. O salário do marido, trabalhador da área portuária de Santos, não estava sendo suficiente para todas as despesas. Muito amada e conhecida na região, passou a receber doações de mantimentos e roupas em meados de 2018. Quando percebeu que estava recebendo mais do que precisava, passou a compartilhar as contribuições com outras famílias na mesma situação que a dela.

Karina recorda o dia em que chegou o primeiro grande lote de doações. Era uma manhã chuvosa, e ela ainda não sabia onde armazenaria tantos itens que haviam sido entregues. A santista afirma que nem tinha onde colocar tanta coisaMas, ao perceber a necessidade urgente de muitas famílias ao redor, ela entendeu que aquilo era um sinal para iniciar algo maior. Daquele momento em diante, Karina começou a organizar melhor os itens, separando por categorias e chamando vizinhas para ajudar.

Ela afirma que se sentia desconfortável por receber tantas doações, ao mesmo tempo em que via tantas outras pessoas precisando de auxílio. Já conhecida na região, decidiu organizar e batizar a iniciativa. O nome não poderia ser mais assertivo: Pequeno Anjo. Com o advento da pandemia da Covid-19, as pessoas começaram a depender cada vez mais da Karina. É o caso da Marisa Vieira, moradora do Morro Nova Cintra, que afirma ter conhecido a Karina por indicações em 2021, quando estava desempregada. Hoje tem emprego e contribui com o dinheiro que podemensalmente, além de ajudar na distribuição. Só quem acompanha o trabalho sabe o quanto ela precisa dessa ajuda". 

Quando a pandemia começou, a demanda pelas doações aumentou de forma assustadora. As famílias, muitas delas desempregadas e em situação ainda mais vulnerável, começaram a pedir não apenas roupas e brinquedos, mas alimentos e produtos de higiene. Karina e seu marido saíam todas as manhãs para buscar doações em bairros distantes, às vezes voltando para casa exaustos, carregando sacolas e caixas pesadas.

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Com o crescimento da Pequeno Anjo, o marido de Karina também se envolveu na causa. Nos finais de semana, ele ajudava a buscar doações em outros bairros e comunidades distantes. Karina conta que ele sempre chegava exausto, mas com um sorriso no rosto, orgulhoso do impacto que estavam criando. Mesmo trabalhando tanto, ele ainda conseguia achar tempo para ajudar a dona da ONG.

Com o tempo, Pequeno Anjo se tornou uma rede de apoio e amizade para muitos. Além das doações, as reuniões semanais de organização se transformaram em um momento de partilha de histórias e experiências entre as mães. Uma vizinha de Karina e voluntária assídua, contou que a ONG é mais do que um trabalho para ela, é um espaço de apoio emocional. A fundadora da organização criou um espaço onde todas se sentem acolhidas, compartilhando suas dores e alegrias. Ela até pensou em organizar rodas de conversa e apoio emocional para as mães da comunidade.

Outra ação desenvolvida pela ONG é a realização de festas sazonais, como no Natal e no Dia das Crianças, até então feitas em espaços comunitários do bairro Marapé. Para tanto, os comerciantes da região contribuem com pães, refrigerantes, bolo e brinquedos. E os encontros são muitos aguardados pelas famílias. 

A primeira festa organizada no Dia das Crianças foi pequena, improvisada na frente da própria casa, entregando comidas e brinquedos. Karina lembra de como, ao final da festa, uma criança se aproximou e perguntou se poderia voltar ano que vem. Foi aí que ela se deu conta do impacto que aquelas celebrações, mesmo simples, poderiam ter na vida dessas crianças. Desde então, ela se comprometeu a tornar as festas um marco anual na Pequeno Anjo.


Os voluntários já estão envolvidos com a próxima e mais aguardada festa: a de Natal, que será feita no final de novembro. Desta vez, com uma surpresa para as famílias: o evento será realizado dentro do condomínio Acqua Play, em salão de festas disponibilizado pelo síndico Fernando Borelli. Os participantes poderão confraternizar em espaço maior, climatizado e confortável. E as crianças terão acesso a área externa equipada com brinquedos.

Famílias acompanhadas pela Pequeno Anjo já enviaram as cartinhas para o Papai Noel. Nelas, crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria portadores de alguma deficiência física ou intelectual, expõem os mais variados desejos: brinquedos pedagógicos, jogos educativos, patins, bola... Mas a necessidade de suprir o básico a essas famílias fica evidente quando os pedidos contemplam também roupas, calçados e material escolar. As cartinhas foram encaminhadas ao condomínio Acqua Play, que vai realizar uma ação junto aos moradores. 
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Iniciativas visando necessidades específicas também são comuns entre a comunidade e o grupo coordenado pela Karina, como em casos de crianças de famílias de baixa renda que têm alguma doença e necessitam de alimentação diferenciada ou medicamentos de alto custo. Recentemente, a ONG conquistou uma grande vitória: o registro junto à Prefeitura de Santos, com CNPJ, o que possibilita receber verbas públicas da área de assistência social. Ela afirma que foram quase dois anos de luta, com advogados desonestos atrasando o processo, além da dificuldade de entender tanta burocracia.
 

Com o reconhecimento oficial da Pequeno Anjo pela Prefeitura, Karina agora sonha em ampliar o atendimento para além do bairro. Ela vislumbra a criação de uma sede própria, com espaço para armazenar melhor as doações e oferecer oficinas de capacitação para mães em situação vulnerável. Ela afirma querer que as famílias não só recebam ajuda, mas que também se tornem autônomas e possam ajudar outras pessoas. Para Karina, a solidariedade deve ser transformadora, não apenas paliativa, e a formalização da ONG é o primeiro passo para realizar esse desejo.

A história de Karina Nascimento e seus voluntários é um exemplo inspirador de como a solidariedade pode transformar vidas. Ter a capacidade de olhar para o próximo mesmo quando a própria situação é feita de tantas dificuldades. Seu compromisso com a comunidade, agora reconhecido oficialmente, permite vislumbrar um futuro em que sua ajuda possa alcançar ainda mais famílias, mostrando que, com amor, dedicação e uma rede de apoio, qualquer desafio pode ser superado.

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A luta de uma mãe para levar sua filha prematura para casa.
por
Isabelle Maieru
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07/10/2024

Por Isabelle Maieru

 

No início da tarde Mirella havia feito um exame de Ultrassom. Ela entrou na sala e foi bem recebida por uma médica tranquila e com um sorriso no rosto. O semblante da profissional da saúde mudou quando ela olhou para a tela. Agora, séria e com uma preocupação visível em seu rosto, a doutora saiu correndo da sala, sem nem se despedir. A partir daquele momento, Mirella, mesmo sem entender o que estava acontecendo, percebeu que a situação era grave.

O dia estava quente e ensolarado naquele 17 de março de 2023, em São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo. Mirella estava com 31 semanas de gestação quando foi realizar uma consulta pré-natal de rotina. Tudo corria como de costume na gestação da jovem de apenas 18 anos. Apesar do susto com a gravidez inesperada, aos poucos tudo se ajeitava e a ansiedade para conhecer a pequena Jade, só aumentava na família. Às 9 horas da manhã, durante a triagem, onde são realizadas as primeiras avaliações, algo chamou atenção da enfermeira: a pressão arterial de Mirella estava desregulada e bem mais alta do que deveria estar. Foi nesse momento, que a angústia começou. A mãe de Jade passou a receber medicações para que a pressão arterial baixasse e a fazer uma série de exames para tentar chegar ao diagnóstico do que estava acontecendo com mãe e filha.

O tempo se arrastava. A pressão não baixava.  A médica que realizou o exame foi ao encontro do obstetra que acompanhou a gestação. A quebra de protocolo aconteceu pois Jade não poderia ficar nem mais um minuto dentro do útero, Mirella não poderia mais estar grávida. Foi naquele exame em que foi descoberto que não havia mais nada de líquido amniótico, o principal responsável pela oxigenação e alimentação do bebê dentro do útero da mãe. Havia ao menos cinco semanas que Jade não recebia nutrientes e perdia aos poucos sua oxigenação, seu tamanho era correspondente ao de um bebê de 25 semanas de gestação, Mirella estava grávida há 31. Nenhum dos exames realizados durante esse período apresentaram alteração. 

Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil por ano. Um relatório divulgado em 2023, pela OMS, a Unicef e a parceria para a saúde materna, neonatal e infantil demonstrou que 10% dos nascimentos no mundo são prematuros. É considerado prematuro o bebê que nasce com menos de 37 semanas. Junto a esse marco temporal específico, há uma classificação mais detalhada das idades gestacionais segundo a OMS: entre a 34ª e 36ª semana e seis dias, é considerado como prematuro tardio; de 32 a 33 e seis dias, como moderados; muito prematuros entre 28 e 31 semanas e seis dias; e prematuros extremos para aqueles bebês nascidos abaixo de 28 semanas. Quanto menor a idade gestacional, maiores são os riscos de não sobreviverem.

A gente teve que tirar ela à força relembrou a mãe. O parto aconteceu e o bebê extremamente prematuro, pesando 800 gramas, foi levado às pressas para a UTI Neonatal. Esse foi o cenário dos cinco meses que seguiram o dia 17 de Março. A mãe, recém operada, passou os seus três dias de internação ao lado da incubadora, que foi a casa de Jade por todo esse tempo. O momento de deixar o hospital e retornar para casa chegou. Com ele, chegaram também o medo, a insegurança e a depressão.

 

O Medo 

Mirella sempre enfrentou um medo profundo das notícias que poderia receber. Cada visita ao hospital era um desafio, uma batalha interna entre a ansiedade e a esperança. O elevador, um espaço claustrofóbico, se tornava um símbolo de sua angústia. Muitas vezes, ao subir, o medo a dominava e, ao invés de seguir em frente, ela acabava descendo novamente, fugindo para casa. A sensação de culpa a acompanhava, um peso constante que a fazia questionar sua coragem.

A sala de espera também se transformava em um campo de batalha. Em momentos de pânico, Mirella saía do elevador, mas se via parada, paralisada, sem conseguir avançar. No entanto havia um elemento que a mantinha firme: o apoio da equipe do hospital, das outras mães que compartilhavam sua dor e, principalmente, da sua família.

Os dias eram pesados, marcados por boletins médicos e uma expectativa constante. Para Mirella, a presença da família era essencial. A prematuridade de sua filha trouxe um trauma coletivo, uma quebra de expectativas que afetou a todos. Seus pais se revezavam nas visitas diárias, garantindo que a neta nunca estivesse sozinha, enquanto Mirella tentava estar ao lado dela sempre que sua saúde mental permitia. Era uma luta constante, ela pensava, mas se forçava a estar lá.

Seu marido, mesmo com as limitações de visitas, estava sempre presente. Ele entrava apenas uma vez ao dia, mas todos os dias, em momentos difíceis, ele esperava por ela no hospital. Quando não estava bem, ele a acompanhava, ficava lá, sempre ao seu lado. Essa rede de apoio era fundamental. Mirella sabia que, sem eles, teria sido impossível suportar tamanha carga. Eles a carregaram no colo. O apoio da família foi essencial a cada dia que se passava.

 

A Solidão 

Embora contasse com o apoio inabalável de familiares e amigos, a solidão era uma constante na UTI-Neo do hospital em São Caetano. Para Mirella, a ausência da filha era uma dor que se manifestava fisicamente. Havia um vazio que parecia insuportável, um espaço que só a presença dela poderia preencher. Era ela, a única que poderia confortá-la e fazer seu coração se sentir completo. O desejo de levar a filha para casa a consumia, transformando cada dia em uma luta.

As noites eram os momentos mais difíceis. A separação entre mãe e filha se tornava ainda mais dolorosa na escuridão. Mirella se lembrava de como desejava ouvir o chorinho da pequena, mesmo que isso significasse perder o sono. Queria que ela estivesse ali, tirando o sono, em vez de estar longe, enquanto a saudade a mantinha acordada. Nesses instantes de solidão, a luta interna se tornava ainda mais intensa, uma batalha entre o amor profundo e a dor da distância. Cada noite era uma prova de resistência, enquanto a esperança de um reencontro a mantinha firme.

Enquanto estava na incubadora, o único contato possível entre mãe e filha eram as mãos, uma segurando a outra, por meio de uma abertura na lateral da caixa. Por serem extremamente frágeis, os recém nascidos prematuros só podem ser manuseados pelas enfermeiras. A prática do “canguru” foi liberada apenas quando Jade foi transferida para o berçário de médio risco, quatro meses após seu nascimento. Por poucos minutos e sob supervisão, Mirella podia sentir seu bebê em seu peito, como sempre sonhou. O método é extremamente defendido pela OMS e Sociedade Brasileira de Pediatria, pois oferece inúmeros benefícios tanto para a mãe, quanto para o bebê.

Foto de arquivo pessoal

Fim da Solidão

Após cinco longos meses de espera, angústia, medo e inseguranças, mãe e filha puderam seguir juntas para casa. Embora estivesse bem e saudável, a luta das duas não terminava por ali. Jade, tomava cerca de doze remédios por dia e fazia uso de bombinhas de ar. Além disso, fazia acompanhamento multidisciplinar com pneumologista, neurologista, gastrologista, oftalmologista, fonoaudiólogo, pediatra neonatologista, cardiologista e cirurgião. Sua idade passou a ser contada de forma corrigida. 

O Ministério da Saúde recomenda que se considere a idade cronológica (idade real que a criança tem desde o nascimento) junto com a idade corrigida (idade que a criança teria se tivesse nascido com 40 semanas), que deve ser utilizada principalmente ao avaliar o crescimento e os marcos do desenvolvimento da criança prematura. Para os prematuros extremos a recomendação é de utilizar a idade corrigida até os 3 anos de vida. para os demais prematuros a recomendação é utilizar a idade corrigida até os 2 anos. 

Hoje, um ano depois, Jade e sua família têm marcas de tudo o que passaram, mas também a alegria de ter a família reunida em casa. A pequena menina teve alta de quase todos os médicos, atualmente ela só faz acompanhamento com a pediatra neonatologista, especialista em bebês que passaram pela UTI-NEO, que vai acompanhá-la até os cinco anos, e com a neurologista. Seus remédios, que antes eram doze, hoje é um só. A mãe, que havia se desencontrado e abdicado de si mesma para cuidar da filha, se reencontrou. Realizou a profissionalização em unhas e hoje tem seu espaço para receber seus clientes. Ao lado do pai, vivem acompanhando o desenvolvimento de Jade. 

Até hoje, o som das máquinas da UTI ecoa na mente de Mirella, provocando uma aceleração instantânea do coração e uma respiração ofegante. O trauma da experiência ainda a persegue, uma ferida que ela tenta curar com a ajuda de psicólogos, psiquiatras e o apoio incondicional da família. Essa vivência se tornou uma marca indelével em sua história, moldando não apenas quem ela era antes da internação de Jade, mas também quem se tornou após esse período desafiador.

Mirella sente que essas memórias, apesar da dor que podem trazer, são parte essencial de sua identidade. Ela diz querer carregar para sempre alguma parte daquilo. Essa experiência não foi apenas uma fase difícil, mas um capítulo significativo da vida de sua filha e da sua própria trajetória. A história de Jade e a sua se entrelaçam de maneira profunda, e Mirella se recusa a deixar que esses momentos sejam esquecidos. Mesmo que às vezes doam, ela quer que essas lembranças façam parte de quem ela é, para sempre.

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 Imagem: Arquivo pessoal

 

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O número de comércios do ramo aumentou 40% no Brasil, um reflexo do súbito aumento de interessados no movimento
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Bianca Athaide
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23/09/2024

Por Bianca Athaíde

A fachada intriga quem passa na rua. Um portão de tom laranja forte, quando aberto, dá passagem visual para uma casa de arquitetura clássica da São Paulo da década de 50. Em tons bege e branco, as janelas e ornamentos criam a estética reversa do que se guarda ali dentro. Na varanda, o intelecto fica mais confuso e raciocínio custa a entender: manequins vestidos com peças que não combinam entre si; eletrodomésticos e itens de decoração que evidentemente completaram sua maioridade e uma placa de visual circense, com a tipografia embaralhada, escrito "Antiguidades Minha Avó Tinha". Já na frente da porta de entrada, compreende-se por completo o que pode ser encontrado lá dentro.

O brechó "Minha Avó Tinha", no coração do bairro de Perdizes, é um dos maiores na capital paulista, sendo referência do garimpo de luxo no Brasil. Hoje, ele faz parte do movimento de brechós que lucram cada vez mais com jovens interessados por moda, enquanto buscam itens valiosos e únicos, para fugirem da estética dominante e se destacarem na multidão. O ambiente, assim como muitos outros no ramo, constroi uma confusão visual, com excesso de informações e detalhes, os olhos dos visitantes são cativados pelo brilho extraordinário que as peças expostas reluzem. Ao entrar, é capaz sentir a vibração de cada item, cada história e cada destino, fazendo muitos, que se permitem, passearem durante horas a fio pelos dois andares e mais de sete salas recheados de objetos.

A estudante de arquitetura, de 23 anos, Marina Falleiros fica perplexa com a imensidão de informação existente naquele lugar e aponta para cada coisa que ganha seu olhar, como uma criança feliz. Diz ser viciada em brechós e  acha que começou a frequentar um pouco depois da pandemia, lá em 2022. O que a deixa encantada é a diversidade das coisas, Ela afirma amar um lugarzinho diferentão enquanto caminha extasiada pelos corredores.

Mas pouco tempo atrás, a visão misteriosa e cativante que esse tipo de comércio atualmente recebe, era mitigada pelo cheiro de naftalina e a aversão a compra de produtos usados. Poucos do que criticavam, sabiam a história por trás desse movimento e o impacto que sua existência pode gerar em um futuro de consumo mais consciente.

Foi no final do século XIX, no Rio de Janeiro, que um alfaiate português abriu uma loja para compra e venda de produtos usados. Belchior obteve sucesso. Sua empreitada ficou tão conhecida, que rapidamente foi copiada e surgiram múltiplas "Lojas do Belchior". O cenário era tão recheado que até no conto de Machado de Assis, Ideias de Canário, publicado em 1889, esse tipo de negócio é citado. A ideia do alfaiate veio dos famosos mercados de pulgas europeus e como a língua é um ser orgânico, de evolução misteriosa, com o passar dos anos o termo "belchior" se transformou em "brechó".

A denominação carregou um peso negativo na cultura brasileira durante muito tempo. O proprietário do "Minha Avó Tinha", Franz Ambrósio comenta amargamente que era comum a ideia de que todo mundo queria abrir um brechó. Mas explica que não é fácil, pois não se trata de simplesmente pegar roupa e botar pra vender. Durante seus 34 anos de experiência com o mercado, o Belchior moderno adquiriu vasta expertise em curadoria, e seu sucesso foi tanto que já abriu uma segunda unidade, focado mais em peças de luxos, reconhecida e frequentada pelas principais blogueiras e entusiastas de moda de São Paulo.

O fato é que, apesar da tradição centenária desse tipo de comércio, apenas agora o identitário de algo velho, mofado e sujo, está sendo quebrado. Segundo números publicados pelo Sebrae, em 2019 já existiam mais de 14 mil brechós no Brasil, aumentando a quantidade ano a ano. Grande parte da onda de positivismo que está banhando esse tipo de comércio é graças a geração Z. Segundo a McKinsey & Company, empresa especializada em consultoria empresarial, a geração Z representa 40% dos consumidores globais de brechós. Aos 19 anos, a estudante Maria Luísa Armelin afirma a preferência pelo mercado crescente do second-hand. Ela diz que sempre preferiu o diferente e que era muito chato comprar em lojas de shopping. Foi quando começou a comprar peças em lojas de segunda mão online, mas ressalta que a peça tem que estar boa pois coisa feia e cara não dá para comprar.

 

Meio ambiente

Outro ponto positivo do aumento súbito pelo interesse em brechós é a consciência ambiental que a geração mais nova possui. A indústria da moda é fortemente apontada como uma das mais poluidoras do cenário atual, sendo responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono, número esse que a cada momento piora, com grandes aglomerados empresariais internacionais de fast fashion produzindo e descartando toneladas de materiais a cada minuto. Por isso, entre os mais jovens, comprar itens usados deixou de ser algo mal visto para elevar-se ao posto de descolado. O perfil médio do consumidor de peças de roupas usadas, diga-se, é formado por mulheres jovens, entre 18 e 45 anos, de classe média e antenadas nas discussões socioambientais.

Em resumo, o movimento só tende a crescer, independente dos motivos, todos contribuem para um futuro mais promissor no cenário fashion, além do ambiental. Se moda é expressão pessoal, movimento circular de tendências e uma corrida exaustante para se tornar uma referência fashion, o movimento de brechós é exatamente a resposta a ser procurada, com respeito ao passado e vontade de inovar no futuro. Um movimento capaz de substituir o cheiro de naftalina pelo brilho dos brechós.

 

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Um grupo de escravos que se uniu como uma família para passar pelo desespero e dor da escravidão, acaba fazendo parte de 40% das vendas de escravos que envolviam separações familiares.
por
Davi Garcia
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01/10/2024

Por Davi Garcia

 

A cidade de Lorena sofre com a deficiência de memória histórica dos acontecimentos da escravidão, principalmente pelo peso da região nesse processo e o quanto foi palco de crimes e preconceitos com as pessoas pretas. Ainda restam alguns poucos casarões do período do café, mal preservados e afastados das áreas urbanizadas da cidade. Porém, existe sim a possibilidade de associar o município ao passado escravocrata. Nicolas Marucco, historiador e pesquisador, morador do Vale do Paraíba, contextualiza o cenário da escravidão no século XIX.

Ele explica que em agosto e setembro faz muito calor e pouco chove na região do Vale do Paraíba, um clima seco e ruim de se respirar. No final do século XIX a estrada entre Cruzeiro e Lorena, era mais uma passagem de café rumo à capital paulista.  Muitos sequer respondiam como seres humanos, mas como escravos. Corpos, ferramentas de trabalho estavam à disposição do mandatário. Com a chegada da noite, pode enfim descansar na fazenda, em uma região mais afastada de Lorena, onde se encontra a cidade de Canas nos dias de hoje. A fazenda era apenas uma das sessenta, que importava quase duas toneladas de café. O ano era 1854.

A presença da escravidão no Brasil remete ao período da colonização, e em meados do século XVI já havia registros dos primeiros navios tumbeiros atracando nos portos do Nordeste açucareiro. A escravidão foi direcionada para os indígenas e africanos, estes com maior atenção da coroa devido aos lucros maiores. Em Lorena, assim como no Vale do Paraíba, a escravidão tem registro desde a intensificação da ocupação e exploração da região, nos séculos XVIII e XIX. Nela, surge a história de quatro escravos que se reuniram como uma família, e viram ser separados como nos navios que os tiraram de casa e os fizeram perder suas identidades;

Naquela época os membros de uma família de escravos sequer tinham nomes. Uma “mãe” de 20 anos, por exemplo, se preocupava com as movimentações recentes de mulheres em direção ao município de Silveiras, que adquiria mais e mais escravas. Os garotos que ela adotara como filhos, ambos na faixa de 10 anos de idade, eram sua única esperança de ver o sol raiar atrás das montanhas da fazenda do Vale do Paraíba. Além disso, o cheiro de comida rica e farta que fazia para Julian Florence Meyer, alemão e Senhor que cuidava dessa fazenda, devia invadir seus sentidos, mas ela raramente tocava em algo que não fosse além de restos.

Nessa mesma família, o “pai”, em torno de seus 25 anos de idade, reservava suas poucas energias para divertir os pequenos após mais um dia de trabalho desumano no solo do cafezal da fazenda, nos subúrbios de Lorena. Como a mãe, também tinha medo de ver sua família se desmoronar. Afinal, a cidade de Guaratinguetá vivia uma intensa expansão das lavouras de café, em que demandava mão de obra incessantemente, e era, portanto a que mais adquiria escravos de sua idade naqueles anos de 1850 e 1860. As famílias escravizadas eram frequentemente desfeitas. Estima-se que em muitas fazendas do Vale do Paraíba, aproximadamente 40% das vendas de escravos envolviam a separação de famílias.

As noites eram o único momento em que conseguiam se reunir. No pequeno espaço da senzala, eles dividiam um canto escuro com outros cativos. Quando o silêncio caía sobre a fazenda e o único som era o zumbido de insetos no mato, os meninos se agarravam ao colo da mãe, tentando adiar o inevitável momento em que ela também teria que enfrentar os horrores do trabalho forçado. Ao amanhecer, aquela "mãe" recebe a terrível notícia que seria vendida pela quantia de 600 mil réis através da adjudicação no inventário da esposa de Julien Meyer. O comprador era um Senhor que daria para essa "mãe" um nome: Ignez. \E a tornaria sua esposa. A base da mulher havia desmoronado, e as crianças que assumiu orgulhosamente como filhos ficariam apenas como saudades eternas.

Aquele "pai" não fazia ideia de como seguir com essa notícia. Não tinha condições para cuidar dos dois pequenos, principalmente por conta do exaustivo trabalho na fazenda Meyer. Além disso, o pai entraria para a estatística de 81% dos homens escravos de Lorena que estavam solteiros, transformando a vida do rapaz uma verdadeira solidão e vazia naquelas noites geladas em que os ventos do Vale passavam pelo seu corpo sem camisa. Os "filhos" choraram pela despedida forçada de sua mãe, e mesmo tão novos, não era a primeira vez que teriam que passar pelo dolorido processo de separação.

Meses depois, e sem forças para seguir, o "pai" acabou falecendo devido a precarização e a humilhação que sofria todos os dias naquela. Morreu sem dignidade, sem o direito de experenciar a vida como deve ser vivida. Os seus 20 e poucos anos de idade foram tomados pela angústia, dor, suor e sangue do trabalho escravo de todos os dias em que pisou no solo do Vale do Paraíba. No entanto, não era um cenário atípico: a expectativa de vida de um escravo no Brasil era de 25 anos de idade. Por fim, acabou integrando o grupo que sofreu um dos maiores genocídios da história -- mais de 15 milhões de pessoas mortas, assassinadas pelo sistema escravocrata.

Os filhos do casal tiveram de "viver" mais uma vez sem uma figura de amor, que poderia fazer chegar perto de ter uma infância, assolados pela certeza de que, a partir daquele momento, construiriam suas vidas sozinhos. Com a chegada da Lei Áurea no ano de 1888, já adultos e com nomes, Pedro e Joaquim, se encontravam “livres”. Conseguiram avançar na idade e na faixa dos 40 anos, Joaquim trabalhava como pedreiro no antigo Engenho localizado na Vila Nunes, e ajudava a expandir o local construindo a moradia de seu chefe. Mesmo após a assinatura da lei que libertava os escravos, o preconceito continuava presente nas ruas, nas plantações e nas fábricas, e era visto com desdém por parte de brancos e alguns europeus que trabalhavam no local. A lei havia mudado no papel, mas o tratamento e o preconceito social permanecia cruel os ex-escravos.

Pedro, que ganhou um nome enquanto trabalhava na fazenda do filho do alemão, agora vivia nas ruas de Lorena, principalmente na região do Centro, onde a cidade foi construída para trás da igreja principal. Ser liberto pela Lei Áurea pouco mudou na vida do homem, que ainda não tinha o direito à vida, sendo tratado ainda com escravo pela população. Acabou se suicidando na ponte de madeira recém construída no rio Paraíba, e seu corpo foi só mais um dos tantos que morreram em decorrência do isolamento social.

 

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Em meio a 2ª Guerra Mundial, a luta para manter a infância depois das sequelas do combate.
por
Isabella Santos
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24/09/2024

Por Isabella Santos

A primeira coisa que vem à mente de quem tira parte do seu tempo para refletir sobre conflitos tão, aparentemente, distantes provavelmente são armas, bombas e exércitos e mais exércitos de homens destemidos, determinados a dar seu sangue pela nação. Mas, das trincheiras para dentro da casa deste soldado, pouco se fala sobre a vida daqueles que não foram à guerra, não escolheram ter sua vida revirada pela mesma, mas que,por conta de um ato de coragem de seus familiares, sofrem com as consequências por anos. A história que será contada poderia ser sobre alguma garota ucraniana, que luta para sobreviver em meio ao caos e vazio causado pela guerra e a falta de um familiar que se foi, mas é sobre Neide, uma menina que tinha apenas 7 anos de idade quando foi brutalmente obrigada pela vida a ter responsabilidades e deveres de uma pequena adulta.

O Brasil foi envolvido na Segunda Guerra Mundial em 1942, quando submarinos alemães torpedearam e afundaram cinco navios mercantes brasileiros, fato que provocou a ira de Getúlio Vargas, declarando guerra à Alemanha. E foi assim que "a cobra fumou", e a Força Expedicionária Brasileira (FEB) convocou aproximadamente 25 mil militares e os enviou para o front de batalha na Itália. Entre eles estava Salvador Figueiredo. pai da Neide. Ele foi surpreendido pela vida, quando aos 19 anos foi convocado pela FEB em 1944 para ir à guerra. O jovem, do 1° batalhão, 2° regime de Obuzes havia iniciado um namoro com sua amada Hermenegilda e se viu sem saída, tendo sua partida confirmada logo após sua convocação.

Por mais que sua vontade fosse ficar em Osasco, sua cidade natal, era quase impossível não defender o Brasl no maior conflito da história da humanidade. Seu amor por Hermenegilda se sustentou durante todo o ano em que ele residiu na Itália através de cartas, que sua filha hoje guarda como se fosse um tesouro, tomando todos os cuidados para mantê-las em seu melhor estado junto a outras lembranças do pai.

1944 foi um ano de incertezas para Hermenegilda. Acordar todos os dias sem ter notícias sobre a vida de seu amado foi desafiador e ao mesmo tempo perturbador, mas para ela, restava apenas ter fé e a esperança de que ele iria retornar para seus braços. E assim foi feito, um ano depois Salvador retornou do conflito, e a felicidade e alívio do casal foi tanta que o casório foi celebrado logo em seguida.

Diário de batalha
Diário de Guerra (arquivo pessoal)
 

Em outubro do mesmo ano, Salvador e Hermenegilda tiveram a primeira de seus três filhos, Neide Aparecida Figueiredo. E quando o casal imaginava que teria colocado um ponto final na guerra, os reflexos dela começaram a invadir a mente e o corpo de Salvador, deixando muito mais que cicatrizes em sua família.

Neide conta de sua infância com dor e carinho, citando sempre sua brincadeira preferida que fazia com o pai. Ele era apaixonado por ginástica artística, e seu sonho era transformá-la em uma ginasta. Neide conta que treinava com o pai todos os dias, com cambalhotas, piruetas e manobras ensaiadas, reforçando sempre com brilho nos olhos o quanto gostava de ser criança com ele.

Porém, do dia para a noite os surtos repentinos de Salvador começaram a aparecer, e as visitas ao hospital se tornaram cada vez mais frequentes. O médico explicou à família que era normal surgir efeitos psicológicos em pessoas que retornaram da guerra, devido ao grande trauma causado pela batalha, e a partir daquelas palavras, Neide sabia que sua vida nunca mais seria a mesma.

Com tristeza no olhar e dor em sua voz, ela conta que seu pai sempre se trancava em um quarto quando sentia que os acessos de raiva iriam iniciar, Salvador tinha muito medo de machucar a família quando se descontrolava. Ela conta que ele ficava cerca de uma hora sozinho, e tudo que eles podiam ouvir do lado de fora eram gritos de pânico, pedidos de ajuda e sons de coisas sendo quebradas, eram tempos difíceis, em que Salvador quebrou as poucas coisas que a família lutou para ter. Porém, logo que seu pai se acalmava ele saia do quarto, voltava a tocar seu amado bandolim, e a família voltava a fingir uma normalidade perturbadora.

Depois de um tempo, os surtos começaram a piorar, e Hermenegilda voltou ao médico com Salvador, que recomendou que a família se mudasse de casa, visto que eles moravam em um bairro agitado de Osasco, e os barulhos da cidade provocavam reações preocupantes no ex soldado. E assim a família se mudou para Amador Bueno, em uma casa bem afastada e sem vizinhança alguma, e esse foi o início do fim de sua vida. Após a mudança, Salvador teve uma melhora significativa por um período, mas logo após sua terceira filha nascer sua doença se agravou, fazendo com que ele fosse internado em Tremembé.

Em mais um dia de visita rotineira ao marido internado, Hermenegilda notou uma melhora significativa; Já conseguia conversar, perguntar dos filhos e fazer a promessa de que sairia logo de lá. Porém, no instante em que ela entrou no trem rumo a Amador Bueno chegou a notícia através de um soldado enfermeiro de que seu marido havia falecido minutos após sua saída do hospital. No atestado de óbito o diagnóstico indicava morte por neurose de guerra dia 19 de outubro, deixando para trás a mulher, sua filha mais velha de 7 anos, o segundo filho com 4, a caçula de apenas 8 meses, muitas dívidas e uma infância complicada para seus filhos.

Salvador Figueiredo
Salvador Figueiredo se despedindo de sua mãe (arquivo pessoal)
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Neide conta que sua mãe, viúva muito jovem com 29 anos, decidiu ser fiel à memória do marido e nunca mais arrumou outro homem na vida. Apesar disso, a fidelidade trouxe dificuldade, já que Hermenegilda precisava deixar seus filhos sozinhos dar conta de seus dois empregos, fazendo com que Neide, aos 7 anos, fosse responsável por cuidar de seus dois irmãos mais novos e pela limpeza da casa. Além da perda da infância, Neide conta com tristeza no olhar sobre como foi obrigada pela vida a desistir de uma bolsa de estudos aos 14 anos para trabalhar e ajudar sua família. O pai havia deixado diversas dividas médicas com sua partida, e sua mãe não ganhava o suficiente para manter os três filhos. Por mais que ela fale que não se arrepende de ter feito tudo o que fez, diz que sempre imagina os rumos que sua vida teria tomado se seu pai não houvesse sido obrigado a ir para a guerra, se ele não tivesse partido, se ela tivesse aceitado a bolsa de estudos e se tudo fosse diferente.

 

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