Por Renan Barcellos
Era uma noite abafada de 1971, quando Márcio Toledo percebeu que seu tempo estava chegando ao fim. Ao redor dele, os olhares de seus companheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) já não eram os mesmos. A desconfiança, antes uma sombra discreta, tornava-se palpável, quase tangível. Ele sabia que havia se tornado um alvo. Não por traição, mas por discordar. Aquela diferença de opinião, num cenário de guerra velada, seria suficiente para selar seu destino.
Eles não podiam mais confiar em ninguém, nem mesmo em Toledo, que havia lutado ao lado deles desde o início. A paranoia que consumia a resistência armada era mais cruel que a tortura do inimigo. Naquela noite, ele seria julgado. Não pela ditadura, mas pelos próprios companheiros, em um tribunal revolucionário onde o veredito já estava traçado: a morte.

Nacional
Carlos Alberto Cardoso teve uma chance que Toledo não teve. Preso pelos militares, foi torturado e tentaram dobrá-lo, oferecendo-lhe um acordo: "Seja nosso homem lá dentro, nos ajude a destruir a ALN". A oferta pairava como um veneno entre a dor e o desespero. Mas Cardoso, fiel à sua luta, recusou. Mesmo assim, sabia que precisava contar a seus companheiros o que havia ocorrido, acreditando que a lealdade mútua os protegeria.

Ele relatou tudo aos seus colegas de resistência, certo de que o entenderiam. No entanto, seus companheiros não acreditaram. Para eles, uma vez abordado, ele já estava manchado, corrompido. No julgamento, foi sentenciado a 21 tiros, uma execução violenta. Seus pais, por anos, acreditariam que ele havia sido mais uma vítima da ditadura. A verdade viria muito tempo depois.
Salatiel Rolim e Francisco Alvarenga carregavam no corpo as cicatrizes da tortura. Torturados brutalmente pelos militares, foram obrigados a ceder informações. As pancadas, os choques e as queimaduras não deixavam margem para resistência. Sob coação, falaram. Mesmo assim, seus próprios companheiros os condenaram, ignorando as marcas visíveis da violência estatal. A sentença, como nas demais vezes, foi a mesma: a morte.

Salatiel questionou, em seus momentos finais, o que qualquer um faria em seu lugar, em uma tentativa desesperada de buscar empatia nos corações endurecidos pela luta armada. Mas a lógica revolucionária era implacável. A suspeita de traição equivalia à traição. E isso era imperdoável.

Esses relatos, se fossem narrados pelos próprios mortos, ecoariam como testemunhos silenciosos de um capítulo que a esquerda prefere não remexer. Era mais fácil confrontar o terror do regime militar do que olhar para os erros que surgiam no calor da luta pela liberdade. Francisco Alvarenga, Salatiel Rolim, Carlos Alberto Cardoso e Márcio Toledo tornaram-se símbolos trágicos de um tempo em que a verdade era constantemente distorcida, não apenas pela ditadura, mas também pelos próprios revolucionários.
No calor daquela guerra interna, Carlos Eugênio, um dos líderes da ALN, jamais se arrependeu. Para ele, aquelas mortes eram dores da guerra, justificadas como parte de um ciclo inevitável, onde o medo de infiltrações superava qualquer consideração de humanidade. Maria Amparo, uma sobrevivente, tinha uma visão diferente. Ela reconhecia que poderiam ter sido mais cautelosos, investigado melhor. No entanto, diante da realidade implacável da ditadura, as execuções pareciam a única saída.
As famílias das vítimas dos justiçamentos, assim como as vítimas da repressão militar, buscam até hoje respostas. A dor do silêncio pesa tanto quanto a ausência dos entes queridos. Para muitas dessas famílias, a memória dos filhos, maridos e irmãos é marcada pela confusão entre o que se acreditava ser uma morte heroica e a dura verdade de que foram traídos pelos próprios companheiros de luta.
Essas histórias revelam o quanto o passado ainda se impõe sobre o presente. O Brasil, ansioso por enterrar o período da ditadura, ainda se esquiva de reconhecer que, em meio à justa resistência contra o regime, ocorreram erros imperdoáveis. Ao mergulharmos nas sombras dos justiçamentos, forçamos a sociedade a encarar o incômodo de uma guerra onde todos, de alguma forma, saíram derrotados. A justiça, por sua vez, não pode esperar por mais silêncio.
Por Rodrigo Marques
Filho de pescadores, as manhãs de Luís de Jesus, hoje com 39 anos, eram marcadas pelo som das ondas e o cheiro do mar de Anchieta, no litoral Espírito Santo. Quando criança, sonhava em ser marinheiro. Aos dezoito anos, mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades, mas logo percebeu a dureza da vida na cidade grande. Inicialmente, tentou alistar-se na Marinha para realizar seu sonho, mas foi dispensado por excesso de contingente. Trabalhou como garçom, mas um incidente no trabalho o deixou sem emprego e, eventualmente, sem moradia. Nos anos seguintes, Luís enfrentou o frio, a fome e a indiferença vivendo nas ruas de São Paulo.
Mesmo sendo sub-representada nas estatísticas oficiais, a população em situação de rua começou a ter sua condição eleitoral mais analisada nos últimos anos. Isso ocorre devido ao fato de menos da metade dessas pessoas possuírem título de eleitor. Em São Paulo, o Censo da prefeitura revelou que, no fim de 2023, cerca de quarenta mil pessoas viviam nas ruas. Entre as entrevistadas pelos agentes municipais, menos de cinquenta por cento declararam ter o título de eleitor.
Ainda assim, essa barreira não impediu os que tinham título de comparecer e exercer seu direito ao voto na última eleição para a Prefeitura paulistana. Luís tentou sobreviver com pequenos "bicos", mas estes eram insuficientes para seu sustento. Quando o período eleitoral se aproximou, ele começou a se interessar pelos candidatos à prefeitura. Determinado a votar, procurou um centro de acolhimento para obter o título de eleitor em São Paulo, uma vez que não era natural do estado. Durante o processo, conheceu uma pessoa que o ajudou a encontrar um teto após quase nove anos nas ruas em um centro de acolhimento de moradores de rua. Luís então escolheu votar em Ricardo Nunes, do MDB, por considerar que o candidato tinha uma postura mais realista. Justificou sua decisão dizendo que via Guilherme Boulos, do PSOL, como "um filhinho de papai" que, segundo ele, jamais passara por dificuldades reais. Luís também comentou que via potencial em Tabata Amaral, candidata do PSB.

Em contraste, Fernando Almeida, de 55 anos, conhecido como Nandinho, é da segunda geração de imigrantes nordestinos que vieram em busca de emprego em São Paulo. Hoje, trabalha como zelador de escola, mas viveu mais de quinze anos nas ruas devido ao problema com uso de drogas, como crack e anfetaminas. Antes disso, atuava como concursado, mas começou a usar substâncias para suportar o estresse do trabalho. Após anos sem votar, seu título foi suspenso, obrigando-o a regularizá-lo para esta eleição. Nandinho escolheu Guilherme Boulos, especialmente pela proposta de criar um Poupatempo da Saúde, visando zerar as filas do SUS. Relatou que, sete anos atrás, teve uma infecção por compartilhamento de seringa e só foi atendido após desmaiar por conta da gravidade do problema. Além disso, enxergava Nunes como um inútil que encontrou uma oportunidade de assumir o posto que era do falecido ex-prefeito, Bruno Covas.
Esses são apenas dois exemplos entre milhares de moradores ou ex-moradores de rua que, apesar das adversidades, decidiram exerceram seu direito de votar como cidadãos aptos a decidirem o futuro da cidade com parte de suas histórias pessoais.

Por Leonardo Caporalini
O despertador toca às 6h30min. O iPhone 15 Pro Max do serviço, que parece valer mais do que a sua tranquilidade, está sempre por perto. Felipe Campos, jovem fotógrafo de 29 anos, corintiano, fã de rock e amante de um tradicional Marlboro Vermelho, vive em uma realidade onde o glamour esperado por quem está nos bastidores da política se dissipa rapidamente, engolido por uma pressão invisível que nunca o abandona. Ele ainda não despertou por completo, mas o cigarro já está aceso. O silêncio da manhã, quebrado pela fumaça, é o único alívio antes de enfrentar mais um dia na Assembleia. Seu apartamento no Cambuci, apertado e aconchegante, é o oposto do imenso Palácio 9 de Julho, para onde ele se dirige de ônibus todos os dias. No caminho, tenta se preparar mentalmente para o que virá, embora essa breve calmaria já não faça sentido. No ‘busão’, costuma ficar na primeira parte do automóvel. Pela manhã, ainda tem dificuldade de passar para o outro lado do ônibus, após a conferência da passagem, para evitar contato com o cobrador e outros passageiros. O horário faz com que o transporte público esteja lotado e sem olhares que não demonstram esperança.
Desta vez o caminho foi para o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista e casa do governador Tarcísio de Freitas, antes de ir para Assembleia Legislativa. O alarme das 7h30min tocou, o último dos dez que ele programou a cada cinco minutos para ter certeza de que teria forças para acordar. O evento é para comemorar o Dia do Auditor Fiscal. São Paulo arrecadou mais de R$ 280 bilhões em tributos neste 2024, e os auditores preparam um grande evento para louvar os profissionais do confisco. Na entrada, Felipe fez o cadastro após a segunda escada do saguão. Ele conhece o Palácio tanto quanto um cidadão deveria conhecer. Cada espaço, andar, funcionários. Mesmo não sendo sua sede profissional, já veio tanto por aqui que adquiriu intimidade.
Seu chefe, deputado estadual, não pode comparecer ao evento oficial pois não havia chegado à capital. Ele estava no seu reduto eleitoral, sua cidade natal há 475 quilômetros de São Paulo, no Centro-Oeste do Estado. Lá não tem aeroporto comercial, apenas um hangar para translado privativo – caso do deputado, já que ele tem um avião particular. O parlamentar também é um empresário de sucesso no interior, sendo sócio-proprietário de uma das maiores comerciantes frigoríficas no segmento. A viagem aérea dura uma hora e vinte minutos, mas por conta de compromissos pessoais, não deu para o deputado chegar. Felipe disse que isso é bem comum e acaba não sendo tão ruim. Não que ele vá trabalhar menos para cobrir o evento, apenas que não vai ter tanta pressão.
Com a chegada do governador Tarcísio, os cliques começam. Assim como em um balé, Felipe dança pelo saguão do Palácio na busca pela melhor captura. A diferença que, ao contrário da sincronia perfeita determinada por uma orquestra para um balé perfeito, um fotógrafo tem apenas sua câmera e o que adquiriu de experiência. Ao lado do governador, estava um homem que parecia ter alta patente. Um chute: Secretário de Desenvolvimento Econômico. O rosto parece familiar e Felipe garante que o já viu. Logo, o foco não é apenas de Tarcísio. Uma foto com os dois então, perfeito. Já garantiu o feed para o post nas redes do deputado. Ao fim do discurso do secretário, ele se junta a Tarcísio para a entrega de Challenge Coins – uma espécie de moeda comemorativa e que por muito tempo teve caráter apenas militar.
Com o fim do evento, as festividades começaram. O deputado chegou para acompanhar o brinde especial pela arrecadação recorde, já Felipe precisou voltar para a Assembleia Legislativa afim de terminar a decupagem de seu material e subir os arquivos na nuvem. Além do deputado, ele também é cobrado pela sua equipe de comunicação, que preza pela excelência e rapidez no serviço. Um contrato na visão do fotógrafo, que sempre cobra melhores orientações e agilidade na resposta de suas tantas perguntas. Quando ele chega à ALESP, o ambiente é o mesmo. O ar é denso, carregado de interesses ocultos que nunca são vistos a olho nu. Sua relação com seus chefes, parece tranquila, mas por trás de cada imagem está uma cobrança constante. O parlamentar é de direita e prega o básico do extremo desse espectro político: Deus, Pátria e Família. Ele não quer apenas fotos; quer o controle de como será retratado. Felipe, sempre ao lado do deputado, sente o peso do poder a cada respiração, como se fosse uma presença sufocante, que nunca o deixa em paz. O primeiro encontro do dia com o parlamentar é sempre silencioso, sem “bom dia”, enquanto a presença dos dois seguranças armados do político o lembra constantemente que ele está ali para servir, não importa o que aconteça.
A rotina na (ALESP) é um campo minado. O local é a casa do Poder Legislativo e o maior parlamento do hemisfério sul. Entre o disparo de sua câmera e os segredos que carrega, ele se mantém de pé e sem respaldo, enfrentando o caos diário como quem encara uma tempestade sem guarda-chuva. São Paulo o acolheu em 2019, quando ele saiu de São José dos Campos para trabalhar na Prefeitura da capital. Ele até chegou a começar uma faculdade de Publicidade e Propaganda, mas não teve tempo para concluir. Preferiu seguir a vida e pular etapas na quarta maior cidade do mundo. Nos tempos de Prefeitura, a política ainda parecia ter algum vestígio de veracidade. No entanto, ao chegar na ALESP, Felipe foi rapidamente arrastado para as camadas mais sombrias do poder. Sua missão parece simples: capturar a política em sua forma mais crua. Mas a verdade é que a realidade raramente pode ser completamente revelada.
A cada clique de sua câmera, o fotógrafo carrega um dilema. Muitas dessas imagens jamais verão a luz do dia. Elas são destinadas ao esquecimento, deletadas antes de serem publicadas. Em meio ao caos dos bastidores, ele tenta manter o foco na realidade, mas sabe que, às vezes, sua ética é moldada pelas circunstâncias. O que ele vê nem sempre pode ser mostrado. Inclusive, tem histórias tão íntimas ouvidas nos corredores do poder, que nem um padre no confessionário poderia imaginar. Felipe conhece cada centímetro da ALESP. Ele sabe onde estar para captar o melhor ângulo dos discursos, das tensões e das conversas que ocorrem a portas fechadas. No entanto, ele também conhece bem a censura sutil que paira sobre suas fotos. Uma imagem pode valer mais do que mil palavras, mas também pode destruir uma carreira. Campos entende isso melhor do que ninguém. Ele não é apenas um fotógrafo; ele é o guardião dos segredos que não podem ser revelados.
Durante os intervalos entre as sessões, reuniões, Felipe escapa para os fundos do prédio, onde encontra outros fotógrafos. Quase todos fumam, aproveitando uma pausa rápida para respirar entre um cigarro e outro. É o único momento em que realmente ele desliga, sem perceber a ironia de que o alívio que procura está lentamente consumindo sua saúde. Esses breves momentos de tranquilidade são interrompidos pela próxima sessão ou pela próxima exigência. Dentro da ALESP, o clima é sufocante. A política ali é mais brutal do que nos corredores da Prefeitura de São Paulo, onde tudo era mais direto. Na Assembleia, as coisas são diferentes; o jogo de poder é mais dissimulado, e as regras mudam a cada segundo. Felipe sabe que não pode confiar em ninguém que tenha um cargo acima do seu. Aliás, ele reforça que é bom ficar de olho em quem está emergindo também. A política o desgasta, mas também o mantém vivo. É uma relação tóxica, sustentada pela imprevisibilidade do que pode acontecer a cada novo dia. A resposta para o descaso é o sentido de uma rotina madura, com responsabilidades.
O dia se arrasta, e quando as luzes dos gabinetes começam a apagar, Felipe Campos ainda está lá, revisando as centenas de fotos que tirou. Escolher as melhores é uma tarefa árdua, que vai muito além da técnica. Muitas vezes, a melhor foto é aquela que nunca será vista. A imagem mais verdadeira geralmente é a primeira a ser deletada. A vida política o desgasta, e ele não tem certeza de quanto tempo mais poderá suportar. Às vezes, pensa em voltar para São José dos Campos, onde a vida era mais simples, menos opressiva. Mas algo sempre o prende. Talvez seja a sensação de estar no epicentro dos acontecimentos, documentando momentos que podem mudar alguma história – mesmo que ele tenha que apagar essa história com um toque no "delete" antes que ela veja a luz do dia. Já passa das 22h00min quando ele finalmente sai do Palácio, sempre o último a deixar o gabinete. O vento frio da noite paulista bate em seu rosto, mas ele mal o sente. A rotina é mecânica. No caminho até o ponto de ônibus, seis quadras distante porque nessa parada o ônibus vai direto para casa, Felipe acende o último cigarro do dia. Foi um dia longo, mas a montanha-russa não para. Amanhã, tudo recomeça. Afirma que só precisa de um cigarro, pois o resto ele dá um jeito de tragar.
Por Cristian Buono
Quem passa pela Avenida Moura Ribeiro em Santos se espanta com o tamanho do condomínio Acqua Play, que conta com oito torres de 25 andares cada. Em frente ao conjunto de prédios, em uma apertada viela, reside Karina Nascimento, uma mulher de 54 anos com três filhos biológicos que dedica sua vida à doação. Em sua casa, que não deve passar de 40 m², ela recebe e divide com todos os seus "filhos adotivos" sacolas e sacolas de roupas, sapatos, brinquedos, medicamentos e material escolar. Da avenida não é possível perceber, mas quem mora no Acqua Play conhece bem a Karina. Na sala da administração do condomínio, caixas cheias de doações saem semanalmente para ajudar a missão de vida dela.
As doações começaram como uma forma de ajudar a própria família. Os três filhos da dona de casa fazem parte do espectro autista e requerem cuidados especiais. O salário do marido, trabalhador da área portuária de Santos, não estava sendo suficiente para todas as despesas. Muito amada e conhecida na região, passou a receber doações de mantimentos e roupas em meados de 2018. Quando percebeu que estava recebendo mais do que precisava, passou a compartilhar as contribuições com outras famílias na mesma situação que a dela.
Karina recorda o dia em que chegou o primeiro grande lote de doações. Era uma manhã chuvosa, e ela ainda não sabia onde armazenaria tantos itens que haviam sido entregues. A santista afirma que nem tinha onde colocar tanta coisa. Mas, ao perceber a necessidade urgente de muitas famílias ao redor, ela entendeu que aquilo era um sinal para iniciar algo maior. Daquele momento em diante, Karina começou a organizar melhor os itens, separando por categorias e chamando vizinhas para ajudar.
Ela afirma que se sentia desconfortável por receber tantas doações, ao mesmo tempo em que via tantas outras pessoas precisando de auxílio. Já conhecida na região, decidiu organizar e batizar a iniciativa. O nome não poderia ser mais assertivo: Pequeno Anjo. Com o advento da pandemia da Covid-19, as pessoas começaram a depender cada vez mais da Karina. É o caso da Marisa Vieira, moradora do Morro Nova Cintra, que afirma ter conhecido a Karina por indicações em 2021, quando estava desempregada. Hoje tem emprego e contribui com o dinheiro que podemensalmente, além de ajudar na distribuição. Só quem acompanha o trabalho sabe o quanto ela precisa dessa ajuda".
Quando a pandemia começou, a demanda pelas doações aumentou de forma assustadora. As famílias, muitas delas desempregadas e em situação ainda mais vulnerável, começaram a pedir não apenas roupas e brinquedos, mas alimentos e produtos de higiene. Karina e seu marido saíam todas as manhãs para buscar doações em bairros distantes, às vezes voltando para casa exaustos, carregando sacolas e caixas pesadas.

Com o crescimento da Pequeno Anjo, o marido de Karina também se envolveu na causa. Nos finais de semana, ele ajudava a buscar doações em outros bairros e comunidades distantes. Karina conta que ele sempre chegava exausto, mas com um sorriso no rosto, orgulhoso do impacto que estavam criando. Mesmo trabalhando tanto, ele ainda conseguia achar tempo para ajudar a dona da ONG.
Com o tempo, Pequeno Anjo se tornou uma rede de apoio e amizade para muitos. Além das doações, as reuniões semanais de organização se transformaram em um momento de partilha de histórias e experiências entre as mães. Uma vizinha de Karina e voluntária assídua, contou que a ONG é mais do que um trabalho para ela, é um espaço de apoio emocional. A fundadora da organização criou um espaço onde todas se sentem acolhidas, compartilhando suas dores e alegrias. Ela até pensou em organizar rodas de conversa e apoio emocional para as mães da comunidade.
Outra ação desenvolvida pela ONG é a realização de festas sazonais, como no Natal e no Dia das Crianças, até então feitas em espaços comunitários do bairro Marapé. Para tanto, os comerciantes da região contribuem com pães, refrigerantes, bolo e brinquedos. E os encontros são muitos aguardados pelas famílias.
A primeira festa organizada no Dia das Crianças foi pequena, improvisada na frente da própria casa, entregando comidas e brinquedos. Karina lembra de como, ao final da festa, uma criança se aproximou e perguntou se poderia voltar ano que vem. Foi aí que ela se deu conta do impacto que aquelas celebrações, mesmo simples, poderiam ter na vida dessas crianças. Desde então, ela se comprometeu a tornar as festas um marco anual na Pequeno Anjo.
Os voluntários já estão envolvidos com a próxima e mais aguardada festa: a de Natal, que será feita no final de novembro. Desta vez, com uma surpresa para as famílias: o evento será realizado dentro do condomínio Acqua Play, em salão de festas disponibilizado pelo síndico Fernando Borelli. Os participantes poderão confraternizar em espaço maior, climatizado e confortável. E as crianças terão acesso a área externa equipada com brinquedos.
Famílias acompanhadas pela Pequeno Anjo já enviaram as cartinhas para o Papai Noel. Nelas, crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria portadores de alguma deficiência física ou intelectual, expõem os mais variados desejos: brinquedos pedagógicos, jogos educativos, patins, bola... Mas a necessidade de suprir o básico a essas famílias fica evidente quando os pedidos contemplam também roupas, calçados e material escolar. As cartinhas foram encaminhadas ao condomínio Acqua Play, que vai realizar uma ação junto aos moradores.
Iniciativas visando necessidades específicas também são comuns entre a comunidade e o grupo coordenado pela Karina, como em casos de crianças de famílias de baixa renda que têm alguma doença e necessitam de alimentação diferenciada ou medicamentos de alto custo. Recentemente, a ONG conquistou uma grande vitória: o registro junto à Prefeitura de Santos, com CNPJ, o que possibilita receber verbas públicas da área de assistência social. Ela afirma que foram quase dois anos de luta, com advogados desonestos atrasando o processo, além da dificuldade de entender tanta burocracia.
Com o reconhecimento oficial da Pequeno Anjo pela Prefeitura, Karina agora sonha em ampliar o atendimento para além do bairro. Ela vislumbra a criação de uma sede própria, com espaço para armazenar melhor as doações e oferecer oficinas de capacitação para mães em situação vulnerável. Ela afirma querer que as famílias não só recebam ajuda, mas que também se tornem autônomas e possam ajudar outras pessoas. Para Karina, a solidariedade deve ser transformadora, não apenas paliativa, e a formalização da ONG é o primeiro passo para realizar esse desejo.
A história de Karina Nascimento e seus voluntários é um exemplo inspirador de como a solidariedade pode transformar vidas. Ter a capacidade de olhar para o próximo mesmo quando a própria situação é feita de tantas dificuldades. Seu compromisso com a comunidade, agora reconhecido oficialmente, permite vislumbrar um futuro em que sua ajuda possa alcançar ainda mais famílias, mostrando que, com amor, dedicação e uma rede de apoio, qualquer desafio pode ser superado.
Por Isabelle Maieru
No início da tarde Mirella havia feito um exame de Ultrassom. Ela entrou na sala e foi bem recebida por uma médica tranquila e com um sorriso no rosto. O semblante da profissional da saúde mudou quando ela olhou para a tela. Agora, séria e com uma preocupação visível em seu rosto, a doutora saiu correndo da sala, sem nem se despedir. A partir daquele momento, Mirella, mesmo sem entender o que estava acontecendo, percebeu que a situação era grave.
O dia estava quente e ensolarado naquele 17 de março de 2023, em São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo. Mirella estava com 31 semanas de gestação quando foi realizar uma consulta pré-natal de rotina. Tudo corria como de costume na gestação da jovem de apenas 18 anos. Apesar do susto com a gravidez inesperada, aos poucos tudo se ajeitava e a ansiedade para conhecer a pequena Jade, só aumentava na família. Às 9 horas da manhã, durante a triagem, onde são realizadas as primeiras avaliações, algo chamou atenção da enfermeira: a pressão arterial de Mirella estava desregulada e bem mais alta do que deveria estar. Foi nesse momento, que a angústia começou. A mãe de Jade passou a receber medicações para que a pressão arterial baixasse e a fazer uma série de exames para tentar chegar ao diagnóstico do que estava acontecendo com mãe e filha.
O tempo se arrastava. A pressão não baixava. A médica que realizou o exame foi ao encontro do obstetra que acompanhou a gestação. A quebra de protocolo aconteceu pois Jade não poderia ficar nem mais um minuto dentro do útero, Mirella não poderia mais estar grávida. Foi naquele exame em que foi descoberto que não havia mais nada de líquido amniótico, o principal responsável pela oxigenação e alimentação do bebê dentro do útero da mãe. Havia ao menos cinco semanas que Jade não recebia nutrientes e perdia aos poucos sua oxigenação, seu tamanho era correspondente ao de um bebê de 25 semanas de gestação, Mirella estava grávida há 31. Nenhum dos exames realizados durante esse período apresentaram alteração.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil por ano. Um relatório divulgado em 2023, pela OMS, a Unicef e a parceria para a saúde materna, neonatal e infantil demonstrou que 10% dos nascimentos no mundo são prematuros. É considerado prematuro o bebê que nasce com menos de 37 semanas. Junto a esse marco temporal específico, há uma classificação mais detalhada das idades gestacionais segundo a OMS: entre a 34ª e 36ª semana e seis dias, é considerado como prematuro tardio; de 32 a 33 e seis dias, como moderados; muito prematuros entre 28 e 31 semanas e seis dias; e prematuros extremos para aqueles bebês nascidos abaixo de 28 semanas. Quanto menor a idade gestacional, maiores são os riscos de não sobreviverem.
A gente teve que tirar ela à força relembrou a mãe. O parto aconteceu e o bebê extremamente prematuro, pesando 800 gramas, foi levado às pressas para a UTI Neonatal. Esse foi o cenário dos cinco meses que seguiram o dia 17 de Março. A mãe, recém operada, passou os seus três dias de internação ao lado da incubadora, que foi a casa de Jade por todo esse tempo. O momento de deixar o hospital e retornar para casa chegou. Com ele, chegaram também o medo, a insegurança e a depressão.
O Medo
Mirella sempre enfrentou um medo profundo das notícias que poderia receber. Cada visita ao hospital era um desafio, uma batalha interna entre a ansiedade e a esperança. O elevador, um espaço claustrofóbico, se tornava um símbolo de sua angústia. Muitas vezes, ao subir, o medo a dominava e, ao invés de seguir em frente, ela acabava descendo novamente, fugindo para casa. A sensação de culpa a acompanhava, um peso constante que a fazia questionar sua coragem.
A sala de espera também se transformava em um campo de batalha. Em momentos de pânico, Mirella saía do elevador, mas se via parada, paralisada, sem conseguir avançar. No entanto havia um elemento que a mantinha firme: o apoio da equipe do hospital, das outras mães que compartilhavam sua dor e, principalmente, da sua família.
Os dias eram pesados, marcados por boletins médicos e uma expectativa constante. Para Mirella, a presença da família era essencial. A prematuridade de sua filha trouxe um trauma coletivo, uma quebra de expectativas que afetou a todos. Seus pais se revezavam nas visitas diárias, garantindo que a neta nunca estivesse sozinha, enquanto Mirella tentava estar ao lado dela sempre que sua saúde mental permitia. Era uma luta constante, ela pensava, mas se forçava a estar lá.
Seu marido, mesmo com as limitações de visitas, estava sempre presente. Ele entrava apenas uma vez ao dia, mas todos os dias, em momentos difíceis, ele esperava por ela no hospital. Quando não estava bem, ele a acompanhava, ficava lá, sempre ao seu lado. Essa rede de apoio era fundamental. Mirella sabia que, sem eles, teria sido impossível suportar tamanha carga. Eles a carregaram no colo. O apoio da família foi essencial a cada dia que se passava.
A Solidão
Embora contasse com o apoio inabalável de familiares e amigos, a solidão era uma constante na UTI-Neo do hospital em São Caetano. Para Mirella, a ausência da filha era uma dor que se manifestava fisicamente. Havia um vazio que parecia insuportável, um espaço que só a presença dela poderia preencher. Era ela, a única que poderia confortá-la e fazer seu coração se sentir completo. O desejo de levar a filha para casa a consumia, transformando cada dia em uma luta.
As noites eram os momentos mais difíceis. A separação entre mãe e filha se tornava ainda mais dolorosa na escuridão. Mirella se lembrava de como desejava ouvir o chorinho da pequena, mesmo que isso significasse perder o sono. Queria que ela estivesse ali, tirando o sono, em vez de estar longe, enquanto a saudade a mantinha acordada. Nesses instantes de solidão, a luta interna se tornava ainda mais intensa, uma batalha entre o amor profundo e a dor da distância. Cada noite era uma prova de resistência, enquanto a esperança de um reencontro a mantinha firme.
Enquanto estava na incubadora, o único contato possível entre mãe e filha eram as mãos, uma segurando a outra, por meio de uma abertura na lateral da caixa. Por serem extremamente frágeis, os recém nascidos prematuros só podem ser manuseados pelas enfermeiras. A prática do “canguru” foi liberada apenas quando Jade foi transferida para o berçário de médio risco, quatro meses após seu nascimento. Por poucos minutos e sob supervisão, Mirella podia sentir seu bebê em seu peito, como sempre sonhou. O método é extremamente defendido pela OMS e Sociedade Brasileira de Pediatria, pois oferece inúmeros benefícios tanto para a mãe, quanto para o bebê.

Fim da Solidão
Após cinco longos meses de espera, angústia, medo e inseguranças, mãe e filha puderam seguir juntas para casa. Embora estivesse bem e saudável, a luta das duas não terminava por ali. Jade, tomava cerca de doze remédios por dia e fazia uso de bombinhas de ar. Além disso, fazia acompanhamento multidisciplinar com pneumologista, neurologista, gastrologista, oftalmologista, fonoaudiólogo, pediatra neonatologista, cardiologista e cirurgião. Sua idade passou a ser contada de forma corrigida.
O Ministério da Saúde recomenda que se considere a idade cronológica (idade real que a criança tem desde o nascimento) junto com a idade corrigida (idade que a criança teria se tivesse nascido com 40 semanas), que deve ser utilizada principalmente ao avaliar o crescimento e os marcos do desenvolvimento da criança prematura. Para os prematuros extremos a recomendação é de utilizar a idade corrigida até os 3 anos de vida. para os demais prematuros a recomendação é utilizar a idade corrigida até os 2 anos.
Hoje, um ano depois, Jade e sua família têm marcas de tudo o que passaram, mas também a alegria de ter a família reunida em casa. A pequena menina teve alta de quase todos os médicos, atualmente ela só faz acompanhamento com a pediatra neonatologista, especialista em bebês que passaram pela UTI-NEO, que vai acompanhá-la até os cinco anos, e com a neurologista. Seus remédios, que antes eram doze, hoje é um só. A mãe, que havia se desencontrado e abdicado de si mesma para cuidar da filha, se reencontrou. Realizou a profissionalização em unhas e hoje tem seu espaço para receber seus clientes. Ao lado do pai, vivem acompanhando o desenvolvimento de Jade.
Até hoje, o som das máquinas da UTI ecoa na mente de Mirella, provocando uma aceleração instantânea do coração e uma respiração ofegante. O trauma da experiência ainda a persegue, uma ferida que ela tenta curar com a ajuda de psicólogos, psiquiatras e o apoio incondicional da família. Essa vivência se tornou uma marca indelével em sua história, moldando não apenas quem ela era antes da internação de Jade, mas também quem se tornou após esse período desafiador.
Mirella sente que essas memórias, apesar da dor que podem trazer, são parte essencial de sua identidade. Ela diz querer carregar para sempre alguma parte daquilo. Essa experiência não foi apenas uma fase difícil, mas um capítulo significativo da vida de sua filha e da sua própria trajetória. A história de Jade e a sua se entrelaçam de maneira profunda, e Mirella se recusa a deixar que esses momentos sejam esquecidos. Mesmo que às vezes doam, ela quer que essas lembranças façam parte de quem ela é, para sempre.
