Quando o corpo vira território e a memória se transforma em luta
por
Vitor Simas
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22/04/2025

Por Vitor Simas

 

No sertão de Euclides da Cunha, onde a terra é seca e a resistência brota entre espinhos e pedras, nasceu uma menina que mais tarde se tornaria símbolo de muitas vozes silenciadas. Filha do povo Kaimbé, Vanuza cresceu na aldeia Massacará aprendendo desde cedo que o mundo indígena, especialmente o das mulheres, não se explica apenas com palavras — ele se sente na pele, nos rituais, nas mãos que colhem e nos pés que firmam o chão.

Na aldeia, as mulheres são tudo. Carregam nos ombros o alimento da roça, a espiritualidade das rezas, o choro dos filhos e a força de uma ancestralidade. Vanuza cresceu observando essa teia invisível: o modo como as mais velhas orientavam a vida sem jamais perderem a firmeza. Era ali, entre o preparo dos alimentos e os cânticos noturnos, que a menina aprendeu a sabedoria de um povo cuja existência insiste em continuar mesmo diante do apagamento sistemático.

Aos 14 anos, quando partiu para São Paulo, carregava nos olhos o medo do desconhecido, mas no coração uma certeza incômoda: sua missão não cabia nos limites da aldeia. Era preciso sair. Era preciso atravessar. Chegar à cidade grande foi como ser arremessada em um mundo que a enxergava apenas como um erro de estatística. A urbanidade não sabia reconhecê-la. Entre casas emprestadas, privações e olhares que cortavam, entendeu que sobreviver ali seria um outro tipo de guerra.

Vanuza conheceu o abandono, a fome, o racismo cotidiano. Em muitas ocasiões, sua origem era negada por desconhecimento ou desdém. Mas ela se recusava a desaparecer. Formou-se técnica em enfermagem, atuou nas periferias da cidade e fazia questão de se apresentar como indígena — não por vaidade, mas por necessidade de afirmar que existia, que estava viva, que pertencia a um povo. Sua identidade era um ato de resistência cotidiana.

Em 2020, quando o Brasil mergulhava no caos da pandemia, seu corpo foi chamado a ser mais do que sobrevivente — tornou-se símbolo. Vanuza foi a primeira mulher indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no País. Não buscava protagonismo, mas compreendia o poder daquele gesto. Era mais do que imunização: era um marco. Um braço indígena, feminino, erguido como bandeira num momento em que tantos morriam calados. A imagem circulou o país, mas não era a fotografia que importava — era a mensagem: os povos originários seguem vivos e não recuarão.

A repercussão daquele ato não a acomodou. Pelo contrário, a empurrou para novas frentes. Fundou, em Guarulhos, a Aldeia Multiétnica Povos Dessa Terra. Um território simbólico e real, onde diferentes etnias — como Guarani, Pankararé e Kaimbé — encontraram chão para recomeçar. Ali, mulheres fugidas da violência, crianças privadas de suas raízes, jovens em busca de pertencimento, se conectam num espaço de cura e ancestralidade. A aldeia não é apenas abrigo: é gesto político contra a lógica urbana que apaga, silencia e transforma cultura em folclore.

Lá, os dias começam com rezas e terminam com partilhas. As mulheres assumem papéis de liderança, como fizeram suas mães e avós. Não há luxo, mas há dignidade. As crianças crescem aprendendo a língua dos antepassados, os rituais sagrados, os nomes verdadeiros das coisas. Tudo ali pulsa numa cadência que desafia o tempo cronológico e reeintroduz no concreto da cidade aquilo que a modernidade tentou apagar: a cosmovisão indígena.

A política institucional, que por tantos anos foi uma máquina de invisibilizar esses corpos, também passou a ser território de enfrentamento para Vanuza. Em 2020, ela se lançou como candidata à vereança em Guarulhos. A campanha não foi movida por ambição pessoal, mas por um projeto coletivo. Levou para as urnas temas que raramente encontram espaço no debate público: território indígena urbano, saúde com respeito à cultura, educação com base na ancestralidade, combate ao machismo — inclusive dentro da própria comunidade. Não venceu nas urnas, mas plantou sementes. Hoje, continua a pressionar o poder público por políticas voltadas à população indígena que vive fora das aldeias oficiais, especialmente as mulheres.

Seu compromisso com a educação a levou também aos bancos universitários. Estudou Serviço Social na PUC-SP, por meio do Projeto Pindorama, que visa a inclusão de indígenas no ensino superior. Para ela, estar na universidade nunca significou abandonar a aldeia. Pelo contrário, significava levá-la consigo, carregá-la nos livros, nas conversas, nas provas, nos corredores. Ainda assim, mesmo ali, enfrentou olhares de desconfiança e comentários que tentavam colocá-la de volta no lugar da margem. Mas ela persistiu. Sua presença ali era também um ato político.

Além da atuação local, sua voz ecoa nas maiores mobilizações indígenas do Brasil. No Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília, ela se junta a milhares de lideranças para exigir aquilo que a Constituição já garante, mas que o Estado se recusa a cumprir: a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, o respeito à vida. Em 2024, o ATL completou vinte anos, reunindo mais de 200 povos. Vanuza estava lá. Participava não como espectadora, mas como protagonista. O ATL, para ela, é onde os corpos indígenas dialogam com o poder público e com a nação. Onde se afirma, mais uma vez, que os povos originários seguem vivos e organizados.

Hoje, ao olhar para sua trajetória, Vanuza não mede conquistas por cargos, títulos ou fotos em jornais. Mede pelas meninas indígenas que agora sonham em ser lideranças, entrar na universidade, curar com suas mãos e ensinar com suas palavras. Cada caminho aberto, cada espaço conquistado, cada voz é, para ela, uma vitória coletiva.

 

 

Documentário autobiográfico de Vanuza Kaimbé

 

Ser mulher indígena, diz ela, é habitar o entre o lugar da dor e da esperança. A dor que nasce da violência, da invisibilidade, do descaso. A esperança que brota da coletividade, da luta contínua, da espiritualidade que sustenta. Vanuza Kaimbé, com sua caminhada firme e serena, é uma dessas mulheres-sementes que enfrentam o fogo da história para reflorestar o futuro.

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A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
por
Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Cultura e Entretenimento

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No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
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Julia da Justa Berkovitz
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10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

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Entre o alívio da fuga e as incertezas do futuro, a sobrevivência de uma familia libanesa em território brasileiro revela a resiliência dos refugiados
por
Laura Celis Brandão
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15/04/2025

Por Laura Celis

 

O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.

A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.

Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.

Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.

Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.

Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária. 

A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade. 

A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente. 

O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.

 

 

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Política Internacional

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

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Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

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Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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Após cinco meses da catástrofe, milhares de pessoas desalojadas e em situação de insegurança alimentar exigem esforços contínuos de assistência humanitária
por
Giuliana Nardi e Vitória Nunes
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07/07/2023

“Muitas pessoas morreram por conta do frio e da fome, não pelo terremoto.” Conta Emrullah Güngör, estudante de 22 anos que mora perto da região. No dia 6 de fevereiro de 2023, um terremoto de magnitude de 7.8 atingiu o sul da Turquia e o noroeste da Síria.

Sendo um dos maiores já registrados desde 1939, os tremores atingiram principalmente Kahramanmaras e outras 10 cidades vizinhas, deixando pelo menos 2,5 milhões de pessoas desalojadas e 56 mil mortos, segundo dados da Reuters.

Güngör relata que muitos de seus amigos foram afetados pelo terremoto e ficaram sem domicílio da noite para o dia. “A população não tinha para onde ir, nem conseguiam achar moradia. Nem todo mundo foi resgatado dos destroços causados pelo terremoto.”

Ceren Lale, outra estudante de 21 anos, destaca que a ajuda demorou a chegar para aqueles que precisavam: “A princípio, eles [o governo] não encontraram transportes para ajudar as pessoas, e em certo momento, também não conseguiram encontrar pessoas para conduzirem estes transportes”.

A falta de abrigo e a destruição da infraestrutura dificultaram a entrega de alimentos e de assistência humanitária, por conta da dificuldade de mobilização. Emrullah avaliou que o governo turco só se preocupa com as consequências de curto prazo.

Ambos os estudantes afirmaram que o governo chegou tarde demais nos locais atingidos pelo terremoto, enquanto houve uma grande movimentação de ajuda e de arrecadação de fundos pelas redes sociais. Grande parte da população turca se comoveu e se juntaram para enviar voluntários, roupas e comida para as vítimas.

Luís Fernando Prestes Camargo, professor e mestre de História brasileira que está na Turquia há mais de 5 meses, teve a ideia de realizar uma arrecadação com os apoiadores de seu projeto "Pedalando na História".

Ele conseguiu arrecadar US$2.500 somente no Brasil, o qual foi utilizado para adquirir centenas de cobertores e alimentos entregues aos mais de 6 mil desabrigados em Esparta.

Foto: Reprodução - Luís Fernando Prestes Camargo e seu cachorro Belmiro com arrecadações

De acordo com  Luiz Keppe, subchefe da Coordenação-Geral de Segurança Alimentar e Nutricional do MRE, embora não haja dados recentes que confirmem o aumento da fome nesses países, pode-se presumir que as catástrofes reforçaram uma tendência de aumento geral nesse sentido. 

Ele destaca que os dados mais recentes do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) indicam que 12,1 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar, e 2,7 milhões estão em insegurança alimentar grave, um aumento de 300 mil pessoas em relação ao período anterior aos terremotos.

A Confederação dos Sindicatos da Turquia revela que, após os terremotos, a "linha da fome" ultrapassou o valor do salário mínimo, indicando a quantidade de renda necessária para uma família de quatro pessoas obter nutrição suficiente.

Segundo dados da ONU, aproximadamente 2,2 milhões de pessoas receberam ajuda alimentar, mais de 1 milhão de consultas médicas foram realizadas e cerca de 380 mil pessoas agora têm acesso a água e saneamento

O auxílio na Síria também foi essencial, graças à ajuda de sete agências da ONU, mais de 900 caminhões viajaram pela Turquia e levaram ajuda à região. As Nações Unidas também desembolsaram aproximadamente US$ 40 milhões em fundos de emergência.

O professor Camargo destaca que os desabrigados estão recebendo uma renda mensal de US$500 do governo, além de muitas doações. Ele enfatiza que a comunidade internacional já fez o possível, enviando pessoas para resgatar vítimas vivas sob os escombros.

Turquia x Síria: O problema da fome e as disputas de poder

As situações na Síria e na Turquia são bastante distintas, assim como suas experiências com a fome. Rodrigo Augusto Duarte Amaral, professor de Relações Internacionais e especialista em Estados Unidos e Oriente Médio da PUC-SP, afirma que a Turquia é um país mais estável e sólido em comparação com a Síria.

Por consequência da Primavera Árabe, a Síria passou por uma Guerra Civil nos últimos 12 anos, e atualmente a fome é vista como uma das consequências deste cenário de crise.

Segundo o PMA, mais de 50% da população síria, aproximadamente 12,1 milhões de pessoas, está em situação de insegurança alimentar, e 2,9 milhões correm o risco de enfrentar a fome.

De acordo com o professor Amaral da PUC-SP,  a Turquia, por sua vez, tem maior conexão com as estruturas das comunidades internacionais, além de ter um governo mais estável sob Recep Tayyip Erdoğan. Ele explica que isso facilita a chegada da ajuda de maneira mais eficiente em comparação com a Síria.

Ele esclarece que em cenários de catástrofe ambiental, como os terremotos, todas as formas mínimas de organização sociopolítica, logística, mercado e infraestrutura são destruídas. Nessas situações, a fome se torna ainda mais intensa nos estados já fragilizados.

Keppe ressalta que a insegurança alimentar e nutricional impacta principalmente as mulheres. Cerca de 60% das pessoas que passam fome seriam mulheres, que muitas vezes se sacrificam em prol de suas famílias, comendo menos e por último, especialmente em regiões de conflito e emergência humanitária.

O coordenador de segurança alimentar explica que os refugiados também seriam um grupo vulnerável afetado pelos terremotos na Turquia e na Síria, enfrentando dificuldades de acesso ao mercado formal de trabalho e falta de estrutura de moradia, saúde e saneamento.

O especialista Amaral ressalta que seria natural que a fome se intensifique em um país já fragilizado por um terremoto, especialmente em uma região mais vulnerável dentro de outro país estável, como a Turquia.

O terremoto na Turquia e na Síria teve consequências diferentes devido a suas condições financeiras distintas, conflitos geopolíticos e localizações que podem facilitar ou dificultar a chegada da ajuda necessária. No entanto, ambos os países enfrentaram o desafio da fome.

Luiz Keppe menciona que o Brasil tem se empenhado em auxiliar na reconstrução após os desastres naturais na Síria e na Turquia. "Logo após os terremotos, enviamos equipes de resgate para a região e, nas semanas seguintes, fornecemos doações de vacinas, medicamentos e alimentos."

O coordenador ressalta que o compromisso de aliviar o sofrimento desses povos com os quais o Brasil mantém laços de longa data persistirá, fornecendo toda a assistência possível para mitigar seu sofrimento.

Nesse contexto, Keppe enfatiza a importância de possibilitar a retomada da produção e a disponibilidade doméstica de alimentos, inclusive por meio de doações de alimentos e reconstrução de infraestruturas para irrigação de lavouras e processamento de produtos agrícolas.

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Aumento dos índices de fome na capital paulista entre 2020 e 2023 resulta em crise humanitária
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João Victor Tiusso e João Pedro Lindolfo
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01/07/2023

A crise econômica gerada pela pandemia aumentou a pobreza na cidade de São Paulo, dificultando o acesso à alimentos em regiões da periferia. Bairros como Perus, Brasilândia e Sapopemba, alguns dos mais afetados pelo vírus, apresentaram piora significativa nos quadros de fcrescimento no número de famílias em situação de vulnerabilidade. 

Levantamento da Secretaria de Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, de julho do ano passado, apontam 684.295 famílias em pobreza extrema na capital. Um aumento de 44% em relação a janeiro de 2021. O estudo foi feito com base em dados do Cadastro Único da Prefeitura, utilizado nos programas de assistência social. 

A redução da renda da população periférica, reflexo do aumento do desemprego e da inflação, está impossibilitando as pessoas de adquirirem alimentos básicos do cotidiano. 

Dossiê Sobre Casos Extremos de Fome na Cidade de São Paulo, organizado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), mostra que 25,3% das unidades de saúde que participaram do levantamento afirmaram possuir demanda de atendimento para indivíduos com sintomas decorrentes da fome entre 1 e 14 de dezembro de 2021. Casos assim só começaram a aparecer nas unidades a partir de setembro daquele ano, ainda no período de auge da pandemia. 

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), realizado pela Rede PENSSAN, revelou que 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, mas que em 2022 esse nível renda deixou de uma garantia contra a falta de alimentos. 

A pesquisa indica que 3% dos lares com essa renda tem seus moradores em situação de fome, 6% vivem com insegurança alimentar moderada e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação.

"Hoje, um dos principais desafios do combate à fome é identificar as localidades mais vulneráveis. E a periferia é, com certeza, o lugar mais descoberto [pelas políticas públicas]”, afirmou Soninha Francine, Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. 

A secretária explica que a questão da insegurança alimentar em regiões mais pobres é negligenciada. Há pessoas que mesmo mantendo o emprego e tendo moradia fixa, não conseguem comprar comida por conta dos preços altos, porém isso não é tão debatido. Ela também faz uma comparação com a situação dos moradores de rua, que se tornou cada vez mais visível ao longo dos anos, resultando em um número maior de ações voluntárias de combate à fome. 

Juliana Andrade Favacho, coordenadora da Cozinha Solidária do MTST, comenta sobre o perfil das pessoas atendidas pelo projeto em zonas periféricas e centrais da cidade: “Nas periferias vemos muitas mães solteiras, negras e com mais de um filho, além de muitas pessoas desempregadas. No centro há mais pessoas em situação de rua e usuários de drogas, que não recebem atendimento por nenhum programa social.”  

Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo e ex-assessor da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, pontua: "Vimos o quadro de insegurança alimentar se deteriorando em todo o mundo. Isso se deu em intensidades diferentes em cada região, quanto mais pobre a localidade, pior os índices."

Regiões com maior insegurança alimentar

Vila Brasilândia, bairro da zona Norte da cidade, e Sapopemba, zona Leste, foram os distritos que registraram maior número de óbitos por Covid-19 em 2020 e 2021. Ambas estão entre as regiões mais pobres de São Paulo e mais dependentes das políticas de combate à fome promovidas pela prefeitura. 

Já o bairro da zona Norte, Perus, possui a 7ª pior remuneração média mensal e foi a segunda localidade com maior número de óbitos por covid de acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, com 30,2% do número total de mortes sendo em decorrência da doença. 

Jardim Ângela, na zona Sul, iniciou 2022 com o maior número de casos de coronavírus na capital. Além de ser um bairro periférico, é o mais negro de São Paulo, com 60,1% de moradores negros na sua população, é o 12º com a remuneração média mensal e o 10º com o maior número de domicilios em favelas, mostrando que a questão racial que também circunda o problema da fome e de saúde pública na cidade. 

A periferia da zona Sul como um todo é uma área em estado crítico, abrigando 90% das famílias que passam fome. Os dados coletados pela prefeitura também mostram que 8% das famílias residem na zona oeste e 1% no centro se encontram na mesma situação. 

Grande parte dessas pessoas não conseguiram recuperar seus empregos ou se recuperar financeiramente após a pandemia, como afirma Vanessa Almeida, fundadora do projeto Periferia Sem Fome “Até hoje as pessoas não conseguiram se reestruturar, principalmente devido ao tempo em que ficaram sem emprego e ao aumento dos preços.”

"Eu ajudo pessoas que trabalham, que possuem uma residência. Mas com o valor dos alimentos hoje em dia, elas acabam tendo que escolher entre pagar o aluguel e comer”, disse Vanessa quando questionada a respeito do perfil das pessoas atendidas pelo projeto.

Inflação agrava ainda mais a situação 

A inflação de alimentos em todo o país é um dos grandes empecilhos à erradicação da fome. Segundo o IBGE, a inflação de alimentos e bebidas foi de 14%, 7,9% e 11% em 2020, 2021 e 2022, respectivamente. Além disso, no estado de São Paulo, o valor da cesta básica subiu de R$ 786,51 para R$ 1.014,63 no primeiro ano da pandemia. 

A alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo anulou parte do efeito das políticas de auxílio promovidas pelo governo. Iniciativas como o Auxílio Brasil, por exemplo, se demonstraram ineficazes. O retorno do Brasil ao mapa da fome no ano passado constata isso.

"Em 2020, a pandemia bate no mercado de alimentos de duas formas: do lado da oferta, porque há cadeias de distribuição congestionadas. E do lado da demanda, devido à incerteza inicial que levou muitos a estocar alimentos, aumentando os preços”, explica Felippe. 

O economista destaca que, além da pandemia, houve uma série de choques econômicos que contribuíram com a inflação. “No hemisfério sul, em 2021, tivemos problemas climáticos com uma onda de secas, fazendo com que os reservatórios operassem em um nível menor, geadas entre julho e agosto no Centro-sul, que prejudicaram a safra, e o início da Guerra da Ucrânia em 2022, que envolve grandes exportadores de grãos e fertilizantes.” 

O II Vigisan, revelou que 56% das pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar no estado de São Paulo. No Brasil, essa porcentagem é maior, com 58,7% da população brasileira convivendo com a insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas não tendo o que comer.

Ações de combate a fome durante a pandemia 

A Rede Cozinha Cidadã foi uma das principais iniciativas da prefeitura para aliviar o problema de insegurança alimentar em São Paulo. Iniciado em abril de 2020, o projeto distribui por dia 10 mil marmitas em diversas localidades da cidade e 5 mil apenas no centro. O programa também arrecada cerca de 5 mil cestas básicas diariamente. 

Contudo, a política pública ainda enfrenta algumas limitações, como aponta Soninha Francine “Quando são distribuídas marmitas ao longo da cidade, por muitas vezes serem entregues a lugares distantes e o tempo necessário para a entrega ser alto, a qualidade da comida é comprometida e é isso que a secretaria de direitos humanos e cidadania está tentando mudar.”

Ela também chama atenção para o aspecto social e cultural de cada população: "Situações culturais também têm grande parte nesse projeto, como o respeito a culturas diferentes. É impossível separar algumas cestas para colocar ingredientes específicos para certos povos. Como, por exemplo, as tribos guarani que, por opção, não querem farinha de mandioca, mas não é possível tirar apenas para eles.”

A localização é outro problema, pois a maioria dos programas de auxílio encontram-se no centro da cidade, forçando as pessoas a atravessarem a cidade atrás de comida. Isso reflete muito na questão da fome para os moradores da periferia, que precisam pagar aluguel em vez de comprar produtos e muitas vezes chegam no centro em busca de alimento para uma família inteira.

Juliana Favacho aponta para essa questão: “Hoje, as políticas que existem são muito esparsas. Tem distribuição de cestas básicas, o Bom Prato, mas ainda é muito pouco para a cidade de São Paulo e muita coisa também fechou.”

Com essas limitações, uma solução definitiva para o problema da insegurança alimentar na cidade não é possível apenas através de políticas de redução de preços ou de distribuição de alimentos, como as que estão sendo implementadas desde o início da pandemia. 

Juliana acredita que seria necessário um programa que traga os alimentos produzidos por pequenos produtores próximos da cidade e sem intermediários: “Isso evitaria desperdício, melhora a qualidade do alimento e melhora o preço tanto para o produtor quanto para o consumidor.” 

Ela também defende a construção de hortas urbanas ligadas aos centros de distribuição, já que assim os alimentos poderiam ser adquiridos por valores mais baixos, melhorando os índices de alimentação.

"Há toda uma cadeia em que podemos pensar, espaços que já existem e incentivos que não exigem custos altos. Nas próprias ocupações do MTST nós produzimos alimentos para os moradores, por exemplo”, complementa a coordenadora. 

Para Serigati projetos de transferência de renda seriam mais eficientes. “As políticas de distribuição de alimentos são legais, mas, no caso do Brasil, precisamos de algo mais horizontal, programas de transferência de renda bem focalizados para os mais necessitados. Por mais desafiador que seja, o problema está aí e precisamos atacá-lo.” 

Nessa mesma linha, Júlia Schuback, coordenadora de projetos da Ação da Cidadania, ONG que atua em todo o Brasil, afirma: "Embora o Brasil  tenha programas de combate à fome, muitas vezes eles são insuficientes ou mal implementados, frente à dimensão do problema.”

Ela também aponta para os cortes e reduções orçamentárias significativas nas iniciativas de combate à fome e algumas foram até extintas, como foi o caso do CONSEA. “A atuação de projetos independentes que visam o combate à fome não substituem as políticas públicas e a responsabilidade do Estado de garantir o direito à alimentação adequada, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo.”

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O projeto de lei tem um papel fundamental no conteúdo disponibilizado para crianças e adolescentes
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Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete, João Tiusso e João Lindolfo
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07/07/2023

O projeto de lei 2660/2020, conhecido como “PL das Fake News”, terá grande influência no combate à desinformação e quadro de saúde mental entre jovens, caso aprovado. É o que apontam especialistas ouvidos pelo Contraponto Digital. Eles afirmam que a regulamentação se mostra necessária para conter a ansiedade e estresse causados pela propagação de fake news. 

A falta de uma supervisão adequada do conteúdo que as crianças e adolescentes acessam na internet pode causar uma série de distúrbios para o grupo. Informações incorretas, equivocadas ou incompletas podem não apenas afetar o desenvolvimento cognitivo, mas também contribuir com comportamentos violentos que acabam sendo disseminados em fóruns e alcançam menores de idade, resultando em traumas psicológicos e físicos. 

A PL das Fake News é um projeto de lei que estabelece mecanismos para a regulamentação das redes sociais no Brasil, tal qual a restrição de fake news e publicações extremistas. Essa lei funcionará como um mecanismo para que as empresas de tecnologia sejam cautelosas e ágeis em derrubar conteúdos enganosos. 

A lei atuará diretamente no combate à desinformação e controle de conteúdos violentos a crianças e adolescentes. Isso porque, conforme esse tipo de conteúdo é regulado, a distribuição de publicações com efeitos nocivos aos menores será dificultada.

Segundo a jornalista e pós-doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Luciana Moherdaui, para avançar no debate é preciso fazer mais que ‘sufocar’ o alcance das postagens. ‘’O PL das Fake News será eficiente se conseguir melhorar os mecanismos de transparência e atuação das plataformas sociais”, explicou. Além disso, ela pontua que a lei poderá coibir o financiamento da disseminação em massa de desinformação e diminuir o alcance das postagens.

Perigos do Discord e fóruns de violência

Já na discussão sobre a violência cibernética, a maneira de conter os discursos de ódio seria limitar o número de usuários das plataformas registradas no Brasil, de acordo com o artigo 2 da PL. Com 3 milhões de usuários brasileiros, o Discord, aplicativo comum entre jogadores de games, tem sido usado para propagação de comportamentos de violência extrema. Em servidores fechados, jovens se automutilam, maltratam animais e propagam ódio para fazer parte do grupo. 

O combate a esses grupos já é uma realidade no Brasil, com a operação “Dark Room”, iniciada pela Polícia Civil em março de 2023, investigando três servidores do Discord utilizados para promover atos de violência extrema, incluindo estrupo virtual. A ação resultou na prisão de Ricardo Conceição Rocha, de 19 anos, no dia 04 de julho., responsável por administrar um dos espaços da plataforma onde os crimes eram cometidos. 

De acordo com dados da TIC Kids Online Brasil 2022, cerca de 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos utilizam a internet no país. O número representa 92% desse universo populacional. Segundo Luciana, a transparência em relação aos algoritmos seria mais eficaz que uma placa de ‘proibido para menores’ nas redes sociais. 

Um menor de idade que está em um momento de desenvolvimento tanto cognitivo quanto afetivo, lidando com questões emocionais desse período, fica mais vulnerável a esse tipo de conteúdo, podendo afetar suas relações e seu desenvolvimento emocional. 

"Neste período a criança-adolescente passa por um movimento de identificação com os pares, a busca de grupos, de pertencer a determinados contextos. Isso é algo necessário, mas apresenta riscos e desafios quando encontram conteúdos falsos e que incitam ódio e crimes’’, afirma Camila Fonteles, doutora em psicologia e professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Outro ator que contribui ainda mais para o problema é a articulação de notícias falsas como um mecanismo de promoção do medo. Alexandre Sayad, educador midiático e jornalista, explora a questão: “A desinformação como um fenômeno, pode deturpar alguns aspectos da qualidade de vida, incluindo o aspecto psicológico das pessoas.”

"Por exemplo, toda essa questão dos ataques nas escolas, a desinformação foi um elemento para a manutenção do medo, pois torna uma questão pontual em algo generalizado, dando uma falsa noção de proporcionalidade”, exemplifica Sayad.

Para a doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, Julci Rocha, é crucial expandir nosso letramento digital. “Compreender as nuances, ênfases, omissões e viés presente nas informações, pois isso adiciona uma dimensão significativa para que possamos nos tornar leitores e produtores críticos de conteúdo na internet”. Ela ainda ressalta que nós “não podemos nos limitar apenas à dicotomia simplista de "verdadeiro/falso", que geralmente é o foco das fake news. 

Fato é que esse projeto de lei vai muito além do combate às Fake News, de acordo com o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Murilo César Oliveira Ramos. O objetivo é dispor sobre a liberdade, responsabilidade e transparência na internet, naquilo que diz respeito às mídias digitais. “A questão das notícias falsas é apenas uma parte quando se trata de discutir a proteção das crianças e adolescentes no ambiente da internet”, comentou.

Para o especialista: “O que a internet fez foi potencializar em muito o risco para crianças, dada a velocidade com que foi entrando nas nossas vidas”. Seguindo essa lógica, se até nós adultos estamos suscetíveis a golpes ou vazamento de dados sensíveis, o perigo com os menores de idade é ainda maior.

Ele ressaltou que, no contexto da violência, a questão já era preocupante na era de ouro da televisão e outros veículos como cinema e rádio. Como ele disse, “As crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a todo tipo de informação não condizente com sua maturidade e preparo para a compreensão do que possam estar assistindo e ouvindo”. Por essa razão o acesso precisa ser regulado.

A importância da atenção aos conteúdos que crianças acessam

A eficácia do PL em evitar a propagação de Fake News dependerá dos mecanismos exatos propostos nesta lei em particular, explica o psicólogo Antonio Farelli. Uma abordagem efetiva poderia envolver a regulação das plataformas online, impondo consequências legais para aqueles que deliberadamente espalham informações falsas. 

Todavia, é crucial que haja também um investimento na educação e conscientização pública, especialmente considerando que uma parcela significativa da população brasileira possui baixa alfabetização e pode ser exposta a notícias das quais não compreendem totalmente o conteúdo.  

Farelli destaca que crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis à desinformação devido à inexperiência e falta de habilidades críticas de pensamento. "A PL pode ter um impacto significativo desde que seja implementada de maneira adequada”. O profissional ainda explica que “é essencial fornecer educação sobre como fazer um uso seguro da internet para essa faixa etária, capacitando-os com habilidades de pensamento crítico e discernimento para identificar informações confiáveis”

As crianças estão em aplicativos, jogos e nas redes sociais. Dessa forma, estão em mais em contato com notícias falsas que adultos. Enquanto os mais velhos estão instaurados no Whatsapp e no Facebook, para os mais jovens há uma gama de possibilidades, com várias opções de jogos, aplicativos e sites. A criança fica mais tempo em todas essas plataformas, por isso, tem mais contato com as informações falsas e violentas. 

Além das fake news que incitam o ódio, há mentiras que prejudicam o andamento da inteligência de uma criança. ‘’O público infantil é bombardeado por mensagens falsas que prejudicam o conhecimento e o raciocínio. Só o Chat GPT afeta intelectualmente o menor’’, diz a jornalista e doutora Magaly Prado, especialista em desinformação. Esse acesso traz prejuízos físicos, neurológicos e oftalmológicos pelo excesso de estímulos das telas.

Combate a desinformação

A educação midiática é um elemento necessário no combate à desinformação e precisa começar a ser implementada no currículo educacional o quanto antes. O ensino através dos meios digitais já é uma realidade, mas é necessário ser complementado com o aprendizado de técnicas de apuração e produção de informação de qualidade.  

"Há umm conjunto de habilidades que podemos chamar de educação midiática e precisam ser desenvolvidas na educação básica. Não ter projetos que abordem essas habilidades para navegar com fluidez, ética, análise e produção de informação de qualidade, deixa as pessoas parcialmente analfabetas e limitadas na leitura de mundo”, disse Alexandre Sayad.

Sayad também se posiciona em favor da articulação de várias medidas para combater as fake news. “As soluções contemplam uma constelação de ações, nunca é um tiro só. Eu não acho que educação midiática sozinha resolva a desinformação. Da mesma forma que eu não acho que a regulação das redes sozinha combate a desinformação.”

O educador complementa apontando para ações mais abrangentes que vão além do Estado, já que o que pode vir a ser verdade é complexo e exige uma mobilização de toda a sociedade civil acerca do tema. 

De acordo com Magaly ‘’Não adianta ficar só na superfície, ensinar o que é um computador, um algoritmo, tem que ensinar a criança a ter um pensamento crítico, a duvidar e não aceitar qualquer coisa. Ela tem que saber desconfiar.”

Ter controle no que a criança consome é essencial, principalmente por ela estar na fase de seguir exemplos. ‘’Qual é o canal do Youtube que ela assiste, quem ela segue no Instagram e TikTok? Lá vai ter tudo de abuso e desordem informacional”, pontua a jornalista. ‘’O ideal é que o acesso seja monitorado pelos familiares e educadores. O caminho para combater a desinformação seria esse trabalho de orientação e sobretudo prevenção’’, finaliza a psicóloga Camila Fonteles.

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“Essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, diz voluntário
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Gisele Cardoso e Sara Gouvêa
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06/07/2023

Lideranças de ONGs que combatem à fome no Brasil, relataram ao longo do mês de junho sobre a burocracia extrema que enfrentam, além de atuarem sozinhas em regiões necessitadas, pela ausência de apoio governamental. 

Essa burocracia apontada pelas instituições atrasa, e até mesmo impedem, a conclusão de processos como os de licenciatura: “Há muita burocracia nos processos de levantamento de recursos e de regulamentação, o governo precisa facilitar essa demanda”, relata Maico Marins, um dos líderes do projeto Sertão Clama, braço do movimento Avança Sertão, que atua no combate à fome no Norte e Nordeste do país.

Rafael Alves, fundador da Rede de Osasco (rede de apoio à ONGs), também enfrenta problemas com as regulamentações das instituições do seu projeto: “A legislação brasileira é péssima para associações... é mais fácil abrir uma empresa do que uma ONG no Brasil”, revela.

Elas não apenas fazem a distribuição de alimentos, mas também ajudam as comunidades carentes a ter acesso ao mercado de trabalho, à educação e a reestruturarem suas vidas para que não dependam continuamente de doações para sobreviver.

As instituições deveriam apenas auxiliar a máquina política a cumprir seus deveres com a população, mas o que se encontra no Brasil são coletivos civis fazendo por completo o trabalho do Estado em regiões abandonadas por seus representantes. “Nós sabemos de coisas que o próprio Estado nunca saberá, pois investimos em lugares que ele não está, como a periferia… O que é importante para nós, não é importante para quem está no poder”, confirma Alves.

Segundo Rafael Alves, apenas 5% das ONGs recebem recursos públicos para suas atividades: “O Estado deve ter uma legislação que facilite a vida de quem quer fazer o bem, que faça o dinheiro chegar nas associações e que as inclua nas grandes discussões sobre a sociedade”, ressalta.

Por serem organizações civis, elas são capazes de acessar lugares e pessoas que o Governo não consegue sozinho, porém essa deveria ser uma relação de parceria. “No geral, nós atuamos em regiões que o governo não dá atenção ou atua de forma superficial e assistencialista, ajudando a pessoa naquele momento, mas sem mudar a realidade dela”, comenta Maico.

Esse trabalho é extremamente necessário para o nosso país que possui 120 milhões de cidadãos que convivem com qualquer nível de insegurança alimentar como divulgado pela atual ministra do Meio Ambiente e da Mudança Climática, Marina Silva. Diante desse dado, fica explícito a urgência com a qual o Estado deve se organizar para mudar esse cenário.

O sociólogo Roberto Antoniasse, explica que a relação de parceria entre as organizações e o governo é de alta complexidade e muda de tempos em tempos de acordo com as lideranças do país: “Essa relação é conflituosa e tensa, pois depende da configuração em que se encontra o cenário social e político, além de envolver questões de interesse partidário e ideológico”.

 

As consequências da falta de auxílio

O Sertão Clama, tem como uma das iniciativas a criação de poços e a contratação de caminhões pipas, para sanar a necessidade dos vilarejos que enfrentam o problema da seca. Porém, o projeto se deparou com um esquema de “máfia”: “É quase impossível cavar os poços e contratar os caminhões superfaturados... tanto a ONG quanto os moradores são ameaçados, pois essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, conta Gustavo Marques, também líder da instituição.

Os governos da Bahia, do Piauí e de Pernambuco já foram notificados pelas famílias e pelo projeto, mas nada foi feito até o momento. Nem a respeito das ameaças e nem para uma possível fiscalização sobre os valores do mercado de água potável da região. Deixando a população refém da criminalidade e impossibilitando que a ONG forneça auxílio na região.

Outro empecilho que existe, desta vez causado pelo próprio governo, são as taxas para adquirir a autorização da escavação de um poço artesiano, pois quando a escavação é concluída e a água é atestada como própria para uso, governo muitas vezes tenta tomar posse da fonte, tirando assim mais uma fonte de água totalmente gratuita do povo, ao qual ele deveria servir.

Vias para melhoria do cenário

De acordo com Bianca Monteiro, advogada especializada em terceiro setor, há sempre um protagonismo na área social pelas organizações sem fins lucrativos e cita: “Isso são indicadores da necessidade por políticas públicas. Organizações que trabalham com segurança alimentar e nutricional, efetivamente fazem muita diferença na prática e no cotidiano do povo brasileiro”.

As políticas públicas são a principal ferramenta para que o governo possa desafogar o trabalho das ONGs. Patrícia Mendonça, Professora Mestre de Gestão de Políticas Públicas da USP, explica como o governo pode melhorar essa relação: “Hoje se alguém precisar saber sobre essas parcerias, ela vai precisar ir em cada secretaria de São Paulo, pois não existe um site ou uma área específica que contenha todas essas informações para a orientação e relação”.

A especialista sugere que os estados retomem essa pauta e criam canais mais estruturados e preparados para receber essas instituições e auxiliá-las nas suas atividades: “Precisa ter uma estrutura mínima para fazer a gestão dessas parceiras, para que elas ocorram de fato como parcerias e não como mais um prestador de serviço”.

Com essa aceleração dos procedimentos, as populações poderão ser atendidas mais rapidamente, evitando que a insegurança alimentar das famílias piore durante a espera, principalmente considerando que a privação de alimento pode acarretar até mesmo em morte.

A participação de organizações religiosas

As organizações religiosas, que representam 17% desse setor, não podem receber verbas do Governo por terem interesses religiosos, visto que o Estado é laico. Sendo assim, precisam recorrer ao setor privado. A varejista C&A, por exemplo, faz doações para o brechó do Centro Social da Comunidade Carisma, igreja da zona oeste de São Paulo.

Essa relação entre empresas e ONGs, garante a continuidade do trabalho contra a fome para essa parcela das organizações e ainda gera empregos no processo. Porém, para que as organizações possam ter acesso a essas empresas, é necessário que elas ganhem mais visibilidade no país.

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Médico psiquiatra especialista em dependentes químicos explica que as substâncias são usadas como uma válvula de escape para ajudar a lidar com a fome, pobreza e exclusão.
por
Nicolly Novo Golz e João Victor Esposo Guimarães
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03/07/2023

“Quem está inserido em uma realidade de extrema exclusão, tem maior chance de usar a droga como válvula de escape dessa realidade”, adverte Marcelo Ribeiro, 53, médico psiquiatra que foi diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas por 10 anos. O doutor explica que do ponto de vista neurobiológico, qualquer privação ou exclusão aumenta o risco de um indivíduo consumir drogas.

O estresse é um grande fator de risco para a introdução do vício. “Se pensarmos em alguém que nasceu em um ambiente de exclusão social, sem apoio nenhum do estado, com uma estrutura familiar desestabilizada, essa pessoa está altamente exposta ao risco de utilizar substâncias, principalmente se tiver contato com o narcotráfico", explica Ribeiro.  

O consumo de drogas pode ser atrelado a múltiplos fatores tornando essencial uma meticulosa compreensão de cada caso. Seu uso, com frequência, está ligado à desigualdade social. Entretanto, o consumo de entorpecentes é visto de forma moralista e individualista culpabilizando o usuário. “O que seria um consumo problemático ou não problemático na vida de quem não tem nada, de quem passa fome, frio e dorme no chão?”, questiona Marcelo.

Antes de procurar o crack, a pessoa marginalizada recorre a produtos baratos e de fácil acessibilidade, como o álcool, solventes, cola de sapateiro, thinner e acetona.

“O álcool, por ser muito barato, viabiliza o acesso de pessoas que têm poucas condições econômicas. A substância possui efeito psicoativo muito intenso e pode provocar dependência severa, até pior que a do crack, do ponto de vista fisiológico”. A cola de sapateiro sofreu algumas regulamentações o que diminuiu a circulação do produto e paralelamente, fez com que o crack tivesse uma penetração muito grande.

O crack é a droga mais consumida pela população extremamente vulnerável, mas ele não surge assim, visto que é um derivado da cocaína. Porém, quando a droga é produzida em grande quantidade, por ser uma substância muito danosa e de absorção muito rápida, se popularizou. 

Outro fator que aumenta a popularidade do entorpecente é o preço. "Pessoas absolutamente excluídas vão precisar de drogas que possuem opções de varejo melhores, o crack pode ser comprado de diversas formas, uma pedra de 5 gramas, lascas do químico ou uma fumada por um real, é uma substância que possui apresentações economicamente mais possíveis”, aponta Marcelo.  

Ribeiro realizou um estudo que explica: “Uma pessoa no topo de uma estruturação social tem menos de 10% de chance de desenvolver dependência por uma substância, já quem está no pólo inferior, em situação de insegurança alimentar e habitacional, tem pelo menos 33,3% de chance de vir a desenvolver dependência por uma substância” 

Em entrevista, Maurício Fiore, mestre em Antropologia Social pela USP, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), esclareceu que, se sabe que os padrões do uso de drogas, não está relacionado diretamente a contextos de fome especificamente. “Para ter uma relação científica, é necessário dizer que todas as pessoas que passam fome vão consumir algum tipo de droga, o que não é verdade”, explica o pesquisador. 

O que acontece é que no Brasil, a fome tem associação especialmente com pessoas em situação de vulnerabilidade e de rua, que podem encontrar no uso de drogas uma forma de aliviar todos seus sofrimentos, incluindo a fome. Fiore explica: “A fome por si só é um problema que se juntada ao uso de drogas, pode formar um problema ainda maior”. 

A  situação de miséria no Brasil é histórica e estrutural, por conta disso, a população em situação de rua muitas vezes é taxada como consumidores problemáticos de drogas, mas na verdade existe um acúmulo de problemas. “Quando analisamos esses indivíduos, é possível ver uma trajetória marcada por rompimentos, dificuldade de relação com o mercado de trabalho, com a polícia, com a justiça criminal, uma somatória de fatores”, completa Maurício. 

Em uma ação do grupo Ondas de Amor, sediado na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo, que promove, quinzenalmente, café da manhã e kit de higiene básico para pessoas carentes. Davanei, 32, morador em situação de rua que participava da ação, contou que é usuário de entorpecentes desde os 13 anos de idade. “Faz 19 anos que sou usuário, comecei cheirando cola  e agora tô no crack”, diz. 

O crack  afeta a química do cérebro do usuário, causando euforia, alegria, suprema confiança, perda de apetite, insônia, aumento da energia, desejo por mais crack, e paranóia potencial (que termina após o uso). Devanei conta que ao usar a substância não sente fome, sono nem sede, apenas vontade de fumar de novo, “com o crack você não é dono nem da sua própria vida”.  

Ele conta que começou a usar drogas porque foi expulso de casa aos 12 anos, o que fez com que ele vivesse inúmeras situações de insalubridade. A falta de alimento pode levar a uma alimentação inadequada e à escassez de nutrientes necessários para o corpo, o que pode ter consequências negativas para a saúde mental e física. Isso pode aumentar a vulnerabilidade de uma pessoa ao uso de drogas, especialmente se ela estiver enfrentando outros fatores de risco, como estresse, ansiedade, depressão ou traumas.

A dependência química afeta a capacidade das pessoas de conseguir empregos e manter sua subsistência. Sem um emprego formal, sem o auxílio de familiares e do poder  público, os dependentes químicos se vêem na responsabilidade de usarem o pouco que ganham na rua para saciar seu vício. A falta de uma alimentação, a vida instável da rua e o uso constante de drogas por essa camada da sociedade, os levam a um ciclo vicioso.

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