A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
|
18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

Tags:

Comportamento

path
comportamento

Política Internacional

path
politica-internacional
Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
|
18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

Tags:

Cidades

path
cidades

Comportamento

path
comportamento
Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
por
Vitor Bonets
|
18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

Tags:
Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
por
Philipe Mor
|
18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

Tags:

Comportamento

path
comportamento
Entre sintomas, aprendizados e novas percepções sobre o próprio corpo, mulheres contam como estão enfrentando a fase da menopausa.
por
Mohara Ogando Cherubin
|
04/11/2025

Por Mohara Cherubin

 

Janaina Martins lembra com um sorriso do dia em que “virou mocinha”. Tinha apenas onze anos quando o sangue apareceu pela primeira vez, em casa, e correu para contar à mãe. As amigas também já começavam a menstruar e a empresária ficou feliz, era como se tivesse se tornado mulher de um dia para o outro. Nos primeiros meses, tudo parecia novidade, mas a euforia logo deu lugar à realidade dos ciclos longos, de sete dias, acompanhados de cólicas intensas que a faziam interromper o que estivesse fazendo.

Na adolescência, conciliava a rotina da escola com os treinos de natação. O medo de que a menstruação vazasse na piscina a acompanhava em cada mergulho. Usava apenas absorventes comuns, e as preocupações com manchas e constrangimentos eram constantes. Desde cedo, aprendeu que menstruar era também lidar com o desconforto de algo que não era capaz de controlar.

Os anos seguiram marcados por essa relação complexa com o corpo. As dores e o fluxo intenso persistiam, mas ela se adaptava a cada novo ciclo, sem deixar de lado os compromissos, o trabalho e a vida ativa. Teve duas gestações, aos 27 e aos 32 anos. A primeira foi tranquila, mas a segunda trouxe complicações, como varizes na vulva e dores fortes que a obrigavam a reduzir o ritmo. No parto cesárea, os médicos identificaram varizes pélvicas, condição rara e de risco. Anos mais tarde, um exame vascular revelou uma estenose na veia renal esquerda. O diagnóstico a levou a um cateterismo e a novas cirurgias de varizes.

Mesmo com os tratamentos, as dores não cessaram. Em 2016, seu ginecologista sugeriu a histerectomia, procedimento que consistiu na retirada do útero, das trompas e de um dos ovários. A cirurgia trouxe alívio imediato do fluxo e das cólicas que a acompanharam por quase trinta anos. Foi a primeira vez que se sentiu livre do ciclo que marcava sua rotina desde a infância.

Por alguns anos, o corpo permaneceu o mesmo. Até que, aos 45, as mudanças voltaram a se manifestar de outro modo. O sono, antes contínuo, tornou- se leve, interrompido por despertares no meio da noite. Ondas de calor surgiam de repente, e o humor oscilava sem explicação. Mais do que os sintomas físicos, o que mais a angustiava era o esquecimento. Sempre pontual, começou a perder compromissos e a confundir horários. Os exames hormonais confirmaram que Janaina estava entrando na menopausa. A notícia não provocou medo, mas exigiu aceitação, já que percebeu que não conhecia muito sobre essa fase, e que os médicos pouco falavam sobre ela. Acredita que a mulher deveria ser preparada ainda no período fértil, para compreender melhor as mudanças do corpo e da mente. Por conta das condições vasculares, não pode recorrer aos tratamentos hormonais convencionais, o que torna a adaptação ainda mais desafiadora.

Os filhos e amigos logo notaram as mudanças. A empresária, antes sempre organizada e de humor constante, passou a se mostrar mais irritada e distraída. As reações de espanto ao seu redor a fizeram perceber o quanto a menopausa altera não apenas o corpo, mas também a forma como os outros a enxergam. Hoje, aos 47 anos, Janaina encara a menopausa como um exercício de autoconhecimento. Aprendeu a reconhecer os próprios limites e a compreender as mensagens do corpo. Procura não se cobrar tanto, mesmo diante dos esquecimentos e das falhas de memória que ainda a incomodam. Vê nessa fase um convite à escuta e à reconciliação consigo mesma.

Como foi o que aconteceu com a jornalista Neivia Justa, que sangrou pela primeira vez aos 11 anos. Ela se recorda com nitidez da madrugada em que acordou com fortes cólicas e acreditou estar com um problema intestinal. Estudava em um colégio de freiras, daqueles em que as meninas usavam saias plissadas e o uniforme de educação física incluía uma sunga de jogadora de vôlei. Com medo de se sujar, improvisou enchendo a calcinha de papel. Foi o que a salvou. Ao chegar em casa, percebeu o sangue e chamou a mãe, que reagiu com euforia, e logo a notícia se espalhou por Fortaleza, local onde morava. 

Desde pequena, sabia o que significava menstruar. Entendia o processo biológico, que o sangramento viria todos os meses, e que fazia parte do crescimento. A mãe a havia preparado para isso, já que seu corpo começou a se desenvolver bem cedo. Mas, além da explicação biológica, não houve grandes conversas. O tema da menstruação estava cercado de tabus, especialmente no que dizia respeito ao corpo feminino, à sexualidade e à virgindade, assuntos que não se discutiam abertamente em casa.

Na adolescência, Neivia passou a lidar com o ciclo menstrual de forma prática, mas sem afeto. Contou que nunca gostou de menstruar. O cheiro, o fluxo intenso, o desconforto, nada nisso lhe parecia natural. O medo de manchar a roupa era constante, principalmente nos dois primeiros dias de sangramento. Não conseguia usar absorvente interno e via a menstruação como um incômodo a ser suportado. Quando começou a vida sexual, o período menstrual continuava sendo uma barreira, era algo que preferia esconder, manter distante de qualquer relação.

Se lembra que, na época, a menstruação carregava ainda mais tabu do que hoje. Evitava praias, roupas claras, e dificilmente comentava sobre o assunto. Foi a primeira da turma a menstruar, o que a colocou, involuntariamente, no centro das atenções, uma posição que a incomodava. Com o tempo, aprendeu a reconhecer o próprio corpo, a identificar sintomas e ritmos. Seu ciclo era regular como um relógio, e essa previsibilidade lhe trazia certo controle sobre si mesma. As cólicas a acompanharam até a primeira gravidez, aos 32 anos; depois da segunda, desapareceram de vez.

Por volta de 47 anos os sintomas da menopausa começaram a dar sinais. O primeiro foi o calor noturno, acordava suada toda madrugada, sem entender o que acontecia. Vieram também a irritação constante e a sensação de estar em uma TPM que nunca terminava. Mesmo antes de os exames confirmarem, ela insistia com o médico que o corpo já estava mudando. Sabia reconhecer seus sinais, e estava certa. Neivia nunca tratou a menopausa como tabu. Pelo contrário, queria lidar com os sintomas o quanto antes. Iniciou a reposição hormonal logo que as alterações começaram e segue com o tratamento até hoje. Para ela, é uma questão de equilíbrio e bem-estar, sem medo nem preconceito.

Para ela, a falta de informação ainda é um dos maiores desafios. Acredita que, embora haja avanços, o tema continua cercado de desconhecimento e até negação. Muitas mulheres ainda não entendem o que estão sentindo ou acreditam estar adoecendo. Os médicos especializados são poucos, e o acolhimento é insuficiente. Por isso, enxerga na menopausa uma oportunidade de transformação coletiva, de falar mais, educar e incluir também as famílias — maridos, esposas, filhos, colegas e chefes — nesse diálogo.

Neivia encara o assunto com humor e naturalidade. Costuma brincar com o marido, que dorme enrolado em cobertores, como um pinguim, enquanto ela precisa do ar-condicionado ligado no máximo. Fala abertamente sobre estar na menopausa, sobre o corpo e a idade, como forma de desmistificar o envelhecimento feminino. Já escreveu sobre o tema e faz questão de mostrar que essa é apenas mais uma etapa que deve ser vivida com leveza.

Hoje, aos 56 anos, ela entende a menopausa como parte da sua identidade atual. Depois de retirar o útero, passou a compreender com mais clareza as transformações do corpo e do metabolismo. Acredita que aceitar e cuidar de si é o caminho para atravessar essa fase com serenidade. Para ela, a menopausa representa maturidade e liberdade. Deseja viver os melhores anos de sua vida agora, sem nostalgia e sem ansiedade. Encarar o presente como ele é, com seus desafios e descobertas, tem sido sua forma de existir plenamente, abraçando o corpo e o tempo como aliados, não inimigos.

Tags:

Comportamento

path
comportamento

Saúde

path
saude
Contrariando o estrelato repentino dos brechós, bazares por São Paulo contemplam a carência social de muitos paulistanos.
por
Bianca P. Athaide
|
18/11/2024

Por Bianca Athaíde

 

Uma camiseta custando no máximo R$5 pode ser a única peça de roupa que Celeste, de 48 anos, pode comprar para seu filho até o ano que vem. Enquanto escava em meio a uma montanha vestuário olha discretamente para sua competição com uma outra mulher, aparentando ser um pouco mais velha, vasculhando na mesma velocidade e intensidade a pilha de roupas. Mesmo sendo de família humilde, foi criada para ter nojo de "roupa velha", mas, por necessidade, depois de perder seu emprego em janeiro deste ano, ouviu os conselhos de uma vizinha e recorreu a compras no bazar, pois os meninos estão crescendo rápido demais. O bazar da Paróquia e Santuário São Judas, na zona Sul, é a saída para enfrentar a falta de dinheiro para vestimenta.

A presença física do santuário católico na região toma um imenso quarteirão e estabelecimentos próximos, um deles, o Bazar de São Judas Tadeu. Uma pequena porta de ferro esconde uma sala abarrotada de peças de vestuário, calçados e afins, do chão ao teto. Mergulhadas entre os itens, em sua maioria, mulheres de meia idade, de visual simples, cavam nas grandes rochas têxteis a sua frente por algum bom achado, irredutíveis por sua determinação cristã.  

Entrar em um bazar comunitário, com caráter social, pode colocar em xeque a crença de atitude cool e estilo urbano pragmatizada pela recente onda de brechós. Muitos ainda acreditam que os ambos estabelecimentos sustentam o mesmo tipo de público e propósito. Um brechó localizado no alto do bairro Jardins, um dos mais caros da capital paulista, comercializa peças de luxo, angariadas em leilões específicos, frequentados por magos do estilo pessoal e entendedores da moda e suas principais referências, com consumidores que não possuem o menor receio em pagar altos valores apenas por desejo íntimo.

Ao contrário, em um bazar, que muitas vezes oriunda de instituições das mais variadas religiões, a compra é por necessidade. As opções dispostas entre o chão e alguns cabideiros, são resultado de doações realizadas por fieis, cansados da mesmice de seus guarda-roupas e com um desejo interno de nutrir seu ego atuando em caridade. Assim, no Bazar São Judas, a tabela na porta mostra, de maneira organizada, em contraponto ao caos instaurado seguinte, os preços de cada tipo de item, para evitar confusões.

A ampla fissura entre o conceito de brechós e de bazares ainda é embaçada para quem não frequenta os dois. Confundidos muitas vezes, o imaginário popular ainda recai na premissa negativa de roupas velhas jogadas fora. E enquanto a elite se vangloria  do recycling e garimpos valiosos, preenchendo o desejo de apimentar sua estética visual, a outra maior parcela da população encontra nos bazares, além de peças acessíveis, uma nova oportunidade de obtenção de renda.

No Bazar São Judas, na mesma tabela de preços, abaixo dos valores, em negrito está escrito: "SACOLEIRAS - Compras em grandes quantidades apenas nas SEXTAS". O dia específico é também, não por coincidência, o dia que semanalmente dois caminhões lotados param na frente da porta do bazar e despejam dezenas de sacos de lixos lotados de peças de vestuários doadas. Em maioria, mulheres formam uma fila, esperando a liberação de entrada, para alcançarem as melhores peças para revender em seus "comércios remotos".

Claúdia, a 3 anos, realiza essa mesma procissão uma vez por mês, para abastecer a vitrine que estende no chão, em cima de uma lona, na frente da saída do metrô Jabaquara, a poucos metros dali. Depois de perder seu emprego como babá durante a pandemia, ela se viu perdida por não conseguir outra oportunidade. Então, no boca a boca do final da missa das 19h00min, descobriu o "dia das sacoleiras" e foi conferir na sexta seguinte. Aos 42 anos, Claúdia é orgulhosa de seu comércio e luta para conseguir as melhores peças semi novas, como ela mesmo denomina, para sua clientela.

O estrelato de uma tendência fashion de elite dos brechós se choca com a caridade e necessidade de muitos que frequentam bazares. Assim, entram em combate, novamente, os valores da indústria. O ciclo no mundo da moda é muito rápido, e o que hoje é desejado, amanhã é descartado. Cabe aos bazares manterem firme o pilar de amparo social, que perdura desde de seus surgimentos, para sustentar a queda brusca que um dia os brechós de luxo podem sofrer, para, quem sabe, a moda seja menos excludente.

Tags:

Comportamento

path
comportamento
A jornada de Luísa em busca pela liberdade em um ciclo sem fim de dependência emocional.
por
Laura Paro
|
22/10/2024

Por Laura Paro

Uma faca apontada para o pescoço de Luísa marcava o final de um relacionamento abusivo e violento. E não era a primeira vez. Em mais ou menos dois anos ela viveu a experiência de reatar e terminar a convivência afetiva com um homem que havia conhecido na Igreja que frequenta – Renato, que fora apresentado à ela pelo Pastor como um homem bom, atencioso e companheiro. Luísa não sabia que, algum tempo depois, ele demonstraria ser uma pessoa completamente diferente: um sujeito violento, possessivo e manipulador. Ele a transformou em mais uma das oito mulheres que são vítimas de violência doméstica a cada 24 horas no Brasil.

Luísa dizia que tudo havia começado muito bem. Ela conta que, no início da sua relação com Renato, ele era parceiro, ajudava nas tarefas domésticas de casa, dava presentes e a levava para sair; porém, o tempo lhe mostrou o contrário. Renato vinha se tornando um homem totalmente fora de si, principalmente nos momentos em que ingeria bebida alcoólica – como se o seu verdadeiro “eu” ficasse escondido todo esse tempo e viesse à tona em seus momentos de fragilidade. Mesmo com esses sinais e decidida a terminar a relação, Luísa insistiu: Renato era muito querido por sua filha caçula e a sua mãe acreditava que ele era o melhor genro para ela. O Pastor de sua igreja também dizia ser seu maior conselheiro e a convenceu de continuar o relacionamento. “Ele é um homem bom e gosta muito de você”, afirmava. 

Eles se casaram em dezembro de 2022, depois do Pastor e sua mãe tanto insistirem – de início, ela não pensava em se casar. No dia que oficializaram a união, Luísa foi consagrada a Pastora da Igreja, e ele, Diácono, e foi a partir daí que ela se sentiu cada vez mais presa em uma relação que, antes, era cheia de expectativas. Como pastora, a igreja lhe exigia um comportamento exemplar, uma imagem que não poderia se quebrar diante da comunidade que a admirava. Mas só ela sabia que os sorrisos nas reuniões da Igreja contrastavam com os momentos tensos que ela vivenciava em casa: a cada vez que Renato se tornava agressivo, a sensação de solidão dentro dela se intensificava. 

As brigas começaram a piorar por questões financeiras. Renato prometeu ajudar com mil reais mensais e essa promessa foi cumprida apenas no primeiro mês. Ela precisava de ajuda para se manter, já que, por influência dele, começou a fazer parte de um partido político para se candidatar como Deputada Federal – e a campanha lhe custava muito tempo e dinheiro. 

Como se já não bastassem as várias obrigações que tinha de estar a frente, um trabalho cansativo e uma campanha intensa como candidata na política, Luísa passou a ser cobrada por sexo ao chegar em casa – como se fosse da sua obrigação entregar o seu corpo à um homem, apenas para satisfazê-lo. O homem, que no início demonstrava atenciosidade, se tornava cada vez mais irreconhecível aos seus olhos. Ela, que estava levando uma “vida reta e santa diante do altar e estudando mais a bíblia”, afirma que ele dizia à ela que ela fazia pouco (sexo). Luísa dizia que nos dias em que ministrava precisava estar em santidade e, mesmo afirmando isso à ele, Renato insistia, como se apenas as vontades dele importassem na relação e como se Luísa fosse um objeto de satisfação.

Luísa, assim como todas as mulheres, são muito mais do que um simples corpo – ela possui uma história e toda uma vida carregada de muita luta, determinação e esperança. Ela, uma mulher alta de 48 anos, de cabelos longos e olhos castanhos, antes não tinha uma profissão. Desde que se formou em ser mãe, ela sempre se apoiou em trabalhos autônomos, além de ter tido que criar as filhas sozinha e não ter com quem deixar a mais nova – a mais velha ficou aos cuidados da avó e a caçula havia sido diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o que fez com que ela, como mãe, tivesse mais vontade de estar presente. 

Um tempo depois, passou a fazer um curso de Tecnólogo Superior em Psicomotricidade e Ludicidade na Educação Infantil – e foi onde ela se encontrou, nos estudos, para tentar ocupar a mente em meio a situação caótica que se encontrava dentro de casa. O ambiente acadêmico, repleto de ideias e discussões sobre assuntos que a interessavam, proporcionou a ela um espaço seguro onde podia explorar não apenas o conhecimento, mas também suas emoções reprimidas. Pela primeira vez, ela passou a ter uma sensação de pertencimento, da qual ela não estava sentindo dentro de casa.

Além disso, a Igreja era outra grande parte de sua vida: Luísa era muito religiosa e tinha muita fé. Ela tinha interesse em ser uma boa Pastora, mas sentia que Renato atrapalhava sua trajetória na religião. Ele, que chegava tarde em casa todos os dias e sempre levava bebida alcoólica para a sua residência, dizia que passava o dia trabalhando; mas ela se questionava perguntando se ele realmente era o homem bom que o Pastor tanto lhe dizia, se realmente era devoto à sua religião e, principalmente, se era um bom marido.

Luísa se encontrava com um misto de sensações. A angústia e a solidão por vivenciar tudo isso sozinha tomavam conta de sua mente e a obsessão do marido por sexo a deixava atordoada, com raiva. Obsessão essa que tornou Renato cada vez mais em um homem mal humorado, sem educação, sempre com as respostas na ponta da língua; mas o típico indivíduo que, quando conseguia o que queria, tudo mudava. Chegava em casa e ao dar dois tapas nas costas de Luísa, sempre dizia: “Hoje eu quero, viu?”.

Muitas vezes imaginava que o problema estaria nela mesma. Sentia uma mistura de sentimentos opostos. Ora culpada por não sentir vontade de sexo nela mesma, ora sentia ódio e uma repulsa muito grande pela mesma situação. Um relacionamento que a prendia não só financeiramente, mas psicologicamente. Por vezes considerava que a separação poderia complicar sua situação na Igreja, sem contar que sua filha caçula, que é neurotípica, havia criado uma boa relação com ele.  Muitas vezes ela dizia se sentir “um lixo de mulher”.

Sentia um ódio descomunal de seu parceiro. Ela chorava muito e não conseguia mais dar atenção às tarefas de casa. A única coisa que mantinha sua mente distraída do sofrimento eram os estudos. Mergulhando na Psicanálise ela se formou e quis fazer o curso de Terapeuta para ajudar outras mulheres. No fundo, ela queria ajudar outras pessoas que também eram vítimas, mas sem entender que quem precisava de ajuda primeiro, na verdade, era ela mesma. 

Relacionamento tóxico

As brigas se intensificavam cada vez mais. O que no começo era amor, se tornou em um sentimento de repulsa muito grande: Luísa não aguentava ficar sequer perto de Renato, que vivia tendo crises de ciúme extremamente possessivas – ela não podia ser vista conversando com qualquer conhecido da Igreja, que já era motivo de discussões intermináveis em casa. Foi quando decidiu buscar ajuda. 

Através de pessoas que já conhecia, descobriu uma ONG que dava amparo e assistência psicológica e jurídica a mulheres e famílias vítimas de violência doméstica. Ela queria ser ouvida e também queria ouvir outras mulheres e, por isso, começou a fazer parte de um atendimento em grupo: ela falava abertamente sobre suas angústias, a raiva que lhe consumia, mas também se sentia melhor ouvindo outras mulheres contando sobre os problemas que sofriam em casa. Ali, cada uma carregava suas próprias cicatrizes, mas Luísa percebeu que suas histórias, embora únicas, compartilhavam uma dor comum. Foi quando ela passou a não se sentir tão sozinha.

Ela estava em atendimento psicológico pelas mulheres da ONG, mas ainda não havia rompido com Renato. Algo dentro dela sentia que a relação poderia melhorar em algum momento. Luísa resolveu contar o que estava acontecendo para o antigo Pastor da Igreja, o qual havia apresentado o homem à ela. Contou também para sua mãe. Mas não adiantou muito, pelo contrário: ela se sentiu ainda mais desmotivada a reerguer sua força, que ela ainda nem sabia que existia. Todos que souberam da história diziam que ela deveria “orar mais e buscar mais de Deus” para salvar o casamento. 

A essa altura, parecia que ela sempre acabava retornando para o caminho que ela mesma tentava escapar. Ela se sentia sem forças. Mesmo com o acompanhamento psicológico e as terapias em grupo fornecidas pela ONG, voltar para a sua casa ao final do dia era sempre difícil: as agressões, os xingamentos, a manipulação… Tudo começava de novo. E não poder contar com o apoio de sua família e da própria Igreja, o lugar que mais a confortava, fazia com que ela se sentisse impotente. Mas algo no fundo lhe dizia para continuar com o acompanhamento psicológico, pois acreditava que, em algum momento, conseguiria sair desse ciclo sem fim. 

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, uma mulher é vítima de violência a cada 4 minutos no Brasil. Além disso, mulheres que enfrentam violência doméstica têm até três vezes mais chances de desenvolver transtornos mentais, como depressão e ansiedade, de acordo com dados do World Health Organization. Mesmo assim, muitas reatam o relacionamento com o agressor ou têm dificuldade em terminar a relação. 

O ciclo sem fim

Após mais um dia exaustivo, Luísa chega em casa física e emocionalmente abatida Teve que lidar novamente com os atos frios e violentos de Renato. Mas a gota d’água estava mais perto do que ela imaginava. 

Ele disse ter tido um sonho em que ela o traía com um colega da Igreja. Renato sempre repetia essa história e, Luísa, cansada de sempre ouvir as mesmas coisas, achava que tudo não passava de uma brincadeira. Mas, para ele, que queria ser um homem “forte e poderoso” para demonstrar domínio sobre ela, tudo era muito levado a sério: ele sempre acreditava que os seus sonhos eram reais e que ela estaria sendo infiel. Parecia até mesmo que, ele, na verdade, era muito inseguro de si mesmo, e precisava externalizar um comportamento para camuflar sua própria fraqueza. 

Acreditando ser uma simples brincadeira Luísa disse que era de sua vontade se relacionar com o tal sujeito do sonho. Furioso, em um tom debochado e na maior frieza possível, sem conseguir controlar suas emoções, Renato abriu a primeira gaveta que encontrou e apontou uma faca no pescoço dela. Luísa não conseguiu demonstrar reações nesse momento. Após algum tempo, a atitude marcou o fim do relacionamento. 

Ela conseguiu pedir o divórcio do casamento com Renato, que havia durado 10 meses. Se sentia livre. Mesmo com as dificuldades financeiras para manter a casa, ela continuou se dedicando aos estudos. Começou a dar palestras sobre a saúde mental da mulher. Mas tudo ainda não parecia ter fim: ele continuava indo atrás dela. Mesmo desgastada emocionalmente, voltou a se relacionar com ele. “Ele me venceu pelo cansaço”, dizia. 

O relacionamento de Renato e Luísa foi marcado por muitas idas e vindas e a retomada do relacionamento não durou por muito tempo: duas semanas depois, e ela decidiu colocar um ponto final definitivo. Luísa finalmente se questionava se esse seria o seu recomeço; se ela finalmente teria paz para focar em seus estudos; e, principalmente, se conseguiria ser feliz de novo. 

A realidade que leva tantas mulheres a voltarem para seus agressores é uma teia complexa de emoções, medos e esperanças. É como se, em meio ao caos, houvesse um conforto em algum resquício de boa lembrança da relação, mesmo que o fim tenha sido prejudicial. A promessa de mudança, a lembrança dos momentos bons e a esperança de que tudo possa ser diferente alimentam um ciclo que parece interminável. 

Para muitas, a ideia de um futuro solitário ou o medo da rejeição são mais opressivos do que as marcas deixadas pela violência. As vítimas lutam entre o desejo de liberdade e a grande dúvida sobre seu próprio valor. Esse retorno é um grito silencioso por compreensão e apoio, uma busca por amor em um lugar que, ironicamente, muitas vezes oferece apenas dor. Para cada vez que resolvem reatar há uma história de resiliência e fragilidade, de uma mulher que ainda acredita na possibilidade de um final feliz. Mesmo que isso signifique se perder novamente.

Tags:

Comportamento

path
comportamento
O mar, sempre calmo e sereno, contrastava com a tempestade que assolava a alma de Seu Zé pelas marcas da Segunda Guerra Mundial.
por
DANIEL SANTANA DELFINO
|
22/10/2024

Por Daniel Santana Delfino

O sol da tarde, um disco incandescente no céu, lançava raios de fogo sobre a areia da praia, mas o vento fresco do mar trazia um alívio para o calor escaldante. Era um dia tranquilo, com o mar calmo e a brisa suave acariciando os rostos dos poucos banhistas que se aventuravam nas areias. Era nesse cenário que a figura imponente de José, um senhor de 87 anos, pairava como um farol de história e resiliência.

José Antônio da Silva, ou "Seu Zé", como era carinhosamente chamado, era um homem de poucas palavras, mas de olhar penetrante que carregava o peso de uma vida rica em experiências. Seus cabelos grisalhos, quase brancos, emolduravam um rosto marcado pelo tempo, mas ainda forte e cheio de vida. Em seu peito, reluzia uma pequena medalha, um lembrete silencioso de um passado que o assombrava e o enchia de orgulho ao mesmo tempo: a Segunda Guerra Mundial.

Seu Zé nasceu e cresceu em uma pequena vila conhecida por amigos como "Vale do Sol" no interior de Goiás, onde a vida era simples e a natureza exuberante. Ele aprendeu a pescar com seu pai, a cuidar da horta com sua mãe e a brincar com os amigos nas margens do rio que cortava a vila. Era um menino travesso e aventureiro, que adorava explorar as matas e os campos, sempre em busca de novas descobertas. A vida na vila era pacata, mas Seu Zé sonhava em conhecer o mundo, em ver o mar de perto e em ter novas experiências. Quando completou 18 anos, decidiu se alistar no exército, movido pela promessa de uma vida melhor e pela vontade de servir à pátria.

A decisão foi tomada com um misto de emoções. A alegria de finalmente realizar seu sonho de conhecer o mundo se misturava com a tristeza de deixar para trás a vida simples e familiar que sempre conheceu. A ansiedade e a insegurança de enfrentar o desconhecido o acompanhavam, mas a coragem e a determinação de servir à sua nação o impulsionavam para frente. Ele se despediu da família e dos amigos com a promessa de voltar para casa, mas o destino tinha outros planos para ele.

A Segunda Guerra Mundial eclodiu e Seu Zé foi enviado para o front, onde enfrentou situações extremas e viu a morte de perto. A guerra foi um período de grande sofrimento e privações. Ele passou fome, frio e medo. Teve que lutar em condições adversas, em meio a explosões, tiros e a constante ameaça da morte que o marcou profundamente, deixando cicatrizes físicas e emocionais. Ele viu amigos morrerem, sofreu com a perda de inocentes e teve que lidar com a violência e a crueldade do conflito. 

Era uma noite fria e escura, a neve caía incessante, e Seu Zé e seus companheiros estavam escondidos em uma trincheira, esperando o ataque inimigo. De repente, o céu se iluminou com explosões e tiros, a terra tremia sob seus pés. O coração batendo forte no peito, se levantou para defender sua posição, mas uma bala o atingiu no braço. A dor foi intensa, mas ele não podia se dar ao luxo de se entregar à dor. ele precisava continuar lutando. Com a ajuda de um amigo, ele conseguiu se arrastar para um local seguro, onde recebeu os primeiros socorros. A bala foi retirada, mas a marca que ela deixou em seu braço, e em sua alma, o acompanhou para sempre.

Mas a guerra também lhe proporcionou momentos de felicidade, como a noite em que ele e seus companheiros, após uma batalha árdua, conseguiram capturar um depósito de alimentos do inimigo. A fome era constante, e a alegria de encontrar comida, mesmo que simples, era imensa. Eles dividiram os alimentos entre todos, e a sensação de união e camaradagem naquele momento, em meio ao caos da guerra, foi um bálsamo para suas almas. No entanto, a tristeza também o acompanhava. A perda de um amigo, um jovem que havia chegado ao front cheio de sonhos, o afligia profundamente. Ele se lembrava da última conversa com ele, da esperança que ele carregava no olhar, e da dor que sentiu ao vê-lo sucumbir aos ferimentos. A guerra, além de tirar vidas, também roubava sonhos e esperanças.

Durante a guerra, Seu Zé experimentou uma gama complexa de emoções. medo com a constante ameaça da morte o assombrava, a tristeza com a perda de amigos e a violência que testemunhava, a raiva pela injustiça e a crueldade da guerra e em contrapartida, a solidariedade com a necessidade de ajudar seus companheiros e a busca por um pouco de humanidade em meio ao caos e a esperança, apesar de todas as dificuldades.

A força e a resiliência que cultivava desde a infância o ajudaram a superar as dificuldades da vida. Ele até tinha medo da guerra, mas ele via como um espelho de sua própria vida: cheio de desafios, mas também de beleza e esperança. Seu Zé era um exemplo de vida, um homem que havia vivido intensamente, que havia enfrentado a guerra e a vida com coragem e determinação. Ele era um guardião de memórias, um contador de histórias e um símbolo de esperança para todos que o conheciam.

 

 

Tags:
Execuções nas organizações de esquerda revelam um capítulo pouco conhecido e doloroso da luta contra o regime militar brasileiro
por
Renan Barcellos
|
29/10/2024

Por Renan Barcellos

Era uma noite abafada de 1971, quando Márcio Toledo percebeu que seu tempo estava chegando ao fim. Ao redor dele, os olhares de seus companheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) já não eram os mesmos. A desconfiança, antes uma sombra discreta, tornava-se palpável, quase tangível. Ele sabia que havia se tornado um alvo. Não por traição, mas por discordar. Aquela diferença de opinião, num cenário de guerra velada, seria suficiente para selar seu destino.

Eles não podiam mais confiar em ninguém, nem mesmo em Toledo, que havia lutado ao lado deles desde o início. A paranoia que consumia a resistência armada era mais cruel que a tortura do inimigo. Naquela noite, ele seria julgado. Não pela ditadura, mas pelos próprios companheiros, em um tribunal revolucionário onde o veredito já estava traçado: a morte.

123
Márcio Leite de Toledo - Arquivo
Nacional

Carlos Alberto Cardoso teve uma chance que Toledo não teve. Preso pelos militares, foi torturado e tentaram dobrá-lo, oferecendo-lhe um acordo: "Seja nosso homem lá dentro, nos ajude a destruir a ALN". A oferta pairava como um veneno entre a dor e o desespero. Mas Cardoso, fiel à sua luta, recusou. Mesmo assim, sabia que precisava contar a seus companheiros o que havia ocorrido, acreditando que a lealdade mútua os protegeria.

123
Carlos Alberto Maciel Cardoso - Arquivo Público do Estado de São Paulo

Ele relatou tudo aos seus colegas de resistência, certo de que o entenderiam. No entanto, seus companheiros não acreditaram. Para eles, uma vez abordado, ele já estava manchado, corrompido. No julgamento, foi sentenciado a 21 tiros, uma execução violenta. Seus pais, por anos, acreditariam que ele havia sido mais uma vítima da ditadura. A verdade viria muito tempo depois.

Salatiel Rolim e Francisco Alvarenga carregavam no corpo as cicatrizes da tortura. Torturados brutalmente pelos militares, foram obrigados a ceder informações. As pancadas, os choques e as queimaduras não deixavam margem para resistência. Sob coação, falaram. Mesmo assim, seus próprios companheiros os condenaram, ignorando as marcas visíveis da violência estatal. A sentença, como nas demais vezes, foi a mesma: a morte.

123
Francisco Jacques de Alvarenga - Arquivo da família

Salatiel questionou, em seus momentos finais, o que qualquer um faria em seu lugar, em uma tentativa desesperada de buscar empatia nos corações endurecidos pela luta armada. Mas a lógica revolucionária era implacável. A suspeita de traição equivalia à traição. E isso era imperdoável.

123
Salatiel Teixeira Rolim - Arquivo Público do Rio de Janeiro 

Esses relatos, se fossem narrados pelos próprios mortos, ecoariam como testemunhos silenciosos de um capítulo que a esquerda prefere não remexer. Era mais fácil confrontar o terror do regime militar do que olhar para os erros que surgiam no calor da luta pela liberdade. Francisco Alvarenga, Salatiel Rolim, Carlos Alberto Cardoso e Márcio Toledo tornaram-se símbolos trágicos de um tempo em que a verdade era constantemente distorcida, não apenas pela ditadura, mas também pelos próprios revolucionários.

No calor daquela guerra interna, Carlos Eugênio, um dos líderes da ALN, jamais se arrependeu. Para ele, aquelas mortes eram dores da guerra, justificadas como parte de um ciclo inevitável, onde o medo de infiltrações superava qualquer consideração de humanidade. Maria Amparo, uma sobrevivente, tinha uma visão diferente. Ela reconhecia que poderiam ter sido mais cautelosos, investigado melhor. No entanto, diante da realidade implacável da ditadura, as execuções pareciam a única saída.

As famílias das vítimas dos justiçamentos, assim como as vítimas da repressão militar, buscam até hoje respostas. A dor do silêncio pesa tanto quanto a ausência dos entes queridos. Para muitas dessas famílias, a memória dos filhos, maridos e irmãos é marcada pela confusão entre o que se acreditava ser uma morte heroica e a dura verdade de que foram traídos pelos próprios companheiros de luta.

Essas histórias revelam o quanto o passado ainda se impõe sobre o presente. O Brasil, ansioso por enterrar o período da ditadura, ainda se esquiva de reconhecer que, em meio à justa resistência contra o regime, ocorreram erros imperdoáveis. Ao mergulharmos nas sombras dos justiçamentos, forçamos a sociedade a encarar o incômodo de uma guerra onde todos, de alguma forma, saíram derrotados. A justiça, por sua vez, não pode esperar por mais silêncio.

Tags:

Comportamento

path
comportamento
Ao exercer a cidadania pelo voto, moradores em situação de rua saem da invisibilidade social.
por
Rodrigo Silva Marques
|
05/11/2024

Por Rodrigo Marques

 

Filho de pescadores, as manhãs de Luís de Jesus, hoje com 39 anos, eram marcadas pelo som das ondas e o cheiro do mar de Anchieta, no litoral Espírito Santo. Quando criança, sonhava em ser marinheiro. Aos dezoito anos, mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades, mas logo percebeu a dureza da vida na cidade grande. Inicialmente, tentou alistar-se na Marinha para realizar seu sonho, mas foi dispensado por excesso de contingente. Trabalhou como garçom, mas um incidente no trabalho o deixou sem emprego e, eventualmente, sem moradia. Nos anos seguintes, Luís enfrentou o frio, a fome e a indiferença vivendo nas ruas de São Paulo.

Mesmo sendo sub-representada nas estatísticas oficiais, a população em situação de rua começou a ter sua condição eleitoral mais analisada nos últimos anos. Isso ocorre devido ao fato de menos da metade dessas pessoas possuírem título de eleitor. Em São Paulo, o Censo da prefeitura revelou que, no fim de 2023, cerca de quarenta mil pessoas viviam nas ruas. Entre as entrevistadas pelos agentes municipais, menos de cinquenta por cento declararam ter o título de eleitor.

Ainda assim, essa barreira não impediu os que tinham título de comparecer e exercer seu direito ao voto na última eleição para a Prefeitura paulistana. Luís tentou sobreviver com pequenos "bicos", mas estes eram insuficientes para seu sustento. Quando o período eleitoral se aproximou, ele começou a se interessar pelos candidatos à prefeitura. Determinado a votar, procurou um centro de acolhimento para obter o título de eleitor em São Paulo, uma vez que não era natural do estado. Durante o processo, conheceu uma pessoa que o ajudou a encontrar um teto após quase nove anos nas ruas em um centro de acolhimento de moradores de rua. Luís então escolheu votar em Ricardo Nunes, do MDB, por considerar que o candidato tinha uma postura mais realista. Justificou sua decisão dizendo que via Guilherme Boulos, do PSOL, como "um filhinho de papai" que, segundo ele, jamais passara por dificuldades reais. Luís também comentou que via potencial em Tabata Amaral, candidata do PSB.

Morador de rua 1
Luís de Jesus no centro de acolhimento onde reside

Em contraste, Fernando Almeida, de 55 anos, conhecido como Nandinho, é da segunda geração de imigrantes nordestinos que vieram em busca de emprego em São Paulo. Hoje, trabalha como zelador de escola, mas viveu mais de quinze anos nas ruas devido ao problema com uso de drogas, como crack e anfetaminas. Antes disso, atuava como concursado, mas começou a usar substâncias para suportar o estresse do trabalho. Após anos sem votar, seu título foi suspenso, obrigando-o a regularizá-lo para esta eleição. Nandinho escolheu Guilherme Boulos, especialmente pela proposta de criar um Poupatempo da Saúde, visando zerar as filas do SUS. Relatou que, sete anos atrás, teve uma infecção por compartilhamento de seringa e só foi atendido após desmaiar por conta da gravidade do problema. Além disso, enxergava Nunes como um inútil que encontrou uma oportunidade de assumir o posto que era do falecido ex-prefeito, Bruno Covas.

Esses são apenas dois exemplos entre milhares de moradores ou ex-moradores de rua que, apesar das adversidades, decidiram exerceram seu direito de votar como cidadãos aptos a decidirem o futuro da cidade com parte de suas histórias pessoais.

Morador de rua 2
Durante os finais de semana, Fernando Almeida e os faxineiros da escola fazem uma limpeza coletivas da carteiras das salas de aula

 

Tags:

Cidades

path
cidades

Comportamento

path
comportamento