O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Meio Ambiente

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Os impactos da fome no organismo de quem deveria ser o amanhã do Brasil
por
Isabela Gama
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30/06/2023

A fome infantil atinge quase 6 milhões de crianças no país, 22% das famílias são  chefiadas por mulheres negras e 8% por homens brancos, os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, escancarando a desigualdade social e racial no país. Os dados têm assustado especialistas, que apontam a subnutrição infantil como um risco para o desenvolvimento cerebral dos pequenos, criando carências nutricionais devido à mudança no metabolismo e o tamanho dos órgãos, o que afetará sua qualidade de vida quando se tornarem adultos, comprometendo todo o futuro de milhares de  trabalhadores do Brasil. 

A Sociedade Brasileira de Pediatria, detalha que a alimentação balanceada de uma criança precisa ser rica em vitaminas e nutrientes como ferro,cálcio,vitamina A,D,B12 e zinco,  principalmente durante os primeiros dois anos de vida, fase determinante para o desenvolvimento cognitivo e corporal.  

A pediatra, Izilda das Eiras Tâmega, professora do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Sorocaba e especialista em Neonatologia e Nutrologia, explica que a desnutrição infantil afeta duas principais áreas na vida de uma criança, seu crescimento e desenvolvimento. O crescimento diz respeito ao peso e estatura das crianças, enquanto o desenvolvimento está relacionado ao amadurecimento cognitivo. 

“Os primeiros dois anos de vida são fundamentais, é durante esse período que  temos o crescimento cerebral, que não é um crescimento só do tamanho do cérebro mas também da qualidade funcional dele. Durante esse tempo pode haver danos irreversíveis na vida dessas crianças quando elas se tornarem adultas”, afirma a pediatra.   

Após os dois anos de vida, os impactos estão mais relacionados ao crescimento corporal  dessas crianças, que podem crescer menos do que o ideal para a sua idade .   

Tâmega explica também que os efeitos na vida adulta de uma criança desnutrida variam justamente em relação à idade em que elas passaram pela privação de alimentos e ao tipo de investimento feito posteriormente para reverter o quadro desnutrição.   

“Você não pode chegar para uma criança e falar ‘ Essa foi desnutrida, grave, não tem que investir porque não tem mais o que fazer’  Tem, tem sim. Você tem que investir o máximo pela recuperação dela”, reitera a pediatra  

Algumas crianças podem inclusive ficar sem nenhuma sequela de crescimento ou desenvolvimento, mesmo tendo passado por um grave quadro de insegurança alimentar, mas isso não é possível prever ou mapear, sendo somente constatado ao longo da vida.    

O professor de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Wolney Lisboa Conde, explica que além do impacto físico como atraso no crescimento, a desnutrição também ocasiona fraqueza muscular e baixa imunidade. O nutricionista esclarece quais são os efeitos mais comuns da fome no cérebro infantil. 

“O cérebro é vulnerável à fome. Quando uma criança não recebe calorias suficientes, o corpo começa a consumir suas reservas de gordura e calorias armazenadas, deixando o órgão com uma quantidade insuficiente de energia para que ele funcione de maneira adequada”, esclarece o especialista.  

Questões comportamentais como irritabilidade, agitação e dificuldade na concentração, o que é extremamente prejudicial para o desempenho escolar dessas crianças, também são alguns dos impactos causados pela subnutrição.  

“O mau funcionamento do cérebro pode ocasionar atrasos na fala e na aprendizagem desses jovens. Além disso, na idade adulta, essa baixa qualidade da saúde infantil está associada a risco elevado de obesidade, dislipidemias, hipertensão e outras e doenças crônicas não transmissíveis além, evidentemente, da menor qualidade de vida adulta”, expõe Lisboa 

O prejuízo da atividade escolar desses jovens, impactam diretamente sua vida adulta. A má formação acadêmica gera oportunidades profissionais limitadas, o que predestina esses futuros adultos a  trabalharem em subempregos e em condições degradantes, aprofundando ainda mais a desigualdade social.  

Segundo um levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) entre 2020 e 2021, o  número  de crianças e adolescentes com privação no acesso à alimentação teve um crescimento de 9,6%. Diante deste cenário, entidades do terceiro setor contribuem, mesmo que de forma pontual, para a garantia de refeições a estes jovens e suas famílias.   

A Pastoral da Criança, organização vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) atua em prol de comunidades carentes,auxiliando famílias e crianças. A Coordenadora da Pastoral da Criança da Zona Norte, Nanci Maria da Silva de Oliveira, explica que doações de cestas básicas, checagem da carteira de vacinação dos pequenos, acompanhamento de gestantes e o acompanhamento de altura e peso de crianças entre 0 e 6 anos são feitos são feitos por voluntários da pastoral. 

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O autor do livro “República das Milícias” participou de entrevista coletiva com alunos de Jornalismo da PUC-SP
por
Laura Naito e Rafaela Dionello
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30/06/2023

"O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo".

A análise é do jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e vencedor do prêmio Jabuti, Bruno Paes Manso. O autor de "República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" e "A Guerra: A ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil" voltou ao seu lugar de formação para participar de uma entrevista coletiva ao Contraponto Digital da PUC-SP. 

O jornalista respondeu perguntas variadas desde como foi o processo de escrever o livro: métodos jornalísticos que usou, quais estratégias de checagem de fatos e até mesmo decidir o que entraria ou não nas 304 páginas. Ele contou sobre a forma como "República das Milícias" se tornou um sucesso que até virou podcast e sobre suas experiências enquanto produzia a obra.

As páginas do livro narram a história do nascimento das milícias no Brasil desde o começo: dos esquadrões da morte formados nos anos 1960; da ditadura militar; do domínio do tráfico nas décadas de 1980 e 1990; das máfias de caça-níquel e da ascensão de milicianos e seus negócios.

Surgida numa pequena comunidade rural na Zona Oeste do Rio, as milícias foram ganhando poder político e econômico a partir dos anos 1990, auge da violência e do poder do tráfico, em conflito com a polícia e entre diferentes facções. Bruno responde uma dúvida silenciada por anos pela polícia: viver sob o tráfico ou a milícia?

Passando por um dos mais emblemáticos crimes da história brasileira, o assassinato da vereadora Marielle Franco, e revelando relações com o poder, principalmente com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que se tornou personagem do livro “A república das milícias”. 

Para apurar uma história tão delicada, Bruno entrevista milicianos e ex-milicianos. Ele descreveu no livro, uma entrevista com o personagem chamado de Pescador, em que a entrevista aconteceu em um local cheio de aves para evitar gravações. Ele explicou que para conseguir as respostas que deseja, se coloca no lugar do entrevistado e não se permite julgar a vivência de cada um. 

O autor não deixou de fora da coletiva novas informações sobre seu novo livro. "Fé e fuzil" será lançado no segundo semestre deste ano, e vai tratar das Igrejas evangélicas e dos crimes que justificados pela fé. 

Confira os destaques da entrevista:

Contraponto Digital: A milícia brasileira é uma das mais organizadas do mundo, como o colonialismo influenciou na expansão e instalação desses grupos?

Bruno: Todas as questões que eu escrevo, se for parar para pensar na violência, estão muito ligadas ao processo de urbanização do Brasil, uma história que a gente está escrevendo até hoje. Estamos falando de um país onde 70% era rural e a maioria das pessoas morava no campo, historias de escravidão, letifundios, coroneis e ao mesmo tempo trabalhando na terra e a sua relação com a igreja, principalmente o catolicismo. Essa cultura de alguma forma funcionava, apesar de ser um país violento essa ordem acabou sendo estabelecida.

Em 1950, os veículos de comunicação em massa criam nas pessoas uma ideia de que aquele mundo estagnado, hierárquico e sem possibilidades na verdade não era real e que essa possibilidade existia sim. A Partir disso uma nova realidade surgiu e as pessoas passaram a migrar para a cidades e o Brasil passa a ser majoritariamente urbano e esses dois mundos passam a coexistir, com muito estranhamento e preconceitos.

As milícias são o auge do bolsonarismo, houve alguma mudança no modus operandi das organizações com o início do governo Lula?

No caso da vitória do Lula, em primeiro lugar eu acho que nós corríamos um certo risco no segundo mandato do Bolsonaro de todos os avanços no sentido de um governo autoritário e esse conflito e convicção que eles estão em defesa do bem. A gente está passando por uma transição muito grande no mundo em que vivemos. 

O Lula surge como uma possibilidade de voltar a discutir de uma forma mais racional e menos apaixonada de acabar com a guerra, de propor uma pacificação. Só que é muito difícil você propor racionalidade em um mundo que está pegando fogo, então apesar de ele representar isso, ele encontra dificuldade em fazer acordos com os representantes dessas organizações. 

Você pode comentar mais sobre essa conexão de masculinidade x violência e comparar com outros livros que já escreveu? Por exemplo, o livro sobre o PCC.

Você tem essa ideia que faz parte da produção do estado moderno, onde esse estado se forma a partir do momento em que ele consegue exercer o monopólio legítimo da força. Isso significa que só o estado pode usar da violência quando as pessoas desrespeitam a lei. Essa ideia de você ver a violência como uma forma pedagógica faz parte da produção da civilização. 

Ao passar do tempo passa a ser discutido que o poder quando ele precisa usar a violência é porque ele deixa de ter o poder. Se você precisa usar disso o tempo todo para que os outros obedeçam e essa é uma das questões da violência brasileira é que não existe um pacto coletivo sobre esses termos. Existe uma mega injustiça e desigualdade, você não é capaz de produzir esse tipo de liderança e obediência, você usa a violência porque o poder é frágil. 

O bolsonarismo chegou em São Paulo na figura de Tarcísio de Freitas, novo governador do estado. Você acha que o PCC corre o risco de perder o monopólio do crime para as milícias com a chegada dele? Uma vez que o Governador Tarcísio elogiou muito o modelo de segurança do Rio de Janeiro.

A questão com São Paulo, ele foi tomado pelo PCC, é que o estado foi tomado de uma outra forma, existe um outro tipo de gestão, um outro tipo de negócio. O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo. 

Você cria uma nova forma de marra, o traficante passa a fazer parte de ONGS e negócios internacionais formando uma nova cena empresarial, ao estado hoje só cabe permitir que esses estados continuem acontecendo. O PCC virou esse grande governo desse mundo, o modelo de milícia do Rio de Janeiro é outro. 

A mídia, sobretudo os programas policiais, como Brasil Urgente e Cidade Alerta, ajudaram a consolidar o discurso das milícias dentro da sociedade, especialmente nas comunidades? Já que esses programas exaltam a força policial em detrimento de alguém que cometeu um crime?

Eu acho que sim, esses programas acabam acirrando essa ideia de guerra ao crime mas tem uma camada de diferença nas redes sociais, porque apesar dos programas falarem isso o diálogo não deixava de acontecer. O problema nas redes é que elas passam a isolar esses mundos, se transformando em uma grande guerra de ideais. Nos programas as pessoas que dão as caras ao vivo, podem ser responsabilizadas aqui fora. Com o tempo eu acabei me tornado menos crítico sobre isso.

Qual foi o raciocínio feito na realização do livro? Primeiro vieram os dados, pesquisa histórica e entrevistas, ou tudo se misturou? Você pensou em desistir de escrever o livro em algum momento quando a apuração estava difícil? 

A estrutura do livro é algo que eu tenho repetido nos três livros, é algo que acabou virando um modelo meu, eu parto da notícia quente, então a partir desse fato quente, procuro explicar como isso aconteceu, eu volto na história. Meu interesse vem dos discursos e das ideias que passam a se espalhar pelos outros. A construção geralmente inicia com a descrição desse fato quente e em algum momento do livro eu volto para construir o arco narrativo para os leitores.

Toda investigação começa por perguntas que você faz e o que você busca, a investigação começa por perguntas que talvez depois você perceba que as pessoas também não tem resposta. Eu tive muita sorte escrevendo A república das milícias, deu tudo muito certo em encontrar os personagens. Assim que eu entrevistei o Lobo, já sabia que ia ser o personagem que iria abrir o livro e eu faria a ligação ao Bolsonaro, sem precisar forçar a barra para falar sobre. 

Como traçar o limite entre a curiosidade e o necessário para conduzir a entrevista, para conseguir as informações que precisa? 

Eu vejo o jornalismo como terapia, deixo meus entrevistados falarem o que sentirem a vontade e só falo com eles se for apresentado por alguém que eles confiem. O importante é eles sentirem que podem falar comigo, muitas vezes eles querem ter suas histórias contadas.

É fundamental ter suas perguntas muito claras, saber qual seu produto final e o que você precisa. O que vale são as histórias que o entrevistado vai te contar, o que ele se sentir confortável para compartilhar com você.

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A vulnerabilidade alimentar de famílias chefiadas por mulheres é maior no Brasil
por
Laura Naito e Clara Maia
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30/06/2023

“Quando a pandemia veio e fiquei sem trabalhar, entrei em desespero. Não tinha quem me ajudasse, não tinha para onde correr. Era usar o dinheiro do auxílio para não deixar meus filhos passarem fome,”  declara Fabiana Santos, mulher preta e mãe solo de dois filhos. Mulheres em maternidade solitária são mais vulneráveis e têm maiores chances de experimentarem dificuldades financeiras, desemprego ou subemprego, insegurança alimentar e nutricional, falta de moradia ou habitação inadequada, riscos para a saúde e violência. 

Os dados gerais levantados na última pesquisa do IBGE, mostram que dentro dos casos severos de fome no Brasil, a IAN (Insegurança Alimentar e Nutricional) grave, atinge 51,9% das famílias chefiadas por mulheres. A problemática se agrava ainda mais quando se analisa o recorte de mães solo pretas: elas são  as mais afetadas pela insegurança alimentar. Segundo dados levantados pelo Datafolha, a cada cinco lares comandados por esse grupo, um acaba passando por subnutrição. 

Luiza Pires, diretora do Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades (MADE) da FEA-USP, explica que as mulheres, historicamente, foram responsabilizadas com a tarefa de cuidado do lar, "isso acaba sendo uma responsabilidade financeira também, é ela quem vai se preocupar em colocar comida na mesa para os filhos." 

Analisando os dados fornecidos pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar nos anos de 2021 e 2022, conduzidos pela Rede PENSSAN, o país atingiu o número de 33 milhões de brasileiros passando fome. Esse número reflete a desigualdade tanto regional, - concentrada principalmente entre o Norte e Nordeste - quanto a social. Fica claro, portanto, que a fome tem agravante racial no país, já que, pela pesquisa, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas acabam sofrendo com algum tipo de insegurança alimentar. 

O desamparo e medo da maternidade solo no Brasil:

Luciana de Carvalho é mãe solo de uma menina de 8 anos. Ela alega que não conta com nenhuma ajuda do Estado e nem sabe se tem acesso a algum projeto. Carvalho cuida da filha completamente sozinha desde que a mãe faleceu em 2020. Sua ajuda mais próxima está na irmã, que mora a uma hora de distância.

A falta de uma rede de apoio é o caso da maioria das mães solos do país. Luciana é apenas um dos casos de mulheres que têm que dar conta da dupla jornada. Para ela, conciliar a maternidade com trabalho é o maior desafio: “Depois de ter filho e não ter com quem dividir, tive que me adaptar e fazer trabalho só home office. Salário muito menor e outra função.”

Pires comenta sobre o conceito chamado “Pobreza de Tempo”, que de acordo com dados levantados por pesquisas da ONU, as mulheres são as mais afetadas pelo problema. Com o excesso de atividades como trabalho, cuidados domésticos e dos filhos ocorre a negligência com os próprios cuidados, sejam físicos e mentais, levando ao adoecimento e desequilíbrio na rotina familiar.

Para as mulheres negras, o agravante da situação está no racismo estrutural. A taxa de desemprego desse grupo é muito maior que a taxa de desemprego geral, que estava em 9% e para as mulheres negras era de 14%. Elas recebem menos que o salário médio dos homens e mulheres brancos. Ainda, "as mulheres negras estão em empregos com salários menores, e são responsabilizadas igualmente pelo cuidado", afirma Pires. 

Outro ponto que a especialista explica é a diferença da rede de apoio entre as mulheres brancas e negras: "a mulher branca sai para trabalhar e deixa os filhos com outra pessoa cuidando, as mulheres negras, na maioria das vezes, não têm essa opção e geralmente depende de um familiar que possa lhe ajudar." 

Fabiana Santos, trabalha como auxiliar de limpeza e é moradora da periferia da Vila Maria - Zona Norte de São Paulo, lida com a maternidade solo de seus dois filhos. O mais novo é um bebê de 10 meses. Santos diz que tinha dificuldade até na amamentação pois não tinha como se alimentar direito e faltavam nutrientes para a produção do leite: “minha anemia na época era grave. Não conseguia me alimentar, muito menos amamentar meu filho.” Ela teve que complementar a alimentação do bebê e ao comprar fraldas, via quase todo o auxílio do governo indo embora. 

“Eu como mulher e mãe solo sinto na pele todo dia o que é o abandono. Tudo que consegui foi trabalhando muito e sozinha. Hoje com meu emprego consigo pagar minhas contas e garantir que meus filhos estejam seguros, essa sempre foi minha maior preocupação” descreve a auxiliar de limpeza. Para Santos, os planos de auxílio do governo não foram suficientes para garantir sua estabilidade: “eles me ajudaram, claro. Mas falta muito para que um dia eu me sinta segura em qualquer situação de crise.”

Sobre sua rede de apoio Fabiana compartilha que quem vigia seus filhos enquanto trabalha é sua irmã, e relata a importância dessa rede para mães solo. “Ela é minha única ajuda. Quando arranjei meu trabalho pedi a ela que tomasse conta dos meus filhos. Sem ela a situação seria muito difícil.”

A tentativa de melhora dentro da perspectiva brasileira:

Thais Cassapian, organizadora do Coletivo de Apoio à Maternidade Solo, aponta que: "as mulheres negras crescem num contexto social com muito menos acesso à educação e à saúde, e o impacto desse racismo estrutural é amplificado e sentido nesse círculo social.” Para ela, as mães solos e mulheres negras devem ser priorizadas e que a discussão passa pela questão da igualdade. "A pessoa que tem menos, precisa receber mais (auxílio). Ela precisa ser garantida de todos os direitos básicos que foram negligenciados por tanto tempo." 

O Coletivo surgiu no primeiro mês da pandemia. Thais começou ajudando duas mulheres em situação de necessidade e foi crescendo gradativamente, sempre colaborando com alimentação dessas famílias chefiadas por mães solo. Hoje, são 210 mulheres sendo ajudadas e 70 colaboradoras no projeto. Para elas, o diferencial é levar até a porta de cada mulher que precisa de ajuda um kit de alimentos. "O coletivo se propõe a ser um apoio efetivo na vida dessas mulheres." 

A cesta básica tem pelo menos 16 itens e são variados. Frutas e verduras frescas, ovos, biscoitos. Além disso, também há o kit higiene, que cobre de fraldas à absorventes, roupas e até fórmulas para os bebês que precisam de suplementos além do leite materno.

O Coletivo de Apoio à Maternidade Solo também é uma forma de amenizar a insegurança alimentar nas famílias chefiadas por mães solos. Em sua devida proporção, atua em três frentes, sempre priorizando as mulheres. Além dos kits que são entregues nas portas, o projeto promove rodas de conversa presenciais para dar espaço para essas mães compartilharem suas experiências e ter um momento para elas. E, iniciado recentemente, o projeto de cursos profissionalizantes que tem a duração de um trimestre.

Ainda, é necessário um acompanhamento social diferenciado para essas mulheres que vivenciam a maternidade solitária na condição de pobreza através de programas e ações que promovam o cuidado especial desse grupo. A organizadora do coletivo afirma que "são necessárias políticas públicas direcionadas a esse grupo e principalmente, que atuem no recorte racial."

No viés das políticas públicas, retomado neste primeiro trimestre, o Bolsa Família tem o valor mínimo de R$600 e valor extra para famílias com gestantes, crianças e adolescentes. Esse é o início do plano do presidente Lula para reverter a situação atual da fome no Brasil. 

O governo anterior deixou para as políticas de combate à fome um legado que inclui desorganização e desarticulação dos programas, poucos servidores e orçamento baixo no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023.

Uma parte da estratégia nova também deve ser a divulgação para tornar essas políticas públicas de fácil acesso. Às vezes, a população nem sabe se pode receber alguma ajuda. 

Em fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reativou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que reúne sociedades civis na discussão do tema. O órgão, criado em 1993 e foi desativado em 2019 por Bolsonaro, acompanha diretamente a Presidência da República em políticas públicas de combate à fome. Também reajustou em 39% os repasses feitos a estados e municípios para o Programa de Alimentação Escolar (PNAE), que garante a compra de merenda escolar e ficou 5 anos sem correção com  defasagem de 35% no período. Dessa forma, a medida deve beneficiar 40 milhões de estudantes de escolas públicas. Em março, Lula relançou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em seu primeiro governo no âmbito do Fome Zero. 

A especialista Pires expõe a importância de trazer dados sobre essa desigualdade à público “somos responsáveis por visibilizar a questão e apontar políticas públicas que visam reduzir o problema.” Trazendo dados para o Congresso e criando identidade para reformar o sistema, Luiza acredita que mudanças podem ser consideradas.

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Especialistas explicam como a intoxicação por mercúrio afeta os quadros de fome e como é feita a reintrodução alimentar
por
Beatriz Vasconcelos e Rafaela Dionello
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29/06/2023

As imagens de desnutrição das crianças Yanomami chocaram o mundo no início do ano são consequências de uma demora no tratamento da desnutrição severa, que se tornou algo crônico.  Especialistas explicam que o uso de alimentos naturais, a prática de atividades físicas e a atuação emergencial do governo com a retomada do atendimento primário no território, são essenciais para a reversão do quadro.

“É uma situação muito alarmante e muito preocupante e tudo isso que vocês estão vendo nas redes sociais é uma irresponsabilidade do governo brasileiro de proteger o meu povo Yanomami, aqui no estado de Roraima” conta o líder da comunidade, Dario Yanomami.

De acordo com o Departamento de Atenção Primária à Saúde do Indígena, em 2015, entre 3516 crianças que estavam sob os cuidados do departamento, 1059 estavam com peso baixo e 666 com peso muito baixo para a idade, isso representa 49% das crianças. Em 2021, a situação se agravou, tendo 56,5% das crianças com algum déficit de peso. Segundo dados obtidos pela agência Samaúma, 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis na TY, entre 2019 e 2022, um aumento de 29% em relação a 2015-2018.

A desnutrição grave não é só a perda de peso acentuada, mas também representa a falta de vitaminas e nutrientes importantes, que dependendo da carência de cada organismo, pode causar problemas de pele, de visão e até neurológicos.

Para reverter esse quadro, é necessário uma série de ações complexas e bem planejadas. "O primeiro passo é oferecer o que está faltando, a suplementação de comida e tratamento adequado para cada quadro” explica a nutricionista e voluntária nas Terras Yanomami, Gabriela Mendes. Assim a pessoa é tirada do risco iminente de morte. O tratamento depende de uma rotina intensa de acompanhamento por monitores de saúde e nutrição.

A atividade física é igualmente importante no controle do tratamento da desnutrição, pois o objetivo da recuperação nutricional não é só ganho de peso e de tecido gorduroso, mas também de massa muscular.

Os alimentos originários da Terra Yanomami, como banana e açaí, podem ajudar nesse processo, ao contrário das opções ultra processadas que vemos nos mercados. “No início foram identificadas falhas neste sentido, pois o tipo de alimentos que estava chegando não respondia aos hábitos alimentares das comunidades e também não atendia às necessidades de recuperação rápida da saúde das pessoas mais atingidas”, conta Luís Ventura, secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Militares entregam as primeiras cestas básicas que chegam em terras Yanomami, em Roraima
Primeiras cestas básicas chegam em terras Yanomami em Roraima
— Foto: Ministério da Saúde

 

Após o envio de muitos alertas por organizações indígenas e seus aliados, houve um esforço para a adequação dessas medidas. Por isso Ventura reforça que a atuação do governo deve ser construída em diálogo com as organizações indígenas e com as entidades que têm conhecimento do terreno.

“Somos cidadãos brasileiros, somos povo originário, somos povo Yanomami. Então isso é uma responsabilidade do Estado. Como qualquer povo brasileiro, o Estado tem que cuidar do povo indígena” diz Dario.

Com o decorrer do tempo, o corpo passa por transformações muitas vezes irreversíveis. Quando uma pessoa passa muito tempo com uma dieta carente de alimentos e nutrientes, o corpo e seu metabolismo passam por mudanças. Ele passa a ser mais devagar, e produz menos enzimas digestivas. “Há redução da área absortiva, e as células passam a não estarem preparadas para metabolizar uma quantidade elevada de energia”, explica Mendes.

As medidas emergenciais necessárias para atuar com pessoas em risco de morte são fundamentais. “O atendimento dentro do território indígena sempre foi precarizado pelos anos de abandono da política de saúde, isso exigiu que muitas pessoas fossem removidas para a cidade para serem ali atendidas”, comenta o secretário.

Quando ficam doentes, os Yanomami são encaminhados para as instalações da Casa de Saúde Indígena (CASAI). Quando o caso é grave, eles são resgatados e levados para o atendimento de helicóptero até o hospital de campanha da força aérea montado na capital de Roraima, Boa Vista ou unidades de saúde do estado. Com a quantidade gritante de casos que precisam dessa atenção redobrada, essas instalações tiveram pouco tempo para atender uma população muito além da sua capacidade.

Para que a recuperação dessa comunidade tenha sucesso é necessário que alguns fatores andem juntos, como o atendimento emergencial, para a recuperação da saúde básica das pessoas e o fortalecimento do atendimento à saúde nas comunidades, para manter o progresso já feito. Também é necessária a recuperação das pistas de pouso, para o abastecimento das estruturas de atendimento básico. Por fim, “o fortalecimento do Distrito de Saúde Indígena Yanomami (DSEI-Y), que é quem deverá ficar em território depois da fase emergencial e, evidentemente, a retirada dos fatores de risco, que estão vinculados à desintrusão do garimpo", explica Luís Ventura.

Conciliar a atuação emergencial com a retomada do atendimento primário e com medidas culturalmente adequadas ao povo Yanomami, depende principalmente da retirada do garimpo na região. Só com um território livre do garimpo, as condições para que as comunidades tenham acesso de novo às fontes tradicionais de alimento poderão ser recuperadas.

O líder Yanomami conta que as comunidades que estão na fronteira Brasil-Venezuela, têm assistência. São 37 polos base mas, pelo menos 8 foram fechados por ameaças de garimpeiros ilegais. “Faltam profissionais para cuidar da nossa segurança, da segurança das nossas famílias e das nossas crianças”.

 

O garimpo ilegal e a contaminação por mercúrio

Atividade garimpeira  provoca a poluição dos rios na Terras Yanomami
Atividade garimpeira  provoca a poluição dos rios na Terra Yanomami — Foto: © Bruno Kelly/HAY

Os Yanomami têm vasto conhecimento sobre as suas terras e historicamente sobrevivem da coleta, além de pesca e caça. Mesmo assim, sua sobrevivência vem sendo ameaçada pela contaminação das águas e do solo pelo garimpo ilegal, prática que é uma das maiores causas da desnutrição severa que atinge esse povo indígena.

Em 2021, a destruição causada pelo garimpo no Território Indigena Yanomami (TIY) cresceu em 46%. Dados do Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE) indicam que a desflorestação nas terras indígenas Yanomami aumentou 516% entre os anos de 2019 e 2020 em comparação aos anos anteriores (2017 e 2018). Nos últimos dois anos, foram desmatados 39,1 quilómetros quadrados, o equivalente a 3,9 mil campos de futebol. No período anterior, a desflorestação foi de 6,34 quilômetros quadrados.

Mapa da área degradada pelo garimpo na TIY até 2021
Mapa da área degradada pelo garimpo na TIY até 2021
– imagem: acervo do Instituto Socioambiental/ ISA

 

As mortes dos indígenas nesse caso, ocorrem direta ou indiretamente por causa do garimpo ilegal. Durante o governo Bolsonaro, haviam pelo menos 98 pontos ativos de garimpagem ilegal de ouro ativos no interior na TIY, segundo a Rede Amazônica de Informação Socioambiental (RAISG). Sua intensidade e escala cresceram de maneira exponencial nos últimos cinco anos.

Dos 37 polos-base do Distrito Sanitário existentes, pelo menos 18 possuem registro de algum desmatamento relacionado ao garimpo. Assim, o número de comunidades afetadas diretamente seria 273, abrangendo mais de 16.000 pessoas, ou 56% da população da TIY.

As populações residentes próximas às áreas de garimpo apresentam a maior ingestão de mercúrio. A contaminação dos rios e solo pela lama tóxica de mercúrio fazem com que os alimentos estejam contaminados. Isso impossibilita o consumo e resulta na desnutrição, uma vez que o peixe é a principal fonte de proteína das populações indígenas.

Dario conta que a região do Xitei é a mais afetada pelo garimpo ilegal. “Eles ficam muito perto das aldeias. Eles estão destruindo os rios aonde as crianças bebem água. Está totalmente poluído, com mercúrio e cheio de malária. As crianças ficam desnutridas por conta das doenças.”

 

Detalhe do canteiro vizinho à maloca no Xitei
Detalhe do canteiro vizinho à maloca no Xitei
– imagem: acervo do Instituto Socioambiental/ ISA

 

No dia 20 de janeiro, o governo federal decretou estado de emergência de saúde pública, para conseguir viabilizar a assistência necessária. Dez dias depois, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assinou um decreto para dar poder às Forças Armadas e aos ministérios da Defesa, Saúde, do Desenvolvimento Social, da Família e dos Povos Indígenas para barrar a atuação de garimpeiros ilegais nas terras indígenas. Os casos de desnutrição foram expostos pelo próprio presidente em visita ao Estado, no dia 21 de janeiro.

Essas medidas vêm com o intuito de melhorar a condição dos Yanomami. Mas, como eles sofrem com os mesmos problemas desde os anos 50, é muito difícil voltar à vida que tinham antes.

A antropóloga Joana Bonfim explica que o primeiro ponto para o controle do garimpo ilegal na TIY, seria o desenvolvimento e a retomada de uma estratégia de Proteção Territorial consistente. Além de uma reiteração do papel real da Fundação do Índio (FUNAI) para garantir o direito geral dos Yanomami. “Para além de um alinhamento estatal, é necessária uma mudança do modo de agir do sistema como um todo, em especial sua relação com a Terra”, completa.

Existem grandes diferenças sobre o modo como o último governo atuou em comparação ao atual, sob a lente socioambiental. O Ministério do Meio Ambiente, que antes era vinculado ao Ministério da Agricultura, agora tem a sua própria gestão. Além da criação de um novo ministério dedicado aos povos originários. “Juntamente a essas mudanças, o atual governo deve fiscalizar ativamente pontos ativos de garimpagem na TIY e auxiliar na proteção desse território, que é um direito constitucional”, afirma Joana. O Estado brasileiro é responsável pela prevenção e repressão das atividades mineiras ilegais e da utilização do mercúrio em terras indígenas, a fim de proteger o ambiente, as populações indígenas e o próprio ouro.

“Isso é uma crise sanitária desumana, é um resultado dos invasores na terra indígena Yanomami”, ressalta o líder indígena.

A força-tarefa que atua nas Terras Yanomami indica que, desde o início da operação iniciada pelo atual presidente no dia 20 de janeiro, foram destruídos 272 acampamentos de garimpeiros ilegais na região. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, também foram apreendidos e inutilizados equipamentos como máquinas para extração de minérios, motosserra, mercúrio, modens de internet via satélite, celulares, uma tonelada de alimentos, armas e munições.

Recentemente, o espaço aéreo na Terra Yanomami foi fechado na tentativa de frear a ação desses garimpeiros, mas isso não é suficiente para acabar com esse problema que vem se postergando há décadas e nunca foi resolvido. "Ao médio e longo prazo precisamos de políticas públicas que foquem na autossuficiência desses povos, para que eles possam suprir suas necessidades de forma que não se crie dependência com não-indígenas", diz Mendes.

A fim de melhorar as condições de vida dos indígenas Yanomami, o Governo Lula deve fiscalizar pontos ativos de garimpo na TIY e auxiliar na proteção desse território, que é um direito constitucional. “Ainda não sabemos qual serão as maiores dificuldades do povo Yanomami ao longo prazo já que garimpo deixa sequelas de destruição ambiental e de contaminação de solos e de fontes de água que vão requerer um tempo para serem recuperadas”, finaliza Ventura.

“O garimpo ilegal destrói e mata o ser humano, mata a natureza, mata os rios e mata as crianças”, Dario faz questão de realçar.

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Falta de amparo do Estado e preconceito são determinantes na vida dessas pessoas
por
Gabriel Tuma
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24/06/2023

Uma pesquisa publicada na revista científica JAMA pediatrics revela que jovens LGBTQIAP+ tem uma chance 50% maior de desenvolver quadros depressivos em relação aos que são heterossexuais e cisgênero, situação preocupante, ainda mais em um país como o Brasil, que pouco faz pela saúde mental destas pessoas.

O estado de São Paulo conta com os CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), com os Centros de acolhida (voltados para a população de rua) e os CCAs (Centro para Crianças e Adolescentes), entretanto, desde a posse como governador do PSDBista João Dória, estes meios de tratamento foram sucateados. A diretora de comunicação do projeto Canto Baobá e pós-graduanda em Sexo, Gênero e Direitos Humanos, Juliana Ribeiro, fala da situação destes aparatos: “Tem muita gente boa dentro desses mecanismos públicos, que estão articulando junto com o Canto e com outras esferas públicas, e conseguindo ali levar o seu trabalho, não da melhor forma possível, não da forma com que gostariam de levar, mas que estão conseguindo se mobilizar.”

O Canto Baobá, é um projeto criado pelos psicólogos Ana Albuquerque e Douglas Felix, que busca atender pessoas em situação de vulnerabilidade social e levar para além da sala de consultas o combate ao racismo, à LGBTQIAP+fobia e a todos os tipos de violência. Hoje conta com 38 psicólogos, que atendem cerca de 850 pessoas. Entretanto, o projeto não consegue atender todos os seus pacientes de forma gratuita ou com pagamento de valor simbólico.

 

Para Juliana, é fundamental que existam projetos como o Baobá, mas também é necessária uma abertura daqueles que não fazem parte das populações oprimidas: “Muitas pessoas não conseguem ver o racismo acontecendo no dia a dia, porque provavelmente são pessoas brancas, né? E que, realmente não são impactadas com as violências, são, inclusive, as que continuam mantendo essas violências no poder.”

Segundo um relatório do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o Brasil é há 13 anos o país que mais mata pessoas transgênero no mundo, somente em 2022, foram 131 homicídios notificados, número que se encontra defasado, já que dos 26 estados da federação, 11 não tem dados sobre LGBTQIAP+fobia. Segundo Ribeiro, este cenário nunca vai mudar sem que falemos desses assuntos: “A gente tem que falar, a gente precisa falar, ninguém aqui vai ficar quieto, não dá mais. Não é porque não é você que passa, você que sente, você que sabe, mas a partir do momento que você entra aqui, você vai ouvir e talvez isso seja incômodo, por quê finalmente, você está começando a olhar para essas questões.”

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