Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
por
Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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Após 28 anos de supremacia no estado de São Paulo, desentendimentos internos e dispersão do eleitorado provocam queda do PSDB nas eleições de 2022
por
Gustavo Pereira, Maria Eduarda dos Anjos Moura e Sônia Xavier
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26/11/2022
(Orlando Brito / PSDB/Divulgação)
Evento do PSDB - FOTO: Orlando Brito / PSDB/Divulgação

João Doria, ex-governador de São Paulo, anunciou que estava se desligando do PSDB no dia 19 de setembro. A saída do ex-governador, da legenda, acompanha a  queda do partido neste ciclo eleitoral. Pela primeira vez em 28 anos, os tucanos não estiveram presentes no segundo turno da votação para governador de São Paulo.
 
Isso é consequência direta da dispersão da base apoiadora, que desde o começo dos anos 2000, passando pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e o governo do presidente Jair Bolsonaro, foi de uma classe média progressista e moderada à extrema direita, como bem analisa o cientista político e membro da comissão de projetos especiais da ANPOCS ( Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), Leonardo Belinelli.
 
Os resultados do PSDB no ciclo eleitoral de 2022 foram consideravelmente baixos. Apesar de serem a terceira maior bancada na Assembleia Legislativa de São Paulo, garantiram apenas nove cadeiras, a metade de nomes eleitos pelo Partido dos Trabalhadores (18). Os tucanos também não participaram da corrida presidencial, feito inédito desde a fundação do partido, em 1988.
 
Entre 2014 e 2018, o PSDB teve grande protagonismo político. Há quatro anos, Geraldo Alckmin (PSDB) governava São Paulo, cargo que seria assumido por Doria no próximo ciclo eleitoral, com 51,75% dos votos. Já na disputa presidencial de 2014, Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) protagonizaram uma das eleições mais acirradas desde a redemocratização.
 
Mas, nem o partido nem o clima político são os mesmos, e o que se vê hoje é o resultado do acúmulo de eventos internos e externos ao partido, observa Leonardo Belinelli “É um partido com muitas lutas internas e isso desgasta, acaba tendo muita dificuldade de caminhar”.
 
Joyce Leão Martins, professora de ciência política na Universidade Federal de Alagoas, aponta como um dos pivôs o choque de imagem entre os dois partidos hegemônicos durante esse período de eleição. “A queda do PSDB tem muito a ver, em um primeiro momento, com a Lava Jato. Quando a Dilma sofreu o impeachment, tivemos um grande crescimento do PSDB . Foi o partido que mais conseguiu prefeituras no Brasil. Mas os escândalos de corrupção acabaram chegando ao Aécio Neves, o que causou um grande dano à imagem do PSDB, símbolo do 'Anti-PT'” até então.
 
Martins ainda afirma que na sociedade atual, em que a imagem é de extrema importância, as polêmicas envolvendo corrupção fragilizaram o partido tucano como um todo.
 

Aécio e Dilma durante o debate em 2014
Aécio e Dilma durante o debate em 2014 - Foto: Reprodução

Belinelli comenta que o PSDB sempre teve conflitos internos por ascensão de cargos e candidaturas: “Assim que o segundo governo FHC terminou, em 2003, [a legenda] teve muita dificuldade de se articular em torno de uma liderança que fosse capaz de empregar rumo ao partido”.
 
A soma desses desentendimentos com os intensos protestos de junho de 2013 colocou o PSDB à mercê da polarização política, a base de apoio se desconcentrou da sigla e parte dela deu corpo à nova direita. Belinelli avalia que houve uma crise de ideologia na época em “um partido que quando surgiu pretendia apresentar um programa moderno, calcado nas classes médias progressistas e promovendo uma série de reformas econômicas e sociais”.
 
Apesar de distante do primeiro posicionamento, os integrantes do partido não demoraram a responder aos novos rumos. Rosemary Seguro, cientista social e professora de Ciência Sociais no Programa de Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, avalia que Doria têm levado o PSDB mais para a direita “ele [Doria] vai levando a marca PSDB para uma extrema-direita, porém não há espaço para duas extremas-direita no cenário político nacional e ele, mais frágil nesse sentido [em comparação à onda bolsonarista], vai perdendo paulatinamente”,  complementa.
 
O “Voto BolsoDoria”, slogan que o tucano escolheu para manifestar apoio à candidatura de Bolsonaro em 2018, nutriu, desde lá, essa proximidade com a vertente mais radical.
 
Quatro anos depois, Doria seria forte opositor à administração federal por considerá-la “contrária ao combate à pandemia”, como ele mesmo colocou em diversos discursos.
 

Doria na campanha de Bolsonaro, em 2018
Doria na campanha de Bolsonaro, em 2018 - Foto: Reprodução

Mesmo tentando se adequar à classe média " peessedebista " que migrou para à extrema-direita, o partido não conseguiu quebrar com o velho jogo político. Belinelli avalia que tanto o PSDB quanto o seu rival PT representam um sistema político tradicional e o povo pedia por algo novo.
 
Orlando Silva, deputado federal pelo PCdoB, em entrevista ao Contraponto Digital, complementa dizendo que: “O apoio dos partidos de centro-direita às agendas ultraliberais, os quais retiraram benefícios dos trabalhadores e empobreceram o povo, estão por trás do avanço da extrema-direita”.
 
Bolsonaro foi escolhido como o representante da direita para carregar as esperanças contra o governo petista,  se autointitulando “outsider”, alguém que poderia subverter a política tradicional. Essa afinidade foi o necessário para que Bolsonaro e seu vice, o ex-general do Exército Hamilton Mourão, se elegesse para a presidência em 2018 pelo PSL e que, o Partido Liberal (PL), legenda de Bolsonaro nessas eleições, conquistasse maioria na Câmara dos Deputados em 2022.
 
O PSDB, pela avaliação de Belinelli, sofreu o efeito colateral da polarização, apesar de não ter sido o objeto direto da retaliação bolsonarista, e perdeu a relevância que teve no passado. 
 

Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, em evento do PSDB
Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, em evento do PSDB - Foto: Reprodução

O destino do partido ainda é incerto, e sua periferização abre espaço para agentes políticos mais perigosos, afirma Joyce Martins.“O bolsonarismo pegou um espaço que foi ficando vazio. A imagem do PSDB entra em erupção e depois do espaço da direita democrática ficar vazio, Bolsonaro pega o lugar de fala como o representante 'Anti-PT'”.
 
Martins acredita que a falta de participação na corrida para a Presidência não é necessariamente o motivo da derrota do PSDB nem o caminho de volta à soberania. Ela cita como exemplo o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que não apresentou candidato ao cargo entre 1998 e 2014, se voltando para competições estaduais e federais e outras áreas da política.
“Nós votamos por imagem e isso está para debate, e cabe ao PSDB se reinventar e buscar resgatar seus eleitores”, finaliza. 
 
A perda de protagonismo no Legislativo paulista contrasta com vitórias em Estados como Rio Grande do Sul (Eduardo Leite), Mato Grosso do Sul (Eduardo Riedel) e Pernambuco (Raquel Lyra).O deputado Marcos Vinholi (PSDB) relata à equipe do Contraponto Digital que confia nesses nomes para guiarem o partido.
 
“A renovação do PSDB será fundamental na democracia brasileira nos próximos anos. Eduardo Leite, Raquel Lira, Eduardo Riedel, Pedro Cunha Lima, Rodrigo Garcia serão nomes que terão grande protagonismo na política brasileira nos próximos anos”, afirma.
 
O deputado ainda se diz esperançoso sobre um recomeço sem esquecer das raízes do partido: “Sem dúvida, o PSDB é o partido com maior número de jovens promissores na política brasileira. Mas acredito que nossa renovação deve se dar no retorno às origens, na pauta da social-democracia, que nunca foi tão importante para o país.”
 
“O PSDB que está emergindo não é um PSDB renovado dentro do seu escopo clássico. Porque sabem que se tomarem outra direção vão perder o pouco de base social que lhes resta, no interior de São Paulo, por exemplo. Eles se veem na contingência de acompanhar essa base social”, detalha Leonardo Belinelli.

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Após resultados do primeiro turno, institutos de pesquisa são criticados e vivenciam perda de credibilidade
por
Fernanda Fernandes e Giovana Yamaki
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26/11/2022

Após divergência entre o que apontavam as pesquisas eleitorais e os resultados das urnas no primeiro turno no estado de São Paulo, foi gerado uma grande repercussão negativa por parte dos bolsonaristas em relação à falta de credibilidade das pesquisas. Em contrapartida no segundo turno, os grandes institutos acertaram. Porém, ainda assim, a discrepância alimentou um discurso que vem há tempos sendo perpetuado por Jair Bolsonaro.

Após as apurações das urnas no primeiro turno, Tarcísio de Freitas havia recebido 42,32% dos votos, Fernando Haddad 35,70% e o até então governador, Rodrigo Garcia, do PSDB, 18,4%. Mas nos levantamentos, o candidato apoiador do presidente Jair Bolsonaro se apresentava sempre abaixo de Haddad.

No Ipec, o petista estava à frente com 41% dos votos válidos e o carioca com 31%. O Datafolha e o Atlas também apontavam para a mesma média de porcentagem dos votos válidos para Tarcísio. Enquanto Haddad aparecia com uma média de 39% dos votos.

Glauco Peres da Silva, professor do Departamento de Ciência Política da USP, acredita que esses erros enfatizam ainda mais a perda de credibilidade das pesquisas por uma parcela da população, que apoia o atual presidente do Brasil. Afinal, as pessoas esperam que as pesquisas acertem o resultado, mas esquecem-se de analisar também o procedimento delas. 

O incentivo para essa grande comoção contra as pesquisas surgiu de discursos de Jair Bolsonaro, que em diversas ocasiões afirmou que as pesquisas são fraudadas. Com isso, seus apoiadores agarraram essa narrativa e quando não recebem o resultado esperado por eles, começam a criticar o estudo e sua apuração. 

O professor explica que compreender uma pesquisa de opinião não é fácil e compara a tarefa a um exame de sangue. “Você retira uma parte do sangue para ver seu estado de saúde, ninguém analisa ele todo. A mesma coisa acontece quando você vai fazer uma pesquisa, não dá para ouvir todo mundo”, diz. Ele complementa afirmando que muitos não conseguem entender que são procedimentos estatísticos complexos e com várias dimensões envolvidas.

Adrián Gurza Lavalle, professor de ciência política da USP e editor-chefe da Brazilian Political Science Review, acredita que um dos motivos para ter ocorrido esse erro nas pesquisas é que alguns institutos utilizaram o Censo de 2010, enquanto outros trabalharam com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que é mais atualizada. “Aqueles que trabalharam com o censo de 2010 representaram os grupos de baixa renda e isso produziu efeito na representação desses grupos nos resultados.”

Rafael de Paula Aguiar, pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte Mídia e Política, da PUC-SP, afirma: "Essa discrepância pode ser compreendida. De fato, as pesquisas não erraram”. O cientista político deixa claro que não dá pra falar que não teve discrepância nas pesquisas e no resultado eleitoral, mas elas precisam ser interpretadas junto ao comportamento eleitoral. 

Entre os fatores que interferiram no dia da votação do primeiro turno, ele lista que, primeiramente, existia uma porcentagem significativa de indecisos, que de última hora decidiram por um voto útil. Esses  votos foram para o candidato Tarcísio. Rafael também reforça que o fato de o político ter associado a sua imagem a do atual presidente Jair Bolsonaro, também interferiu na sua popularidade. 

Rosemary Segurado, cientista política e professora da PUC-SP, também faz essa pontuação. Ela explica que às vésperas da eleição eram visíveis, para o governo do estado de São Paulo, muitos indecisos, que não sabiam quem eram os candidatos e estavam com os olhos muito voltados apenas ao cenário nacional. A especialista aponta também que muitos eleitores de Bolsonaro optam por não responder às pesquisas, o que faz com que não consigam captar essa opinião.

Outro elemento importante citado por Aguiar é o de que a realidade do eleitor do Haddad e do eleitor do Tarcísio é diferente. A pesquisa Datafolha do dia 19 de setembro mostrou que Lula sustenta suas intenções de voto entre os eleitores mais pobres, com renda familiar de até 2 salários mínimos, obtendo 57% das intenções de voto desse grupo. Sendo assim, muitas vezes, o público petista que responde a pesquisa não vai às urnas por não ter condições de arcar com o custo da passagem. Essa problemática foi discutida, e para o segundo turno, todas as capitais do Brasil e mais 100 outras cidades ofereceram transporte gratuito para os eleitores.

Apesar de muitos especialistas políticos entenderem que esse estudo não tem como ser 100% certeiro, pelo fato de os eleitores mudarem de opinião e decidirem seu voto de última hora, manipulação e fraude foram palavras muito citadas por bolsonaristas ao se referir às pesquisas eleitorais. Uma grande parte da população, como citado acima, acredita que as pesquisas foram divulgadas visando favorecer os candidatos do PT. 

Resultados no 2º turno

No dia 30 de outubro, Tarcísio de Freitas, do Republicanos, foi eleito o governador de São Paulo com 55,34% dos votos válidos. Já Fernando Haddad, do PT, obteve 44,66%. O resultado foi o esperado de acordo com o que evidenciaram as pesquisas eleitorais, que apresentaram levantamentos semelhantes. As pesquisas analisadas foram: Ipec, Datafolha e Atlas Intel.

No último levantamento do Ipec, Tarcísio aparecia com 52% contra 48% de Haddad em votos válidos, ou seja, que não contam com brancos, nulos e indecisos. A pesquisa tinha uma margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Sendo assim, o resultado final poderia registrar 50% para cada um dos candidatos, ou 54% para Tarcísio e 46% para Haddad, esse segundo exemplo chegando bem perto da porcentagem das urnas. 

O Datafolha e a pesquisa Atlas apresentaram resultados semelhantes ao Ipec, também levando em consideração a margem de erro. No Datafolha, Tarcísio aparecia com 53% e o petista, com 47% dos votos válidos. No Atlas, o republicano tinha 52,2%, e Haddad, 47,5%. 

“As pesquisas eleitorais no segundo turno acertaram mais o resultado devido à população já estar mais decidida”, pressupõe Vera Lucia Chaia. Ela atua na área de ciência política, com ênfase em comunicação e comportamento político, ministrando aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

Para Gurza, a precisão nesse segundo turno se deu pelo menor número de abstenção, votos brancos e nulos. Ele diz que houve também ausência de voto útil e que o voto estava alinhado com as únicas opções em relação às quais os eleitores poderiam se manifestar na eleição. “No segundo turno, houve menos elementos de incertezas do ponto de vista meramente técnico.”

Devido ao maior acerto nesses resultados, houve menos manifestações em relação às pesquisas. Chaia diz que os políticos não as questionaram, dessa vez, pelo fato de terem sido eleitos pelo mesmo sistema eleitoral. 

O editor-chefe da Brazilian Political Science Review sugere como alternativa, após essas pesquisas de intenção de voto, que os principais institutos componham uma comissão para revisar os critérios que estão sendo aplicados. “É preciso averiguar as deficiências que esses critérios podem eventualmente estar introduzindo na aferição das intenções de voto.”

No entanto, Lavalle ressalta que pesquisa de intenção de voto serve para imaginar cenários futuros a partir da tendência das pesquisas produzidas e que os resultados podem realmente não coincidir. 

Criminalização dos institutos de pesquisa 

Com a repercussão negativa sobre a grande diferença entre os resultados das pesquisas e os resultados das urnas, os institutos entraram na mira dos governistas. No dia 6 de outubro, o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), sem critérios definidos, apresentou um projeto de lei que visa punir institutos de pesquisas eleitorais e seus contratantes quando os resultados de levantamentos não forem similares aos das urnas. 

O projeto propõe que os institutos que divulgarem pesquisas eleitorais publicadas 15 dias antes da data do pleito e que apresentem resultados diferentes, além da margem de erro, dos números apurados nas urnas devem ser punidos com penas de reclusão de até 10 anos e multa. Já no dia 18 do mesmo mês, a proposta foi aprovada no plenário da Câmara, tendo 295 votos favoráveis e 120 contrários. 

O projeto trata de forma radical a forma que o governo irá lidar com os institutos de pesquisa, e a medida pode trazer sérios danos à democracia do Brasil. 

Em relação a essa proposta, Aguiar comenta que é contraditório o governo apoiar um discurso de liberdade e ao mesmo tempo evitar que as pesquisas sejam feitas e divulgadas. Além de refletir sobre a importância das pesquisas para os próprios políticos, que precisam desse termômetro para dosar suas ações, propostas e campanhas. 

Rosemary reforça que a medida é uma tentativa clara de criminalizar as pesquisas eleitorais, “eles propõem punições que são até mais altas do que para os crimes hediondos. Criam um processo de deslegitimação que é o mesmo que eles fazem com as urnas eleitorais”. A professora julga que esse processo é perigosíssimo. “Não é criminalizando a ação dos institutos de pesquisa que iremos gerar um debate para que haja um aprimoramento das formas de coleta dessas opiniões.”

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Partido desponta com Tarcísio em São Paulo, observa poder no Congresso e ensaia aliança com futuro governo Lula
por
Beatriz Loss, Julia Rugai e Pedro Galavote
|
26/11/2022

 

 

Gilberto Kassab em audiência na Câmara dos Deputados. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

 

Conhecido por uma notável facilidade de transição entre os governos, Gilberto Kassab, presidente nacional do Partido Social Democrático (PSD), foi uma peça chave nas eleições de 2022 e na campanha do governador eleito do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e, agora, caminha para alinhamento da sigla ao governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

 

Há quem admire sua facilidade de transição entre os governos. Mas há também aqueles que enxergam suas movimentações como um jogo nas sombras da política brasileira. Pode-se dizer que Kassab caminha nestes dois campos e é considerado um grande articulador político.

 

De vereador à ministro do Estado, Kassab ocupou diversos cargos na política brasileira e transitou não só pelo governo Bolsonaro (PL), mas também por Dilma (PT) e Michel Temer (MDB). Diz enxergar-se como um político de centro ideológico e ressalta que o partido tem dado conta de carregar um posicionamento coletivo. “O Centro do equilíbrio, ponderação, é exatamente a saída para este cenário polarizado e, historicamente, a preferência do eleitor brasileiro tem sido o centro”, pontua Kassab. 

 

A insistência por um posicionamento coletivo, visando a “unidade do partido” - como mencionado diversas vezes durante uma recente entrevista concedida para o programa Roda Viva, da TV Cultura - fez com que o ex-ministro segurasse, a todo custo, seu posicionamento final para o segundo turno das eleições presidenciáveis deste ano. O comportamento era previsível e, enquanto é visto por alguns integrantes do partido como o movimento certo, para nomes que vagam há tempos pela política brasileira configurou a “preferência pelo jogo nas sombras dos bastidores políticos.” 

 

Kassab sempre foi uma figura presente nos bastidores. Logo na fundação do PSD, quando questionado sobre a ideologia do partido, o ex-prefeito respondeu que não era um partido nem de direita, nem de esquerda, nem de centro. Ainda assim, o ex-prefeito diz que a insistência em “pinçar” esta frase é um equívoco. “Jamais disse que o partido não seria de direita, de esquerda ou de centro. Explicava que a definição desse posicionamento seria coletiva, como de fato ocorreu”, pontua o presidente da sigla. 

 

O especialista Francisco Fonseca, cientista político e professor da PUC-SP, afirma que “essa é uma resposta muito simbólica porque com isso ele estava querendo dizer ‘olha, eu vou me adaptando aos diversos governos.’ Por exemplo, ele foi ministro de Ciência e Tecnologia da Dilma e logo em seguida aderiu ao golpe de 2016 e trabalhou com o Temer.”

 

Homem de terno e gravata com pessoas ao redor

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Dilma Rousseff e Gilberto Kassab em convenção do PSD. Kassab e Temer reativando Conselho de Ciência e Tecnologia. Fotos: Jorge Willian/Agência O Globo e Walter Campanato/Agência Brasil

 

 

Nas eleições deste ano não escolheu apenas um lado. Passou toda a campanha negociando com o então candidato à presidência, Lula, mas também apoiou o candidato de Bolsonaro no estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, uma vez que seu vice na chapa é Felicio Ramuth, parlamentar do PSD. Além disso, o partido é o mesmo de Alexandre Kalil, que foi apoiado por Lula ao governo de Minas Gerais. 

 

“O Kassab é um político muito hábil de bastidores, muito gelatinoso, pragmático e que, na verdade, não contribui pra uma vida política em relação a programas de governo. Está com o governo de um modo geral pra ser um certo intermediário de um conjunto de negócios. Aquilo que se chama de centrão, são negócios”, avalia Fonseca.

 

Mesmo com um pequeno encolhimento da bancada da Câmara dos Deputados, em relação ao número atual, a sigla encabeçada por Gilberto Kassab se exercita para projeções futuras. Em 2018, contava com 34 deputados federais. Atualmente, a bancada tem 46 e, com a eleição deste ano, somam 42 deputados federais. O cenário no Senado é diferente e o PSD ocupa a segunda maior bancada da casa, com 12 senadores, atrás do PL. 

 

O movimento, que mira uma ampliação do partido, não é de agora e tampouco será considerado o bastante com os resultados de 2022. Durante as eleições municipais de 2020, a sigla já apresentava bom desempenho quando passou de 539 para 655 prefeituras, acumulando 116 a mais que as eleições de anteriores e se consagrando como mais vitoriosa. As diferentes fotografias de pleitos antigos, e do atual, reafirmam Gilberto Kassab como um dos caciques na política. 

 

A capilaridade nacional conquistada ao longo destes anos ganhou mais fôlego durante as campanhas das eleições de 2022. No entanto, a sigla não foi capaz de lançar um candidato próprio que arcasse com a competição.

 

 

A candidatura de Tarcísio

 

Eleito governador do Estado de São Paulo no segundo turno, o candidato Tarcísio de Freitas (Republicanos) teve como uma importante força motora de sua campanha a figura de Gilberto Kassab. 

 

“A candidatura de Tarcísio e este apoio, a meu ver, foi uma percepção antecipada”, explica o coordenador de ações sociais e sindicais do PSD, Ricardo Patah. Ele diz que para o nascimento desta conjuntura, os diálogos com o partido foram além da figura de Kassab. O personagem responsável pelo sucesso desta articulação, que desembocou na parceria entre Tarcísio e o ex-prefeito, é Afif Domingos. 

 

Coordenador de campanha do candidato pelo Republicanos, Domingos é também um dos fundadores do PSD e tem como característica o trânsito entre os diferentes governos. Participou do ministério da Economia do governo Bolsonaro ao lado de Paulo Guedes e, a partir de seus conselhos, embarcou na candidatura de Tarcísio de Freitas. 

 

Patah conta que a escolha envolveu muito diálogo, comportamento que marcou os caminhos de Kassab durante a pandemia na visita de diversos diretórios em diferentes estados. Liderada por Tarcísio, a chapa foi uma das primeiras a definir o vice, Felício Ramuth, ex-prefeito de São José dos Campos, que trocou o PSDB pelo PSD no início deste ano. 

 

Kassab e Tarcísio

Kassab, Tarcísio e seu vice, Ramuth. Foto: Divulgação/Twitter

 

“Aqui em São Paulo o PSD definiu seu apoio à candidatura do Tarcísio de Freitas pois ele é o mais qualificado, honesto e bem preparado para fazer o Estado avançar, se desenvolver e melhorar a vida das pessoas que aqui vivem”, pontua Kassab ao Contraponto. Ele avalia que, diferente do PSDB, o PSD conseguiu se renovar e não enfrenta muitas dificuldades nas urnas.

 

Através de trocas de mensagem, o presidente nacional do PSDB, Marco Vinholi, comentou que enxerga Kassab como um grande articulador político e influente no cenário atual.

 

Mesmo ponderando o jogo de poderes que acontece, agora, no Estado de São Paulo, Vinholi diz que não acredita que o PSDB irá se dissipar e a articulação do PSD com o Republicanos não inviabiliza a restauração dos tucanos nos próximos anos. 

O especialista Francisco Fonseca pondera que o PSDB ainda tem muitas prefeituras no estado e que, formalmente apoiando Tarcísio, estaria participando do poder. Em um plano nacional, o partido míngua e perde protagonismo. 

“Busquei incessantemente por uma candidatura própria, e depois mesmo fora do nosso partido”, pontua Kassab. Quando questionado sobre a tentativa de candidatura, com o nome do atual presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD), o ex-prefeito paulista diz que não conquistou o apoio necessário para decolar e elogiou o desempenho de Pacheco à frente do Senado. “Vejo sua reeleição [ao Senado] como algo natural (...) e confio que será uma escolha pelo desenvolvimento do Brasil”, complementa. O nome de Rodrigo Pacheco é visto, segundo assessores do partido, como “pacificador” para o futuro. 

 

Segundo assessores da campanha de Tarcísio, o PSD já está empenhando esforços para a transição de governo no Estado de São Paulo. Em nível nacional, Kassab também já afirmou em entrevistas que a sigla vai apoiar o governo de Lula, mas quer realmente fazer parte com algumas condições. O pessedista quer indicar dois nomes para compor ministérios e quer se ‘sentir governando’.

 

“O ideal, para próximos pleitos, é uma pacificação. Acredito que com a vitória de Lula, teremos menos hostilidade”, diz Ricardo Patah, também presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Patah comenta sobre as costuras nacionais que o partido fez, com diferentes aspectos políticos e enfatiza que o partido é um dos “instrumentos fundamentais” para a pacificação política do Brasil. 

 

 

PSD como peça chave no futuro governo

 

Como bem coloca Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Inteligência Internacional da FGV, Kassab pode ser entendido como um “grande termômetro da política brasileira''. Sendo um entendedor dos ventos políticos, soube observar em quais lugares ainda há espaço para uma atuação mais assertiva, ao mesmo tempo que seus dirigentes foram liberados para apoiar tanto Lula, quanto Bolsonaro durante o segundo turno.

Com um saldo positivo na eleição de Tarcísio em São Paulo, agora, o presidente do PSD projeta nacionalmente um alinhamento mais direto com Lula.  “Kassab sabe que tem muito a pedir ao Lula, porque sabe que o PT precisa bastante do PSD”, comenta Paz. De acordo com o pesquisador, a sigla de centro será uma peça chave para o futuro governo. “A configuração do próximo congresso é difícil e vai demandar muita habilidade política para poder governar. Não vai dar para manter uma minoria”, completa.

Além de um projeto que possibilita manter Pacheco na presidência do Senado, a sigla procura por espaço para crescer. “É um momento propício para isso porque há uma mudança interessante no cenário da política nacional”, diz Leonardo.

O pesquisador da FGV explica que, enquanto os principais partidos brasileiros se desintegram - ainda que lentamente - os que não eram considerados protagonistas estão ficando maiores. O terreno é fértil para observar quais destes partidos, de um centrão que sempre foi composto por siglas médias, vão ganhar desenvoltura.

“O que está em jogo é saber quem vai compor melhor com o governo federal e quem vai ganhar mais plataforma”, comenta. Esta não é uma jogada exclusiva de Kassab. Valdemar da Costa Neto (PL), Ciro Nogueira (PP) e Luciano Bivar (União Brasil) fazem o mesmo com um possível aceno a Lula.

Neste momento, partidos que compõem o conhecido “centrão” são cada vez mais necessários para qualquer tipo de governabilidade. O PSD de Kassab está na dianteira, mas todos eles ganharam uma estatura diferente e começaram a atuar para além do antigo “blocão”. “Eles podem começar a brigar mais entre si, para ver quem vai pegar a maior fatia do poder”, finaliza.

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Novo Congresso deve tornar jornada do ex-presidente ‘missão impossível’; orçamento apertado e emendas de relator minam governabilidade petista
por
Bruno Hideki Kawagoe e Isabela Mendes
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20/11/2022

Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comemorava não somente o resultado das urnas, mas também seu aniversário — dia 27 de outubro. Com aproximadamente 53 milhões de votos, o Partido dos Trabalhadores conquistava, pela primeira vez, a presidência da República. Foi inédita a ascensão de um líder da classe operária ao cargo mais importante do país. Começava, ali, o legado do governo petista, que não apenas reelegeu Lula em 2006, como também perpetuou seu poder com a eleição de Dilma Rousseff (PT), então ministra da Casa Civil, em 2010 e 2014, sucessivamente.

Desde então, o torneiro mecânico formado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) enfrentou acusações de corrupção que culminaram na sua prisão, em abril de 2018. A absolvição, porém, veio com a comprovação de parcialidade no julgamento do caso conduzido pelo ex-juiz Sergio Moro, garantindo, assim, sua elegibilidade.

As duas candidaturas têm características semelhantes. Em ambos os pleitos, Lula formou coligação com diversos partidos da ala progressista, e emplacou como vice caciques da centro-direita brasileira: José Alencar, do PL, em 2002, e Geraldo Alckmin, recém-migrado para o PSB, em 2022 — o ex-tucano foi seu adversário nas eleições de 2006 e representa a velha guarda pessedebista, tendo sido um dos fundadores do partido em 1988.

Vinte anos atrás, o que estava em jogo era a vitória de um partido ou de outro e, claro, se a elite empresarial ganharia mais ou menos dinheiro. À época, aquele Brasil vinha de dois governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e tinha certa maturidade nas questões monetárias e compromissos fiscais. Em outubro daquele ano, o dólar, por exemplo, era negociado a R$3,85. Lula herdou, naquela ocasião, um país com reconhecimento internacional, economia reorganizada e uma democracia de massas em consolidação. 

Apesar de divergências políticas, tanto FHC quanto José Serra reconheceram e cumprimentaram a vitória do petista, ao contrário do atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro (PL). As principais diferenças estão no contexto de cada campanha. No recente processo eleitoral, o futuro da democracia esteve gravemente ameaçado por incitação direta do presidente, que desafiou as instituições e desacreditou da integridade das urnas eletrônicas incessantemente.

Pedras, pedregulhos e penedos no caminho

Lula, diferentemente de 2002, não encontrará terras férteis para plantar como da primeira vez em que foi eleito. Apesar do ex-presidente sempre ter sofrido resistência do empresariado, a eleição de Bolsonaro, em 2018, figurou uma guinada do Brasil à extrema-direita, em sintonia com o cenário político internacional que proclamou Donald Trump presidente da República dos Estado Unidos em 2016. 

Bolsonaro, que foi por 28 anos um deputado federal de pouco destaque, capturou os holofotes durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma, em que homenageou Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI em São Paulo durante o período da ditadura militar. Dilma foi presa e torturada pelo regime militar quando era ainda uma estudante. Naquela inserção, o atual mandatário começou a pavimentar seu caminho rumo ao Palácio do Planalto, atraindo a atenção da população conservadora descontente com o legado petista, que agonizava em crise.

Impulsionado pelas redes sociais, Bolsonaro se tornou um fenômeno digital assim como Trump e, em março de 2016, anunciou sua pré-candidatura à presidência da República pelo Partido Social Cristão (PSC). Contudo, sua chapa presidencial foi lançada oficialmente em 2018 pelo extinto PSL. Apesar de estar na vida pública há mais de três décadas, Jair Bolsonaro se elegeu naquele ano com 55,1% dos votos válidos contra o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT), inflamando o discurso de um candidato “antissistema” e contra a velha política. Foram mais de 57 milhões de votos que marcaram a derrocada petista.

Em 2022, quatro anos depois, com Lula livre da prisão e das sentenças que o condenaram, o Partido dos Trabalhadores apostou na popularidade do ex-presidente para derrotar a tragédia bolsonarista, marcada sobretudo pela negligência durante a pandemia da covid-19, que deixou mais de 600 mil mortos. Pesou, também, a acentuação do desmatamento da Amazônia, o aumento do desemprego e da precarização do trabalho e as tesouradas em áreas como Saúde e Educação. 

No pleito eleitoral do mês passado, o mais acirrado desde a redemocratização brasileira, o povo, após muito ser desestimulado, foi às urnas mandar a galera do “é melhor Jair se acostumando”, Jair embora, um marco da ressurreição do Lula e do PT, muito rejeitados pela classe média e pela elite nacional. No entanto, apesar da vitória suada (50,9% a 49,1%) contra quem tinha a máquina pública nas mãos – e não teve pudor de usar a seu favor – os motivos de preocupação sobram para contar. Isso porque a renovação do Congresso Nacional não trouxe tanta novidade assim. 

O partido do chefe do Executivo derrotado, o PL, ampliou sua bancada na Câmara dos Deputados em 23 cadeiras – passou de 76 para 99. No Senado, conquistou 7 assentos a mais.  Já a federação PT-PCdoB-PV, do presidente eleito, faturou 12 postos na Câmara, passando de 68 para 80 deputados, mas elegeu apenas 2 senadores, restando com 9 parlamentares na Casa Legislativa. Portanto, para aprovar Projetos de Lei, Propostas de Emenda à Constituição ou novos Programas de Governo, Lula terá que negociar – e isso significa ceder aos caprichos do Centrão, bloco político que forma maioria no Legislativo, à parte dos partidos de oposição alinhados a Bolsonaro. Além disso, a pressão dos parlamentares para a manutenção das emendas de relator, coração do Orçamento Secreto de Bolsonaro, está mais forte do que nunca. Por outro lado, a grande mídia e os eleitores estão vigilantes e cobram medidas duras para acabar com o mecanismo.

A posse de Lula como presidente da República ocorrerá oficialmente apenas no dia 1º de janeiro de 2023. Porém, já foi dada a largada para as conversas e negociações. O petista tem dialogado com Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, a fim de fazer valer seus discursos de campanha. O principal interesse em jogo atualmente é a chamada PEC da Transição, que visa garantir orçamento para o pagamento dos R$ 600 prometidos de Auxílio Brasil – que voltará a ser Bolsa Família. 

A verba para cumprir a promessa da manutenção do valor do benefício, porém, não está disponível no orçamento de 2023 elaborado pelo atual governo, que limita o Auxílio a R$ 405. Por isso, a PEC propõe retirar permanentemente o benefício do chamado Teto de Gastos, tema sensível para o mercado financeiro. A argumentação é que retirando o programa social do Teto, Lula estaria agindo com irresponsabilidade fiscal. Para os operantes do capital financeirizado, despesas como essa são inaceitáveis e causariam um “rombo fiscal” que vai “quebrar o Brasil”. 

Por isso, a cada vez que Lula falar em acabar com a fome ou com o Teto de Gastos, o mercado, certamente, irá reagir, como fez durante seu discurso no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) na semana passada. Na ocasião, a B3, bolsa de valores brasileira, caiu 3,35%, encerrando o dia em 109.775,46 pontos. O dólar também oscilou: foi a R$ 5,40, alta de 4,09%. No entanto, esse mesmo mercado, à flor da pele com as “irresponsabilidades fiscais” do ex-torneiro mecânico, não deu uma única balançada com os R$ 795 bilhões fora de Teto durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro. Portanto, cabe dizer que no meio do caminho de Lula, terão pedras, pedregulhos, penedos e tudo que tiver direito.

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A bancada das mulheres da Câmara de São Paulo ganha mais 6 parlamentares, mas presença do gênero feminino em espaços de poder ainda é tímida
por
Anna Beatriz Barreto da Matta e Vanessa Orcioli
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21/11/2022

A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aumentou sua bancada feminina de 19 mulheres para 25 candidatas eleitas em 2023. O número de deputadas no órgão estadual cresceu 31,57%. Das definidas pela população nas urnas, 13 foram reeleitas e outras 12 ou inauguraram pela primeira vez na Casa ou voltaram ao cargo após um ou dois mandatos fora.

Neste ano, segundo o veículo de comunicação Gazeta de S. Paulo, dos 2.059 nomes nas urnas disputando por uma vaga na Alesp, apenas 677 eram mulheres, o que representa 33% do total. O crescimento feminino nos espaços de poder ainda é tímido, porém, a legislatura de 2023-2026 terá a maior representatividade feminina da história da Assembleia. As deputadas eleitas no último dia 2 de outubro representam 27% do total de 94 cadeiras no Legislativo estadual. 

Embora a representatividade feminina tenha aumentado nas cadeiras do Parlamento Paulista, os dados apurados pelo TSE mostram que ainda existe uma alta sub-representatividade feminina. Se por um lado elas representam 52% da população brasileira, no outro extremo, ocupam apenas 12% das prefeituras, somente 15% do Congresso Nacional e nem 4% nos governos estaduais. Apesar de serem a maioria do eleitorado, o número de candidatas (33,6%) é quase a metade do número de candidatos homens (66,4%).

Divulgação: Carla Morando
Divulgação: Carla Morando

Partidos e suas representantes

A atuação do Legislativo estadual ficou em evidência por questões de gênero nos últimos anos. Na visão da cientista política e professora da PUC-SP Rosemary Segurado, as parlamentares eleitas souberam explorar os últimos acontecimentos polêmicos da Câmara em suas campanhas. “Em algumas campanhas foi possível notar a articulação dessas discussões importantes em relação a violência contra as mulheres e, principalmente, a violência política contra as mulheres.”

Liderando as três mulheres mais bem votadas para a Câmara neste ano, a deputada Paula Nunes dos Santos, da Bancada Feminista do PSOL, obteve 259 mil votos. Em seguida, Ana Carolina Serra (Cidadania) e Bruna Furlan (PSDB) ficaram com cerca de 190 mil votos cada uma. As parlamentares eleitas são novas no órgão estadual, e tirando Furlan, que já tinha um cargo político de deputada federal, Nunes e Serra são estreantes na política. 

Divididas por 13 partidos, as parlamentares eleitas foram contabilizadas sendo 5 do Partido dos Trabalhadores - esse com maior número de mulheres para 2023 na Alesp - 4 do Partido da Social-Democracia Brasileira, e 4 do Partido Livre. 

Em conversa com o Contraponto Digital, a deputada estadual Carla Morando enxerga que seu partido, o PSDB, equilibra a inserção feminina na política. “Sempre deixaram espaço para a presença de mulheres dentro do partido. Foram muitas as parlamentares que ocuparam quadros de primeiro escalão no governo do estado comandado pelo PSDB.

Morando contempla que as mulheres vêm sendo combativas e estão conseguindo conquistar cada vez mais espaços dentro do poder público. A deputada afirma que o interesse feminino pela política vem aumentando gradativamente. 

“A mulher já vem buscando cada vez mais a política. Esse processo vem acontecendo desta maneira, pois as bancadas femininas têm sido propositivas em suas ações, fiscalizando o debate no Legislativo e Executivo”, destaca a parlamentar.

Em um panorama geral, a sociedade tem reconhecido esse aspecto da eleição de mulheres para os parlamentos, bem como a nomeação em cargos de administrações públicas vem aumentando. “O atual momento do Brasil e Estado tem mostrado a preocupação de todos com a efetividade das ações, diminuindo esse tipo de comportamento. Ainda é necessário seguir trabalhando bastante para avançar ainda mais”, diz Morando

Para a jornalista, cientista política e pesquisadora em Comunicação e Política na Sociedade do Espetáculo, da Cásper Líbero, Deysi Cioccari, as mulheres tendem a ser combativas no campo das ideias, mas ela acredita que há certo respeito por serem minoria e um sentimento de união que existe também entre as mulheres. “O embate pode ser muito no campo ideológico, como tem que ser, mas jamais para aquele confronto que a gente vê na ala masculina mesmo, de agressão simbólica, verbal. Isso eu não acredito. Mas no campo das ideias é sempre a oposição democrática”, pontua Cioccari. 

Segundo Cioccari, um dos confrontos no papel da mulher na política ocorre devido à ligação instantânea da imagem feminina à pauta feminina. “Quando elas entram na política, parece que não conseguem ser políticas se não for longe do feminino e isso acaba afastando-as da participação política, não só da Alesp, mas como um todo.”

Cioccari afirma não ver as mulheres em pé de igualdade com os homens para discutir questões econômicas ou orçamentais devido ao machismo e misoginia instaurados na política brasileira. Essa diferença se dá também pela própria Constituição da Alesp. “Outro ponto divergente ocorre na estruturação das bancadas, quando as bancadas são femininas, há uma conversa maior, quando as mulheres discutem política, a busca é pelo entendimento. Já quando os homens discutem política, há uma certa busca pelo dissenso.”

Deysi Cioccari | Foto: Reprodução/ LinkedIn
Deysi Cioccari | Foto: Reprodução/ LinkedIn 

Crescimento da Bancada Feminina nos últimos anos

Em 2014, a Câmara contava com apenas 11 mulheres eleitas. Já no ano de 2018, o número de parlamentares femininas subiu para 19. Essa quantidade de mulheres na composição da Casa já era considerada uma marca histórica. Agora, com mais 6 deputadas eleitas, a Assembleia paulista teve um aumento de 31, 57% da representação feminina no órgão estadual. 

“O crescimento ainda é bastante lento, ainda que a gente possa e deva comemorar um aumento de representatividade feminina, não podemos esquecer que ainda estamos muito longe da paridade e da igualdade de condições”, afirma a advogada eleitoral Paula Bernardelli. 

Paula Bernadelli | Foto: Reprodução/ LinkedIn
Paula Bernadelli | Foto: Reprodução/ LinkedIn 

Esse tardio e tímido avanço decorre de um cenário influenciado por diversos fatores, como pontua Bernardelli. “Existem partidos que, em regra, têm baixíssima democracia interna, um ambiente político ainda muito machista e com muita violência política de gênero, e uma sociedade muito conservadora com relação aos papéis de gênero, que ainda não vê com bons olhos a mulher fora do ambiente doméstico e disputando espaços de poder”, diz.

Porém, em um panorama geral, a advogada enxerga com bons olhos a questão de votar e eleger mulheres, que têm ganhado destaque a cada eleição. De acordo com Bernardelli, a sociedade brasileira se encontra em um cenário mais positivo para as mulheres que lançam suas candidaturas.

Rosemary Segurado | Foto: Divulgação
Rosemary Segurado | Foto: Divulgação 

 

Legislativo e incentivo da participação das mulheres na política

Desde a década de 90, têm sido implementadas regras eleitorais com o objetivo de aumentar a quantidade de mulheres, tanto candidatas como eleitas, em eleições proporcionais. Entre elas, está a Lei eleitoral 9504/97, estabelecendo as cotas de gênero nas candidaturas. “A reserva de cadeiras no Parlamento parece ser a medida com resultados mais imediatos que poderia ser adotada. Para além e independentemente dela, são necessárias políticas de incentivo que efetivamente alterem a estrutura machista da política, protegendo e acolhendo mulheres que se lançam nesses espaços”, frisa a advogada Paula Bernardelli.

Outra lei criada para apoiar esta representatividade das mulheres na política é a Lei 12.034/2009, que transformou obrigatório o preenchimento do percentual mínimo de 30% para candidaturas femininas. 

A PEC 18/2021, apresentada pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT) e com o apoio de outros 28 senadores, procura garantir que as candidaturas femininas sejam efetivamente financiadas pelos partidos políticos. A proposta, que tem como relator o senador Nelsinho Trad (PMDB-MS), insere na Constituição uma regra que foi introduzida em 2015 na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096, de 1995): a reserva mínima de 5% do fundo partidário para a criação, manutenção e promoção de campanhas de mulheres na política.

“Quando se luta por mais mulheres na política é natural e esperado que o resultado seja um aumento de mulheres em todos os espectros políticos. As políticas de incentivo ao lançamento de mulheres trazem vantagem a todos os partidos. A ideia da luta por mais mulheres é justamente que mulheres são diversas e podem ser representantes políticas de pessoas e pautas diversas, assim como são os homens”, pontua Bernardelli.

Gabriela Rollemberg | Reprodução ABRADEP
Gabriela Rollemberg | Reprodução ABRADEP

Caminhos que incentivam transformações

Contudo, quanto mais mulheres estiverem nos espaços de poder, mais possibilidade há de se eleger parlamentares que lutam pelo direito das mulheres. “Ainda temos um caminho muito longo pelo aumento dessa representação das mulheres e acredito que isso expressa também muito sobre como é a dinâmica, tanto política quanto eleitoral, nas regiões do país”. Ela afirma que não há mais como usar as mulheres “como laranjas”,  ou seja, colocarem candidaturas que não vão ser efetivas apenas para cumprir a questão eleitoral.  

Para possibilitar a diminuição da falta de equidade e igualdade na distribuição de poder, a advogada e cientista política Gabriela Rollemberg enxerga como fundamental que a sociedade olhe para dentro dos partidos políticos.

“Precisamos notar as governanças desses partidos, para como eles destinam os seus recursos, do fundo partidário, do fundo eleitoral. E, precisamos controlar e cobrar mais coerência deles, para que se crie, de fato, um estímulo para aprimorar o que acontece hoje”, afirma a advogada. 

Do ponto de vista de Rollemberg, “hoje, basicamente, o destino dos recursos é definido pelo presidente do partido, no máximo, ou com o tesoureiro. E são sempre homens e homens brancos que definem isso. E, obviamente, essa questão tem todo um peso na perpetuação do poder dentro do partido, na forma de distribuição dos recursos e na conversão de candidaturas em mandatos”.

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