A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
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Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
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Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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Especialistas acreditam que o apoio de Bolsonaro levou à queda do tucanato em São Paulo
por
Ana Beatriz Assis, Danilo Zelic, Evelyn Fagundes e Maria Sofia Aguiar
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08/12/2022

Pela primeira vez em 28 anos, o PSDB foi derrotado nas eleições para o governo do Estado de São Paulo. Na disputa eleitoral entre Fernando Haddad (PT) e Tarcísio Freitas (Republicanos), a vantagem que levou o apoiador do presidente Jair Bolsonaro à vitória foi de 10,54%. Nesse sentido, especialistas acreditam que a ascensão de Tarcísio é explicada pela queda da importância do PSDB, em que os votos foram direcionados para uma direita mais conservadora.

No segundo turno da disputa, o candidato do Republicanos obteve 55,27% dos votos válidos contra 44,73% do petista. De acordo com dados do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), foram 6,76% votos brancos e 4,04% nulos. Em relação à taxa de abstenção, o percentual caiu de 21,63% para 21,07%, do primeiro para o segundo turno da eleição deste ano.

Na cidade de São Paulo, o candidato pelo PT, Fernando Haddad, venceu por 44,38%. Já no interior do Estado, quem venceu foi Tarcísio de Freitas. Grandes cidades interioranas como Bauru, Campinas e São José dos Campos tiveram resultado favorável ao aliado de Bolsonaro: 50,95%, 46,13% e 53,45%, respectivamente.

 

Mapa de resultados de São Paulo no primeiro turno, via: O Globo
Mapa de resultados de São Paulo no primeiro turno, via: O Globo

Bolsonarismo conquista espaço do conservadorismo tucano

Pesquisadora sobre o conservadorismo no Brasil, a professora doutora na PUC-SP Katya Mitsuko acredita que o pensamento conservador nos dias atuais, liderado por Bolsonaro e seus aliados, é um dos fatores que levou Tarcísio a ser eleito. Katya acredita na existência de uma ampla substituição do poder político tucano pelo poder bolsonarista justamente pelo discurso “personalista” que utiliza o elemento da família para chamar os eleitores, uma característica do conservadorismo brasileiro.

De acordo com Katya, a denominação de família tradicional, por exemplo, foi criada para servir como um símbolo ao cidadão conservador, uma espécie de identificação global com os pares que se identificam com essa representação. Como símbolos da família tradicional, a professora descreve essa representação utilizando o homem, a mulher e filhos. Ao fazer um contraponto com o cenário nacional, ela afirma: “Mentira, a história do Brasil deixa isso claro”.

Segunda Katya, é difícil encaixar esse padrão da família tradicional na sociedade brasileira, lembrando que as pessoas podem ter vida fora do casamento. Toma como exemplo o período de escravidão no país onde “pessoas foram casadas e amantes dos seus escravos”. “O mundo não é assim, mas, no entanto, se cria uma tradição e se pauta todo um movimento social em cima de uma tradição criada”, afirma.

Esse viés ideológico se firmou como uma forma de resposta às mudanças, com o desejo por estabilidade na condição social e econômica. Nesse sentido, Katya afirma que o pensamento conservador muitas vezes parte de uma classe mais alta, que quer consolidar sua posição na elite.

Analisando o histórico paulista, ela acredita que a força política da direita também não é de hoje e houve um longo processo histórico que perpetuou a tradição conservadora. “No meu entender, isso está estabelecido desde as bases da cafeicultura dos primórdios do republicanismo paulista. Isso é muito antigo”, afirma.  Dessa forma, a pesquisadora aponta que, ao longo dos anos, apesar do conservadorismo ter se mantido presente no Estado, ele se alterou, pois é adaptativo.  “Não dá para dizer que nós estamos falando dos mesmos conservadores de 1920 e que um sujeito conservador é imediatamente fascista”, argumenta.

Katya é moradora do município de Cerquilho, a 137 km da capital, no interior paulista, - que IDH alto de 0,782, segundo o Censo de 2010. Ela destaca que a cidade é bonita, limpa, tem transporte público gratuito e na maior parte dos anos foi liderada por partidos de direita. Por isso, segundo ela, se gera uma sensação de estabilidade no munícipe em votar na direita.

“Uma das coisas que o cerquilhense diz é: ‘Ah, vai mudar partido, mas a cidade continua’. Então também tem essa ideia de que ‘Para que eu vou votar na esquerda?’”, afirma.

Segundo apuração da reportagem, a gratuidade do transporte em Cerquilho é parcial e se baseia no serviço de “Tarifa Zero”, implementado e bancado pela gestão municipal desde outubro de 2020 e direcionado para toda população cerquilhense, cerca de 52 mil habitantes, segundo estimativa do IBGE 2020. De acordo com a prefeitura, o serviço inclui apenas algumas linhas de ônibus e com horários tabelados, não contemplando todos os itinerários de transporte público do município.

A professora destaca a religiosidade como ferramenta amplificadora para o pensamento conservador nas eleições deste ano. Associando a sensação de nostalgia ao conservadorismo, ela acredita que essa vontade de estar no passado também está presente no discurso evangélico, em que se utiliza a fé como forma de manter o passado no presente. "Os reacionários do conservadorismo acham que podem fazer a marcha ré, 'a família tradicional é o homem, a mulher e os filhos", afirma.

Outro ponto que a pesquisadora aponta sobre o conservadorismo nas igrejas é em relação à capacidade de modernização do discurso. Analisando algumas correntes evangélicas dos Estados Unidos e do Brasil, Katya afirma que essas se fundam pela tradição, mas buscam constantemente se manter atuais. "O conservador nem sempre vai se apegar apenas ao velho, muitas vezes a ideia é ressignificar a tradição de modo que ela se apresente como nova. É por isso que temos sempre conservadores presentes, eles se refazem o tempo todo", diz.

A cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), acredita que uma explicação para a direita estar muito presente no interior é a forma como o Estado desenvolve o seu crescimento econômico.

“O interior de São Paulo é muito rico. Recebe muito investimento. Tem várias empresas e, muitas delas, a direção apoia o atual presidente. Que, por sua vez, existe todo um trabalho para conseguir o apoio dos seus funcionários para o mesmo grupo político, que é o de Jair Bolsonaro”, ressalta Socorro.

Além disso, a cientista política reforça que a visão de estado mínimo agrada o conglomerado empresarial, e isso explica o motivo do antipetismo na região que, por tamanha força, representa o estado.

“A maior parte desse segmento empresarial apoia essa visão de Estado mínimo. Enquanto o PT, partidos de esquerda defendem um Estado provedor, de políticas sociais que abrangem a maior parte da sociedade, especialmente, as mais vulneráveis. Essa visão acaba se contrapondo a boa parte dos empresários que controlam as empresas no interior de São Paulo”, afirma Socorro. “Isso afeta o comportamento eleitoral dos trabalhadores dessas empresas, que podem temer seus empregos, caso venha uma força em outra direção daquelas que eles acreditam ser essencial para a continuidade da existência das empresas, o que não é verdade.”

Socorro menciona que a existência de igrejas tanto católicas como evangélicas também pode influenciar no comportamento eleitoral.

Para Monica Muniz, professora do departamento de sociologia da PUC-SP, esse conservadorismo também é representado, principalmente, pela questão fundiária, simbolizada por uma elite agrícola do interior do Estado.

Essa perspectiva contrapõe-se à visão que a maioria do eleitorado conservador tem sobre as pautas de esquerda nesse campo, como, por exemplo, o Movimento Sem Terra (MST), afirma. “Coloca muito medo nessa elite do interior. É uma elite que está enraizada e tem muito temor ligado ao discurso da reforma agrária ou do MST”, diz a professora ao CP Digital.

A queda do PSDB 

De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), nas eleições de 2022, 39 cidades da região metropolitana somaram 16,4 milhões de eleitores, e os 606 municípios do interior, 18,2 milhões. Tarcísio de Freitas venceu na maioria das cidades do interior. Ele perdeu para Haddad na capital do Estado.

Em 2018, na disputa entre Márcio França (PSB) e João Doria (PSDB), o tucano foi eleito no segundo turno com 51,7%. França teve 56,1% dos votos da Grande São Paulo e 41,2% do restante do Estado.

Em 2010, Geraldo Alckmin venceu no primeiro turno, com 50,6% - 46,4% na capital e 54,6% no interior. Em 2014, foi reeleito, vencendo em todas as cidades paulistas, com exceção de Hortolândia.

Anteriormente, em 2006, 2002, 1998 e 1994, foram eleitos José Serra, Geraldo Alckmin e Mário Covas (dois mandatos), respectivamente. Todos do PSDB.

Maria do Socorro comenta que, quando Mário Covas (PSDB) foi eleito em São Paulo ao mesmo tempo em que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foi eleito presidente, teve início a força do partido no Estado, o princípio de um apoio contínuo que a região teve ao PSDB. Essa "dobradinha" entre o diretório estadual e nacional fez com que o interior de São Paulo tivesse muitos ganhos. Houve muito investimento no interior de São Paulo.

Mas em 2022 a hegemonia do partido nas eleições do Estado chegou ao fim. Socorro aponta que a derrocada ocorre paralelamente ao crescimento do bolsonarismo no interior de SP, sinalizando a piora do PSDB no Estado. Ela explica que o fim do PSDB já podia ser visto desde a união "bolsodoria". No segundo turno das eleições de 2018, o então candidato ao Estado João Doria se aproximou de Jair Bolsonaro (PL) em uma aliança política batizada de “bolsodoria” para angariar mais votos do eleitor de direita.

A cientista política argumenta que a aliança de parcela do PSDB com o bolsonarismo construiu uma barreira entre quadros mais velhos do partido, conhecidos como “cabeças brancas”. A ala de deputados jovens do partido que apoiavam Doria votava alinhados ao presidente Bolsonaro em muitas pautas no Congresso, contrapondo-se o posicionamento dos integrantes mais velhos da legenda.

Para Maria do Socorro, essa heterogeneidade do próprio partido foi um dos fatores responsáveis pelo seu declínio. A falta de um consenso de seus membros e de uma unidade que minimizasse os problemas internos da sigla, revelou que o PSDB não deu conta de se manter popular, em comparação com outras legendas de mesma estatura e história. Socorro resume a situação do partido na seguinte expressão: “cavou a sua cova". declara Socorro.

O pensamento conservador, segundo análise de Monica Muniz, professora do departamento de sociologia da PUC-SP, é regido por uma mudança social interpretada como um termômetro que serve de orientação a esse grupo. Como lembra a professora, a história mostra que o lema ‘Deus, Pátria, Família’, utilizado como slogan político pelo bolsonarismo, esteve presente em momentos significativos no país: no movimento Integralista de 1930; na Ditadura Militar de 1964; e no atual debate político.

As transformações sociais, políticas e econômicas que ocorreram durante esses períodos, impactaram na maneira como a parcela da população que se identifica como conservadora, e seus representantes políticos, age de acordo com o momento. “É a mudança que traz essa reação. Ficam todos desesperados e vão em busca da ordem”, aponta Muniz.

 

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De boicotes a ataques aos institutos de pesquisas a tentativas de punir legalmente os que não acertem o resultado, a democracia novamente vem sofrendo ataques
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Andre Nunes Rosa e Silva, Helena Monteleone Sereza e Hiero (Nina) de la Vega de Lima
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08/12/2022

As pesquisas de intenção de voto para a eleição ao governo do Estado de São Paulo apontavam um empate técnico entre o segundo e terceiro colocados – o candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o atual governador paulista, Rodrigo Garcia (PSDB). Os resultados, contudo, apontaram grande vantagem para Tarcísio. Em um cenário de desconfiança em relação ao sistema democrático brasileiro, é importante pontuar a atuação dos institutos por trás dos resultados nas pesquisas de 2022.

As pesquisas de intenção de voto têm o objetivo de projetar possíveis resultados para as eleições. Felipe Nunes, CEO da Quaest e doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, diz que o maior desafio dos institutos foi não ter conseguido estimar adequadamente o grau de abstenção eleitoral. Ele afirma já estar acostumado a ataques, principalmente de grupos que estão perdendo. 

Nunes acredita que, para reverter essa situação, o único caminho é investir em uma educação que explicite as reais expectativas que a população deve ter a respeito do papel dos institutos. “Pesquisas são prognósticos, e não diagnósticos. Serve para retratar um dado momento da opinião pública brasileira, não devendo ser utilizadas para fins de previsão” diz, em entrevista ao Contraponto.

Segundo o Conselheiro Estadual da OAB/SP e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP Alexandre Rollo, os grandes perdedores nas eleições do Estado de São Paulo foram as pesquisas eleitorais.

O especialista ainda argumenta que existem explicações sobre os resultados coletados. Os fatores que podem ter alterado os dados, de acordo com o advogado, podem ter sido a falta da coleta do Censo antes do período eleitoral, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou o boicote por parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro às pesquisas eleitorais.

Em entrevista ao UOL News, a presidente do Datafolha, Luciana Chong, defendeu a tese de que houve uma dificuldade em coletar as intenções de votos bolsonaristas. Segundo ela, os ataques hostis à imprensa e, em especial, aos institutos de pesquisa, alteraram as proporções dos dados captados.

“No último mês, os ataques em relação às pesquisas, aos institutos, ao Datafolha especialmente, moldaram um clima de hostilidade e agressividade em relação aos pesquisadores. Em um ambiente normal, com outras condições, a gente teria captado algo mais do Bolsonaro na véspera."

Já Andrei Roman, cientista político e CEO do Instituto AtlasIntel, destacou para o jornal Correio Braziliense que existiu dificuldades em realizar cortes de rendas eficientes, além da dificuldade em registrar o "voto envergonhado", quando o eleitor não divulga seu voto até o momento da eleição por medo de represálias ou linchamento político.

Segundo a especialista em ciência de dados pela USP Paula Oliveira, os institutos devem investir no aprimoramento dos seus métodos, e assumir maiores custos operacionais para oferecer mais qualidade e confiança aos eleitores.

Boicote às pesquisas

Em 1986, o então candidato a prefeito para a capital paulista Franco Montoro (PSDB) pediu para que seus eleitores não respondessem às pesquisas eleitorais. Na época, empresas e institutos de pesquisa apontavam a vitória de Fernando Henrique Cardoso, que então estava filiado ao PMDB.

Algo similar aconteceu nas eleições para presidente de 2022, onde blogueiros e políticos próximos a Bolsonaro incentivaram a fraude das pesquisas. Durante o período eleitoral, o Ministro das Comunicações Fábio Faria clamou por boicote publicamente. “Quero dizer ao povo brasileiro: não respondam mais nenhuma pesquisa desses institutos de pesquisa, nem Datafolha nem Ipec”, diz em vídeo publicado em suas redes sociais.

Foi protocolado, neste ano, o Projeto de Lei, na Câmara de Deputados, que previa punição para institutos de pesquisa que não acertassem o resultado das urnas. Segundo a proposta, enviada pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR), a punição é de 4 a 10 anos de prisão para líderes de grupos de coleta de dados eleitorais. 

Rollo também afirma que a criação de um crime para institutos que erram resultados não é a solução, já que o crime apenas existiria como “prova de dolo de falsear” um levantamento de intenção de votos, que não se parece com o cenário atual, segundo ele.

Outros especialistas também apontam que a falta de regulamentação dos institutos de pesquisa podem causar dúvidas e questionamentos na população, porém acham o projeto de lei inconstitucional.

Segundo Turno

Sobre os resultados nas urnas, o doutor em direito constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa de Brasília (IDP/DF) Acacio Miranda afirma que o reconhecimento dos resultados é, inegavelmente, mais importante para a democracia brasileira do que manter o foco sobre os erros das pesquisas eleitorais.

“Zelar pela Constituição significa reconhecer o resultado divulgado pela justiça eleitoral, seja qual for o resultado. Eventuais questionamentos posteriores são legítimos, mas eles passam, necessariamente, por um primeiro reconhecimento que é essencial para a pacificação social”, afirma o especialista.

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O interior de São Paulo mostrou que ainda não aceita o PT ao eleger Tarcisio de Freitas para governador do Estado
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Maria Luiza Oliveira e Giulia Palumbo
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08/12/2022

O resultado das eleições para governador de São Paulo colocou em destaque a força do antipetismo no interior paulista. Tarcisio de Freitas (Republicanos) obteve 55,27% dos votos, enquanto Fernando Haddad (PT), 44,73%. As cidades do interior e do litoral foram decisivas para esse resultado. 

O eleitorado do interior de São Paulo apoia e se identifica com as pautas defendidas pelo candidato bolsonarista, como a liberação das armas, e se afasta da esquerda, diferentemente da capital, explica Vinicius Alves, cientista político e pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).  “O interior, desde sempre, tem uma mente mais conservadora, por conta do agronegócio, da religião e do que aconteceu nos últimos anos com o PT. Esses elementos ficaram fixados no imaginário dessa população e, com tudo isso, criou-se o antipetismo”, complementa. 

Não é à toa que a campanha de Tarcísio focou nos votos da população de cidades pequenas ou médias, como Campinas, Barretos e Sorocaba. Diferentemente de Haddad, que encontrou dificuldades para atingir esse público e teve que cancelar a agenda de campanha em Presidente Prudente, após receber um áudio com apoiadores do Bolsonaro combinando de hostilizar o candidato. A assessoria do petista justificou o cancelamento da passagem pela região devido à “ameaças explícitas à passagem do candidato na cidade”, disse a assessoria do petista. 

Tarcísio
Givernador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas 

“O PT hoje é um partido que se alinha com pautas da minoria: movimento negro, movimento LGBT, pautas ambientais. Então, quanto mais você sai dos grandes centros, menos essas pautas são aceitas. (...) Nessas eleições, muitas fake news foram criadas para indignar essas pessoas que têm esse pensamento mais conservador”, explica Marco Teixeira, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).  

Teixeira complementa que Haddad até tentou se aproximar desses locais, mas não foi bem aceito. Por isso, o foco maior da campanha foram os grandes centros, como na capital de São Paulo, onde obteve 54,41% dos votos, contra 45,49% do candidato bolsonarista. 

Haddad e Lula
Fernando Haddad junto com Lula em campanha. Reprodução: instagram do Haddad

Relação das cidades pequenas com a religião

Na cidade de Pinhalzinho, com cerca de 15 mil habitantes e a 112 km da capital paulista, Tarcísio recebeu 68,94% de votos, contra 31,06% do petista no segundo turno. Durante a campanha, foram organizadas passeatas a favor do governador eleito em que houve grande mobilização das igrejas evangélicas da cidade, além da participação de moradores de municípios vizinhos, como Bragança Paulista, Socorro e Amparo. A oposição foi quase inexistente nesses locais. 

Carro preto com a bandeira do brasil em cima
Passeata pró Bolsonaro que estava se iniciando em Pinhalzinho (SP)

Muitos fiéis da igreja repetiram o discurso do líder religioso. Na primeira semana após o primeiro turno, uma seguidora que não quis ser identificada, vestida com uma camiseta do Brasil, saiu de um culto com uma Bíblia em mãos e foi até a lotérica em que Giovana Silvestre, de 19 anos, trabalha para pedir voto ao seu candidato. 

Ao chegar, a cristã começou a defender a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e de Tarcísio. “Eu não entendo como alguém pode defender esse traste [Lula], e ainda querem trazer a gangue dele para São Paulo [Haddad]. Não podemos deixar isso acontecer!”, afirmou a senhora. Giovana relata que expressou discordância da fala em sua expressão facial, o que desencadeou a pergunta: “Você é petista? Por favor, não me bata. Vocês do PT são tudo loucos!” Depois, a senhora saiu brava do estabelecimento. 

O acontecimento é um retrato do antipetismo forte nas cidades do interior, reforçado ainda por um discurso religioso. O pastor da igreja, que também não quis se identificar, afirma que pede votos ao candidato Bolsonaro “pelos cidadãos de bem'', para a ‘quadrilha’ não voltar ao poder. "E para nós podermos frequentar aqui [igreja] sem sermos perseguidos."


O agronegócio com Tarcísio 

Outro aspecto que mobiliza o interior de São Paulo é o agronegócio. Ribeirão Preto, que está a 315 km da capital, se identifica como o município do agro e, não coincidentemente, Tarcísio ganhou no local com 59,56% dos votos. Um produtor de hortifruti local diz que ficou feliz com a vitória de Tarcísio, e que, diferentemente do governo do atual tucano e do ex-governador João Doria, ele tem esperança de melhorias em São Paulo e da valorização de seu trabalho. 

O empresário do ramo da mineração Arthur Silva mora em Bragança Paulista. Ele afirma que não teria como Fernando Haddad governar para ele e para a sua classe, uma vez que acredita que perderia alguns privilégios, mas não quis citar quais eram. Em seu escritório, há bandeiras do Brasil espalhadas pela parede. 

Tarcísio agradece ao interior 

“Eu agradeço muito o interior do nosso Estado, que foi fundamental nessa vitória. Vamos trabalhar muito em prol do interior. (...) Agradeço muito ao nosso interior do Estado, assim como agradeço os mais de 3,4 milhões de paulistas que depositaram esse voto de confiança e a todo o Estado de São Paulo”, discursou Tarcísio na vitória.

TARCISIO
Tarcísio em discurso de vitória. Imagens: Stella Borges/UOL

 

No plano de governo do bolsonarista, a gestão foi dividida em três segmentos: desenvolvimento social, desenvolvimento urbano e do meio-ambiente, desenvolvimento econômico e inovação. Até o momento, as pautas de transição estão alinhadas com a trajetória dele no governo Bolsonaro, sendo os principais temas de infraestrutura que atingem principalmente o interior do Estado.

 “Os problemas de infraestrutura se espalham por São Paulo, mas se concentram no interior. Há demandas de manutenção e construção de estradas, problemas de logísticas, escoamentos de produção etc. Boa parte das propostas de Tarcísio é para o interior, principalmente no âmbito da infraestrutura, que é uma demanda daquela população”, diz Teixeira.

Contudo, o governador eleito encontrará dificuldades para fazer a gestão da capital, uma vez que o ponto de atenção é a segurança pública, aspecto preocupante para esses moradores, já que grande parte não está de acordo com as medidas propostas, como a reavaliação do uso das câmeras nos uniformes dos policiais. “A segurança é o maior ponto de atenção dele [Tarcísio]. A violência é, sobretudo, um tema metropolitano”, conclui o cientista político. 
 

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Especialistas apontam que uma das razões para a falta de representação feminina, em especial dentre mulheres com condições financeiras piores, é a dupla jornada

por
Maria Ferreira dos Santos e Sofia Luppi
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08/12/2022

Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), há ao todo 156.454.011 brasileiros aptos a votar nas eleições de 2022, e desse total, 53% são mulheres. Entretanto, esse número não se reflete nas candidaturas, uma vez que candidaturas femininas são minoria. 

 Em proporções nacionais, há 224 candidatos que tentavam ser eleitos para uma das 27 vagas de governador do Estado e dentro desse número, havia somente 38 mulheres concorrendo aos cargos.  

Essa situação fica mais acentuada em São Paulo, que tem o maior colégio eleitoral do Brasil. Entre as 10 pessoas em campanha para ser o novo governador do estado, havia somente uma única candidata. A ativista social Carol Vigilar do Unidade Popular (UP), que teve cerca de 0,38% dos votos válidos.  

Na Câmara dos Deputados esse cenário mudou das eleições de 2018 para as de 2022. Antes das 70 cadeiras de São Paulo na Câmara dos Deputados, 9 foram ocupadas por mulheres. Agora esse número aumentou para 14, representando 20%. 

Mulheres de baixa renda na política 

Entretanto, como observa Danusa Marques, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, essa falta de representatividade afeta principalmente as eleitoras de baixa renda, que,  muitas vezes, não se enxergam nas poucas candidatas aptas.  

Isso porque há realidades de vida muito divergentes entre eleitoras e candidatas. “Quando há mulheres,  a maior parte delas  não têm a mesma trajetória, não compartilha de uma visão de mundo comum com as mulheres trabalhadoras, com as mulheres pobres, periféricas do Brasil”, elucida a docente. 

A falta de representatividade tanto de gênero quanto de raça e classe gera um afastamento das pessoas que não estão na atuação política. O fato de estar distante  não significa falta de interesse pelo debate.  

Pelo contrário, o que acontece, na verdade, é que o eleitorado feminino de baixa renda não consegue estar atento ao que está acontecendo no viés político devido à dupla jornada de trabalho, isto é, pela sobrecarga advinda da divisão sexual do trabalho. 

Marina Brito, doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais especializada na participação política de mulheres, explica que a dupla jornada de trabalho é quando uma trabalhadora tem tanto o desgaste com o emprego remunerado quanto com as atividades domésticas.  

Quanto a isso, a estudiosa esclarece que “há uma dificuldade em compartilhar essas responsabilidades familiares com companheiros” pois esses não sofrem uma pressão social para tal pois “aos homens não existe essa cobrança, a eles é esperado outro jeito de viver”. “Os homens têm muito mais tempo livre para participar politicamente não só na política  institucional como na própria militância, movimentos sociais, sindicatos”, completa. 

Estado de ‘viração’ 

Rosemary Segurado, pesquisadora e docente de ciências sociais da PUC-SP, ressalta que  dentro desse grupo há mulheres em famílias monoparentais que são, de fato, as únicas responsáveis pela renda e pelos cuidados, dificultando ainda mais seu envolvimento político. Segurado utiliza o termo “viração” para tratar disso. 

Segundo Segurado, esse conceito acaba por definir a vida cotidiana de uma trabalhadora cercada de preocupação. Um exemplo comum nos dias de hoje é a inserção no mercado de trabalho informal, onde direitos trabalhistas e um salário precário são a realidade e, a partir disso, a mulher precisa “se virar” para conseguir sustento. 

São nessas circunstâncias da “viração” que vive Josidalva Silveira, agente de higienização, que para chegar ao emprego que fica no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, pega três conduções e chega em casa somente às 23h. Nesse horário, por exemplo, os debates e entrevistas que passam na televisão já estão ocorrendo. Silveira acredita que se não tivesse uma rotina tão cansativa conseguiria acompanhar e entender melhor de política.   

Como essas mulheres enxergam a política? 

Já Aparecida de Oliveira, auxiliar de faxina, enxerga a política de maneira intrínseca ao período eleitoral. “De quatro em quatro anos acontece a política”, declarou. Eloides Matias, colega de trabalho de Oliveira, declarou não entender de política, mas procura saber sobre, “ ler mais, ver as propostas''. 

Apesar disso, Matias afirmou não saber quais eram os planos de governo dos candidatos ao governo de São Paulo, isso há menos de um mês para o dia das eleições. “Ainda não, ainda não tive tempo de ver as propostas. Por conta do meu horário [de trabalho] não tive tempo”, finalizou. 

Quatro coisas específicas unem essas mulheres: a condição de baixa renda, a sobrecarga, falta de tempo e a indecisão acerca de seu voto mesmo com a proximidade das eleições.  

Tendo isso em vista, Marques completa. “A decisão do voto está orientada pelas informações e pelas condições que as pessoas têm para tomar essa decisão. Então, se a pessoa não tem boas condições, ela não tem informação, não tem tempo para pensar, não tem nada. Vai seguir como se fosse uma coisa desimportante”.  

Outro ponto interessante sobre o perfil eleitoral desse grupo é a perspectiva acerca das políticas públicas. Quando questionadas a respeito, Josidalva Silveira e Aparecida de Oliveira responderam que essas ações não as afetam em nada, nem sequer notavam essas políticas públicas. Matias seguiu com o mesmo raciocínio: “Não sei te dizer por que não me afetam. Eu não consigo ver muita coisa, mas eu sei que afetam muita gente”. 

Essa “muita gente” que Matias cita deveria, em tese, corresponder a elas também. As mulheres de baixa renda, inclusive, são as pessoas que mais utilizam o serviço público, segundo as pesquisadoras.  

Segurado compreende que “quando elas dizem ‘Eu não sinto que a política pública chega a mim’,  nós estamos falando do posto de saúde, da escola pública, é que ela nem identifica isso como política pública pela precariedade dessas ofertas”. A docente ainda acrescenta que as mulheres são o principal público de políticas públicas pois normalmente são designadas, pela sociedade, a zelar e gerenciar a vida de seus familiares.  

Sob essa perspectiva, Segurado afirma que “elas querem ser cuidadas pelo Estado para que elas possam cuidar também dos seus com algum nível de qualidade”. A docente ainda ressalta que, por passar pelos em serviços públicos, a mulher querendo ou não, torna-se um ótimo parâmetro para se saber como essas ações estão atuando de fato.  

As mulheres que se encontram nas classes mais baixas têm um perfil eleitoral heterogêneo. Quase todas elas se encontram em trabalhos terceirizados ou informais, costumam ser o sustento da casa e possuem uma dupla jornada em seu cotidiano que impede de estarem, na opinião delas próprias e de especialistas, ativa nas questões políticas.  

Por isso, traçar sua intenção de votos ou viés político é tão complexo. Sobre a ausência delas em espaços de poder, Marina Brito declara: “Para uma mulher dessas conseguir se eleger, ela precisa mover montanhas”. 

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Cidades

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Com propostas duras para segurança pública, o governador eleito preocupa especialistas, que temem um retrocesso de boas ferramentas da segurança pública que demoraram décadas para serem implementadas
por
Carlos Englert, Pedro Catta-Preta e Rafael Felix
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08/12/2022

Apesar das expressivas melhoras estatísticas dos dados de violência policial no estado de São Paulo, Tarcisio de Freitas segue flertando com a ideia de retirar câmeras corporais e mantém um discurso favorável a uma “linha dura” da polícia. No primeiro semestre de 2022, houve uma redução de 60% na letalidade policial do estado de São Paulo em relação ao primeiro semestre de 2020. As mortes desses agentes do Estado também diminuíram substancialmente nos últimos anos.

Durante toda a sua campanha, Tarcísio de Freitas foi contra a implementação de ferramentas que freassem o poder de fogo policial, principalmente as câmeras corporais, dizendo que as extinguiria caso fosse eleito. Tais câmeras tem o propósito não somente de diminuir a corrupção e a violência policial, mas também de defender os agentes da lei contra falsas alegações de abuso de poder, por exemplo.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) é uma das maiores do país, tanto no quesito de contingentes quanto na verba. De acordo com relatório do Monitor de Violência do G1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, até 2020, a polícia de São Paulo também era uma das que mais matava, com uma taxa de mortes de 814 pessoas a cada 100.000 habitantes, número que caiu 30% em 2022. 

O estado também apresentou uma redução de 49% nos policiais mortos em serviço entre os anos de 2020 e 2021, opondo-se à alta de 44,1% entre 2019 e 2020.

Com a eleição do governador bolsonarista, no entanto, esses números podem voltar a crescer. Tarcísio é abertamente favorável à uma polícia mais dura e alega, por exemplo, que batalhões estão “perdendo produtividade” por conta das câmeras corporais. Ao seu lado, o governador conta com a bancada do PL, a maior eleita, e com o apoio de uma ampla ala bolsonarista na Câmara.

Para o sociólogo e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, a queda da letalidade policial se deve a uma mudança do governo Dória na área da segurança pública, principalmente a partir da segunda metade de 2020, após o Massacre de Paraisópolis, quando Dória passou a se distanciar do discurso de Bolsonaro, quem o ajudou a se eleger em 2018.

Em 2019, uma intervenção desastrosa em um baile no bairro Paraisópolis culminou na morte de nove jovens. Os policiais encurralaram a multidão, causando uma série de pisoteamentos.

Entre 2019 e a primeira metade de 2020, cerca de 30% das mortes violentas no estado foram cometidas pela Polícia Militar, números estes que são computados juntamente com casos de homicídio e latrocínio. “Em certos bairros, como Heliópolis, se fosse retirado da conta essas mortes, o número de pessoas mortas cairia mais da metade”, comenta Rocha.

“Houve então uma tentativa de mudar o modelo de segurança pública, principalmente o controle do uso da força”, explica o sociólogo. Entre as mudanças estão: o investimento em armas não-letais, como os tasers e o uso de câmeras corporais.

Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação
Câmera acoplada à farda da Polícia Militar de São Paulo Governo de SP/Divulgação

Conforme apontou Rafael Rocha, essas e outras questões mostram um projeto de segurança pública falho, e muito contraditório: “Ele disse, por exemplo, que não era necessário colocar mais câmeras nos policiais, mas sim tornozeleira eletrônica nos bandidos. Mas uma coisa não exclui a outra, é muito simples”

Tarcísio de Freitas já voltou atrás em alguns de seus posicionamentos, no entanto, mesmo que não descontinue as câmeras, pode sucatear o sistema que as sustenta. As câmera corporais exigem uma estrutura para transmitir, armazenar e analisar as imagens.

“O Tarcísio pode acabar com as câmeras sem acabar com as câmeras. Se o custo político for muito alto, ele pode sucatear a estrutura por trás”, comenta o sociólogo.

Alan Fernandes, Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e Doutor em Administração Pública e Governo, afirma que as mudanças na PM de São Paulo também reduziram as mortes de policiais militares.

Para Fernandes, isso se deve a duas razões: a primeira delas é que, em razão das câmeras, policiais militares em campo buscam estratégias para evitar o confronto armado, o que reduz tanto a letalidade de suas ações, como os coloca em menores níveis de risco. A outra razão é que as câmeras corporais teriam a capacidade de mitigar ações violentas por parte dos agressores não-policiais.

O coronel explica também que existe um discurso político que coloca a polícia como última salvação perante a criminalidade e estimula policiais a arriscarem suas vidas para o cumprimento do dever. Para Fernandes, isso funciona como agravante da mortalidade policial: "Mensagens messiânicas que invocam o papel dos policiais na luta contra o “mal”, lançam-os em ações arriscadas, em que o saldo de vidas perdidas, de quaisquer lados do cano de um fuzil, é resultado aceitável. Não deve ser!"

Dados da GV Executivo apontam que entre o terceiro e o quarto trimestre de 2021, os batalhões que faziam parte do programa Olho Vivo, apresentaram redução de 63,6% e 77,4% na letalidade provocada pelos PMs em serviço, demonstrando a eficácia das câmeras corporais.

Para Rafael Rocha, a imagem dos policiais perante a sociedade também melhorou e grande parte dos agentes sendo contrários ao projeto de extinção das câmeras: “É engraçado achar que a câmera desabona o policial, pelo contrário, esses policiais tem preocupação com a imagem da instituição, eles sentem que isso os qualificou”

O estado de São Paulo pode influenciar o debate sobre as propostas de segurança pública em outros estados, explica David Marques, doutor em sociologia pela UFSCar e Coordenador de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

"São Paulo reduziu em 30% o total de vítimas de letalidade policial, fato em grande medida atribuído às mudanças institucionais pelas quais vem passando a Polícia Militar desde meados de 2020", comenta Marques.

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