Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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Forçada a se casar com o primo ainda na adolescência, Val deixou o interior de Minas para reconstruir a própria vida em São Paulo.
por
Nicolly Novo Golz
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30/05/2025

Por Nicolly Golz

 

Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.

Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.

Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.

Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.

Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.

Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.

O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.

Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val. 

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Em diferentes setores, relatos revelam o impacto direto da automação na vida de profissionais dispensados após a chegada da inteligência artificial.
por
Arthur Rocha
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20/06/2025

por Arthur Rocha

As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.

Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.

No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".

Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.

Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.

O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.

Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.

Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.

Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.

Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.

O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.

O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.

Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.

As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.

 

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Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
por
Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma. Essa, é uma virtude e o maior sufoco de uma pessoa que trabalha diariamente tentando preservar vidas
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Beatriz Alencar
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20/06/2025

Por Beatriz Alencar

 

A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.

Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.

A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.

Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.

A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.

Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.

Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".

Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.

O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.

Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.

A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.

Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.

No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.

As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.

Como tudo começou

Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.

Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento. 

Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.

Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.

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O aumento pela busca do lado humanitário e ecológico da moda volta a trazer à tona os bastidores da indústria
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Ana Vitória Borges, Anna Ferreira, Beatriz Lauerti, Bruna Janz e Camilo Libério
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02/05/2021

Imagem: Joanna e Marc Bolland, CEO da Marks & Spencer, na East London Street coberta por roupas descartadas para realçar o problema de roupas indo para o aterro. 


O mercado da moda movimenta por ano cerca de 2,3 trilhões de dólares no mundo. São cerca de 100 milhões de toneladas de fibras processadas em escala global. Nesse setor, o Brasil é responsável pela 5ª posição mundial, e somente por aqui são geradas cerca de 100 mil toneladas de lixo todo ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Mas, a indústria têxtil, bastante rentável, está vendo seu antigo modelo Fast Fashion - produção em escala, rápida e que segue a lógica do descarte - perder espaço substancialmente à Slow Fashion - conceito de moda que pauta a ecologia no processo industrial, preservando as pessoas e natureza. Tendência ainda mais urgente com o início da pandemia.

Depois de décadas de um modelo de produção que prioriza o lucro, condições precárias de trabalho em várias partes do mundo e o descarte exacerbado de lixo, novas tendências, estratégias e meios de produção surgiram. Isso está ligado à pauta ambiental, que vem ganhando maior visibilidade devido às crises enfrentadas pelo mundo atualmente. A inovação pensada na redução dos impactos ambientais se faz necessária, assim como a consciência social, de quem produz e de quem consome. A relação entre moda e sustentabilidade está conquistando cada vez mais espaço nos últimos anos. A Internet, as mídias digitais e grande parte da geração Z são responsáveis pelo movimento que exige cada vez mais um olhar crítico para a procedência e uso cotidiano da moda.

A Abit realizou um painel online com o tema Como a Indústria da Moda Está Cuidando do Seu Lixo, no dia 1º de abril do ano passado. Para responder à pergunta “O que fazer com o que nós geramos?” Fernando Valente Pimentel, presidente da Associação, apontou que a melhor forma de não poluir é fazer isso desde o início, ter uma concepção do produto. Como observado por Pimentel, o começo dos processos deve ser modificado para uma possível solução da questão ambiental no mundo da moda.

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Intervenção artística War on Waste, por Hugh Fearnley-Whittingstall (Foto: https://www.edie.net/news/5/Hugh-Fearnley-Whittingstall-War-on-Waste-fashion-sustainability/)

Nesse sentido, a estudante de moda Marina Guimarães, 21 anos, que é aluna da Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, comentou que não existe uma disciplina específica na graduação sobre o assunto, mas os professores buscam incluir isso nos temas que abordam. “Os professores fazem a gente pensar nessa questão e a influência dela em todos os aspectos que estudamos. Em todas as matérias, a relação com o meio ambiente é evidenciada, além da realização de palestras sobre sustentabilidade”, relatou.

Marina afirmou que o maior problema hoje em dia é o uso da água. “Um jeans para ser feito, precisa ser lavado muitas vezes. Na hora de tingir os tecidos, também se gasta muita água”. Outro ponto destacado foi a volatilidade da moda e a geração de lixo. “Hoje você quer ter uma determinada blusa que está em alta, e semana que vem quer comprar algo que é uma tendência nova. A compra excessiva e o descarte incorreto das roupas contribuem para a poluição. As próprias marcas deveriam informar aos clientes o jeito certo de se desfazer da peça.”

Cerca de 80 bilhões de peças de roupas são adquiridas a cada ano, de acordo com o estudo “A injustiça ambiental global da moda rápida”. Nesse sentido, a estudante ainda evidenciou o papel relevante dos consumidores no processo de mudança para que o mundo da moda se torne um meio mais sustentável. “É preciso prestar atenção à vida útil das vestimentas. Comprar aquilo que realmente vai ser usado por um bom tempo”.

Ela também falou sobre tendências inovadoras para evitar a geração de lixo ou o descarte inadequado, e apresentou a técnica chamada de Upcycling.  “É possível juntar duas roupas, costurar e transformar em algo diferente. Não precisa nem ir longe. Por exemplo, posso pegar uma camiseta, cortar, e terei um top. A proposta muda totalmente e você fica com uma peça nova.” Dois exemplos da transformação do mercado são a Zara e a Forever 21, impactadas principalmente pelo modo insustentável de produção têxtil e sua decadência. Das duas empresas, a Zara resolveu se reinventar para uma abordagem mais sustentável aos olhos do público, assim como a Riachuelo, que deixa em suas propagandas e etiquetas informações de que aquela roupa foi feita em um processo mais eco amigável. Apesar disso, essas empresas ainda são acusadas de trabalho escravo/infantil para a produção de suas roupas. Já a Forever 21 resolveu continuar com sua abordagem Fast Fashion sem mudar nada sobre o propósito da empresa, o que resultou em perda de lucros e consequentemente na declaração de falência do conglomerado.  

Para Natalya Picheictt, fundadora da marca Slow Fashion FAMME, a primeira coisa que vem a sua mente ao pensar em sustentabilidade é progresso. “Assim como assuntos como veganismo levantam bandeiras ambientalistas, muitas vezes você pode olhar pra dentro do teu guarda-roupa mesmo e ver que a moda também é uma forma de você ajudar o meio ambiente sem fazer muito”, ressaltou. Reutilizar roupas ou pensar em doá-las ou mesmo comprar alguma peça pensando na sua longa duração já é um grande passo. Para a empreendedora, o mais difícil ao iniciar um modelo de negócios sustentável é saber a procedência dos materiais utilizados em sua marca. Além da pesquisa para encontrar os fornecedores certos, é um desafio também rastrear toda a cadeia.

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Com o avanço dessa nova tendência, novos movimentos surgem para atingir o maior número de adeptos. Um deles é o Fashion Revolution, ONG criada em 2013 que, com atuação em mais de 100 países, opera para uma moda limpa, segura e responsável. Como uma rede de designers, acadêmicos, escritores, comerciantes, marcas e qualquer pessoa “amante da moda”, realiza anualmente a Fashion Revolution Week, evento para o debate dos temas acerca da moda. Em 2021, a Semana que se encerrou no dia 25 teve como tema central os Direitos Humanos, Natureza e Revolução Sistêmica. Onde seu principal objetivo, em 7 dias de evento, é a mobilização de pessoas para além de suas realidades. Para Ana Carolina Olyveira, representante da Fashion Revolution no Brasil, a sustentabilidade ainda é uma bolha. Por que não pensar ao invés de um sistema linear, num sistema circular, onde os produtos sejam reutilizados? O conserto é uma das formas de se pensar ecologicamente. Segundo Ana Carolina, o evento também faz perguntas às próprias marcas. O fator pandemia fez com que as pessoas parassem para pensar sobre sua relação com o que vestem. “Pessoas começaram a olhar o que têm no guarda-roupas”. Por outro lado, também fez pessoas comprarem mais através da Internet.

A sustentabilidade não significa produtos mais acessíveis financeiramente. Pelo contrário. Roupas e acessórios provenientes do Slow Fashion ainda são inacessíveis para parcela de baixa renda da população. Mas cada vez mais a tendência é de transformação de hábitos. Segundo a empreendedora e representante do Movimento, parte dessa mudança vem do consumidor. É preciso também questionar e cobrar as marcas para serem mais flexíveis.

 

Ao mesmo tempo, frente a essa nova tendência comportamental, os preços atrativos do modelo Fast Fashion ainda sustentam a suposta necessidade de consumo desenfreado. Apesar desses delírios por peças de vestuário não ser algo recente, a consolidação dos e-commerces e a publicidade das marcas nas redes sociais, especialmente no Instagram, colaboraram para um aumento no frenesi pela prática. No entanto, para que essa rede de consumo se sustente e alguns possam se deleitar com uma nova vestimenta, muitas das empresas assumem um sistema de exploração e abuso de seus funcionários, mesmo dentre aquelas que se promovem com a sustentabilidade.

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O mercado da moda possui uma notória relação com a escravidão contemporânea. Em 2018, a fundação Walk Free, através de uma pesquisa efetuada pelo The Global Slavery Index, apontou a moda como o segundo setor com maior exploração de trabalho análogo a escravidão. No mesmo ano, o Índice de Escravidão Moderna divulgou dados mostrando que dos 354 bilhões de dólares em itens importados para países do G20, - produzidos através de mão de obra escrava – um terço são peças de vestuário.

Não são poucas as marcas que já estiveram ou ainda estão relacionadas a práticas de exploração da força de trabalho, ocorrendo principalmente em países subdesenvolvidos. Durante a década de 1990, a Nike foi incriminada por utilizar mão de obra infantil em suas fábricas na Ásia. Nos últimos dez anos, a Renner, Marisa e Pernambucanas estiveram envolvidas com a exploração de costureiros bolivianos trabalhando de forma análoga à escravidão. Sem contar a Zara, que já foi flagrada mais de três vezes submetendo trabalhadores estrangeiros a situações degradantes e de abuso.

A ONG Repórter Brasil forneceu dados apontando que no território nacional mais de 35 marcas do setor estiveram relacionadas ao trabalho escravo e, desde 2010, foram resgatados mais de 400 costureiros e costureiras em condições análogas à escravidão. O relatório da Walk Free também indicou a existência de mais de 40 milhões de pessoas colocadas nessas condições de trabalho dentro do setor da moda - considerando um cenário mundial – sendo que 70% desses trabalhadores são mulheres.

Esses índices expressivos se devem a cadeia de produção da moda, especialmente àquela conhecida como fast fashion, que almeja maior produtividade em suas fabricas pagando menos pelos serviços e obtendo maior lucro com as vendas no varejo. Essa tática de produção é a mais seguida pelo mercado, o que já proporciona a venda de aproximadamente 80 bilhões de peças de roupas por ano ao redor do mundo. Para a manutenção desse sistema, muitas marcas de moda passaram a migrar suas fabricas para países com legislação mais favoráveis – como Índia, China, Coreia, Bangladesh entre tantos outros.

Tal medida já proporcionou, por exemplo, que Bangladesh se tornasse o segundo maior exportador de vestuários do mundo, movimentando US$ 28 bilhões na economia do país, conforme informações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Contudo, a invasão da indústria da moda nesses países não traz apenas benefícios econômicos. Em 2013 ocorreu a tragédia do edifício Rana Plaza, localizado na periferia da capital de Bangladesh, na qual uma construção de oito andares desabou deixando 1.133 pessoas mortas; nela 2 mil funcionários que recebiam aproximadamente R$360 para trabalhar - durante 10 horas em seis dias na semana - para fabricas de cinco confecções estadunidenses.

A tragédia do Rana Plaza foi o estopim para o surgimento da Fashion Revolution. Ana Carolina Olyveira explica melhor acerca das reflexões promovidas pela campanha: “A #quemfezminhasroupas é uma das principais do Fashion Revolution. Quando a gente pergunta "quem fez minhas roupas?" a gente quer saber o nome da pessoa que faz a sua roupa. Às vezes respondem "ah, foi tal confecção", mas quais foram as condições de trabalho nessa confecção? Como essas pessoas trabalham? Do que as minhas roupas são feitas? Quem cortou minhas roupas? Quem bordou minhas roupas? Então é um questionamento muito mais a fundo que se estende.”

Sobre o mercado nacional, ela ainda diz: “entre 2016 e 2018, a cada cinco trabalhadores resgatados nessa situação análoga à escravidão, quatro eram negros. Então, é além, você vai percebendo que a questão vai ficando mais profunda, porque aí vira uma questão estrutural”.

O Brasil é o quarto maior produtor de roupas mundial, faturando de US$ 55,4 bilhões em 2014, proporcionando 1,6 milhão de empregos e tendo 85% da produção consumida dentro do país, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). E assim como em Bangladesh, existem inúmeras histórias de flagras e tragédias envolvendo exploração de mão de obra escrava – principalmente estrangeira oriunda da Bolívia – nas fábricas das confecções.

Em 1995, o Brasil foi uma das nações pioneiras em reconhecer oficialmente as práticas de trabalho forçado em sua extensão. Institucionalmente o país possui certo programa de combate a essa forma de exploração, com uma legislação regulamentando práticas de trabalho, um Código Penal prevendo pena de 2 a 8 anos para o cidadão que explorar seus funcionários e com a “Lista Suja” – um recurso para registrar e divulgar empregadores irregulares.

Já em 2005 houve uma CPI do trabalho escravo na Câmara Municipal de São Paulo, proporcionando que Auditores-Fiscais do Trabalho pudessem usar o poder público no combate ao trabalho escravo na indústria paulista de moda. Em 2009, também houve articulações políticas para a proteção do trabalhador imigrante, o que resultou na homologação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções.

Além das medidas em âmbito político, ONG’s e instituições colaboram na conscientização da população acerca do tema. O aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, reúne informações de diversas marcas sobre seus envolvimentos na exploração de mão de obra escrava e avalia as ações adotadas pelos varejistas do país; o que permite ao consumidor se conscientizar sobre a produção da peça que será consumida.

Diversos projetos também surgem diariamente, tornando-se fortes aliados na divulgação e na conscientização acerca dos problemas no mundo da moda. Uma iniciativa que surgiu nas redes sociais é o Devagarzin, instagram criado por Srah Rabello como trabalho de conclusão do curso de publicidade, em 2017. No qual tem o propósito de informar os consumidores sobre as marcas, a partir de análises de campanha. Dando assim, a oportunidade para os consumidores de pensar e refletir se o que consomem é o mesmo em que acreditam. Para ela, as principais mudanças hoje se dão através da Internet e de propostas como a dela: “a Internet e as mídias sociais trouxeram poder pro consumidor, [...] que começa a entender o papel dele de exigir das marcas o que ele quer. Então agora o poder vai mais para a mão de um consumidor que tem melhor acesso à informação e que entende mais as consequências da sustentabilidade. Com isso, o movimento sustentável, o movimento slow fashion, vêm crescendo muito”.

Outro projeto que se consolidou através das redes sociais é o Não É Moda, instagram criado no início de 2020 junto com o podcast Esse Não É Um Podcast Fashion, por Gabriel Coutinho e Rafaella Parma diante da insatisfação de não encontrar tantas pessoas expondo tais problemas de maneira popular. Para eles, a melhor maneira de mudar esse cenário é através da cobrança das marcas e também do aprendizado. “é uma questão de transparência, de cobrar, de perguntar “quem são os seus trabalhadores?”. Você está remunerando para que eles tenham uma vida digna? Que eles tenham um mínimo de condições de sobreviver? Você está dando condições para esse(a) trabalhador(a) também poder consumir uma outra moda, ou ele(a) está só fazendo porque precisa do mínimo pra poder dar comida pros filhos?”.

A tendência mundial de mudança comportamental no mundo da moda veio para ficar. O próprio movimento Slow Fashion e a urgência quanto ao cuidado ambiental se tornaram ainda mais evidentes, levando muitas pessoas a se questionarem sobre o modo pelo qual se relacionam com suas próprias roupas e acessórios. Esse movimento, influenciado principalmente pelas gerações Z e Millenials, é um novo respiro no modo insustentável de produção têxtil, nas questões trabalhistas e no pensamento cíclico de consciência, desde o início do processo até seu final. A reutilização dos artigos de vestimenta é uma âncora também para a fiscalização e exigência de mais e mais consumidores conscientes para que as marcas erradiquem a escravidão contemporânea.

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Brasil teve 12 denúncias por hora em 2020 segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
por
Beatriz Lauerti
|
06/04/2021

    A violência física contra as mulheres é a mais conhecida, mas não é a única. Existem pelo menos 5 tipos previstos na lei Maria da Penha, sancionada em 2006 e que visa prevenir e proteger o público feminino dessas hostilidades.

    Além das atitudes que interfiram na integridade corporal, a agressão acontece na forma psicológica, sexual, patrimonial e moral. Relacionamentos abusivos, assédios, estupros, privação ou destruição de bens, recursos pessoais e outros relacionados a dinheiro, e calúnias, são alguns exemplos na prática. Não ocorrem isolados uns dos outros e são considerados violação dos direitos humanos.

    Atualmente, o movimento feminista tem ganhado mais força, e os outros modos de opressão têm sido disseminados. A informação é uma parte importante na luta em favor da causa.

    Um exemplo disso pode ser visto no caso Marielle Franco. A vereadora, mulher e negra, foi assassinada no dia 14 de março de 2018, vítima de violência política. A fatalidade gerou repercussões e manifestações em larga escala.

    A investigação permanece inconclusiva e estão em aberto, 3 anos após o ocorrido, as principais dúvidas, como quem foram os mandantes da execução e o motivo. Outro questionamento que pode ser feito é: porquê os conhecimentos sobre a causa, que afeta uma grande parcela das cidadãs do mundo inteiro todos os dias, dependem de tragédias para serem propagados com maior intensidade?

    Esse é um ponto que ainda precisa evoluir, apesar das conquistas que a luta feminina vem alcançando. Outro fato que explicita essa necessidade de mais avanço são os dados de um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde. A pesquisa constatou que um terço das mulheres do mundo, o que representa cerca de 736 milhões de pessoas, já sofreram com a violência de gênero.

    Ainda, a OMS destacou que os agressores geralmente são os parceiros ou indivíduos próximos. Thedros Ghebreyesus, diretor da entidade, revelou que do número exposto, 641 milhões dos crimes foram de responsabilidade do companheiro.

    As conclusões mostraram que o sofrimento tem começado cada vez mais cedo e das adolescentes de 15 a 24 anos, 25% já esteve envolvida em algum episódio. O líder também comentou que esses casos estão presentes em todas as culturas e países. Isso é visto na prática, a partir de depoimentos de meninas dessa faixa etária.

    A estudante de Moda Marina Guimarães, de 20 anos, citou circunstâncias vivenciadas em festas universitárias, e na visão dela “é um ambiente que concentra algumas dessas situações com frequência, principalmente o assédio, já que quase todas as vezes presencia garotos insistindo ou até mesmo forçando meninas a beijá-los, por exemplo”.

    Já a estudante de Psicologia, Ingrid Guillen, também de 20 anos, relatou o medo de andar sozinha na rua, especialmente para ir até a academia. “Eram 4 quadras para chegar na SmartFit, e eu recebi 5 cantadas, ou seja, mais de uma por quarteirão. Foi um dos dias que fiquei com mais medo de voltar para casa depois do treino, e eu sempre ficava muito nervosa, já que roupa de academia é apertada e marca mais o corpo. Eu nunca podia ir de shorts, porque já faziam tudo isso comigo de calça, imagina se eu estivesse de shorts. “

    Segundo Thedros, os desdobramentos da pandemia de Covid-19 agravaram o cenário. Ele disse que os governos devem possibilitar maior acesso e investir mais em oportunidades para essa parte da população, e assim reforçar o combate à violência.

    Além dos casos citados, milhares de outros acontecem a todo momento. 12 denúncias foram feitas a cada hora no Brasil em 2020, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o que mostra a grande incidência da opressão contra as mulheres, dentro e fora das casas e do núcleo familiar delas.

No combate à violência contra a mulher, A GAZETA lança projeto "Todas Elas"  | A Gazeta

Moça protesta em favor do combate à violência contra as mulheres.

 

    Essas informações e os relatos só evidenciam a insuficiência de recursos para realmente combater todos os modos de violência contra o público feminino. Ficam explícitas a necessidade e a urgência em melhorar o apoio, os meios, auxílios e instrumentos para ajudar as vítimas e para evitar que o número de atingidas aumente cada vez mais.

    A intervenção do governo e de líderes mundiais é essencial, principalmente quanto ao investimento em educação em todos os países, e em políticas públicas de defesa e proteção das mulheres. A comunidade e a imprensa também têm um papel importante nesse processo.

    Exemplos de atitudes que seriam colaborativas são a criação de programas que desconstruam o machismo enraizado na sociedade, o apoio a entidades dedicadas à causa, a divulgação de informações para que todos entendam a gravidade do assunto, reforçar a relevância da união para lutar contra isso, incentivos para que os agressores sejam denunciados, e todos os esforços possíveis que contribuam e possam salvar vidas femininas.

 

 

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Mulheres trans vivem uma luta constante contra o preconceito do Feminismo Radical, o Radfem.
por
Luiza Nascimento
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30/03/2021

Quando falamos sobre feminismo, a imagem que vem à mente é um grupo de mulheres unidas, lutando contra o patriarcado e defendendo umas às outras com unhas e dentes. Essa imagem, no entanto, está longe de ser a realidade vivida pelo movimento, que ao longo das décadas se dividiu.

Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas.
Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas. | Foto: Reprodução.

Essa necessidade de separação surge das divergências de luta e da visão que cada mulher possui do movimento feminista e de seu papel na sociedade. Grupos como o feminismo liberal, feminismo negro e o feminismo radical (o popular Radfem), buscam o mesmo objetivo, porém, com meios diferentes. 

 

Mas para aqueles que acreditam que os fins justificam os meios, essa noção pode estar abalando a luta feminista. Com essa divisão, surge a marginalização das vertentes dentro do feminismo e a homogeneização da luta. O movimento se torna exclusivo para aquelas que atendem as expectativas de cada vertente. 

 

Um dos grupos mais afetados por essa exclusão é o de mulheres trans, que lutam para serem reconhecidas como mulheres e detentoras de pautas feministas.  

O Radfem e o Movimento Trans

O Radfem surge por meio de obras de autoras como Shulamith Firestone (A dialética do Sexo), Kate Millet (Política Sexual) e Simone de Beauvoir (O segundo sexo). Elas abordam qual seria a origem do patriarcado e do machismo enraizado na sociedade, afirmando que essa busca é necessária para a mudança do comportamento social e político, analisando questões como elementos históricos e sociopolíticos, contrapondo-se às explicações e abordagens deterministas, como por exemplo o fator biológico. 

 

Essa vertente que se popularizou na década de 70, contudo, possui suas próprias derivações. Com o advento da internet, a comunicação de movimentos sociais ganhou força e atraiu novas pessoas para esses grupos. O Radfem se tornou um movimento dentro da internet com seu próprio pensamento. 

 

O grupo aborda atualmente a questão biológica como um fator determinante na construção da imagem do feminino. Elas defendem que não há subjetividade em ser mulher e que o preconceito surge a partir do gênero associado ao nascimento. O movimento afirma que suas ideias se baseiam na teoria clássica do feminismo radical, utilizando autoras como Robin Morgan, Julie Bindel, entre outras, como exemplo. 

 

A transfobia se tornou um dos sintomas do Radfem atual, que divulga por meio das redes sociais o pensamento que pessoas trans não possuem uma identidade verdadeira. 

 

Segundo elas, essas mulheres não podem se considerar parte do gênero feminino, pois em sua nascença são homens. Há, aquelas que acreditem que a mulher trans é uma reação da sociedade patriarcal à luta feminista, que pretende desestabilizar suas pautas com sua participação. Homens trans, por sua vez, podem ser associados a mulheres que não aceitaram seu papel como oprimidas e transformaram-se nas opressoras. 

 

Para Djamila Ribeiro, no entanto, as performantes do Radfem, atualmente, não compreendem o que foi escrito pelas primeiras autoras. Para a filósofa, houve uma distorção de suas ideias, o que resultou em um movimento transfóbico. 

O preconceito na prática 

Para compreender, na prática, como a transfobia por parte do movimento Radfem impede ou atrapalha mulheres trans de participarem das pautas feministas, foram entrevistadas Nicolly e Pâmela, duas mulheres trans que se relacionam com o feminismo de maneiras distintas. 

 

Nicolly iniciou sua transição aos 18 anos, após sair do colégio. Segundo ela, a partir do momento que começou a tomar seus hormônios adquiriu liberdade. Para ela, entretanto, se assumir como uma mulher foi algo difícil, pois ao longo de sua vida sofreu preconceito em todos os lugares que adentrou, seja para trabalhar ou em seu convívio. Mas alerta para o preconceito que sofreu quando era apenas um jovem garoto gay, sendo algo explícito e mais agressivo. 

Segundo Nicolly, ela compreendeu seu papel como mulher na sociedade quando começou a fazer programa, em suas palavras “fazer programas como trans foi a maneira que conheci a vida”. Quando o assunto feminismo foi abordado, ela afirmou que pautas feministas nunca fizeram parte de sua vida, pois durante sua transição e sua vida como mulheres, essas questões jamais se aproximaram de sua realidade.  

 

O feminismo é algo distante para ela, porém, algo que a sociedade trata a todo o momento. De acordo com o que disse: “tudo é feminismo hoje em dia, mas isso nunca me afetou como mulher trans”.  

Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis.
Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis. | Foto: Reprodução/Instagram.

A jovem paulistana sente a segregação entre mulheres cis e trans, seja dentro do movimento feminista ou na sociedade em que vive. Ela afirma que emprego para mulheres cis é algo fácil, assim como suas relações, enquanto pessoas trans, em geral, sofrem para serem reconhecidas. A maneira que encontra para que uma mudança dentro do feminismo ocorra é que surja o feminismo trans, assim como o feminismo negro, o intuito é abordar as pautas de gênero direcionando-as para mulheres. Em sua visão, não apenas o Radfem, mas todo o movimento, exclui mulheres trans de suas decisões, deslegitimando suas mudanças e necessidades. 

 

Se para Nicolly o feminismo é algo distante, para Pâmela é uma pauta que está presente desde sua adolescência. Sua transição começou quando tinha apenas 15 anos de idade e, de acordo com ela, foi algo turbulento e complicado. 

 

Sua família resistiu a ideia desde o princípio, porém Pâmela estava decidida a se tornar quem nasceu para ser. 

 

Na escola, afirma que participou ativamente de seu grêmio estudantil e ingressou nas pautas feministas abordadas pelo grupo. Na época, já sabia ser uma mulher e não se escondia de seus colegas. Essa participação, entretanto, foi dificultada por figuras importantes de sua escola, como sua professora de Ciências Sociais e a Coordenadora da escola.  

 

Segundo Pâmela, as duas deslegitimavam sua participação por ser menino e reafirmavam a ideia de que mulheres são mulheres por determinação biológica. Ela relembra que ambas faziam parte do pequeno grupo Radfem que existia em sua região, porém, os ideais do movimento não eram de seu conhecimento. 

 

Foi apenas quando ficou mais velha e concluiu sua transição, que Pâmela compreendeu a necessidade de lutar contra um movimento de repressão e exclusão dentro do feminismo. Em suas palavras “o feminismo pertence a todas e a pauta de todas as mulheres que, em algum momento, sofreram com a opressão da sociedade por seu gênero, seja cis ou trans.” 

 

Ela ingressou na faculdade de Ciências Sociais aos 22 anos e iniciou um pequeno blog durante seu período de estudante. A jovem, no entanto, se viu forçada a excluir suas redes sociais e sua página após ataques frequentes na internet, associados a grupos feministas de dentro da universidade. A partir desse momento, começou a escrever para o pequeno jornal impresso pelo Movimento de Feministas Negras de seu campus.  

 

Pâmela diz que as feministas negras são as únicas que se aproximam da dor de uma mulher trans, pois reconhecem o sofrimento que é ser deslegitimado em seu campo político e social, de forma opressora e histórica.  

 

“Em um país onde negros são assassinados com frequência ao andarem por suas comunidades ou carregarem um guarda-chuva e mulheres trans são espancadas, violentadas e destinadas a prostituição, se unir por uma causa é a solução que mulheres negras e mulheres trans encontraram para ganharem força. Mulheres sozinhas não fazem verão, mas quando se unem provocam mudanças. É triste observar grupos que nos ignoram e excluem de pautas que nos interessam ou se quer ouvem nosso sofrimento, nos diminuindo a uma questão biológica. Sei que homens fazem coisas terríveis para essas mulheres e que o sofrimento pode gerar raiva e angústia, mas também sei que generalizar não é a solução, pois conheci feministas radicais que foram duríssimas comigo e me humilharam, mas outras que apresentaram a simples vontade de mudar o que vivemos.” 

 

Pâmela acredita que a solução não é o feminismo trans, mas sim, a unificação de ideias. Ela acredita que o feminismo deve expandir para dentro de comunidades, para o interior do País e da comunidade LGTQIA+, quebrando a homogeneização existente. 

Contraponto ao Radfem

Segundo Lola, do blog feminista Escreva Lola Escreva, o movimento feminista precisa dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e o patriarcado. E acredita que o movimento necessita compreender o papel do machismo na vida de meninos e pessoas trans, pois assim como as mulheres são oprimidas e presas a um estigma social, homens também participam dessa opressão.  

 

Durante uma entrevista ao Universa, Uol, sobre a resistência de feministas aceitarem mulheres trans nas pautas, ela observa que um dos maiores problemas entre as Radfem e mulheres trans, é o uso de estereótipos femininos, construídos por uma sociedade machista, por parte das mulheres trans. A feminista aponta que o grupo de feministas radicais não compreende as razões que essas mulheres possuem para utilizar desses padrões. 

 

Lola afirma que utilizar batom, salto, maquiagem, e outras características que são sempre atribuídas por mulheres é uma maneira da mulher trans se afirmar como mulher. Segundo ela, uma mulher cis não necessita disso, pois quando abandona esse padrão é ainda mulher e seu gênero jamais é questionado, mas sim sua feminilidade. 

 

A feminista reafirma que o feminismo deve ser para todas, para que assim ele mude algo dentro dessa construção patriarcal e machista que vivemos. Abraçar mulheres trans, as suas pautas e afirmar seus direitos, exigindo sua segurança, é trazer uma nova face ao feminismo. 

 

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O movimento feminista já teve muitas conquistas. Entenda como ele é muito necessário ainda hoje.
por
Niara Viana de Brito
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29/03/2021

A luta feminista: novidade que perdura por muito tempo

 

A luta feminista é um movimento social, político e econômico que perdura até os dias de hoje, com o objetivo de discutir e lutar por direitos igualitários das mulheres. O movimento feminista busca, principalmente, a igualdade de direitos, oportunidades e tratamento entre homens e mulheres, além de lutar contra a inferioridade e opressão que as mulheres são submetidas na sociedade até os dias de hoje.

Para entender melhor como esse movimento persiste até hoje, é necessário, primeiro, saber como surgiu essa luta, suas conquistas e sua caminhada histórica.

Como surgiu o movimento feminista e suas as ondas

Uma das maiores influências para a criação do movimento foi a Revolução Francesa e as alterações sociais que começaram a acontecer nesta época, durante o século XIX. A partir das mudanças causadas pela Revolução, as mulheres começaram a entender as desigualdades políticas e de direitos a que eram submetidas e passaram a questionar, lentamente, sobre os modelos sociais em que viviam. Esse período ficou conhecido como a primeira onda do feminismo.

Nessa mesma época, nos Estados Unidos e, principalmente, no Reino Unido, mulheres começaram a se reunir em manifestações para garantir o direito à participação na vida política, direito de votos femininos nas eleições, aos estudos e melhores condições de trabalho. Dando assim, origem ao chamado movimento sufragista.

No período entre os anos 60 e 90, aconteceu a segunda onda do feminismo. Neste período, a luta pela igualdade social e de direitos se intensificou e as mulheres passaram a questionar todas as formas de submissão e inferioridade que enfrentavam.

Além disso, fizeram parte das questões debatidas pelo movimento nessa fase, as decisões sobre liberdade sexual, maternidade e direitos de reprodução. Uma das principais discussões nessa época girava em torno das opressões sofridas e do motivo de existirem tantas formas diferentes de opressão a que as mulheres eram submetidas. Ainda nesta época, começou a surgir a ideia da coletividade, da força da união das mulheres enquanto movimento capaz de provocar alterações na sociedade.  Mulheres negras e lésbicas também se juntaram ao movimento feminista, trazendo ainda mais força feminina, novas demandas e novas discussões para o feminismo.

A terceira onda feminista é o período iniciado a partir dos anos 90, que perdura até hoje, podendo ser definido como a busca de total liberdade de escolha das mulheres em relação às suas vidas. Nessa fase, surgiu o termo interseccionalidade (ou feminismo interseccional), usado para se referir às diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer, sendo em função de sua raça, classe, comportamento ou orientação sexual, por exemplo.

Nesta fase, foi dada uma maior importância para as trocas de informações e debates entre uma maior quantidade possível de mulheres, cada qual com suas condições e exigências especificas, trazendo mais visibilidade para o movimento feminista. Entendeu-se, também, que os comportamentos e submissões enfrentados pela mulher são resultados de construções sociais ao longo de vários anos, deixando espaço para serem discutidos e reconstruídos nessa luta.

Seus grupos e ideais feministas

Algumas questões importantes para a luta feminista são: o fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres; igualdade na participação política do país, tanto na tomada de decisões quanto na ocupação; problemas de saúde ligadas diretamente às mulheres, como sexualidade e a discussão sobre o aborto; direitos relacionados a maternidade e a amamentação; luta contra estereótipos; e combate aos diferentes tipos de assédio e violências sofridas pela mulher, como moral, sexual, psicológica, dentre outras.

O movimento também leva em consideração questões específicas de alguns grupos de mulheres: como negras, lésbicas, periféricas, prostituas, indígenas e transexuais. Cada grupo possuiu uma demanda diferente a mais para ser questionada e discutida em relação às suas vidas e condições.

Suas principais conquistas e lutas

Em 1791, no contexto da Revolução Francesa, foi publicada a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que exigia a igualdade jurídica entre homens e mulheres, escrita por Olympe de Gouges.

Em 1827, as brasileiras obtiveram autorização para estudar, mas apenas o ensino elementar. Foi a brasileira Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte, a pioneira a levantar a bandeira da educação. Em 1879, as mulheres receberam a autorização do governo para cursar o ensino superior, porém, as que seguiam o caminho eram criticadas. Apenas em 1887 a primeira brasileira recebeu um diploma de ensino superior. Rita Lobato Velho Lopes se formou na Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1911, o dia 8 de março ficou marcado como Dia Internacional da Mulher, devido a morte de cerca de 130 operárias em uma fábrica têxtil de Nova York, quando as mesmas se revoltaram pelas más condições de trabalho que estavam submetidas. Apesar da data só ter sido oficializada em 1975, ela é relembrada todo ano como um dia de lutas sociais, políticas e econômicas das mulheres.

Em 1918, as mulheres do Reino Unido tiveram o direito ao voto, após uma extensa luta feminista gerada pelo movimento sufragista, com a fundação União Nacional pelo Sufrágio Feminino, criada pela educadora britânica Millicent Fawcett. Já no Brasil, em 1932, o voto feminino foi liberado para mulheres casadas com autorização dos maridos, viúvas e solteiras com renda própria. Essas restrições foram removidas em 1934.

No dia 27 de agosto de 1962, há apenas cinquenta e cinco anos atrás, foi sancionado o Estatuto da Mulher Casada que, entre outras coisas, instituiu que a mulher não precisaria mais da autorização do marido para trabalhar, receber herança e, em caso de separação, ela poderia requerer a guarda dos filhos. Antes disso, o cônjuge precisava autorizá-la a exercer tais atividades. No mesmo ano, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil, Apesar de não ser o melhor método contraceptivo, o medicamento trouxe autonomia à mulher e iniciou uma discussão importantíssima sobre a liberdade sexual feminina.

Em 2006, a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06) foi criada para reprimir a violência familiar ou doméstica contra as mulheres. A lei trouxe regulamentações específicas em relação à punição e tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei recebeu este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher que sofreu violência doméstica do marido durante o casamento e ficou paraplégica em razão das violências sofridas, tornando-se um símbolo da luta contra a violência doméstica no país.

O movimento atualmente

De uns tempos para cá, o tema vem se espalhando e ganhando forças em vários lugares, e isso se deu, sobretudo, por causa das redes sociais. “As plataformas online proporcionaram a propagação das experiências e vivências diárias, em relação ao machismo e patriarcado, de diversos grupos de mulheres”, diz Tatiane Viana, estudante de Artes Visuais na UNESP de Bauru e participante do coletivo feminista do campus.

“Sejam elas lidando com a desvalorização no mercado de trabalho, casos de assédio, estupros, violência doméstica, entre outros” acrescentou Tatiane. Assim, a ideia da coletividade pôde unir ainda mais as mulheres e fortalecer o movimento, dando maior relevância e aumentando as demandas de disseminação sobre o assunto.

A importância dessa luta

Apesar de todas essas conquistas e, aos poucos, a valorização do movimento, a luta feminista perdura muito atualmente, não estando perto de acabar. “Isso porque muitos dos direitos das mulheres ainda não foram debatidos e oficializados, como a discussão sobre o direito de aborto no Brasil”, comenta Letícia Barbosa, estudante de biologia e ativa no coletivo feminista da UNESP, no campus de Santos.

De modo geral, o feminismo busca desconstruir os ideais machistas e patriarcais que estão enraizados na sociedade desde muito tempo, e luta por uma comunidade mais igualitária na questão de acesso à direitos entre todos. “Longe de pregar a dominação das mulheres sobre os homens ou odiar o sexo oposto, o feminismo busca apenas igualdade de gênero”, enfatizou Letícia.  

 

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Mesmo depois de tantos anos de luta, gênero feminino ainda sofre para obter seu espaço ao fazer e falar de automóveis no Brasil.
por
Thiago Pereira
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22/03/2021

Campanhas, criação de ongs, manifestações... A luta das mulheres por uma sociedade mais igualitária não é novidade para ninguém e já vem atravessando séculos. É fato que o cenário não é o mesmo de tempos atrás; as mulheres já conseguiram conquistar diversos direitos, como ingressar no mercado de trabalho e ter sua própria independência, mas isso não significa que dentro desse âmbito não sofram com os preconceitos e dificuldades de viverem em uma sociedade enraizada em conceitos patriarcais e machistas.

 

Dados do Ministério do Trabalho mostram que a participação feminina no mercado de trabalho formal atingiu o patamar de 44% em todo o território nacional em 2018; mesmo assim, apenas 3 em cada 100 CEOs no país são mulheres. Dados como esse comprovam que, mesmo depois de muitos anos de luta para que se tornasse um ambiente mais justo e igualitário em termos de oportunidade e valorização do trabalho, o mercado continua sendo um meio muito machista e sexista. Dentro desse cenário, algumas áreas estão mais avançadas e outras menos, no que diz respeito aos tópicos apresentados, e uma das que estão menos avançadas é a automotiva, aquela que envolve tudo aquilo relacionado a automóveis e afins. Piadas que envolvem a questão de gênero ainda são muito recorrentes e a ideia de que "mulher não entende de carro" também.

 

A indústria automotiva conta com 83% dos cargos em empresas de cadeia produtiva ocupados por homens, informam dados da pesquisa Presença Feminina no Setor Automotivo, realizada pela Automotive Business em parceria com a MHD Consultoria no segundo semestre de 2017. Um fato que, além de problemático simplesmente pela presença do preconceito relacionado ao gênero, é prejudicial para as próprias empresas, porque como é óbvio, as mulheres fazem parte do mercado consumidor, e por isso é imprescindível que essas empresas estejam alinhadas às expectativas e filosofias desse público, e ninguém melhor do que uma mulher para saber o que outra mulher espera de um produto. Em casos como esse, a representatividade ajuda a superar não somente barreiras sociais, mas também comerciais, gerando maior rentabilidade.

 

Infelizmente e obviamente, o jornalismo automotivo, assim como o segmento em que se apoia para produzir seus conteúdos, também ainda é um meio muito opressor, mas com muito esforço e uma qualidade de trabalho impecável para provar o que não precisaria ser provado, alguns nomes vêm ajudando a transformar essa realidade, mostrando para o público que mulher entende sim de carro, que elas devem estar inseridas nesse cenário e que o conteúdo produzido por elas faz frente a qualquer outro produzido por qualquer um.

 

Um desses nomes é Michelle de Jesus. Com experiência de 15 anos na oficina mecânica do pai, ela também foi piloto automobilístico por mais de 10, apresentadora do programa Oficina Motor, veiculado no canal +Globosat e colunista de revistas especializadas em automóveis. Hoje, apresentadora do seu próprio canal de Youtube (que já conta com mais de 120 mil inscritos) e Head de Marketing de uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, ela ainda consegue ajustar sua rotina à um MBA executivo no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Multifacetada como se vê, Michelle conta que, ao longo de sua carreira, sempre viveu e conviveu com vários homens e, por isso, enfrentou muitas dificuldades simplesmente pelo fato de ser mulher, mas nunca deu importância à elas. “Meu conselho é para que as mulheres não fiquem dando voz à essas pessoas, que elas simplesmente façam e sejam melhores que elas, porque é inevitável o talento, a capacidade, quando você tem e mostra seu talento e capacidade, é inevitável que você consiga seu espaço”.

 

Um verdadeiro caso de sucesso, Michelle, que já havia feito seu primeiro milhão antes dos 30 e viajado o mundo inteiro pilotando, testando e avaliando os carros mais legais do mundo, conta que a necessidade de empreender e aproveitar as oportunidades que lhe apareciam foram as principais “motivações” para ela alcançar o patamar onde está hoje. “Às vezes a gente fica buscando algo com o qual nos identificamos, mas na verdade o que temos de fazer é abraçar as oportunidades que aparecem e fazer delas as melhores oportunidades do mundo. Eu fiz isso lá atrás”. Sem formação de Jornalismo, ela conta também que a experiência em frente às câmeras foi fundamental para torná-la uma comunicadora. “Eu não era jornalista, não era apresentadora; fiz alguns cursos e treinamentos então acabei me especializando, virando uma apresentadora, influencer, garota propaganda (...) fiz vários comerciais, trabalhei pra várias marcas, várias montadoras, enfim, as coisas foram acontecendo meio que de forma natural, pelo fluxo e pela persistência de querer dar certo. Tanto faz a área, o que importa é fazer dar certo”, afirma.

 

Ao ser questionada sobre a possibilidade de estudantes de Jornalismo fazerem algo para tornar o cenário automotivo mais “justo”, Michelle é certeira: “eu acho que justiça é você batalhar pela mínima oportunidade que se tem, ela pode ser pequena, boba ou até sutil, às vezes passa desapercebida por algumas pessoas, mas aí você pega essa oportunidade que ninguém deu valor e faz aquilo que ela propõe de maneira muito bem feita, assim você vai conseguir ter voz, alcançar o maior número de pessoas possíveis, não se esquecendo sempre de fazer isso de uma forma justa e honesta com a informação. Acho que pra qualquer profissional, jornalista ou não jornalista, a questão de justiça é essa, é pegar algo mínimo, nem que seja dentro do seu bairro, e transformá-lo em algo verdadeiro, transparente e de grande valor para a comunidade”, finaliza.

Michelle de Jesus avalia Volkswagen Virtus GTS
Michelle de Jesus avalia o Volkswagen Virtus GTS. / Foto: Canal Michelle J

Além de Michelle, Giu Brandão, apresentadora do canal MundoSobreRodas, no YouTube, e Silvia Garcia, apresentadora do canal da Webmotors, que se encontra também no YouTube e representa uma gigante no meio de compra e venda de automóveis e motocicletas, também produzem um conteúdo de altíssima qualidade. É claro que muitas outras também o fazem, mas nesse texto seria impossível citar todas, elas são muitas e cada vez mais, o que é ótimo; mas para quem gosta ou precisa de dicas sobre o assunto, o conteúdo dessas mulheres é um prato cheio, e consumi-lo é um favor a si mesmo.

 

 

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