Entre sintomas, aprendizados e novas percepções sobre o próprio corpo, mulheres contam como estão enfrentando a fase da menopausa.
por
Mohara Ogando Cherubin
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04/11/2025

Por Mohara Cherubin

 

Janaina Martins lembra com um sorriso do dia em que “virou mocinha”. Tinha apenas onze anos quando o sangue apareceu pela primeira vez, em casa, e correu para contar à mãe. As amigas também já começavam a menstruar e a empresária ficou feliz, era como se tivesse se tornado mulher de um dia para o outro. Nos primeiros meses, tudo parecia novidade, mas a euforia logo deu lugar à realidade dos ciclos longos, de sete dias, acompanhados de cólicas intensas que a faziam interromper o que estivesse fazendo.

Na adolescência, conciliava a rotina da escola com os treinos de natação. O medo de que a menstruação vazasse na piscina a acompanhava em cada mergulho. Usava apenas absorventes comuns, e as preocupações com manchas e constrangimentos eram constantes. Desde cedo, aprendeu que menstruar era também lidar com o desconforto de algo que não era capaz de controlar.

Os anos seguiram marcados por essa relação complexa com o corpo. As dores e o fluxo intenso persistiam, mas ela se adaptava a cada novo ciclo, sem deixar de lado os compromissos, o trabalho e a vida ativa. Teve duas gestações, aos 27 e aos 32 anos. A primeira foi tranquila, mas a segunda trouxe complicações, como varizes na vulva e dores fortes que a obrigavam a reduzir o ritmo. No parto cesárea, os médicos identificaram varizes pélvicas, condição rara e de risco. Anos mais tarde, um exame vascular revelou uma estenose na veia renal esquerda. O diagnóstico a levou a um cateterismo e a novas cirurgias de varizes.

Mesmo com os tratamentos, as dores não cessaram. Em 2016, seu ginecologista sugeriu a histerectomia, procedimento que consistiu na retirada do útero, das trompas e de um dos ovários. A cirurgia trouxe alívio imediato do fluxo e das cólicas que a acompanharam por quase trinta anos. Foi a primeira vez que se sentiu livre do ciclo que marcava sua rotina desde a infância.

Por alguns anos, o corpo permaneceu o mesmo. Até que, aos 45, as mudanças voltaram a se manifestar de outro modo. O sono, antes contínuo, tornou- se leve, interrompido por despertares no meio da noite. Ondas de calor surgiam de repente, e o humor oscilava sem explicação. Mais do que os sintomas físicos, o que mais a angustiava era o esquecimento. Sempre pontual, começou a perder compromissos e a confundir horários. Os exames hormonais confirmaram que Janaina estava entrando na menopausa. A notícia não provocou medo, mas exigiu aceitação, já que percebeu que não conhecia muito sobre essa fase, e que os médicos pouco falavam sobre ela. Acredita que a mulher deveria ser preparada ainda no período fértil, para compreender melhor as mudanças do corpo e da mente. Por conta das condições vasculares, não pode recorrer aos tratamentos hormonais convencionais, o que torna a adaptação ainda mais desafiadora.

Os filhos e amigos logo notaram as mudanças. A empresária, antes sempre organizada e de humor constante, passou a se mostrar mais irritada e distraída. As reações de espanto ao seu redor a fizeram perceber o quanto a menopausa altera não apenas o corpo, mas também a forma como os outros a enxergam. Hoje, aos 47 anos, Janaina encara a menopausa como um exercício de autoconhecimento. Aprendeu a reconhecer os próprios limites e a compreender as mensagens do corpo. Procura não se cobrar tanto, mesmo diante dos esquecimentos e das falhas de memória que ainda a incomodam. Vê nessa fase um convite à escuta e à reconciliação consigo mesma.

Como foi o que aconteceu com a jornalista Neivia Justa, que sangrou pela primeira vez aos 11 anos. Ela se recorda com nitidez da madrugada em que acordou com fortes cólicas e acreditou estar com um problema intestinal. Estudava em um colégio de freiras, daqueles em que as meninas usavam saias plissadas e o uniforme de educação física incluía uma sunga de jogadora de vôlei. Com medo de se sujar, improvisou enchendo a calcinha de papel. Foi o que a salvou. Ao chegar em casa, percebeu o sangue e chamou a mãe, que reagiu com euforia, e logo a notícia se espalhou por Fortaleza, local onde morava. 

Desde pequena, sabia o que significava menstruar. Entendia o processo biológico, que o sangramento viria todos os meses, e que fazia parte do crescimento. A mãe a havia preparado para isso, já que seu corpo começou a se desenvolver bem cedo. Mas, além da explicação biológica, não houve grandes conversas. O tema da menstruação estava cercado de tabus, especialmente no que dizia respeito ao corpo feminino, à sexualidade e à virgindade, assuntos que não se discutiam abertamente em casa.

Na adolescência, Neivia passou a lidar com o ciclo menstrual de forma prática, mas sem afeto. Contou que nunca gostou de menstruar. O cheiro, o fluxo intenso, o desconforto, nada nisso lhe parecia natural. O medo de manchar a roupa era constante, principalmente nos dois primeiros dias de sangramento. Não conseguia usar absorvente interno e via a menstruação como um incômodo a ser suportado. Quando começou a vida sexual, o período menstrual continuava sendo uma barreira, era algo que preferia esconder, manter distante de qualquer relação.

Se lembra que, na época, a menstruação carregava ainda mais tabu do que hoje. Evitava praias, roupas claras, e dificilmente comentava sobre o assunto. Foi a primeira da turma a menstruar, o que a colocou, involuntariamente, no centro das atenções, uma posição que a incomodava. Com o tempo, aprendeu a reconhecer o próprio corpo, a identificar sintomas e ritmos. Seu ciclo era regular como um relógio, e essa previsibilidade lhe trazia certo controle sobre si mesma. As cólicas a acompanharam até a primeira gravidez, aos 32 anos; depois da segunda, desapareceram de vez.

Por volta de 47 anos os sintomas da menopausa começaram a dar sinais. O primeiro foi o calor noturno, acordava suada toda madrugada, sem entender o que acontecia. Vieram também a irritação constante e a sensação de estar em uma TPM que nunca terminava. Mesmo antes de os exames confirmarem, ela insistia com o médico que o corpo já estava mudando. Sabia reconhecer seus sinais, e estava certa. Neivia nunca tratou a menopausa como tabu. Pelo contrário, queria lidar com os sintomas o quanto antes. Iniciou a reposição hormonal logo que as alterações começaram e segue com o tratamento até hoje. Para ela, é uma questão de equilíbrio e bem-estar, sem medo nem preconceito.

Para ela, a falta de informação ainda é um dos maiores desafios. Acredita que, embora haja avanços, o tema continua cercado de desconhecimento e até negação. Muitas mulheres ainda não entendem o que estão sentindo ou acreditam estar adoecendo. Os médicos especializados são poucos, e o acolhimento é insuficiente. Por isso, enxerga na menopausa uma oportunidade de transformação coletiva, de falar mais, educar e incluir também as famílias — maridos, esposas, filhos, colegas e chefes — nesse diálogo.

Neivia encara o assunto com humor e naturalidade. Costuma brincar com o marido, que dorme enrolado em cobertores, como um pinguim, enquanto ela precisa do ar-condicionado ligado no máximo. Fala abertamente sobre estar na menopausa, sobre o corpo e a idade, como forma de desmistificar o envelhecimento feminino. Já escreveu sobre o tema e faz questão de mostrar que essa é apenas mais uma etapa que deve ser vivida com leveza.

Hoje, aos 56 anos, ela entende a menopausa como parte da sua identidade atual. Depois de retirar o útero, passou a compreender com mais clareza as transformações do corpo e do metabolismo. Acredita que aceitar e cuidar de si é o caminho para atravessar essa fase com serenidade. Para ela, a menopausa representa maturidade e liberdade. Deseja viver os melhores anos de sua vida agora, sem nostalgia e sem ansiedade. Encarar o presente como ele é, com seus desafios e descobertas, tem sido sua forma de existir plenamente, abraçando o corpo e o tempo como aliados, não inimigos.

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Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
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23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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Cidades

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Comportamento

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O corpo da feminino se reinventa como profissão, mercadoria e alternativa de trabalho.
por
Mohara Ogando Cherubin
|
23/09/2025

Por Mohara Cherubin

 

Atualmente, os dias começam com a checagem de mensagens e propostas no perfil de conteúdo adulto, antes mesmo do café da manhã de Maria. A academia, os compromissos e o almoço ocupam as primeiras horas do dia, mas é no retorno para casa que o trabalho realmente começa. As tardes e noites são dedicadas a gravar vídeos, responder clientes e editar conteúdos. A rotina, que pode facilmente ultrapassar 12 horas de dedicação, exige organização e disponibilidade. Embora muitos ainda julgam a atividade como algo distante de um “trabalho de verdade”, ela descreve longas jornadas de produção, chamadas de vídeo e edição, realizadas sem apoio externo.

Demissão, dívidas e a responsabilidade de ajudar nas contas de casa foram os fatores que a levaram descobrir, por meio de uma amiga, a criação de conteúdo adulto como uma forma de garantir sua sobrevivência financeira. Provida apenas de um celular e da necessidade de pagar suas despesas, ela decidiu abrir um perfil em uma plataforma e, no primeiro dia, já conseguiu lucrar 300 reais em poucas horas. O resultado imediato a convenceu de que, apesar das dúvidas e inseguranças, havia ali um meio de se sustentar. A partir daquele momento, a rotina de trabalho passaria a girar em torno de gravações, interações com clientes e a construção de uma nova fonte de renda.

O início, contudo, não foi marcado apenas por ganhos. Como era anônima e não tinha seguidores, demorou para alcançar estabilidade financeira na plataforma. Nos primeiros meses, precisou pedir dinheiro emprestado e lidar com a desconfiança da família, que até hoje não sabe exatamente de onde vem sua renda. Para ela, lidar com o estigma social que associa a profissão à piedade é um dos maiores desafios, quando, em sua visão, foi uma escolha consciente diante das circunstâncias que enfrentava.

Apesar de ainda não saber se seguirá no mercado por muitos anos, garante que, por agora, não pensa em parar. Reconhece que sua relação com os clientes é de dependência, mas não admite ser “tirada” dessa vida, como já lhe foi oferecido por um dos consumidores mais recorrentes. Solteira, ela prefere manter o controle sobre suas decisões, sem dever nada a ninguém. Entre o cansaço das longas jornadas, as incertezas sobre o futuro e a satisfação de ver o dinheiro cair na conta, segue encarando um dia de cada vez, certa de que, se for preciso mudar de caminho, encontrará uma forma de se reinventar, como sempre fez.

De acordo com Maria Cláudia Neves, psicanalista especialista em adolescentes, embora o discurso do empoderamento seja colocado como um instrumento de defesa e apareça com frequência nesse contexto, a Psicanálise observa que a sensação de controle dessas mulheres é temporária. No início, a mulher acredita decidir o que mostrar e como se expor, porém à medida em que o sustento dela só é possível com o pagamento de seus assinantes, ela se vê dependente do desejo do cliente. Toda aquela liberdade sentida no começo passa a se tornar vulnerabilidade, uma vez que os conteúdos passam a responder às exigências externas, caso contrário o cliente deixará de pagar e procurará um perfil que atenda às suas vontades. 

Do outro lado da tela, o consumidor busca satisfação em uma fantasia que nunca se completa. Para a psicanalista, trata-se de uma busca por pulsão de vida, por um corpo idealizado que nunca é suficiente. É por essa razão que tantos indivíduos desenvolvem vícios em pornografia. De acordo com dados do PornHub, site canadense de compartilhamento de vídeos pornográficos, o Brasil está entre os dez países que mais consomem pornografia, com 39% de usuárias mulheres e 61% de usuários homens. Os conteúdos são esporádicos e a satisfação é sempre passageira, levando ao consumo repetitivo. Assim como a criadora de conteúdo se torna refém da manutenção de sua imagem e dos gastos associados a ela, o cliente também se torna refém de seu próprio desejo.
 

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Comportamento

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Representatividade feminina ainda deixa a desejar nesse universo
por
Anna da Matta
|
12/05/2022

Por Anna da Matta

Caminhando pelos longos corredores e salas de uma exposição cada pessoa vai entrando em contato com diversas informações, sejam das obras expostas ou apenas do local. Os cheiros de perfume no ar, as gargalhadas e conversas paralelas ao fundo de seus próprios pensamentos, as cores e formas das produções artísticas tentando chamar a atenção de quem está presente. As interpretações e óticas para as criações são diferentes de indivíduo para indivíduo. Cada um tem suas próprias perspectivas e concepções, e vão ter sentimentos distintos em relação ao que estão observando. Mas, nota-se, em algum canto do ambiente, pelo menos um trabalho inspirado em uma mulher. 

No universo das artes, a imagem de mulheres é constantemente reproduzida. De incontáveis formas e em uma larga escala. As obras as retratam como objeto de desejo, de maneira angelical, de uma ótica polêmica, como inspiração etc. Seja qual o modo elas estejam representadas, estas figuras são grande parte do foco de produções artísticas. Apesar disso, não necessariamente torna esse ambiente um espaço de igualdade ou de representatividade. 

O ano era 2017 e o coletivo Guerrilla Girls vinha ao Brasil para uma retrospectiva de trinta e dois anos de seu trabalho. Elas vestem máscaras de gorilas carregadas de pelo e com expressões faciais diferentes, mostrando apenas os olhos e com buracos para as narinas. O anonimato faz parte e ajuda a manter o foco nas questões em que querem problematizar.  São reconhecidas por serem artistas ativistas feministas. Pregam que podem ser qualquer um. Dizem que estão em todo lugar. 

Guerrilla Girls protestando nas ruas de Nova York, 1985. (George Lange/Divulgação)

Em público, elas utilizam do humor e de visões afrontosas para evidenciar questões de gênero e étnicos, bem como corrupção na arte, no cinema, na cultura pop e na política. As ativistas construíram, e continuam a construir, uma narrativa nada convencional, e colocam nos holofotes as injustiças e assuntos que, normalmente, são quase que invisíveis. 

Ao levantarem dados — um tanto quanto chocantes — sobre a presença feminina no mercado das artes, as Guerrilla Girls passaram a influenciar o setor. 

Num fundo amarelo vibrante, com a imagem de uma figura feminina com cabeça de gorila em tons de cinza, preto e branco, virada de costas e reclinada em uma espécie de pano com tonalidade meio vinho, um dos cartazes provocativos que fazem parte das ações do coletivo feminista, estampa as frases “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. 

Cartaz realizado por Guerrilla Girls, 2017. (Foto / Reprodução)

Lamentavelmente a desigualdade dentro desse universo não se classifica como fora da normalidade, como se fosse algo surreal. Segundo o veículo de comunicação ArtNet, foram gastos mais de US$196 bilhões, entre os anos de 2008 e 2019, em leilões de arte. Dentre esse valor, os trabalhos produzidos por mulheres representam apenas 2% das obras vendidas.

Não é nenhum segredo que o setor cultural não escapa à regra quando se fala em desigualdade de gênero. Em uma pesquisa feita pelo IBGE em 2018 foi exposto que as mulheres atuantes no campo da cultura ganham, em média, 67,8% do salário dos homens para executar tarefas semelhantes. Segundo a criadora de conteúdos e fundadora do Museu do Isolamento, Luiza Adas, o valor do trabalho de um artista tem que ser dado de acordo com o prestígio e com as reflexões que trazem para a sociedade, e com certeza, as mulheres têm a capacidade de terem trabalhos tão incríveis quanto, senão até mais, que artistas homens, então, para ela, não faz o menor sentido essa diferença salarial.

Ao adentrar em um estúdio — ou algum outro lugar reservado para a criação — os artistas mergulham em seus próprios universos, silenciando por algumas vezes o mundo externo. A artista e tatuadora Lua Clara Faria, de vinte e um anos, é brasileira mas já mora em Lisboa faz alguns anos. Para ela, poder se expressar com a arte é extremamente gratificante. Através de suas produções, ela consegue enxergar aquilo que estava sentindo quando decidiu realizar algum projeto. Tanto no processo, quanto no final. 

Lua compreende a sua arte como uma forma de meditação. É, de diversas maneiras, contemplativo. Ela desenha mandalas e florais em diferentes superfícies. Quadros, telas, paredes, já até pintou violão. Também já produziu em lã e artesanatos como almofadas, capas de celular, cadernos, canecas etc. E há algum tempo, decidiu se aventurar no universo das tatuagens. 

Quando Lua desenha, principalmente as mandalas, consegue deixar sua mente mais calma no processo. Ela conta que serve de ajuda para a ansiedade. 

A artista já teve algumas oportunidades de expor suas criações. Para além de sites de vendas online, Lua expôs sua arte em uma feira de artesanato. Através da internet, ela sempre teve contato com clientes ou pessoas que elogiam suas produções, mas, não acredita que essa comunicação chegue perto da sensação do encontro presencial, de algo mais pessoal. Ao relembrar da experiência, ela se enche de emoções e memórias boas. Era uma tarde agradável. Aqueles que não tinham acesso a suas redes, puderam conhecer seu trabalho. 

No entanto, Lua enxerga a desigualdade que se faz presente no mundo artístico. Neste início como tatuadora, ela nota que ainda existem diversos estereótipos e concepções de que mulheres são mais delicadas do que os homens. Também observa a maior quantidade de tatuadores com reconhecimento no mercado.  

Mulher observa quadro em exposição no Museu do Prado em Madri, 2020. (AFP) 

Jochen Volz, diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, já organizou pelo menos 30 exposições individuais de artistas mulheres entre 2001 até hoje. Ele também assinou como curador duas mostras que foram, cada uma em seu momento histórico, as com maior presença feminina. A 53ª Bienal de Veneza, no ano de 2009, com 43% de artistas mulheres, e a 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, com 60% de artistas mulheres.   

O diretor diz entender que ainda é necessário um grande esforço até que os acervos dos principais museus tenham um equilíbrio maior entre os artistas. A presença feminina no acervo da Pinacoteca chega a 30% dos artistas aproximadamente. De acordo com Jochen, o número é melhor do que já foi alguns anos atrás, mas afirma não ser o suficiente. 

Naomi Cary, que se considera multiartista audiovisual, explica que toda vez que alguém se pergunta se alguma coisa é arte ou não, ela passa a ser. O papel dessas produções é de colocar as pessoas nesse conflito com elas mesmas e com as suas próprias concepções. Quando trabalha com arte manual, em formato de pintura de telas, Naomi realiza uma série intitulada “Black Alien”, que é toda de autorretrato. É uma forma de reinventar sua identidade e desafiar as maneiras de como é vista para criar. A artista tenta, em suas criações, questionar e abandonar esse lugar de musa, passiva, de ser olhada. De consumir a arte sempre de um lugar distante e se aventurar a produzir algo diferente disso. 

Um dos privilégios masculinos é retratar qualquer assunto ou tema em suas produções. Para a mulher, em sua maioria das vezes, é dado um espaço apenas das representações. Quase como se fosse uma obrigação falar do universo feminino. É o que a sociedade espera dessas artistas. Vão criando segmentações a serem seguidas. Como se a criatividade — em um trabalho majoritariamente imaginativo e criativo — não pudesse falar mais alto, como se estivessem limitadas a caberem nas caixinhas das expectativas dos outros. 

Entretanto, há esperança para o futuro feminino nas artes. As mulheres estão cada vez se sentindo mais abertas a entregarem algo que, de fato, condiz com aquilo que elas querem produzir — não que esse feito não esteja presente no passado também, as revolucionárias são a prova disso.  Progressivamente, as artistas mulheres têm tomado seus devidos espaços nesse universo. Já não é mais aceitável fazer uma seleção sem nenhuma imagem feminina presente.

 

O caminho ainda é longo e árduo, mas existem esperanças para novos olhares feministas. 

 

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Cultura e Entretenimento

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Como o mundo de hoje é impactado pelo passado e segue destinado a cometer os mesmo erros
por
Paulo Castro
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16/06/2022

Por Paulo Victor Castro 

O século XX é visto como o século da grande modernidade. O período é marcado por grandes guerras, lutas sociais e culturais e, uma grande mudança de visão para a sociedade. Uma forte influência do que ficou conhecido como o Modernismo e suas fases. No começo de 1900, é possível enxergar um mundo feito por construções rebuscadas, estéticas e trabalhadas. Essa é a principal mudança que marca essa troca. Nas artes e arquitetura, as coisas passam a ser mais práticas, sendo assim tendo uma preocupação menor para a estética e um grande investimento em sua função e habilidade de desempenhar a ação em curto e médio prazo. Algo que para época ia completamente contra o “natural”, já que a cultura sempre esteve mais conectada à beleza, riqueza e poder. Entretanto, esta mudança de pensamento não é algo visto apenas no mundo artístico e arquitetônico, a troca era principalmente no modo de se viver e enxergar o futuro da sociedade, algo que acabou culminando com o que hoje é conhecido como um grande período de momentos e revoluções.

A primeira década do século XX é marcada, ainda, por um forte e intenso Imperialismo, período que chegou a durar até a segunda metade desses 100 anos em colônias europeias. Uma dos conflitos mais marcantes desse momento foi a Guerra Russo-Japonesa (1904-05). O Japão derrota a Rússia na Manchúria (China), e conquista, na época, o que o mundo tinha de mais valioso a oferecer: terras. Ter terras simbolizava força, tamanho e poder, sendo assim o desejo de todas e qualquer potência. Não à toa, a Primeira Grande Guerra não demoria muito a chegar, tendo enormes implicações na questão territorial e militar dos grandes países do planeta. Ainda no assunto da Guerra Russo-Japonesa, a vitória do Japão é o marco do início e caminhada de uma forte militarização do país asiático e, do outro lado, uma enorme insatisfação russa com o seu atual regime, que à época era comandado por Nicolau-II. Importante destacar como isso é extremamente importante e crucial para as mudanças que vieram a ocorrer nos países e suas revoluções nacionais e internacionais.

A segunda década do século XX possui uma importante e intensa influência com o presente e suas grandes brigas, intrigas e questionamentos. A Primeira Guerra Mundial foi o grande embate e o conhecido palco de uma brutal batalha entre as potências de todo mundo durante os anos de 1914 e 1918. A pluralidade cultural, social, artística e a enorme disputa territorial culminam em uma sangrenta guerra. A batalha entre os países muda completamente o rumo do mundo, novas grandes potências surgem, como os Estados Unidos, e um futuro passa a ser desenhado por aqueles que controlavam a maioria das “cartas”.

A arte e a guerra

Evidentemente, é impossível cair dentro do mundo do passado e não comentar sobre a enorme influência que a arte carrega. Desde os famosos movimentos artísticos como o Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, o Expressionismo e muitos outros, a sociedade em formação passa por belos períodos de conhecimento e cultura. Algo que ainda é extremamente importante e necessário nos dias atuais. Movimentos como o Jazz, que surgiu em New Orleans, nos Estados Unidos, são extremamente valiosos e cheios de conhecimento e história. Mesmo sem o poder de influência das armas e das grandes batalhas, a arte e cultura sempre esteve presente na sociedade e são fontes de conhecimento para também entender os dilemas atuais que os países carregam.

Em conversa com o professor Mauro Luiz Peron, doutor em Multimeios pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas em 2006, e professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a arte foi algo muito debatido. “A Arte constitui uma das mais extraordinárias expressões humanas e, por ser expressão de sensibilidades construídas em meio a experiências econômicas, sociais e políticas, em seu bojo toda realização musical (cultural que é) indica as escolhas estilísticas e estéticas de seus criadores e, por isso mesmo, toda arte é mesmo plena de sentidos multifacetados. Mas talvez o mais intrigante nas obras de grande impacto seja o fato de detectarem, no banal, o mais inusitado, e vice-versa. O resultado é a contundência, o assombro e, assim, o convite para uma nova chamada para a educação do Olhar. As consciências de classe, por exemplo, são mobilizadas o tempo todo por grandes obras musicais, teatrais, cinematográficas e literárias. E é sempre um olhar específico que vai procurar quantificar (e qualificar) o alcance de tais obras”, explica.

As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por momentos importantes e, também, relevantes para o futuro da sociedade, mas o ponto de partida do pensamento será exatamente o olhar da cultura apontado por Mauro Perón. Em uma sociedade que passou por uma transformação lá atrás de um estético para o prático, a arte hoje, em algumas situações, passou a ser vista como “secundária”, tanto em importância e necessidade. Não é atoa, que a sua falta é um dos grandes erros da modernidade. O tal problema tem claramente uma conexão com o passado e as escolhas. O prático, por muitas vezes, esteve não à frente do estético, mas, sim, do pensamento. 

O lado das escolhas também é algo importante na análise do tempo e a sua enorme diferença no espaço. Como cada escolha, momento, guerra, ação e outras diversas coisas podem ter influenciado o passado e o presente. Como que mesmo tudo tão longe, alguns problemas seguem o mesmo. Em 2022, a Rússia volta a estar em guerra, a potência dos Estados Unidos entra em um dos seus piores períodos nos últimos 50 anos, e um Brasil desesperado e inflacionado de problemas e mais problemas. Como os dilemas do passado voltam a aparecer no presente? Onde ocorreu a evolução? “Somente podemos avaliar épocas passadas na perspectiva do presente que experimentamos. Por esse motivo, olhamos seletivamente para o passado. Nessa perspectiva, avalio que a trajetória humana é configurada por uma extraordinária dialética, na qual as interações, as interdependências, as influências recíprocas redefinem o tempo todo mesmo as projeções de sociedades futuras”.

Um dos temas principais do século XXI é o Capitalismo e a sua influência nos mais diversos pontos da sociedade. Repare que a troca feita no passado entre o estético para o prático também pode ser visto por alguns ângulos no modo de viver capitalista. O mundo pode ser daqueles que produzem e desempenham hoje algo que o outro não pode oferecer, e quando no topo, assim como as potências dos 1900, lutam para permanecer e afundar ainda mais quem está por baixo dessa grande cadeia. O ciclo segue o mesmo. “O Capitalismo é um Modo de Produção de existência. O dinamismo da sociedade capitalista arrasta tudo e todos para a realização ampliada da exploração, em nome da realização ampliada do lucro. Toda a riqueza socialmente produzida é plantada na exploração da imensa maioria da população humana. Tudo tende a ser transformado em mercadoria”.

Nos dias atuais é muito claro e escancarado uma enorme evolução tecnológica do novo século. Talvez os grandes carros voadores e nenhum dos ETs tenham chegado a terra, mas o rápido desenvolvimento em grandes áreas também faz parte do começo da história do século XXI. Alguns extremamente positivos e animadores mas nem tudo aparenta ter seguido esse caminho. Uma questão levantada durante a entrevista com o professor Mauro Peron foi qual a explicação para um avanço tão forte e intenso em algumas áreas da sociedade, e um retrocesso, ou melhor, “continuação de pensamento” em outras. Repare bem, o início dos anos de 1900 é marcado pelo racismo e uma grande diferença de classes em boa parte do mundo, realmente houve evolução nesse sentido até o atual ano de 2022? 

“Há uma questão de base a ser considerada: todo avanço só existe em nome ou de uma opressão, ou de uma resistência a toda forma de opressão. Esse processo tem acompanhado a história de todas as sociedades. E talvez seja preciso apontar que, afinal, “racismo”, “desigualdade social”,  e “guerras” expõem (ou ocultam) experiências fundamentais e limítrofes da sobrevivência. Nesses termos, é preciso interrogar: a Tecnologia é avanço para quê? Para quem? Existe para perpetuar violências, ou para emancipar a todos? Não é possível responder a essas perguntas sem olharmos para todos os horrores pelos quais um “bem” também significou a dor mais devastadora. Afinal, toda “evolução” não pode ser simplesmente um “bem”, porque se ela é a mudança de um estado de sociedades para outro, muitas sociedades viveram os piores pesadelos em regimes totalitários antes impensáveis”.

Um ponto importante é saber como gerir tudo aquilo que é visto como evolução, ainda mais nos novos tempos de máquinas e grandes descobertas. Saber trocar o que não passa de uma invenção para realmente uma progressão. A tecnologia por muitas vezes é vista como uma liberdade. Realmente é um enorme avanço, mas na mesma medida em que constrói, também é capaz de privatizar e oprimir. Nem todo “bem” é realmente às custas de ninguém. E contra isso, a luta jamais parará. Tanto da mudança mais simples, até a mais sofisticada. Porque e como evoluir, essa é a pergunta mais importante.

 

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Relatos de mulheres que sofreram violência sexual e psicológica durante suas aulas práticas de direção
por
Fernanda Fernandes
|
27/06/2022

Por Fernanda Fernandes 

 

Era uma conquista estar indo tirar a carta, pois isso só foi possível por fruto de seu trabalho. Lavínia se dedicou como menor aprendiz e juntou dinheiro para a habilitação. Por já ter passado por violências ao longo de sua vida, tinha um certo receio de ficar em um carro com um homem. No dia 13 de setembro de 2020, era a sua primeira aula. Tomou um banho demorado, pois ficava pensando o que poderia acontecer neste dia, mas foi. Ao entrar no carro, Lavínia alega já se sentir desconfortável, pois o instrutor começou a elogiá-la constantemente. Ele dizia: “Você é muito linda”, “Que pele maravilhosa”, “Que cabelo lindo”.

No primeiro momento ela achou estranho, mas pensou que ele estava querendo criar uma intimidade, de uma forma invasiva, mas entendeu. Com o passar das aulas os elogios foram aumentando, e novas atitudes começavam a surgir.

Lavínia relata que em um dos dias, o instrutor pediu para ela tirar uma foto da folha que continha a explicação sobre as infrações de trânsito, e na hora de tirar a foto ele passou a mão na coxa dela. No momento Lavínia ficou sem reação, paralisada, só conseguia olhar para a tela de seu celular, e sem saber o que fazer, disse para continuarem a aula.

Quando começavam a fazer a baliza, ele falava para ela: Lavínia se você acertar a baliza eu mereço um abraço, se você errar, você também merece um abraço. Eu gosto de dar prêmios aos meus alunos.

Lavínia explica que o instrutor partia para cima dela, sem sua permissão. “Eu nunca falei que podia, eu tentava fugir. Só que eu ficava, será que isso está acontecendo ou é coisa da minha cabeça, será que ele realmente está sendo invasivo ou eu estou inventando. Minha intuição dizendo que era um assédio, mas minha bondade falando que era coisa da minha cabeça”.

Com dúvida e com esperança de que a próxima aula poderia ser melhor, Lavínia foi em mais uma. Era um dia muito chuvoso, ela conta que não dava pra ver nada, nem com o para-brisa na velocidade maior, e nesse dia ele a levou para uma rua sem saída.

Em seu relato ela afirma que foi desesperador. Indo em direção do final da rua, ele andava a menos de 10 km/h e não parava de olhar para ela. Com medo, ela pensava em como poderia reagir. “Eu não posso dizer que a intenção dele era me estuprar, mas deu a entender muito que era isso”.

Mas ao chegar no final da rua, o alívio veio, quando enxergaram três homens tendo aulas de moto. Nesse momento, o instrutor mudou seu comportamento – para disfarçar – e Lavínia pediu para trocarem de lugar e começarem a aula – na qual ela não conseguiu dirigir por medo.

Assustada, mas também com coragem, a moça que na época tinha 19 anos, parou as aulas, enviou um relato para a autoescola – que fez pouco caso da situação – e publicou também em suas redes sociais, o que gerou muita repercussão e descobertas. A partir de sua publicação, mais de vinte casos de assédio na mesma auto-escola começaram a surgir. Samantha foi um desses.

Como sempre quis dirigir, ao completar 18 anos ganhou a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) de presente dos seus pais. Mas por já ter sofrido assédio em outros momentos da vida, estava receosa. Sua terapeuta a incentivou a enfrentar seus medos e não se privar de fazer aulas com um instrutor homem, mas como ainda não se sentia completamente preparada Samantha preferiu fazer as aulas com uma mulher.

Para conseguir agendar com a instrutora, demorou muito mais tempo, pois era a única mulher da autoescola. Mas ela não se importou, esperou e fez suas aulas com tranquilidade – que segundo ela foram fantásticas.

Porém em um dos dias em que tinha duas aulas, o sistema da autoescola estava quebrado e ela não conseguiu registrá-las como feitas. A partir disso, teve que repor as aulas perdidas. Como não queria esperar tanto tempo e estava ansiosa para pegar a habilitação logo, deu a chance de fazer com um homem.

Na primeira reposição tudo ocorreu bem – tirando o fato dele ficar apenas no celular e não dar atenção a o que ela estava fazendo. Já na segunda aula, como Samantha estava tendo dificuldades com a baliza, ele disse que iria ensiná-la a fazer.

Sentado no banco do passageiro, e Samantha no do motorista, ele começou a virar o volante ele mesmo. “Nesse momento ele encostou no meu peito várias e várias vezes, as primeiras vezes com o braço, como se fosse sem querer”.

Samantha relata que por ter os seios grandes e por causa do banco estar perto do volante, mesmo incomodada, relevou. Mas depois percebeu que quando ele tirava a mão do volante ele passava em seu seio. Ao perceber, ficou paralisada e sem reação, mas por não ter certeza se havia ocorrido de propósito ou acidentalmente, não tomou nenhuma atitude.

Depois de dois meses, após já ter finalizado o seu processo de habilitação, ela viu o relato da Lavínia nas redes sociais. “Uma amiga minha me enviou a publicação e disse: foi o mesmo instrutor que te deu aula? E na hora eu não sei explicar, naquele momento eu pensei aquilo realmente aconteceu, não era coisa da minha cabeça”.

Samantha relata, que foi assustador, ao perceber que era o mesmo instrutor sua ficha caiu. E então ela se sentiu invadida e desrespeitada. 

Após ver a publicação, ela expôs o seu caso para Lavínia, e juntas foram até a autoescola falar com o dono e lutar por justiça. A autoescola, que fica localizada na Vila Sônia ficou se justificando, e colocando as vítimas como culpadas da situação. Mas após um período, o instrutor foi demitido.

Samantha abriu um boletim de ocorrência na justiça, mas até o momento não teve respostas. Lavínia também pretende abrir. Os ocorridos uniram as duas, que construíram uma amizade que prevalece até hoje. O apoio foi fundamental e durante a entrevista elas mostraram que ficam felizes em poder ajudar mulheres com os seus relatos, além de se sentirem muito corajosas em denunciar e expor a situação.

“Sozinha eu não teria feito nada, com ela eu tive muito mais força” conta Samantha.

Agressividade e menosprezo

Além do assédio, a violência também se faz presente em atitudes grosseiras e falas machistas, que desestimulam e menosprezam o conhecimento e a credibilidade das mulheres.

Era sua penúltima aula, o nervosismo e medo da prova prática estavam cada vez maiores, e a insegurança também tomava sua cabeça. Mas o que já era um grande problema, se tornou ainda maior após esses dois dias.

Enquanto dirigia, o instrutor de Rafaela que sempre a tratou bem, conversava sobre diversos assuntos cotidianos, o que para ela era tranquilo e até a deixava menos nervosa no momento de dirigir. Porém, existem assuntos e assuntos, e aqueles que – às vezes – não cabem, a política é um deles.

Estava no meio da aula quando o instrutor começou a perguntar para Rafaela sobre o presidente do Brasil e as próximas eleições, ela até pensou em não comentar, mas não aguentou, seguindo com a conversa e trazendo suas pontuações em relação a política atual.  

Os minutos foram passando e o clima já não era o mesmo, estava tenso e as opiniões divergentes ecoavam, o que fez Rafaela querer encerrar o assunto, mas ele não parou e continuou falando até o final da aula. Após o ocorrido, ela ficou um pouco desanimada para o próximo treinamento, por ter se incomodado com as afirmações que escutou, além de perceber o quanto isso afetaria o dia seguinte. 

Sua última aula chegou, e como já esperado, o professor mudou completamente. As risadas e o jeito simpático de conversar, se tornaram caras fechadas e frases secas. Desconfortável com a situação a jovem de 18 anos seguiu o caminho quieta, até que, quando menos esperava, o instrutor começou a falar novamente sobre política em tom de provocação e insinuando que a mulher não sabia o que estava dizendo, por ter pouca idade e que ela precisava ler mais.

Ao chegar ao local da aula, Rafaela se sentou no banco do motorista e começou a dirigir como sempre fazia, até que em meio a troca de marchas e disparadas de setas, começou a ouvir em tom agressivo “Rafaela não é assim”, “Rafaela você está errando pois não está me escutando”. As correções do instrutor, que nas primeiras aulas afirmavam “Fica tranquila, você está aqui para aprender”, começaram a ser rudes. Com o nervosismo de ser a última aula, o desconforto em ter que ouvir que não tem competência para ter suas próprias ideias, além das grosserias, Rafaela não aguentou, com a cabeça cheia, parou o carro, respirou e começou a chorar. Ao ver as lágrimas, o instrutor, outra vez, muda completamente, mas agora soa como preocupado e diz para irem embora.

Contando sobre o fim da história, Rafaela com raiva diz “No caminho de volta após o choro passar, o professor virou para mim e disse para eu ficar tranquila, pois mulher é assim mesmo, quando não consegue fazer alguma coisa, senta e chora”.

A experiência de escutar uma frase machista também aconteceu com Larissa, que sempre teve o sonho de dirigir, pois quando era pequena seu pai a colocava no colo enquanto estava ao volante. A jovem comenta que fez suas aulas práticas com um homem, mas que tudo ocorreu bem. Diferente dos outros relatos, esse caso ocorre na Rua do Carmo Marialva Aranha, local em São Paulo, onde ocorrem as provas práticas do Detran (Departamento Estadual de Trânsito).

Ansiosa e com medo de ser avaliada, lembra que pegou uma fila quilométrica e não parava de andar de um lado para o outro. Com um pouco de agonia de falar do ocorrido, ela explica que depois de 2 horas esperando, chegou a sua vez. Ao entrar no carro, deu bom dia ao avaliador, e o silêncio ecoou, sem resposta começou a arrumar o cinto, retrovisor, banco, até que escuta: eu não tenho todo tempo do mundo para esperar não viu, se continuar lerda assim não vai dar.

Tentando manter a concentração, não quis que isso a desestabilizasse e então seguiu com calma. Ligou o carro, saiu, fez baliza, a primeira parada, tudo perfeito, sem nenhuma pontuação, o que a deixou mais confiante.  Quando estavam chegando próximo da última rua, o avaliador comentou que ela estava ficando muito perto dos carros da direita e que se ela continuasse assim ele iria reprová-la. “Presta atenção eu não vou falar de novo” era o que ela ouvia, enquanto pedia desculpa.

Quanto mais perto do final da prova, Larissa começou a ficar mais nervosa com medo do último estacionamento. “Eu lembro que enquanto eu estava esperando na fila, eu vi a quantidade de pessoas que foram reprovadas exatamente ali na guia, e isso me deixou extremamente tensa” conta.

E foi o que aconteceu, ao estacionar e pisar o pé no freio, sentiu o pneu encostando na calçada. Nessa hora de frustação e indignação com o erro no último momento, ela relata com raiva e tristeza “Eu fiquei morrendo de vontade de chorar, eu lembro que eu só queria pegar o papel e ir embora. Mas o instrutor olhou para mim, assinou o papel e disse: viu Larissa, você reprovou pela sua incapacidade, eu te avisei que você estava perto dos carros, você está reprovada por sua causa". Chorando ela saiu do veículo.

 

O machismo de outro ângulo

Lindomar Costa, instrutor teórico e prático credenciado pelo Detran, atualmente ministra aulas para pessoas que têm medo de dirigir, e por 85% de seus alunos serem mulheres, conta em entrevista que para muitas esses medos são decorrentes de traumas e experiências negativas dirigindo.

Mas além das problemáticas presentes dentro da autoescola, ele traz uma outra perspectiva do machismo. Lindomar afirma ter percebido ao longo dessa trajetória de instrutor, principalmente para habilitados, que muitas mulheres casadas deixam de dirigir por conta de seus maridos, que preferem ter um domínio sobre elas e não as incentivam a tirar a carta de motorista. Dizem, “eu te levo, não se preocupa”, criando assim uma falsa proteção e as impedindo de ter uma liberdade.

O instrutor comenta que outro problema ocorre quando os maridos tentam ensinar as mulheres a dirigir, “Muito dos medos dessas mulheres vem de experiências desastrosas, por exemplo, tentou aprender com o marido e ele grita, chama ela de burra”.

Em relação ao assédio, ele relata que já escutou o relato de várias alunas que foram assediadas na autoescola, a ponto de desistirem de fazer as aulas. “A pessoa deposita toda a confiança dela no instrutor e de repente ele desmorona toda aquela expectativa. É uma decepção para a aluna, que acaba desistindo de tentar dirigir” comenta.

Ao longo da conversa, ele acrescenta que durante o curso de instrutor teórico e prático do Detran, é abordado o comportamento do instrutor, o que ele pode e não pode fazer, além da temática do assédio. “Eles abordam de uma forma bem clara e ensina realmente qual que é o papel do instrutor, como ele deve se posicionar”. Segundo o instrutor, uma das coisas ensinadas durante o curso é que o professor não pode andar com o braço atrás do banco do aluno, que a mão deles tem que estar sempre na perna, e que é proibido qualquer assunto que não seja direcionado a aula.

Perigo constante?

"Mulher no volante perigo constante". Essa é a clássica frase dita por homens para diminuir a capacidade de dirigir das motoristas. Porém, com um novo olhar e mergulhando fundo em relatos é possível ressignificar essa afirmativa tão corriqueira, pois de fato, sim, mulher no volante perigo constante. Mas em qual contexto?

O perigo está presente quando a mulher se senta em frente ao volante, mas ele ocorre quando um homem desconhecido está do seu lado. Esses são apenas alguns dos diversos relatos existentes, esse problema não é pontual, não é pequeno, ele é realmente constante, causando traumas e impedindo que muitas mulheres se tornem independentes e dirijam as suas próprias vidas.

Todos os dias querem podar e desestimular as mulheres, mas a denúncia precisa acontecer para que assim como, Lavínia e Samantha se ajudaram, outras mulheres possam ser salvas. A frase machista ganhou um novo significado ajudando a compreender que a violência e o machismo no trânsito começam muito antes da carteira de habilitação.

 

 

 

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Reajustes dos servidores foram viabilizados por retirada de direitos ao longo do mandato do tucano
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Lucas Martins
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14/04/2022

Por Lucas Martins

A tarde estava chuvosa, a água batia na cobertura do Palácio 9 de Julho, mas não fazia mais barulho do que os manifestantes que estavam na porta da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Dentro do Plenário Juscelino Kubistchek, os deputados e deputadas estaduais chegavam um. Os progressistas sentavam à esquerda do presidente da Casa, Carlão Pignatari, e os conservadores, à direita, enquanto a base governista se espalhava pelas fileiras do fundo e se acomodava nas cadeiras verdes acolchoadas. 

Nas galerias, diversas categorias de servidores públicos, que carregavam faixas e bandeiras, aguardavam inquietos o início da votação da reforma da previdência estadual quando o deputado Frederico D'Ávila, em processo de afastamento por ataques à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, apontou as mãos em formato de arma para eles. A atitude do parlamentar foi como um fósforo em um barril de pólvora, que gerou uma explosão na ala dos manifestantes.

Mais tarde, um dos eventos mais marcante da história da Alesp aconteceu. Durante o seu discurso, o ex-deputado Arthur do Val, que renunciou e amargou uma cassação de mandato em votação no plenário após ter áudios sexistas vazados, chamou os sindicalistas presentes de "vagabundos" diversas vezes, enfurecendo Teonílio Barba, que partiu para cima de "Mamãe Falei". Esse foi o momento em que tudo se inverteu e a base governista criou uma falsa narrativa. Os manifestantes, que estavam sendo agredidos pelo projeto que era votado, se tornaram os agressores . Por volta da primeira hora da madrugada, o gesto de Frederico D'Ávila fez mais sentido do que nunca. A reforma da previdência estadual havia sido aprovada. Um tiro na perna dos servidores, que saíram aleijados, mas sem saber que era apenas um começo de uma série de ataques promovidos pela gestão de João Doria.

Em 2021, o Executivo lançou mais uma proposta covarde ao Legislativo paulista. O Projeto de Lei complementar proposto buscava promover uma reforma administrativa ao acabar com diversos direitos dos funcionários públicos. O PLC foi a plenário em uma terça-feira de muito sol, quente como o clima que se instaurava nas galerias. Novamente os sindicatos mobilizaram diversos manifestantes para lutar contra mais um ataque. Durante as falas que apoiavam a proposta, a líder do Partido dos Trabalhadores na Alesp Professora Bebel fazia círculos com as mãos, um comando para que todos virassem de costas e ignorassem as atrocidades que eram faladas.

Entre os discursos na tribuna, a oposição contava os parlamentares presentes no local. Constatado um baixo número de governistas, era pedida verificação de quórum. Os deputados do campo progressista, juntamente com os conservadores da extrema direita, corriam para as portas do plenário e se escondiam do olhar atento de Carlão Pignatari, que queria levar mais um troféu para Doria e receber um tapa em seu topete.

A técnica de obstrução não funcionou. Os capangas do Executivo, como eram chamados os deputados da base do então governador com suas emendas parlamentares liberadas, mantiveram o quórum necessário. Ao final da sessão extraordinária, um silêncio reinou. Luto pelo funcionalismo público, que já estava mancando, e naquele momento foi ao chão. A sequência de cruzados que levou os servidores à lona não foi ocasional. O plano de Doria estava escrito, desde o começo, e ficou explícito em sua última reunião com parlamentares da Alesp, realizada mensalmente durante seu mandato, para que as estratégias da base fossem definidas.

O Secretário da Casa Civil, Cauê Macris, presente no encontro virtual, questionou em tom amigável o líder do governo na Assembleia Legislativa o porque de eles não estar nos gabinetes articulando com outros parlamentares para que a cartada final de Doria fosse aprovada em plenário. Cercado em grandes árvores em uma praça de Marília, Vinicius Camarinha riu, e disse que já estava tudo certo para que o tucano presidenciável deixasse seu cargo em paz.

O último ato de Doria seria tentar ganhar de volta o funcionalismo público com projetos de revalorização salarial. Porém, os servidores mostraram que não tinham memória curta. Através de seus óculos sustentados por uma fina aração, José Gozze assistiu à votação das duas reformas e à diversas outras lutas. Cercado por bandeiras de sindicatos que já participou ou presidiu, e quadros com líderes progressistas, ele condena todos os passos de Doria, da prefeitura ao governo. Ansioso, ele mostra suas conversas com diversos movimentos, destacando as articulações feitas para derrubar os recentes ataques feitos pelo Executivo.  Além disso, em seu caderno com adesivos de diversos partidos de esquerda colados, ele lê os dados inflacionários dos últimos dez anos, condenado a esmola oferecida por Doria em forma reajuste salarial.

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O racismo e a xenofobia contra um povo que aparenta não ligar para o seu sofrimento
por
Gabriel Yudi Gati Isii
|
16/05/2022

Por Gabirel Yudi

 

Em uma luta sem voz, Lucas Hideki mostrou sua força e contou sobre um problema pouco discutido no Brasil, praticamente uma batalha sem a atenção necessária. O racismo e xenofobia contra amarelos deixa marcas silenciosas em mim, no Lucas, em todos, mesmo que não admitam.

Os descendentes de países do Leste Asiático que estão no Brasil vêm sofrendo preconceito. Os sucessores de pessoas vindas da China, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Japão, Mongólia, Taiwan, Hong Kong e Macau, são amarelas, caso tenham em seu fenótipo características de seus antepassados. “Abre o olho, japonês”. “Volta pro seu país”. “Xingling”. “Japinha”. “Para passar no vestibular tem que matar um japonês”. “Asiático é tudo igual”. “Vírus chinês”. Frases diariamente ditas para amarelos e que tem teor de menosprezar ou ‘tirar’ com a cara.  

Antes de tudo, antes de você, leitor, achar que é apenas frescura, abra o olho (como vocês mesmos dizem) mostrarei números e fatos que te farão entender rmelhor o problema, a médio e/ou longo prazos, às situações que suas frases de “brincadeira” podem levar.

Me sentia mal, bem mal. O pior de tudo é que eu mesmo, por crescer com esse apelido, por muito tempo achei normal e não tive capacidade de sozinho entender o quanto isso me fazia mal”, diz Lucas Hideki Maesaka, estudante. Muitas das vezes sua personalidade e sua história são rotuladas apenas pela sua descendência. Como se você fosse única e exclusivamente aquilo. Sofrer ataques verbais é comum, principalmente querendo desmerecer pela sua descendência. Lucas sentiu isso ainda jovem e seu avô o aconselhou com ‘sabedoria’, como o mesmo diz:  Tenho uma memória muito forte de quando eu estava no 1º ano do Ensino Fundamental e um colega tentou me ofender me chamando de japonês, eu reportei o fato ao meu avô, que com grande sabedoria ele me respondeu com uma pergunta "Mas isso não é verdade?", desde aquele dia até o presente momento eu não me sinto ofendido mesmo quando alguém tem a intenção de me ofender. Eu tenho meu avô, que aprendeu isso sozinho”. 

Protesto nos Estados Unidos contra o racismo/xenofobia amarelo (Foto: Dia Dipasupil/Getty Images)

Segundo o Censo de 2010, dois milhões de brasileiros se declaram amarelos. Pessoas amarelas se encontram principalmente em São Paulo, cerca de 70% do total. Porém tem populações significativas no Paraná, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pará e Pernambuco. 

A família de Lucas, provavelmente já sofreu racismo e/ou xenofobia, mas Hideki pode explicar melhor o porquê desse talvez: “A resposta para isso é: muito provavelmente. Não coloco certeza em minha resposta uma vez que meu avô, o Senhor Domingos, representa a minha família inteira, e ele sabe que se algum dia ele sofreu preconceito e ficou mal, de modo algum poderia se mostrar abalado para mim”. 

Segundo o Grupo de Defesa da América Asiática e das ilhas do Pacífico (Stop AAPI Hate), em onze meses, de março de 2020 até fevereiro de 2021, houve 3.800 agressões, sendo verbais e físicas, contra asiáticos e seus descendentes. Esse número expressivo, uma média de 10 casos por dia, aumentou em 150%.  

Em março de 2021, três casas de massagens foram atacadas por Robert Long, homem branco de 21 anos. O homem matou oito pessoas, sendo seis delas mulheres asiáticas. Outro crime de ódio xenofóbico e racista é o caso de Danny Yu Chang, que foi espancado na rua e ficou parcialmente cego, o homem disse: “Eu nem vi a pessoa. Não me roubaram, então acho que foi um crime de ódio”. 

Outra ação extremamente preconceituosa foi quando um homem jogou uma bomba dentro do Consulado Chinês, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ninguém se machucou, mas caso alguém estivesse próximo, poderia ter morrido. Isso ocorreu em setembro de 2021. A causa do atentado terrorista não foi descoberto pela polícia, mas basta ligar pontos que o motivo é óbvio.  

Uma coisa que penso desde quando comecei a me entender como homem amarelo é sobre a falta de união do povo para tentar acabar com esses problemas. Compreendo totalmente a cultura ser algo de resistência e não se abalar. Porém vejo uma necessidade de se juntar para acabar com algo maior. Lucas Hideki concorda sobre a falta de união e fala com mais propriedade sobre os descendentes de japoneses: “Claro! Como em todas as minorias, a união é a principal força no combate às desigualdades. Porém existe uma característica específica nos nipo-brasileiros, essa comunidade incrível, talvez por medo, talvez por preconceito, talvez desconfiança, tende a se isolar, e isolando-se perdem a chance de conquistar um espaço maior na sociedade”. 

Minha família chegando do Japão (Foto: Arquivo pessoal)

Talvez meu povo se mexa quando for um dos nossos familiares que seja encontrado morto por conta da brutalidade contra nós, amarelos. 

No Brasil, a luta de pessoas amarelas para que o racismo e xenofobia acabe é invisibilizado pelo seu próprio povo, que não enxerga esses fatos como preocupantes, ou que se auto-sabotam para enturmar com outras pessoas. É uma batalha que os leste-asiáticos e seus descendentes se abstêm. 

Estereotipar um povo por conta de seus traços raciais é presente na vida de muitos descendentes do leste-asiático. A junção de grupos étnicos diferentes e tratar como se fosse da mesma classe incomoda. Nenhum sucessor de europeu gostaria de ser chamado de espanhol sendo que sua origem é portuguesa. Ou que zombassem da comida que sua “Nonna” faz uma comida estranha e que a cultura dela é nojenta. 

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