Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
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Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
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Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Condição ginecológica é uma das principais causas da infertilidade feminina, mas não significa que seja impossível engravidar
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Philipe Mor
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12/06/2025

Por Philipe Mor

 

A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.

Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.

Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.

Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.

Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana
Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.

Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.

Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.

Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.

Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

Raquel e sua filha Maria Fernanda Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel
Raquel e sua filha Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel

 

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57% da população brasileira não se prepara para a aposentadoria, mas o sistema previdenciário segue sendo maior de todos os programas sociais no País.
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Ana Julia Bertolaccini
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12/06/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

 

A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.

No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA).  Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria. 

Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora. 

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Seu Pedro em uma festa de aniversário 

 

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais. 

Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria. 

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Nilton Santos de Souza antes de ir para a musculação 

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer. 

A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de  futebol pela televisão  são a maneira como ele decide usufruir  desses momentos. 

Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.

Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado. 

Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário. 
 

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Aos 63 anos, Dona Elza mantém viva a tradição da família
por
Giulia Fontes Dadamo
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29/05/2025

Por Giulia Fontes

 

São 5 da manhã e a cozinha de dona Elza já está aquecida. O cheirinho doce de bolo assando se mistura com o café que, em cada gole, traz a promessa do dia seguinte. Em cima da mesa, uma receita que tem o gosto da infância, da avó, da mãe - aquela receita que ela sabe de cor, mas que seu ritual de cozinha não permite que ela a deixe de lado. Como alguém para quem o mundo corporativo jamais foi uma escolha, não por falta de caminhos, mas porque deixar morrer a tradição de sua família seria como renunciar ao próprio nome. Não foi uma escolha impulsiva, nem uma busca por uma renda extra. Para dona Elza, a confeitaria tornou-se a única forma de sustento. O prazer de cozinhar era só a base do que a movia, mas o peso de um legado familiar de afeto, de lembranças que se carregam de geração em geração é algo muito maior, como a lida com o milho.

A história do bolo de fubá começou com a avó, no fogão à lenha de Lupionópolis, no Paraná, um município de menos de 5 mil habitantes. Ela, menina, ajudava a mãe a preparar os pães e bolos que alimentavam a casa e os vizinhos. Desde então, a receita passou de mãos, mas o sabor sempre foi o mesmo que marcou a infância de Elza. Hoje, já adulta, transformou aquele aprendizado em um negócio. No começo, ela vendia apenas para vizinhos, mas com o tempo, a pequena loja foi crescendo. Não uma grande loja, mas um espaço simples, um lugar que nunca chama muita atenção, mas que sempre tem fila na porta. O bolo de fubá, com a goiabada que derrete por dentro, se tornou o grande atrativo. Cada fatia, uma mistura de lembrança e afeto. A loja de Elza não é apenas um ponto de venda. Ela é uma ponte entre o presente e o passado, entre a tradição e a sobrevivência.

Embora seu trabalho seja essencial para o sustento de sua família, a vida de quem depende da confeitaria para viver não é fácil. Dona Elza acorda antes do sol nascer, começa a mistura dos ingredientes, ajeita as formas e faz o forno funcionar, tudo para garantir que o bolo esteja pronto para o começo do dia. A clientela é fiel, mas o custo do trabalho não vem só na medida dos ingredientes. O preço do aluguel, os gastos com fornecedores e a constante preocupação de manter a qualidade, sem perder a identidade que construiu ao longo dos anos, são desafios que ninguém vê.

Segundo dados do IBGE, seis em cada dez profissionais autônomos estão na informalidade. No setor da confeitaria, esse número representa cerca de 46% do mercado, segundo o estudo conduzido pela Zupgo em parceria com a Associação Brasileira de Comércio de Artigos para Festas. Dona Elza faz parte dessa porcentagem — trabalha sem garantias, sem férias, sem direito a descanso. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias.

Na pandemia, quando o mundo parou e a cidade silenciou, dona Elza não teve esse luxo. Fechou a loja, mas não a cozinha. Continuou assando bolos e entregando de porta em porta, com a ajuda de um sobrinho de bicicleta. Os dias pareciam mais longos, e o medo, seja de pegar o vírus, de não vender, ou de faltar leite e fubá, virou ingrediente invisível em cada receita. A farinha subiu, a goiabada sumiu das prateleiras e tudo parecia acabado. Mas o forno não apagou. No improviso das entregas com máscara de pano e potinhos reciclados, ela manteve a tradição funcionando como uma resistência silenciosa, dessas que só se percebe quando tudo ameaça ruir.

E embora o bolo de fubá com goiabada tenha virado símbolo da pequena loja, outros doces também fazem parte desse acervo afetivo: o pão de mel com cobertura de chocolate meio amargo, feito em datas especiais; os biscoitinhos de polvilho, que ela aprendeu com uma vizinha mineira; e o doce de abóbora com coco, enrolado em papel celofane colorido, que só aparece na época de festa junina. Cada receita tem uma história, uma origem que atravessa quintais, comadres e panelas antigas. Dona Elza diz que quando cozinha, ouve vozes da avó dizendo para não abrir o forno antes da hora, da mãe lembrando de peneirar duas vezes o fubá, do pai pedindo o canto do tabuleiro, onde o bolo fica mais crocante.

Foi com esses doces que ela criou os filhos. E é com eles que agora sustenta os netos. A memória do que se come também constrói a memória de quem se é. Quando uma cliente pede o “bolo do costume”, não está pedindo só um sabor, está pedindo a continuidade de um tempo que parece cada vez mais distante. Um tempo em que as receitas passaram de boca em boca, em que o corpo sabia o ponto certo da massa sem precisar de cronômetro. Dona Elza, com sua touca branca e avental florido, é mais do que uma doceira. É guardiã de um saber que mistura sobrevivência, afeto e resistência. E talvez, nesse país onde tudo que é simples vira luxo, o verdadeiro privilégio seja ainda poder sentir o cheiro do bolo antes do café esfriar.

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Brasil teve 12 denúncias por hora em 2020 segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
por
Beatriz Lauerti
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06/04/2021

    A violência física contra as mulheres é a mais conhecida, mas não é a única. Existem pelo menos 5 tipos previstos na lei Maria da Penha, sancionada em 2006 e que visa prevenir e proteger o público feminino dessas hostilidades.

    Além das atitudes que interfiram na integridade corporal, a agressão acontece na forma psicológica, sexual, patrimonial e moral. Relacionamentos abusivos, assédios, estupros, privação ou destruição de bens, recursos pessoais e outros relacionados a dinheiro, e calúnias, são alguns exemplos na prática. Não ocorrem isolados uns dos outros e são considerados violação dos direitos humanos.

    Atualmente, o movimento feminista tem ganhado mais força, e os outros modos de opressão têm sido disseminados. A informação é uma parte importante na luta em favor da causa.

    Um exemplo disso pode ser visto no caso Marielle Franco. A vereadora, mulher e negra, foi assassinada no dia 14 de março de 2018, vítima de violência política. A fatalidade gerou repercussões e manifestações em larga escala.

    A investigação permanece inconclusiva e estão em aberto, 3 anos após o ocorrido, as principais dúvidas, como quem foram os mandantes da execução e o motivo. Outro questionamento que pode ser feito é: porquê os conhecimentos sobre a causa, que afeta uma grande parcela das cidadãs do mundo inteiro todos os dias, dependem de tragédias para serem propagados com maior intensidade?

    Esse é um ponto que ainda precisa evoluir, apesar das conquistas que a luta feminina vem alcançando. Outro fato que explicita essa necessidade de mais avanço são os dados de um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde. A pesquisa constatou que um terço das mulheres do mundo, o que representa cerca de 736 milhões de pessoas, já sofreram com a violência de gênero.

    Ainda, a OMS destacou que os agressores geralmente são os parceiros ou indivíduos próximos. Thedros Ghebreyesus, diretor da entidade, revelou que do número exposto, 641 milhões dos crimes foram de responsabilidade do companheiro.

    As conclusões mostraram que o sofrimento tem começado cada vez mais cedo e das adolescentes de 15 a 24 anos, 25% já esteve envolvida em algum episódio. O líder também comentou que esses casos estão presentes em todas as culturas e países. Isso é visto na prática, a partir de depoimentos de meninas dessa faixa etária.

    A estudante de Moda Marina Guimarães, de 20 anos, citou circunstâncias vivenciadas em festas universitárias, e na visão dela “é um ambiente que concentra algumas dessas situações com frequência, principalmente o assédio, já que quase todas as vezes presencia garotos insistindo ou até mesmo forçando meninas a beijá-los, por exemplo”.

    Já a estudante de Psicologia, Ingrid Guillen, também de 20 anos, relatou o medo de andar sozinha na rua, especialmente para ir até a academia. “Eram 4 quadras para chegar na SmartFit, e eu recebi 5 cantadas, ou seja, mais de uma por quarteirão. Foi um dos dias que fiquei com mais medo de voltar para casa depois do treino, e eu sempre ficava muito nervosa, já que roupa de academia é apertada e marca mais o corpo. Eu nunca podia ir de shorts, porque já faziam tudo isso comigo de calça, imagina se eu estivesse de shorts. “

    Segundo Thedros, os desdobramentos da pandemia de Covid-19 agravaram o cenário. Ele disse que os governos devem possibilitar maior acesso e investir mais em oportunidades para essa parte da população, e assim reforçar o combate à violência.

    Além dos casos citados, milhares de outros acontecem a todo momento. 12 denúncias foram feitas a cada hora no Brasil em 2020, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o que mostra a grande incidência da opressão contra as mulheres, dentro e fora das casas e do núcleo familiar delas.

No combate à violência contra a mulher, A GAZETA lança projeto "Todas Elas"  | A Gazeta

Moça protesta em favor do combate à violência contra as mulheres.

 

    Essas informações e os relatos só evidenciam a insuficiência de recursos para realmente combater todos os modos de violência contra o público feminino. Ficam explícitas a necessidade e a urgência em melhorar o apoio, os meios, auxílios e instrumentos para ajudar as vítimas e para evitar que o número de atingidas aumente cada vez mais.

    A intervenção do governo e de líderes mundiais é essencial, principalmente quanto ao investimento em educação em todos os países, e em políticas públicas de defesa e proteção das mulheres. A comunidade e a imprensa também têm um papel importante nesse processo.

    Exemplos de atitudes que seriam colaborativas são a criação de programas que desconstruam o machismo enraizado na sociedade, o apoio a entidades dedicadas à causa, a divulgação de informações para que todos entendam a gravidade do assunto, reforçar a relevância da união para lutar contra isso, incentivos para que os agressores sejam denunciados, e todos os esforços possíveis que contribuam e possam salvar vidas femininas.

 

 

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Mulheres trans vivem uma luta constante contra o preconceito do Feminismo Radical, o Radfem.
por
Luiza Nascimento
|
30/03/2021

Quando falamos sobre feminismo, a imagem que vem à mente é um grupo de mulheres unidas, lutando contra o patriarcado e defendendo umas às outras com unhas e dentes. Essa imagem, no entanto, está longe de ser a realidade vivida pelo movimento, que ao longo das décadas se dividiu.

Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas.
Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas. | Foto: Reprodução.

Essa necessidade de separação surge das divergências de luta e da visão que cada mulher possui do movimento feminista e de seu papel na sociedade. Grupos como o feminismo liberal, feminismo negro e o feminismo radical (o popular Radfem), buscam o mesmo objetivo, porém, com meios diferentes. 

 

Mas para aqueles que acreditam que os fins justificam os meios, essa noção pode estar abalando a luta feminista. Com essa divisão, surge a marginalização das vertentes dentro do feminismo e a homogeneização da luta. O movimento se torna exclusivo para aquelas que atendem as expectativas de cada vertente. 

 

Um dos grupos mais afetados por essa exclusão é o de mulheres trans, que lutam para serem reconhecidas como mulheres e detentoras de pautas feministas.  

O Radfem e o Movimento Trans

O Radfem surge por meio de obras de autoras como Shulamith Firestone (A dialética do Sexo), Kate Millet (Política Sexual) e Simone de Beauvoir (O segundo sexo). Elas abordam qual seria a origem do patriarcado e do machismo enraizado na sociedade, afirmando que essa busca é necessária para a mudança do comportamento social e político, analisando questões como elementos históricos e sociopolíticos, contrapondo-se às explicações e abordagens deterministas, como por exemplo o fator biológico. 

 

Essa vertente que se popularizou na década de 70, contudo, possui suas próprias derivações. Com o advento da internet, a comunicação de movimentos sociais ganhou força e atraiu novas pessoas para esses grupos. O Radfem se tornou um movimento dentro da internet com seu próprio pensamento. 

 

O grupo aborda atualmente a questão biológica como um fator determinante na construção da imagem do feminino. Elas defendem que não há subjetividade em ser mulher e que o preconceito surge a partir do gênero associado ao nascimento. O movimento afirma que suas ideias se baseiam na teoria clássica do feminismo radical, utilizando autoras como Robin Morgan, Julie Bindel, entre outras, como exemplo. 

 

A transfobia se tornou um dos sintomas do Radfem atual, que divulga por meio das redes sociais o pensamento que pessoas trans não possuem uma identidade verdadeira. 

 

Segundo elas, essas mulheres não podem se considerar parte do gênero feminino, pois em sua nascença são homens. Há, aquelas que acreditem que a mulher trans é uma reação da sociedade patriarcal à luta feminista, que pretende desestabilizar suas pautas com sua participação. Homens trans, por sua vez, podem ser associados a mulheres que não aceitaram seu papel como oprimidas e transformaram-se nas opressoras. 

 

Para Djamila Ribeiro, no entanto, as performantes do Radfem, atualmente, não compreendem o que foi escrito pelas primeiras autoras. Para a filósofa, houve uma distorção de suas ideias, o que resultou em um movimento transfóbico. 

O preconceito na prática 

Para compreender, na prática, como a transfobia por parte do movimento Radfem impede ou atrapalha mulheres trans de participarem das pautas feministas, foram entrevistadas Nicolly e Pâmela, duas mulheres trans que se relacionam com o feminismo de maneiras distintas. 

 

Nicolly iniciou sua transição aos 18 anos, após sair do colégio. Segundo ela, a partir do momento que começou a tomar seus hormônios adquiriu liberdade. Para ela, entretanto, se assumir como uma mulher foi algo difícil, pois ao longo de sua vida sofreu preconceito em todos os lugares que adentrou, seja para trabalhar ou em seu convívio. Mas alerta para o preconceito que sofreu quando era apenas um jovem garoto gay, sendo algo explícito e mais agressivo. 

Segundo Nicolly, ela compreendeu seu papel como mulher na sociedade quando começou a fazer programa, em suas palavras “fazer programas como trans foi a maneira que conheci a vida”. Quando o assunto feminismo foi abordado, ela afirmou que pautas feministas nunca fizeram parte de sua vida, pois durante sua transição e sua vida como mulheres, essas questões jamais se aproximaram de sua realidade.  

 

O feminismo é algo distante para ela, porém, algo que a sociedade trata a todo o momento. De acordo com o que disse: “tudo é feminismo hoje em dia, mas isso nunca me afetou como mulher trans”.  

Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis.
Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis. | Foto: Reprodução/Instagram.

A jovem paulistana sente a segregação entre mulheres cis e trans, seja dentro do movimento feminista ou na sociedade em que vive. Ela afirma que emprego para mulheres cis é algo fácil, assim como suas relações, enquanto pessoas trans, em geral, sofrem para serem reconhecidas. A maneira que encontra para que uma mudança dentro do feminismo ocorra é que surja o feminismo trans, assim como o feminismo negro, o intuito é abordar as pautas de gênero direcionando-as para mulheres. Em sua visão, não apenas o Radfem, mas todo o movimento, exclui mulheres trans de suas decisões, deslegitimando suas mudanças e necessidades. 

 

Se para Nicolly o feminismo é algo distante, para Pâmela é uma pauta que está presente desde sua adolescência. Sua transição começou quando tinha apenas 15 anos de idade e, de acordo com ela, foi algo turbulento e complicado. 

 

Sua família resistiu a ideia desde o princípio, porém Pâmela estava decidida a se tornar quem nasceu para ser. 

 

Na escola, afirma que participou ativamente de seu grêmio estudantil e ingressou nas pautas feministas abordadas pelo grupo. Na época, já sabia ser uma mulher e não se escondia de seus colegas. Essa participação, entretanto, foi dificultada por figuras importantes de sua escola, como sua professora de Ciências Sociais e a Coordenadora da escola.  

 

Segundo Pâmela, as duas deslegitimavam sua participação por ser menino e reafirmavam a ideia de que mulheres são mulheres por determinação biológica. Ela relembra que ambas faziam parte do pequeno grupo Radfem que existia em sua região, porém, os ideais do movimento não eram de seu conhecimento. 

 

Foi apenas quando ficou mais velha e concluiu sua transição, que Pâmela compreendeu a necessidade de lutar contra um movimento de repressão e exclusão dentro do feminismo. Em suas palavras “o feminismo pertence a todas e a pauta de todas as mulheres que, em algum momento, sofreram com a opressão da sociedade por seu gênero, seja cis ou trans.” 

 

Ela ingressou na faculdade de Ciências Sociais aos 22 anos e iniciou um pequeno blog durante seu período de estudante. A jovem, no entanto, se viu forçada a excluir suas redes sociais e sua página após ataques frequentes na internet, associados a grupos feministas de dentro da universidade. A partir desse momento, começou a escrever para o pequeno jornal impresso pelo Movimento de Feministas Negras de seu campus.  

 

Pâmela diz que as feministas negras são as únicas que se aproximam da dor de uma mulher trans, pois reconhecem o sofrimento que é ser deslegitimado em seu campo político e social, de forma opressora e histórica.  

 

“Em um país onde negros são assassinados com frequência ao andarem por suas comunidades ou carregarem um guarda-chuva e mulheres trans são espancadas, violentadas e destinadas a prostituição, se unir por uma causa é a solução que mulheres negras e mulheres trans encontraram para ganharem força. Mulheres sozinhas não fazem verão, mas quando se unem provocam mudanças. É triste observar grupos que nos ignoram e excluem de pautas que nos interessam ou se quer ouvem nosso sofrimento, nos diminuindo a uma questão biológica. Sei que homens fazem coisas terríveis para essas mulheres e que o sofrimento pode gerar raiva e angústia, mas também sei que generalizar não é a solução, pois conheci feministas radicais que foram duríssimas comigo e me humilharam, mas outras que apresentaram a simples vontade de mudar o que vivemos.” 

 

Pâmela acredita que a solução não é o feminismo trans, mas sim, a unificação de ideias. Ela acredita que o feminismo deve expandir para dentro de comunidades, para o interior do País e da comunidade LGTQIA+, quebrando a homogeneização existente. 

Contraponto ao Radfem

Segundo Lola, do blog feminista Escreva Lola Escreva, o movimento feminista precisa dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e o patriarcado. E acredita que o movimento necessita compreender o papel do machismo na vida de meninos e pessoas trans, pois assim como as mulheres são oprimidas e presas a um estigma social, homens também participam dessa opressão.  

 

Durante uma entrevista ao Universa, Uol, sobre a resistência de feministas aceitarem mulheres trans nas pautas, ela observa que um dos maiores problemas entre as Radfem e mulheres trans, é o uso de estereótipos femininos, construídos por uma sociedade machista, por parte das mulheres trans. A feminista aponta que o grupo de feministas radicais não compreende as razões que essas mulheres possuem para utilizar desses padrões. 

 

Lola afirma que utilizar batom, salto, maquiagem, e outras características que são sempre atribuídas por mulheres é uma maneira da mulher trans se afirmar como mulher. Segundo ela, uma mulher cis não necessita disso, pois quando abandona esse padrão é ainda mulher e seu gênero jamais é questionado, mas sim sua feminilidade. 

 

A feminista reafirma que o feminismo deve ser para todas, para que assim ele mude algo dentro dessa construção patriarcal e machista que vivemos. Abraçar mulheres trans, as suas pautas e afirmar seus direitos, exigindo sua segurança, é trazer uma nova face ao feminismo. 

 

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O movimento feminista já teve muitas conquistas. Entenda como ele é muito necessário ainda hoje.
por
Niara Viana de Brito
|
29/03/2021

A luta feminista: novidade que perdura por muito tempo

 

A luta feminista é um movimento social, político e econômico que perdura até os dias de hoje, com o objetivo de discutir e lutar por direitos igualitários das mulheres. O movimento feminista busca, principalmente, a igualdade de direitos, oportunidades e tratamento entre homens e mulheres, além de lutar contra a inferioridade e opressão que as mulheres são submetidas na sociedade até os dias de hoje.

Para entender melhor como esse movimento persiste até hoje, é necessário, primeiro, saber como surgiu essa luta, suas conquistas e sua caminhada histórica.

Como surgiu o movimento feminista e suas as ondas

Uma das maiores influências para a criação do movimento foi a Revolução Francesa e as alterações sociais que começaram a acontecer nesta época, durante o século XIX. A partir das mudanças causadas pela Revolução, as mulheres começaram a entender as desigualdades políticas e de direitos a que eram submetidas e passaram a questionar, lentamente, sobre os modelos sociais em que viviam. Esse período ficou conhecido como a primeira onda do feminismo.

Nessa mesma época, nos Estados Unidos e, principalmente, no Reino Unido, mulheres começaram a se reunir em manifestações para garantir o direito à participação na vida política, direito de votos femininos nas eleições, aos estudos e melhores condições de trabalho. Dando assim, origem ao chamado movimento sufragista.

No período entre os anos 60 e 90, aconteceu a segunda onda do feminismo. Neste período, a luta pela igualdade social e de direitos se intensificou e as mulheres passaram a questionar todas as formas de submissão e inferioridade que enfrentavam.

Além disso, fizeram parte das questões debatidas pelo movimento nessa fase, as decisões sobre liberdade sexual, maternidade e direitos de reprodução. Uma das principais discussões nessa época girava em torno das opressões sofridas e do motivo de existirem tantas formas diferentes de opressão a que as mulheres eram submetidas. Ainda nesta época, começou a surgir a ideia da coletividade, da força da união das mulheres enquanto movimento capaz de provocar alterações na sociedade.  Mulheres negras e lésbicas também se juntaram ao movimento feminista, trazendo ainda mais força feminina, novas demandas e novas discussões para o feminismo.

A terceira onda feminista é o período iniciado a partir dos anos 90, que perdura até hoje, podendo ser definido como a busca de total liberdade de escolha das mulheres em relação às suas vidas. Nessa fase, surgiu o termo interseccionalidade (ou feminismo interseccional), usado para se referir às diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer, sendo em função de sua raça, classe, comportamento ou orientação sexual, por exemplo.

Nesta fase, foi dada uma maior importância para as trocas de informações e debates entre uma maior quantidade possível de mulheres, cada qual com suas condições e exigências especificas, trazendo mais visibilidade para o movimento feminista. Entendeu-se, também, que os comportamentos e submissões enfrentados pela mulher são resultados de construções sociais ao longo de vários anos, deixando espaço para serem discutidos e reconstruídos nessa luta.

Seus grupos e ideais feministas

Algumas questões importantes para a luta feminista são: o fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres; igualdade na participação política do país, tanto na tomada de decisões quanto na ocupação; problemas de saúde ligadas diretamente às mulheres, como sexualidade e a discussão sobre o aborto; direitos relacionados a maternidade e a amamentação; luta contra estereótipos; e combate aos diferentes tipos de assédio e violências sofridas pela mulher, como moral, sexual, psicológica, dentre outras.

O movimento também leva em consideração questões específicas de alguns grupos de mulheres: como negras, lésbicas, periféricas, prostituas, indígenas e transexuais. Cada grupo possuiu uma demanda diferente a mais para ser questionada e discutida em relação às suas vidas e condições.

Suas principais conquistas e lutas

Em 1791, no contexto da Revolução Francesa, foi publicada a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que exigia a igualdade jurídica entre homens e mulheres, escrita por Olympe de Gouges.

Em 1827, as brasileiras obtiveram autorização para estudar, mas apenas o ensino elementar. Foi a brasileira Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte, a pioneira a levantar a bandeira da educação. Em 1879, as mulheres receberam a autorização do governo para cursar o ensino superior, porém, as que seguiam o caminho eram criticadas. Apenas em 1887 a primeira brasileira recebeu um diploma de ensino superior. Rita Lobato Velho Lopes se formou na Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1911, o dia 8 de março ficou marcado como Dia Internacional da Mulher, devido a morte de cerca de 130 operárias em uma fábrica têxtil de Nova York, quando as mesmas se revoltaram pelas más condições de trabalho que estavam submetidas. Apesar da data só ter sido oficializada em 1975, ela é relembrada todo ano como um dia de lutas sociais, políticas e econômicas das mulheres.

Em 1918, as mulheres do Reino Unido tiveram o direito ao voto, após uma extensa luta feminista gerada pelo movimento sufragista, com a fundação União Nacional pelo Sufrágio Feminino, criada pela educadora britânica Millicent Fawcett. Já no Brasil, em 1932, o voto feminino foi liberado para mulheres casadas com autorização dos maridos, viúvas e solteiras com renda própria. Essas restrições foram removidas em 1934.

No dia 27 de agosto de 1962, há apenas cinquenta e cinco anos atrás, foi sancionado o Estatuto da Mulher Casada que, entre outras coisas, instituiu que a mulher não precisaria mais da autorização do marido para trabalhar, receber herança e, em caso de separação, ela poderia requerer a guarda dos filhos. Antes disso, o cônjuge precisava autorizá-la a exercer tais atividades. No mesmo ano, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil, Apesar de não ser o melhor método contraceptivo, o medicamento trouxe autonomia à mulher e iniciou uma discussão importantíssima sobre a liberdade sexual feminina.

Em 2006, a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06) foi criada para reprimir a violência familiar ou doméstica contra as mulheres. A lei trouxe regulamentações específicas em relação à punição e tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei recebeu este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher que sofreu violência doméstica do marido durante o casamento e ficou paraplégica em razão das violências sofridas, tornando-se um símbolo da luta contra a violência doméstica no país.

O movimento atualmente

De uns tempos para cá, o tema vem se espalhando e ganhando forças em vários lugares, e isso se deu, sobretudo, por causa das redes sociais. “As plataformas online proporcionaram a propagação das experiências e vivências diárias, em relação ao machismo e patriarcado, de diversos grupos de mulheres”, diz Tatiane Viana, estudante de Artes Visuais na UNESP de Bauru e participante do coletivo feminista do campus.

“Sejam elas lidando com a desvalorização no mercado de trabalho, casos de assédio, estupros, violência doméstica, entre outros” acrescentou Tatiane. Assim, a ideia da coletividade pôde unir ainda mais as mulheres e fortalecer o movimento, dando maior relevância e aumentando as demandas de disseminação sobre o assunto.

A importância dessa luta

Apesar de todas essas conquistas e, aos poucos, a valorização do movimento, a luta feminista perdura muito atualmente, não estando perto de acabar. “Isso porque muitos dos direitos das mulheres ainda não foram debatidos e oficializados, como a discussão sobre o direito de aborto no Brasil”, comenta Letícia Barbosa, estudante de biologia e ativa no coletivo feminista da UNESP, no campus de Santos.

De modo geral, o feminismo busca desconstruir os ideais machistas e patriarcais que estão enraizados na sociedade desde muito tempo, e luta por uma comunidade mais igualitária na questão de acesso à direitos entre todos. “Longe de pregar a dominação das mulheres sobre os homens ou odiar o sexo oposto, o feminismo busca apenas igualdade de gênero”, enfatizou Letícia.  

 

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Mesmo depois de tantos anos de luta, gênero feminino ainda sofre para obter seu espaço ao fazer e falar de automóveis no Brasil.
por
Thiago Pereira
|
22/03/2021

Campanhas, criação de ongs, manifestações... A luta das mulheres por uma sociedade mais igualitária não é novidade para ninguém e já vem atravessando séculos. É fato que o cenário não é o mesmo de tempos atrás; as mulheres já conseguiram conquistar diversos direitos, como ingressar no mercado de trabalho e ter sua própria independência, mas isso não significa que dentro desse âmbito não sofram com os preconceitos e dificuldades de viverem em uma sociedade enraizada em conceitos patriarcais e machistas.

 

Dados do Ministério do Trabalho mostram que a participação feminina no mercado de trabalho formal atingiu o patamar de 44% em todo o território nacional em 2018; mesmo assim, apenas 3 em cada 100 CEOs no país são mulheres. Dados como esse comprovam que, mesmo depois de muitos anos de luta para que se tornasse um ambiente mais justo e igualitário em termos de oportunidade e valorização do trabalho, o mercado continua sendo um meio muito machista e sexista. Dentro desse cenário, algumas áreas estão mais avançadas e outras menos, no que diz respeito aos tópicos apresentados, e uma das que estão menos avançadas é a automotiva, aquela que envolve tudo aquilo relacionado a automóveis e afins. Piadas que envolvem a questão de gênero ainda são muito recorrentes e a ideia de que "mulher não entende de carro" também.

 

A indústria automotiva conta com 83% dos cargos em empresas de cadeia produtiva ocupados por homens, informam dados da pesquisa Presença Feminina no Setor Automotivo, realizada pela Automotive Business em parceria com a MHD Consultoria no segundo semestre de 2017. Um fato que, além de problemático simplesmente pela presença do preconceito relacionado ao gênero, é prejudicial para as próprias empresas, porque como é óbvio, as mulheres fazem parte do mercado consumidor, e por isso é imprescindível que essas empresas estejam alinhadas às expectativas e filosofias desse público, e ninguém melhor do que uma mulher para saber o que outra mulher espera de um produto. Em casos como esse, a representatividade ajuda a superar não somente barreiras sociais, mas também comerciais, gerando maior rentabilidade.

 

Infelizmente e obviamente, o jornalismo automotivo, assim como o segmento em que se apoia para produzir seus conteúdos, também ainda é um meio muito opressor, mas com muito esforço e uma qualidade de trabalho impecável para provar o que não precisaria ser provado, alguns nomes vêm ajudando a transformar essa realidade, mostrando para o público que mulher entende sim de carro, que elas devem estar inseridas nesse cenário e que o conteúdo produzido por elas faz frente a qualquer outro produzido por qualquer um.

 

Um desses nomes é Michelle de Jesus. Com experiência de 15 anos na oficina mecânica do pai, ela também foi piloto automobilístico por mais de 10, apresentadora do programa Oficina Motor, veiculado no canal +Globosat e colunista de revistas especializadas em automóveis. Hoje, apresentadora do seu próprio canal de Youtube (que já conta com mais de 120 mil inscritos) e Head de Marketing de uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, ela ainda consegue ajustar sua rotina à um MBA executivo no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Multifacetada como se vê, Michelle conta que, ao longo de sua carreira, sempre viveu e conviveu com vários homens e, por isso, enfrentou muitas dificuldades simplesmente pelo fato de ser mulher, mas nunca deu importância à elas. “Meu conselho é para que as mulheres não fiquem dando voz à essas pessoas, que elas simplesmente façam e sejam melhores que elas, porque é inevitável o talento, a capacidade, quando você tem e mostra seu talento e capacidade, é inevitável que você consiga seu espaço”.

 

Um verdadeiro caso de sucesso, Michelle, que já havia feito seu primeiro milhão antes dos 30 e viajado o mundo inteiro pilotando, testando e avaliando os carros mais legais do mundo, conta que a necessidade de empreender e aproveitar as oportunidades que lhe apareciam foram as principais “motivações” para ela alcançar o patamar onde está hoje. “Às vezes a gente fica buscando algo com o qual nos identificamos, mas na verdade o que temos de fazer é abraçar as oportunidades que aparecem e fazer delas as melhores oportunidades do mundo. Eu fiz isso lá atrás”. Sem formação de Jornalismo, ela conta também que a experiência em frente às câmeras foi fundamental para torná-la uma comunicadora. “Eu não era jornalista, não era apresentadora; fiz alguns cursos e treinamentos então acabei me especializando, virando uma apresentadora, influencer, garota propaganda (...) fiz vários comerciais, trabalhei pra várias marcas, várias montadoras, enfim, as coisas foram acontecendo meio que de forma natural, pelo fluxo e pela persistência de querer dar certo. Tanto faz a área, o que importa é fazer dar certo”, afirma.

 

Ao ser questionada sobre a possibilidade de estudantes de Jornalismo fazerem algo para tornar o cenário automotivo mais “justo”, Michelle é certeira: “eu acho que justiça é você batalhar pela mínima oportunidade que se tem, ela pode ser pequena, boba ou até sutil, às vezes passa desapercebida por algumas pessoas, mas aí você pega essa oportunidade que ninguém deu valor e faz aquilo que ela propõe de maneira muito bem feita, assim você vai conseguir ter voz, alcançar o maior número de pessoas possíveis, não se esquecendo sempre de fazer isso de uma forma justa e honesta com a informação. Acho que pra qualquer profissional, jornalista ou não jornalista, a questão de justiça é essa, é pegar algo mínimo, nem que seja dentro do seu bairro, e transformá-lo em algo verdadeiro, transparente e de grande valor para a comunidade”, finaliza.

Michelle de Jesus avalia Volkswagen Virtus GTS
Michelle de Jesus avalia o Volkswagen Virtus GTS. / Foto: Canal Michelle J

Além de Michelle, Giu Brandão, apresentadora do canal MundoSobreRodas, no YouTube, e Silvia Garcia, apresentadora do canal da Webmotors, que se encontra também no YouTube e representa uma gigante no meio de compra e venda de automóveis e motocicletas, também produzem um conteúdo de altíssima qualidade. É claro que muitas outras também o fazem, mas nesse texto seria impossível citar todas, elas são muitas e cada vez mais, o que é ótimo; mas para quem gosta ou precisa de dicas sobre o assunto, o conteúdo dessas mulheres é um prato cheio, e consumi-lo é um favor a si mesmo.

 

 

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Economia e Negócios

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Informalidade e falta de assistência são alguns dos problemas apontados nas últimas greves
por
Adriane Garotti, Beatriz Leite, Gabriela Reis e Liliane de Lima
|
19/10/2020

Há quase dois anos, quando começou a trabalhar com aplicativos de entrega, o carioca Paulo Ribeiro, 22, não encontrava nenhum empregador disposto a contratá-lo. Foi com a popularidade dos serviços de delivery, que o jovem encontrou uma oportunidade para manter a renda da família estável. 


Porém, com o início da pandemia de Covid-19, Paulo e outros entregadores tiveram que aumentar a jornada de trabalho para ganhar cada vez menos. “Eu saio para rua porque infelizmente não tem jeito”, conta Paulo. E acrescenta: "tá mais puxado, eu tô tendo que trabalhar o dobro para conseguir dinheiro”.


Desde o início de abril, os entregadores de aplicativos têm reivindicado melhorias nas condições de trabalho do setor. Aumento no pagamento, prestação de auxílio-acidente e doença, locais que ofereçam banheiros e espaço de descanso, uma legislação que regularize as relações empregatícias com as plataformas de entrega, auxílio pandemia, para custear equipamentos de proteção e licença médica, fim dos bloqueios e desligamentos indevidos (que podem ocorrer quando o entregador se nega a fazer uma entrega ou até se foi identificado que ele participou de alguma paralisação da categoria) e mudança no sistema de pontuação dos aplicativos.


O serviço terceirizado realizado com a tecnologia - como os aplicativos Rappi, iFood, UberEats, LivUp, James - se tornou um dos trabalhos essenciais durante a pandemia do novo coronavírus. Isso serviu para realçar a precariedade que os trabalhadores desse setor enfrentam. “A mudança só é que está saindo um pouco mais de pedidos, mas também estamos correndo bem mais risco do que antes”, afirma Paulo.


Durante a quarentena, os pedidos de delivery, uso de motoristas por aplicativos e outras atividades que podem ser feitas através da tela de um smartphone, aumentaram. O fato das pessoas terem que ficar em isolamento social, algumas tendo a oportunidade de trabalhar em casa, fez com que esse mercado crescesse ainda mais no ano de 2020. 


Segundo os dados da Pesquisa Gestão de Pessoas na Crise Covid-19, realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), 41% dos funcionários das empresas foram colocados em regime de home office, praticamente todos os que poderiam trabalhar à distância, que representavam 46% do total dos empregados. No setor de comércio e serviços, 57,5% dos empregados adotaram o home office, enquanto nas pequenas empresas o percentual ficou em 52%. Os dados foram coletados em abril, em 139 pequenas, médias e grandes empresas que atuam em todo o Brasil. 


Segundo o levantamento feito pela Corebiz, empresa de inteligência para marcas do varejo, as vendas online cresceram 330% no começo do ano só no setor alimentício. O diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio, afirma que com aumento da procura, o comércio enxergou as entregas como uma forma de continuar funcionando. "Os mais diferentes serviços, inclusive de diferentes atividades econômicas, fazem hoje a sua atividade por meio da entrega desses produtos."


Ainda assim, o cenário desses profissionais não mudou. Os entregadores continuam trabalhando sem nenhuma garantia de auxílio de renda em caso de acidentes, sem descanso semanal remunerado e férias, e muito menos Fundo de Garantia (FGTS) ou 13˚salário.


As empresas afirmam que os associados são autônomos e que trabalham de acordo com a sua disposição e necessidade, de forma que a plataforma funciona apenas como intermédio para auxiliar a comunicação entre as partes. A ideia de parceria e não de trabalho é um dos motivos que faz os trabalhadores se enxergarem como microempreendedores em cargos terceirizados. 


Então, utilizam seus próprios transportes para trabalhar. Um carro particular ou alugado, se for motorista de aplicativo. Bicicleta ou motocicleta para o serviço de entrega. Um levantamento da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas mostra que um ciclista que trabalha mais de 12 horas por dia ganha mensalmente, em média, R$995,30. 


Segundo apuração feita pela reportagem, dos 12 entrevistados, cerca de 33% dos entregadores trabalham até 12 horas e 25% chegam a trabalhar mais do que isso.

Infográfico 1: Jornada de trabalho
Infográfico 1: Jornada de trabalho

A entregadora Luciana Kasai, 21, usa a bicicleta como transporte de trabalho. “Eu pedalo uns 50 quilômetros por dia. Mas trabalho pouco comparado a outras pessoas”, comenta. Ela também é porta-voz do Movimento dos Entregadores Antifascistas e relata os problemas do meio de trabalho. “Tenho minha bike própria. Já as bicicletas para alugar, [de empresas como Itaú Bike] estão limitando o acesso, porque não pode ficar o dia inteiro”, disse Luciana. E, ainda relata: “Uma amiga minha tava fazendo esse trampo e em um dia ela gastou R$30 para alugar uma bike e teve que trabalhar o dobro de tempo para conseguir algum dinheiro.”

 

Mobilização dos entregadores 


Com tantas demandas e sem a resposta dos aplicativos, os entregadores já organizaram pelo menos três greves, chamadas de “#BrequeDosApps”. A paralisação ocorreu em diversas capitais do país, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. As mobilizações têm como intenção mais do que chamar atenção das empresas, mas também da população e do Governo Federal.


A manifestação é organizada pelas redes sociais, nos grupos de trabalhadores de entrega. É nas plataformas de comunicação que tudo começa: o início da mobilização, agendamento para o dia da greve e divulgação entre parceiros e população. Para apoiar o movimento, cartilhas circulam pelas redes ensinando como a população pode ajudar na mobilização.


Ao longo do dia escolhido para o protesto,  os trabalhadores pedem para que os usuários não realizem pedidos e que as pessoas cozinhem em casa, ou então, façam postagem comparando os valores entre o que os usuários pagam de taxa de entrega e o que os entregadores recebem. “Se as pessoas começaram a tomar consciência de que entregador é gente, foi devido às greves”, aponta Luciana Kasai.


Apesar das manifestações serem um movimento dos trabalhadores sem o apoio de nenhuma organização, foi nesse espaço que nasceu o grupo Entregadores Antifascistas. Para a porta-voz, Luciana, é importante aliar a luta pelos direitos dos entregadores à luta contra o fascismo. 


“Há um genocídio que não é direto. Você obrigar as pessoas a sair nessa pandemia sem o mínimo [de equipamentos de proteção] é uma forma de genocídio também. Por isso, é necessário se posicionar contra uma política fascista”, declara a porta-voz do movimento.


A entregadora aponta dificuldades em se manifestar, como o bloqueio sem justificativa dos aplicativos e as discordâncias dentro da própria classe. Dentre esses pontos de conflito está o discurso de liberdade do trabalhador, uma falsa sensação de empreendedorismo alimentada pelo neoliberalismo. Essa é uma ideologia política-econômica que também é social. Segundo a análise da doutora em economia política e professora da PUC-SP, Camila Kimie Ugino, o trabalhador torna-se o próprio capital. 


Ela afirma que o movimento de trabalhos cada vez mais informais, com uma mão de obra cada vez mais precária, por intermédio de uma plataforma online, foi apelidado de “uberização”. 


É essa lógica que os aplicativos usam ao chamar o entregador de “parceiro” e colocar como vantagem que nesse tipo de trabalho a pessoa pode ser seu próprio chefe, fazer seu próprio horário e ter um rápido retorno financeiro. Porém, são inúmeros os relatos de entregadores que foram bloqueados dos aplicativos após sofrerem algum acidente na rota e não conseguirem concluir uma entrega. Além disso, tiveram que arcar com custos médicos e reparos do veículo utilizado.


 
Questão de gênero


A profissão de entregador é a que apresenta um maior número de homens. No levantamento feito pela reportagem, 91,7% dos que responderam eram homens. Já o iFood informa que apenas 1,8% dos parceiros são mulheres.  


Luciana Kasai aponta as dificuldades das discrepâncias de gênero na categoria, pois, apesar de estarem em uma luta incomum, há questões que não abrangem os homens, “dá uma solidão, não tem com quem compartilhar”, comenta Kasai. 
 

Infográfico 2: Gênero
Infográfico 2: Gênero

 

Entre elas, a entrevistada aponta a falta de banheiro como um dos principais problemas que as mulheres enfrentam nesta profissão, principalmente quando estão menstruadas. “Mas vou falar o que? Falar pra quem?”, questiona. 


A presença de mulheres nos aplicativos de entrega, como “parceiras”, sofre  boicote das empresas também. Em entrevista ao Portal Uol, a entregadora Luana Belmiro, 18, relata o recebimento de mensagens de serviços exclusivos para homens. “Querem dizer pessoas do sexo masculino mesmo. Tanto que os meus colegas homens recebem um aviso de que há pouca demanda naquele momento. Já eu, recebo isso [aviso de que é preciso homens].”


O assédio é outro problema que o público feminino enfrenta na profissão, principalmente de clientes ou durante o tráfego nas ruas. “Como mulher, você tem certa carapaça. Não é muito fora do normal,  de qualquer outro lugar que a mulher quer ocupar. Não é específico da mulher entregadora, mas tem poucas mulheres fazendo [entregas]”, conclui Luciana. 

 

A visão dos restaurantes


No início da pandemia, uma das medidas impostas pela quarentena foi que os restaurantes fechassem os salões onde a comida era servida. Uma das soluções encontradas para continuar o funcionamento dos estabelecimentos foi a adesão ao sistema de delivery próprio ou por cadastramento nos aplicativos. 


Porém, uma pesquisa feita em junho pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, a Abrasel, com empresários de São Paulo, mostrou que 73,5% aderiram às entregas. Desses, 86,2% usa aplicativos (principalmente iFood, Rappi e Uber Eats) e 80% está insatisfeito com o atendimento recebido. E as reclamações são diversas: taxas abusivas, deficiência no suporte online e problemas com os entregadores.


Jorge Rafael, 31, gerente de um restaurante em Santa Cecília, na zona central de São Paulo, conta que quando começou o isolamento social, pensou em adotar o serviço de entregas pelo aplicativo. Chegou até a entrar em contato com as plataformas, mas as taxas do serviço acabaram impossibilitando a adesão:  “não tem como ficar pagando pra trabalhar”, comenta. Ele conta que para aderir às plataformas seria preciso aumentar o valor dos pratos, o que prejudicaria o restaurante, que visa um atendimento mais do bairro. A solução foi o boca a boca. Ir nas empresas ao redor,  divulgar o trabalho, dar a possibilidade de fazer pedidos por WhatsApp, sem cobrar a entrega e com funcionários do próprio estabelecimento levando o pedido.


Jorge ainda ressalta que não gosta da forma que os entregadores são tratados pelos aplicativos e também da falta da criação de vínculo do empregador com o estabelecimento. Porém, como consumidor, reconhece ser difícil escapar disso, pela facilidade que o serviço online oferece.


Já Roni Mesquita, 46, conta que abriu seu pequeno restaurante, também na Santa Cecília, durante a pandemia, após ter perdido seu emprego numa loja de móveis. Ele optou por utilizar as plataformas de entrega, porém visando mais uma divulgação, não o retorno financeiro.

 

Imagem da capa: Reprodução Uol/Gilnei J. O. da Silva/Arquivo Pessoal

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