Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
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Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
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Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Condição ginecológica é uma das principais causas da infertilidade feminina, mas não significa que seja impossível engravidar
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Philipe Mor
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12/06/2025

Por Philipe Mor

 

A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.

Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.

Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.

Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.

Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana
Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.

Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.

Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.

Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.

Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

Raquel e sua filha Maria Fernanda Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel
Raquel e sua filha Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel

 

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57% da população brasileira não se prepara para a aposentadoria, mas o sistema previdenciário segue sendo maior de todos os programas sociais no País.
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Ana Julia Bertolaccini
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12/06/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

 

A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.

No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA).  Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria. 

Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora. 

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Seu Pedro em uma festa de aniversário 

 

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais. 

Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria. 

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Nilton Santos de Souza antes de ir para a musculação 

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer. 

A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de  futebol pela televisão  são a maneira como ele decide usufruir  desses momentos. 

Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.

Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado. 

Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário. 
 

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Aos 63 anos, Dona Elza mantém viva a tradição da família
por
Giulia Fontes Dadamo
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29/05/2025

Por Giulia Fontes

 

São 5 da manhã e a cozinha de dona Elza já está aquecida. O cheirinho doce de bolo assando se mistura com o café que, em cada gole, traz a promessa do dia seguinte. Em cima da mesa, uma receita que tem o gosto da infância, da avó, da mãe - aquela receita que ela sabe de cor, mas que seu ritual de cozinha não permite que ela a deixe de lado. Como alguém para quem o mundo corporativo jamais foi uma escolha, não por falta de caminhos, mas porque deixar morrer a tradição de sua família seria como renunciar ao próprio nome. Não foi uma escolha impulsiva, nem uma busca por uma renda extra. Para dona Elza, a confeitaria tornou-se a única forma de sustento. O prazer de cozinhar era só a base do que a movia, mas o peso de um legado familiar de afeto, de lembranças que se carregam de geração em geração é algo muito maior, como a lida com o milho.

A história do bolo de fubá começou com a avó, no fogão à lenha de Lupionópolis, no Paraná, um município de menos de 5 mil habitantes. Ela, menina, ajudava a mãe a preparar os pães e bolos que alimentavam a casa e os vizinhos. Desde então, a receita passou de mãos, mas o sabor sempre foi o mesmo que marcou a infância de Elza. Hoje, já adulta, transformou aquele aprendizado em um negócio. No começo, ela vendia apenas para vizinhos, mas com o tempo, a pequena loja foi crescendo. Não uma grande loja, mas um espaço simples, um lugar que nunca chama muita atenção, mas que sempre tem fila na porta. O bolo de fubá, com a goiabada que derrete por dentro, se tornou o grande atrativo. Cada fatia, uma mistura de lembrança e afeto. A loja de Elza não é apenas um ponto de venda. Ela é uma ponte entre o presente e o passado, entre a tradição e a sobrevivência.

Embora seu trabalho seja essencial para o sustento de sua família, a vida de quem depende da confeitaria para viver não é fácil. Dona Elza acorda antes do sol nascer, começa a mistura dos ingredientes, ajeita as formas e faz o forno funcionar, tudo para garantir que o bolo esteja pronto para o começo do dia. A clientela é fiel, mas o custo do trabalho não vem só na medida dos ingredientes. O preço do aluguel, os gastos com fornecedores e a constante preocupação de manter a qualidade, sem perder a identidade que construiu ao longo dos anos, são desafios que ninguém vê.

Segundo dados do IBGE, seis em cada dez profissionais autônomos estão na informalidade. No setor da confeitaria, esse número representa cerca de 46% do mercado, segundo o estudo conduzido pela Zupgo em parceria com a Associação Brasileira de Comércio de Artigos para Festas. Dona Elza faz parte dessa porcentagem — trabalha sem garantias, sem férias, sem direito a descanso. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias.

Na pandemia, quando o mundo parou e a cidade silenciou, dona Elza não teve esse luxo. Fechou a loja, mas não a cozinha. Continuou assando bolos e entregando de porta em porta, com a ajuda de um sobrinho de bicicleta. Os dias pareciam mais longos, e o medo, seja de pegar o vírus, de não vender, ou de faltar leite e fubá, virou ingrediente invisível em cada receita. A farinha subiu, a goiabada sumiu das prateleiras e tudo parecia acabado. Mas o forno não apagou. No improviso das entregas com máscara de pano e potinhos reciclados, ela manteve a tradição funcionando como uma resistência silenciosa, dessas que só se percebe quando tudo ameaça ruir.

E embora o bolo de fubá com goiabada tenha virado símbolo da pequena loja, outros doces também fazem parte desse acervo afetivo: o pão de mel com cobertura de chocolate meio amargo, feito em datas especiais; os biscoitinhos de polvilho, que ela aprendeu com uma vizinha mineira; e o doce de abóbora com coco, enrolado em papel celofane colorido, que só aparece na época de festa junina. Cada receita tem uma história, uma origem que atravessa quintais, comadres e panelas antigas. Dona Elza diz que quando cozinha, ouve vozes da avó dizendo para não abrir o forno antes da hora, da mãe lembrando de peneirar duas vezes o fubá, do pai pedindo o canto do tabuleiro, onde o bolo fica mais crocante.

Foi com esses doces que ela criou os filhos. E é com eles que agora sustenta os netos. A memória do que se come também constrói a memória de quem se é. Quando uma cliente pede o “bolo do costume”, não está pedindo só um sabor, está pedindo a continuidade de um tempo que parece cada vez mais distante. Um tempo em que as receitas passaram de boca em boca, em que o corpo sabia o ponto certo da massa sem precisar de cronômetro. Dona Elza, com sua touca branca e avental florido, é mais do que uma doceira. É guardiã de um saber que mistura sobrevivência, afeto e resistência. E talvez, nesse país onde tudo que é simples vira luxo, o verdadeiro privilégio seja ainda poder sentir o cheiro do bolo antes do café esfriar.

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 O acolhimento de pessoas LGBT+ em religiões de matriz africana em contrapartida com o preconceito instaurado dentro de religiões mais “tradicionais”, como o catolicismo
por
Sofia Paiva
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06/11/2021
Imagem: Anderson Donato (@donato.fotografo)
Imagem: Anderson Donato (@donato.fotografo)

Ultimamente, talvez pela severa queda de fiéis que a Igreja Católica enfrenta já faz alguns anos, várias instituições religiosas tradicionais estão adotando uma postura mais tolerante a respeito de de pessoas que fazem parte da comunidade LGBT+. O próprio líder mundial da Igreja Católica Apostólica Romana, o Papa Francisco, já fez vários discursos que demonstram uma abordagem mais mansa a respeito dessa questão, principalmente em comparação aos papas que o antecederam

Mas muita dessa "aceitação" é na verdade uma tentativa mal feita de parecer que a Igreja está se "modernizando" e se adaptando às demandas do público por mais acolhimento à diversidade, superando crenças e práticas preconceituosas que não fazem mais sentido em uma sociedade que preza por direitos humanos e igualdade. É um eterno "ficar em cima do muro", oferecendo o mínimo para não parecer intolerante, mas não demais para não desagradar a parte mais conservadora. "Hoje, o que ele faz, ao mesmo tempo que ele apoia e se distancia, è para também não perder o apoio político", diz Fernanda, que é mãe de santo e mulher trans. "A história da Igreja Católica, se você for analisar, ela foi meramente política. Tanto é que os primeiros papas da Igreja eram pessoas da sociedade que tinham uma vida financeira elevada e conduziam os filhos a serem papas para manter o poder, o poder de persuasão, o poder de perseguição, o poder pelas terras", completa ela.

"A bíblia hoje é um livro não de orientação, mas de persuasão. A lei deles, não a que cristo pregou".

O penúltimo Papa já entrava nessa questão da não discriminação contra homossexuais, que foi acentuada pelo Papa Francisco ao dizer que essas pessoas também são "filhos de Deus" e que merecem respeito como qualquer outra pessoa. Isso, além de ser o mínimo, deixa a entender que as pessoas LGBT+ não são "como qualquer outra pessoa", ademais ao fato que a Igreja firmemente acredita que a união entre casais homoafetivos jamais deve ser equiparada ao casamento. "Casamento só existe entre homem e mulher", afirmou o atual papa em uma entrevista em 2017. Sobre essas "idas e vindas" do Papa, Fernanda disse que "Ele é um fofo, uma gracinha de pessoa, mas ainda não entrou um papa que pudesse dizer 'é assim que eu quero e é assim que vai acontecer', porque a política nunca vai deixar, nem a política interna, nem a política externa".

Além disso, no início deste ano, em resposta as dúvidas de algumas paróquias sobre a questão de abençoar uniões entre pessoas homossexuais, com o aval do Papa o Vaticano anunciou que homossexuais devem ser tratados com dignidade e respeito, novamente o mínimo, mas que relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo é "intrinsecamente desordenado" e que "Deus não abençoa o pecado: ele abençoa o homem pecador, para que ele reconheça que faz parte de seu plano de amor e se permita ser mudado por ele". Essa declaração tem várias problemáticas óbvias, o preconceito e a homofobia são claros, mas a ideia de que o homossexual é um pecador que pode ser "convertido" é extremamente preocupante, principalmente tendo em vista os ainda inúmeros casos de pessoas LGBT+ que foram forçadas a passarem por "conversões", ou "cura gay" como é popularmente conhecida, e possuem diversos traumas e problemas psicológicos devido a isso.

Em contrapartida, a Umbanda é uma das poucas religiões que não discriminam o casamento homoafetivo. Em janeiro deste ano, dois homens se casaram em uma cerimônia umbandista em Cuiabá. A união ganhou destaque por ser um dos primeiros registros públicos no religioso da cidade, mas as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, já realizavam uniões entre pessoas do mesmo sexo muito antes.

"Para os orixás não existe sexo, somos todos iguais".

Ialorixá Laudelina em entrevista para Sofia Paiva
Ialorixá Laudelina em entrevista para Sofia Paiva

 

Ambas doutrinas permitem que pessoas LGBTQ+ ocupem cargos na hierarquia sem que sua identidade ou orientação seja algo prejudicial em sua posição. Em entrevista, a Ialorixá Laudelina do Centro Espírita de Filantropia Espiritual e Material de Uberlândia, Minas Gerais, afirma que as religiões de origem africana são as que mais acolhem as minorias. "Paras os Orixás não existe sexo, somos todos iguais" disse ela.

Não é possível afirmar que não há nenhum tipo de preconceito dentro dessas religiões, pois preconceito existe em todo lugar. Apesar da doutrina e do terreiro ser um lugar de acolhimento, isso não impede as pessoas de reproduzir nesses espaços a intolerâncias que a sociedade carrega. Por isso que, mesmo incluídos em sua religião e hierarquia, as pessoas LGBTQ+ precisam lutar um pouco mais que pessoas cisgêneros e heteronormativas para assegurar suas posições e serem reconhecidas.

Porém, é logicamente muito mais fácil existir como LGBTQ+ dentro de uma religião de matriz africana do que na Igreja Católica, por exemplo. "A Umbanda, o nosso Omolocô, as nações africanas, o Queto, a Angola, e outras, recebem com muito carinho a maioria dentro do culto", disse Laudelina. Fernanda, amiga da Ialorixá Laudelina e mãe de santo no mesmo Centro, afirmou algo semelhante: "É uma religião de portas abertas, tanto a Umbanda quanto as nações, todas elas nos recebem com carinho".

Fernanda também concorda que é mais fácil existir como pessoa LGBTQ+ dentro de religiões de matriz africana: "As religiões dita como tradicionais pregam mais o ódio, o preconceito e a intolerância do que o amor ao próximo, e nós pregamos o amor ao próximo, e o mais importante. Amar o próximo, estender a mão, fazer o bem sem olhar a quem, sem nada em troca, e as religiões tradicionais acabaram com isso. A bíblia hoje é um livro não de orientação, mas de persuasão, eles usam a bíblia para persuadir os outros. A lei deles, não a que cristo pregou, porque cristo foi um ser humano de amor, de caridade, e não vejo isso em outras religiões", diz ela.

Ela foi introduzida ainda nova à religião, para tratar uma frieira no pé, e nunca mais saiu. Agora já esta a quase 30 anos dentro da Umbanda. "Graças aos meus orixás, minha mãe Oxum, eu sou bem acolhida. Todos me respeitam, todos, acredito, me amam, porque é a demonstração que eu tenho no dia a dia. Para mim isso é importante, não que me faça falta, não faz, mas assim, preenche um vazio, uma lacuna que a vida aos poucos vai deixando, pelas coisas que você passa ao longo da vida, as perdas. Os amigos que nos construímos dentro da religião ajudam a te fazer seguir. Ás vezes eu nem lembro também da sexualidade dentro da religião, porque é tudo tão natural", diz Fernanda.

 

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Professor de antropologia e pesquisador comenta sobre a chegada do preconceito no Brasil e índio conta como isso afeta os índios LGBTQIA+ na hora de afirmar
por
Thalisson Luan
|
06/11/2021

Em meio a tantas discussões no ambiente dos povos originários, tem uma que os jovens vem levantando que é sobre o direito LGBTQIA+. Durante a história dos indígenas, houve momentos marcantes como a morte do índio Tupinambá,Tibira  morto em 1631 amarrado em um canhão, sendo considerado o primeiro caso de homofobia registrado no Brasil. 

A execução teria ocorrido publicamente aos pés do Forte de São Luís do Maranhão. Embora não tendo autorização do papa ou da Inquisição, contou com a presença de autoridades europeias presentes no Brasil e com líderes de diversas tribos indígenas.

No  registro feito pelo pelo frade capuchinho Yves D’Évreux em seu diário “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614“, o religioso explica que o índio “parecia mais homem” no exterior, mas era “hermafrodita” e tinha “voz de mulher”. Para os colonizadores brasileiros, isso justificava sua morte, servindo de exemplo.

“A história da colonização pode ser entendida como uma história de intervenções sobre os corpos indígenas a partir de um discurso religioso, civilizatório, científico etc”, afirma o professor Estevão Fernandes, graduado em Ciências Sociais, mestrado em Antropologia e doutorado em Ciências Sociais (Estudos Comparados sobre as Américas) pela Universidade de Brasília (UnB). Segundo o professor, a colonização dos portugueses trouxe junto os preconceitos que os povos originários não tinham.

A sociedade estuda e enxerga as temáticas que envolvem os povos indígenas sob a ótica colonial, incluindo a comunidade LGBTQIA+. No entanto, essa é uma comparação desigual,
visto que não há paridade entre padrões coloniais e a cultura dos povos originários brasileiros.

“A história da colonização pode ser entendida como uma história de intervenções sobre os corpos indígenas a partir de
um discurso religioso, civilizatório, científico”, afirma o professor Estevão Fernandes, graduado e doutor em Ciências
Sociais, com mestrado em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB).

Professor Estevão Fernandes
Professor Estevão Fernades


O educador e ativista indígena LGBTQIA+ Niotxarú Pataxó, conta que nunca teve uma liderança que se assumisse LGBT, sempre via outros não indígenas guardando para si. “Então quando você pensa em preconceito discriminação dentro das comunidades indígenas nada mais é do que um reflexo do que a sociedade envolvente nos impõe” explica.

Sobre o preconceito enfrentado que é levado para as comunidades, Niotxarú já sofreu com uma pressão da comunidade onde vive para se retirar ao se assumir. Graças a uma conversa com o cacique dele, ele pode permanecer e ensinar sobre. "Então se há 6 anos atrás quase 7 anos atrás não podia praticamente falar hoje a gente fala” comenta.

Niotxaru Pataxó é bissexual e pataxó, povo indígena que vive do norte de Minas Gerais ao sul da Bahia. Sofre um duplo preconceito. Apesar de sua forte presença na luta LGBTQIA +, diz que sua etnia grita mais alto quando se fala em pautas identitárias. Atualmente é estudante universitário e coordenador de educação escolar nas escolas estaduais de sua região. 

Niotxaru se descobriu bissexual em 2014, depois de passar por uma experiência enquanto cursava faculdade. Na época era uma jovem liderança na sua comunidade, e falar sobre sua sexualidade não era visto com bons olhos. Niotxaru conta que a presença de pessoas LGBT's em sua aldeia não era uma novidade, mas elas não falavam sobre o assunto. A primeira coisa que lhe veio à mente era como que a notícia seria encarada pelo seu entorno. “Como que minha família vai receber isso? Como que minhas lideranças vão receber isso? E se eu deixar de ser liderança? O que eu gosto é estar no meio da comunidade”, comenta.

Niotxaru Pataxo

Os indígenas de algumas comunidades antes da colonização prezavam pelo trabalho e caráter que cada pessoa oferecia para o seu povo, independente de sexualidade e idade. “Se você for um bom pai de família, um bom caçador, tá tudo bem, o cara não se importa se você é gay, preto, velho, etc. Os indígenas em média são assim”, comenta Estevão.


Para um indigena se assumir LGBTQIA+ dentro de um ambiente colonizado com morais impostas por não-indígenas é um desafio. No entanto, se assumir em um ambiente externo da sua comunidade, onde já existem estereótipos e preconceitos, como racismo e xenofobia, é um desafio ainda maior a ser enfrentado. “Hoje há uma radicalização desses preconceitos devido a um crescimento da igreja evangélica entre esses povos. Há entidades cristãs que estão ensinando a esses povos como isso é errado”, complementa o pesquisador.

A influência exercida pela comunidade LGBTQIA+ cresceu nos últimos anos ao pautar políticas públicas e projetos de lei, como a decisão de 2011 do STF que permitiu o casamento homoafetivo ou o reconhecimento do direito de adoção por casais de qualquer natureza. 

Diversos estudos foram realizados e muitos direitos conquistados, no entanto, isso não significa que a população está isenta da LGBTfobia, que acontece diariamente. A comunidade LGBTQIA + sofre violência física de forma recorrente. De acordo com o relatório do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+, em 2020, 237 pessoas LGBTQIA + morreram de forma violenta no Brasil. O relatório mostra ainda que nos anos entre 2000 até 2020, 5047 vidas de pertencentes a esse grupo foram interrompidas.

 

Hoje não se fala apenas sobre um único movimento LGBTQIA +, já que a interseccionalidade foi inserida no debate. A partir desse novo olhar sobre a temática, outros movimentos são levados em consideração, como o movimento negro, indigena e transsexual.

Havia cerca de cinco milhões de nativos espalhados no território brasileiro antes da chegada europeia. Hoje, este número chega a menos de 500 mil, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio). A disseminação de doenças, o processo escravagista e a retirada de terras para a monocultura foram fatores-chave para  o encolhimento dessas populações. Hoje, a maioria dos indígenas encontra-se nas regiões Norte e Nordeste. 

Niotxaru Pataxó é bissexual e pataxó, povo indígena que vive do norte de Minas Gerais ao sul da Bahia. Sofre um duplo preconceito. Apesar de sua forte presença na luta LGBTQIA +, diz que sua etnia grita mais alto quando se fala em pautas identitárias. Atualmente é estudante universitário e coordenador de educação escolar nas escolas estaduais de sua região. 
 

 

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Comportamento

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O poliamor, o relacionamento aberto e as relações livres podem ser vistos como um avanço no que diz respeito à liberdade sexual das mulheres, mas diferentes culturas podem dizer o contrário
por
Heloísa Lisboa
|
05/10/2021

Permitido para que homens tenham mais de uma esposa, o casamento poligâmico já sugere um dos papéis impostos às mulheres: gerar filhos. Além disso, a fidelidade que as esposas devem aos seus maridos também impõe preconceitos relacionados ao divórcio quando solicitado pela mulher. Ainda que modelos de relacionamento próximos, até certo ponto, das ideias da poligamia representem ganhos à população, no sentido de que aos poucos ela se desprende de concepções machistas e/ou cristãs, existem determinados comportamentos que ainda são tidos como naturais ou são abominados.

É comum, por exemplo, que, no íntimo, a relação de um homem, que vive um relacionamento heterossexual fechado, com outra pessoa – a traição - seja perdoada pela parceira sob a justificativa de que “homens são assim”. Por outro lado, mulheres heterossexuais e pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+, ao proporem maior independência em suas relações amorosas e/ou sexuais, são, por vezes, encaixadas em um comportamento depravado e proibido. 

Por outro lado, no 71º episódio do Imagina Juntas, podcast formado por Carol Rocha, Jeska Grecco e Gus Lanzetta, a convidada Mayumi Sato relata sua experiência vivendo um relacionamento aberto e como a usa na construção de um aplicativo para encontros casuais. A prática é vista como um avanço para mulheres, protagonistas, por vezes, de competitividade feminina relacionada a homens. Há também os casos em que a traição em relacionamentos monogâmicos torna mulheres vítimas de feminicídio: dados da Rede de Observatório de Segurança mostram que cinco mulheres morreram por dia em 2020 vítimas de feminicídio.

O sexólogo espanhol Manuel Lucas Matheu afirma que a monogamia não é natural para os seres humanos. Ele a relaciona aos países ocidentais e às pessoas mais pobres, enquanto vincula a poligamia e a poliandria às demais sociedades e às pessoas ricas. Em um estudo, Matheu constatou que as sociedades mais pacíficas e que valorizam a mulher são aquelas em que a monogamia não é imposta. O sexólogo diz ainda que o sexo tem se tornado uma espécie de ginástica, atividade na qual o foco está em genitálias, bem como a pornografia fomenta, e que o verdadeiro “ponto G” dos nossos corpos é a pele, citando Frank Sinatra ao afirmar que sexualidade é se fundir.

Dentre os diferentes tipos de relacionamentos amorosos e/ou sexuais estão a não monogamia consensual, o poliamor, a relação livre, o relacionamento aberto, a poligamia e a poliandria. No Brasil, em entrevista à Revista Galileu, casais homo e heterossexuais em formatos diversos de relacionamento falam sobre como descontruíram o que pode ser chamado de monogamia compulsória. Andréa Dias, por exemplo, casou-se na igreja com seu marido há mais de 15 anos à época, e, em 2017, mantinha um relacionamento com um namorado também. Ela, o namorado e o marido conviviam juntos na mesma casa. 

Mosaico com três fotos coloridas de Dimitrius e Heloísa
Mosaico com três fotos coloridas de Dimitrius e Heloísa
Da esquerda para direita: Dimitrius e Heloísa (eu mesma) formam casal monogâmico - Heloísa Lisboa

Na cultura indígena, a poliandria e a poligamia se tornaram objeto de discussão no mundo jurídico, já que, no país, apenas o casamento monogâmico é reconhecido na Lei. Segundo o promotor de Justiça de Roraima André Paulo dos Santos Pereira, "o parâmetro constitucional do artigo 231 reconhece ao indígena o direito à diferença sem a arbitrária obrigação dele abrir mão de suas raízes, costumes e crenças", Com isso, outro tema de amplo debate surge: a influência do cristianismo sobre a cultura monogâmica que predomina no Ocidente. 

Ainda assim, a pluridade de culturas no planeta mostra que, em países como a Nigéria e a Índia, mulheres são reduzidas a papéis submissos em relação a homens e de maternidade. Em entrevista à BBC, Muvumbi Ndzalama conta que, como uma mulher pansexual, luta pelo direito de se casar com mais de uma pessoa, semelhante ao que é permitido aos homens, com a poligamia.

Desse modo, nota-se que os diferentes tipos de relacionamentos amorosos e/ou sexuais assumem aspectos mais positivos ou mais negativos para mulheres dependendo da cultura na qual estão inseridas.

As relações sexuais na natureza não se restringem ao modelo monogâmico. Porém, a interferência cultural e religiosa, por exemplo, devem ser consideradas para entender como os seres humanos se relacionam sexual e amorosamente uns com os outros. Nesse sentido, a tese "Monogamia: interpretações winnicottianas" pode oferecer uma explicação no campo da psicologia sobre a necessidade humana de resgatar o sentimento de dependência constituído entre mãe e filho por meio de relacionamentos monogâmicos. 

Por outro lado, pensando historicamente, a monogamia tem potencial para ser tida como compulsória, já que, no Brasil, tornou-se parte do contrato social da população a partir da colonização portuguesa e do cristianismo. Ou seja, a monogamia não é fruto apenas de questões psicológicas, mas também de imposições: ao ver o indígena como o "outro", jesuítas tentaram combater a cultura brasílica repudiando a nudez, o nomadismo e o poliamor, conforme o artigo " Infância, catequese e aculturação no Brasil do século 16". 

Mosaico com duas fotos coloridas de manifestação de 8 de marçoMosaico com quatro fotos coloridas de manifestação de 8 de março
Foto colorida de manifestação de 8 de março
8M - Heloísa Lisboa

Como complemento, "Luxúria e selvageria na invenção do Brasil: enquadramentos coloniais sobre as sexualidades indígenas" ajuda a compreender como a sexualidade indígena era vista por cronistas e missionários no Brasil. O léxico utilizado fomenta um olhar preconceituoso sobre a cultura indígena com a qual os colonizadores deram de cara ao chegar ao país. 

No entanto, o poliamor pode ter o aval de religiões. A poligamia é bem-vinda em países de religião muçulmana, por exemplo, bem como em países do continente africano. Na Europa, por sua vez, a ideia de poliamor foi afastada com a influência católica na política desde a Idade Média. 

Desse modo, uma problemática a respeito dos desejos humanos e crenças, impostas ou não, se estabelece.  

Ao passo em que o questionamento sobre a monogamia liberta, de certa forma, mulheres de um histórico de submissão e abuso em relacionamentos e casamentos, o poliamor também é capaz de constituir amarras sobre a vida de mulheres, principalmente daquelas que vivem sob culturas nas quais a poligamia é aceita. A contradição ou a compatibilidade da monogamia com o feminismo é a temática do artigo " Quando o amor é o problema: feminismo e poliamor em debate".

Capa colorida do livro "Fique comigo"
Fique comigo, livro de Ayòbámi Adébáyò

Em um grupo de leitura no sul do Brasil, gênero, poligamia e maternidade compulsória são os assuntos debatidos por leitores do livro "Fique Comigo" e no estudo "Discutindo gênero, poligamia e maternidade compulsória através da obra literária Fique Comigo em um clube de leitura: impressões interculturais". A personagem principal da obra, Yejide, vive um casamento monogâmico na Nigéria até sofrer pressão da sogra para lhe dar um neto. O que se segue na narrativa destrói, ou termina de destruir, o relacionamento vivido por ela e Akin, seu marido. Por isso, o livro também levanta a questão sobre o quanto a poligamia pode ser uma imposição e representar a predefinição de papéis para as mulheres, da mesma maneira que ocorre em relação à monogamia na cultura europeia e no que forma o chamado Ocidente. 

Para além do debate cultural, feminista e emocional, é necessário discutir como os relacionamentos são comportados pela Lei. O artigo " Contornos jurídicos, filosóficos e sociais da monogamia" traça um paralelo entre a construção das leis no Brasil e a moral cristã que permeia os relacionamentos entre cidadãos, criticando a falta de amparo jurídico no que diz respeito à simultaneidade de relações. Já a tese "O mito da monogamia à luz do Direito Civil-Constitucional: a necessidade de uma proteção normativa às relações de poliamor" acompanha a mesma ideia, acrescentando ainda a questão sobre os direitos, teoricamente garantidos pela Constituição Federal, como a igualdade e a liberdade nas relações familiares. É permitido assim que fatores jurídicos e culturais sejam colocados lado a lado para analisar o poder de um sobre o outro, tendo a mulher no centro desta problemática.


GLOSSÁRIO

FONTE: REVISTA GALILEU

NÃO MONOGAMIA CONSENSUAL

Termo genérico para todos os tipos de relações em que os envolvidos sabem que não há exclusividade sexual e/ou afetiva e concordam. 

POLIAMOR

É o tipo de relacionamento em que, em comum acordo, é possível se envolver sexualmente e afetivamente, de forma estável, com diversas pessoas ao mesmo tempo. 

RELAÇÕES LIVRES 

Chamadas de RLi (lê-se “érreli”), são aquelas em que a autonomia individual vem em primeiro lugar, em negação ao modelo de casal. Não se admite que a vida amorosa ou sexual fique sob o controle de ninguém. Tampouco existe hierarquia entre os diferentes parceiros. 

POLIGAMIA

Ocorre quando alguém é casado com mais de uma pessoa e exige de todas elas exclusividade afetiva e sexual. Na lei, não é permitida no Brasil. O termo “poliginia” é usado para o caso de homens que têm múltiplas mulheres, enquanto a “poliandria” se aplica a mulheres com vários maridos. 

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Conflitos começaram há 20 anos com os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos
por
Beatriz Lauerti
|
28/09/2021

 

 

Em agosto, após os Estados Unidos anunciarem a retirada das tropas do Afeganistão, depois de duas décadas de disputas desde os atentados de 11 de setembro, o grupo extremista Talibã retomou o controle do território em Cabul, capital do país.

Em 2001, ano do atentado ocorrido nos EUA, o Talibã tinha o poder sobre o Afeganistão, além de ter ligações com grupos terroristas, como a Al-Qaeda, cujo chefe, Osama Bin Laden, foi responsabilizado pelos ataques do dia 11 de setembro. Haviam suspeitas de que extremistas afegãos estavam ajudando Bin Laden e se recusavam a entregá-lo para o governo americano.  Por isso, os EUA atacaram o país um mês depois.

O Ocidente entrou na guerra para apoiar os americanos, os extremistas perderam espaço mas continuaram lutando. Os EUA conseguiram matar Bin Laden, então já consideraram que obtiveram sucesso.  Desde que as tropas americanas começaram a se retirar do Afeganistão neste ano, o Talibã avançou e retomou o poder nas principais localidades afegãs.

O grupo extremista sempre teve como objetivo impor uma lei islâmica com interpretações próprias, e se mantém financeiramente com base em operações ilícitas, principalmente tráfico de drogas.

A retirada das tropas americanas sempre teve um prazo, após a morte de Bin Laden. Porém, as datas dependiam do cumprimento de acordos pelo Talibã. Um deles é não permitir que organizações terroristas como Al-Qaeda ou qualquer outra tenham atividade em áreas controladas pelo grupo, o qual também não podia enfrentar tropas estrangeiras. Entretanto, lançaram ações contra o exército afegão.

Victoria Perino, mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós Graduação em RI San Tiago Dantas reforçou que o tema já era uma pauta de debate ao longo de vários governos estadunidenses. “O assunto foi encabeçado na administração de Donald Trump, que mediou um acordo com os talibãs para que a retirada das tropas norte-americanas da região fosse possível, e ganhou outra dimensão com Joe Biden, que deu continuidade ao projeto”.

Além disso, o objetivo dos EUA era fortalecer o governo e o exército do Afeganistão para que pudessem se defender sozinhos do extremismo, por isso investiram muito na segurança local.

No dia 15 de agosto, o ex-presidente Ashraf Ghani deixou o país após ofensiva do Talibã, que entrou no palácio presidencial na capital, Cabul, e fez negociações com o governo sobre quem controlaria o território. Entre os membros presentes, estava Sirajuddin Haqqani, chefe da rede Haqqani, organização terrorista alinhada com o Talibã e com a Al-Qaeda. Essa facção é considerada uma ameaça e foi responsável por vários ataques ao Afeganistão. Outros representantes do governo, que é apoiado pelos EUA, também tentaram deixar o local.

Todos os funcionários da embaixada dos Estados Unidos embarcaram para fora do país, e chefes de Estado de todo o mundo se mobilizaram para retirar seus cidadãos do local. Há um receio generalizado de que o Talibã, novamente no poder, volte a governar como em 1996, impondo um regime que limita muito a liberdade, que foi ampliada no governo civil. Naquela época, era comum ver execuções públicas, apedrejamentos, amputações, chicotadas. Qualquer tipo de roupa ocidental era censurada e as mulheres além de precisar de autorização dos homens para sair, tinham que se cobrir totalmente usando a burca, e não podiam trabalhar nem estudar.

Mais um fator que deve ser observado é a ameaça da reconstituição e do surgimento de outros grupos terroristas, com a volta do talibã ao controle da região.

Isso explica o desespero da população, que chegou a invadir a pista do aeroporto de Cabul, na tentativa de deixar o país. Muitos subiram em aviões e tentaram entrar em aeronaves que estavam decolando no momento, e a confusão deixou mortos e feridos. Uma pessoa chegou a cair, como pode ser visto em vídeos que circulam nas redes sociais. A situação, de grande repercussão. Além disso, também foram disparados tiros no local devido ao caos.

Avião dos EUA lotado com mais de 800 pessoas - Portal R7
Avião dos EUA lotado com mais de 800 pessoas - Portal R7
População lota pista de aeroporto na tentativa de sair do país - Jornal NH
População lota pista de aeroporto na tentativa de sair do país - Jornal NH

Cobertura da mídia

A internacionalista entrevistada chamou a atenção para a cobertura dos acontecimentos pela mídia. “Na semana em que o talibã tomou o poder, o Afeganistão dominava as manchetes dos principais jornais, e agora parece que de repente não está mais acontecendo nada. Isso revela um pouco sobre como o debate de política internacional é baseado em tendências”.

Perino também frisou o questionamento: ”Por que esse tema sumiu? Porque as grandes potências e instituições internacionais não tomam atitudes eficientes para garantir os direitos humanos dessa população?”. Ainda, a mestranda ressaltou a importância de dar voz às resistências e mobilizações locais, ouvir o que essas pessoas querem e precisam, como forma de colaborar com as vítimas.

Mulheres

Uma das principais preocupações com a volta do regime, são as mulheres, parcela da população que é mais vulnerável. Nos primeiros pronunciamentos após retornar ao poder, o grupo afirmou que as mulheres não seriam proibidas de estudar, porém na realidade, elas estão encontrando muitos empecilhos. O governo determinou que as mulheres podem frequentar instituições de ensino, mas separadas dos homens. 

Muitos professores fugiram do país, levando escolas a fecharem e o reitor da universidade de Cabul anunciou que mulheres não poderão cursar o ensino superior

Quanto ao mercado de trabalho, segundo o grupo dirigente formado exclusivamente por homens, as mulheres estão temporariamente proibidas por segurança, de exercer qualquer função. Como eles tem colaboradores em todos os lugares, a população feminina tem permanecido mais tempo em casa desde que os extremistas assumiram o poder, por medo da repressão, e assim muitas abandonaram seus empregos. Elas temem que o regime seja igual ao que foi no período entre 1996 e 2001, no qual as mulheres eram obrigadas a cobrir os rostos e as punições para qualquer descumprimento de regra eram severas.

Em setembro, o Talibã reprimiu um protesto realizado por mulheres que lutavam pelo reestabelecimento seus direitos, principalmente de trabalhar e participar do governo, o que lhes foi tirado desde que o grupo assumiu o controle do país. Segundo relatos delas, foram alvejadas com gás lacrimogêneo e spray de pimenta pelos extremistas, os quais declararam que a manifestação saiu do controle, de acordo com notícias do portal afegão Tolo News.

Mulheres protestam reivindicando seus direitos no Afeganistão
Mulheres protestam reivindicando seus direitos no Afeganistão 

 

O que é o Talibã?

O Talibã é um grupo extremista sunita, formado em 1994, por ex-guerrilheiros que participaram de confronto com a União Soviética, conhecidos como mujahedin. São seguidores da lei islâmica sharia, baseada no livro religioso Alcorão, que institui regras de acordo com falas do profeta Maomé, sendo uma diretriz para os muçulmanos. Um dos princípios da legislação, são as punições que muitas vezes são bastante severas. A forma como é aplicada e a rigidez, variam de local para local.

Porém, os extremistas impõem a sharia da maneira que a interpretam, e enquanto estiveram no poder, foi a forma mais rígida e violenta já vista no mundo.

 

Movimentações recentes

Na última terça-feira, 2, o grupo extremista proibiu o uso de moedas estrangeiras dentro do país, devido à situação econômica e aos interesses nacionais, segundo o porta-voz da organização em comunicado. O Talibã vai distribuir trigo para combater a fome, em troca de trabalho.

Victoria comentou sobre possibilidades futuras de articulações com os extremistas. “O braço do Estado Islâmico no Afeganistão já começou a fazer vários atentados desde agosto. Eventualmente, o Talibã seria um aliado na luta de países contra esse grupo, por conta de disputas políticas”. Pode-se compreender que o cenário é incerto, tudo vai depender do desenrolar dos fatos.

 

Futuro do país

Apesar do esforço estadunidense para reforçar a segurança do país, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, admitiu que o Talibã assumiu o controle do país mais rápido do que o previsto. A estimativa era de que isso ocorresse apenas em novembro, caso acontecesse.

Victoria destacou alguns pontos acerca da permanência das tropas no Afeganistão, assunto amplamente debatido no momento da retirada. “As tropas deviam ter ficado? Há uma percepção dos EUA como um elemento garantidor da ordem. A ideia de que a presença das tropas estadunidenses vão garantir que o grupo não avance, garantindo a estabilidade, e também assegurar o acesso à educação, desenvolvimento, mercado de trabalho. Mas, mesmo em meio à presença dos EUA, o Talibã já estava e continuava crescendo, a violência era grande, muitas pessoas morreram e se mudaram de país. Isso apareceu muito pouco na mídia internacional”, argumentou.

Ela também refletiu: “O principal motivo da ocupação do país pelos EUA na época do 11 de setembro, foi a busca por respostas sobre o atentado e a guerra ao terror. Entretanto, quando Bin Laden foi encontrado, ele estava no Paquistão. O que justificaria então a manutenção dessa intervenção de 20 anos? “.

As tropas afegãs sempre tiveram problemas com recrutamento, sem contar a corrupção intensa presente na segurança nacional. Os soldados geralmente são enviados para lugares onde eles não têm família nem conhecidos, além da falta de manutenção dos equipamentos, e em contrapartida, o Talibã tem um grande acesso a armas, fazendo com que fiquem mais fortes e assim, a resistência contra eles acaba sendo menor.

Os Estados Unidos e a Organização das Nações Unidas (ONU), impuseram sanções ao regime, e outros países já demonstraram que não vão reconhecer diplomaticamente o grupo. Já a China, deu indícios de que pode reconhecer a legitimidade do Talibã.

A internacionalista comentou sobre perspectivas futuras para a nação e os afegãos. “O grupo extremista tem se esforçado para tentar refazer sua imagem, com a ideia de que agora eles são mais moderados e tolerantes, mas já existem casos e denúncias que contradizem isso. O panorama é de uma vida muito dura para a população, de continuidade da repressão e violação aos direitos humanos, violências, vulnerabilidade, fome, ou seja, uma catástrofe humanitária em curso, que nunca deixou de existir, apenas ficou silenciada”. 

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O aumento pela busca do lado humanitário e ecológico da moda volta a trazer à tona os bastidores da indústria
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Ana Vitória Borges, Anna Ferreira, Beatriz Lauerti, Bruna Janz e Camilo Libério
|
02/05/2021

Imagem: Joanna e Marc Bolland, CEO da Marks & Spencer, na East London Street coberta por roupas descartadas para realçar o problema de roupas indo para o aterro. 


O mercado da moda movimenta por ano cerca de 2,3 trilhões de dólares no mundo. São cerca de 100 milhões de toneladas de fibras processadas em escala global. Nesse setor, o Brasil é responsável pela 5ª posição mundial, e somente por aqui são geradas cerca de 100 mil toneladas de lixo todo ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Mas, a indústria têxtil, bastante rentável, está vendo seu antigo modelo Fast Fashion - produção em escala, rápida e que segue a lógica do descarte - perder espaço substancialmente à Slow Fashion - conceito de moda que pauta a ecologia no processo industrial, preservando as pessoas e natureza. Tendência ainda mais urgente com o início da pandemia.

Depois de décadas de um modelo de produção que prioriza o lucro, condições precárias de trabalho em várias partes do mundo e o descarte exacerbado de lixo, novas tendências, estratégias e meios de produção surgiram. Isso está ligado à pauta ambiental, que vem ganhando maior visibilidade devido às crises enfrentadas pelo mundo atualmente. A inovação pensada na redução dos impactos ambientais se faz necessária, assim como a consciência social, de quem produz e de quem consome. A relação entre moda e sustentabilidade está conquistando cada vez mais espaço nos últimos anos. A Internet, as mídias digitais e grande parte da geração Z são responsáveis pelo movimento que exige cada vez mais um olhar crítico para a procedência e uso cotidiano da moda.

A Abit realizou um painel online com o tema Como a Indústria da Moda Está Cuidando do Seu Lixo, no dia 1º de abril do ano passado. Para responder à pergunta “O que fazer com o que nós geramos?” Fernando Valente Pimentel, presidente da Associação, apontou que a melhor forma de não poluir é fazer isso desde o início, ter uma concepção do produto. Como observado por Pimentel, o começo dos processos deve ser modificado para uma possível solução da questão ambiental no mundo da moda.

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Intervenção artística War on Waste, por Hugh Fearnley-Whittingstall (Foto: https://www.edie.net/news/5/Hugh-Fearnley-Whittingstall-War-on-Waste-fashion-sustainability/)

Nesse sentido, a estudante de moda Marina Guimarães, 21 anos, que é aluna da Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, comentou que não existe uma disciplina específica na graduação sobre o assunto, mas os professores buscam incluir isso nos temas que abordam. “Os professores fazem a gente pensar nessa questão e a influência dela em todos os aspectos que estudamos. Em todas as matérias, a relação com o meio ambiente é evidenciada, além da realização de palestras sobre sustentabilidade”, relatou.

Marina afirmou que o maior problema hoje em dia é o uso da água. “Um jeans para ser feito, precisa ser lavado muitas vezes. Na hora de tingir os tecidos, também se gasta muita água”. Outro ponto destacado foi a volatilidade da moda e a geração de lixo. “Hoje você quer ter uma determinada blusa que está em alta, e semana que vem quer comprar algo que é uma tendência nova. A compra excessiva e o descarte incorreto das roupas contribuem para a poluição. As próprias marcas deveriam informar aos clientes o jeito certo de se desfazer da peça.”

Cerca de 80 bilhões de peças de roupas são adquiridas a cada ano, de acordo com o estudo “A injustiça ambiental global da moda rápida”. Nesse sentido, a estudante ainda evidenciou o papel relevante dos consumidores no processo de mudança para que o mundo da moda se torne um meio mais sustentável. “É preciso prestar atenção à vida útil das vestimentas. Comprar aquilo que realmente vai ser usado por um bom tempo”.

Ela também falou sobre tendências inovadoras para evitar a geração de lixo ou o descarte inadequado, e apresentou a técnica chamada de Upcycling.  “É possível juntar duas roupas, costurar e transformar em algo diferente. Não precisa nem ir longe. Por exemplo, posso pegar uma camiseta, cortar, e terei um top. A proposta muda totalmente e você fica com uma peça nova.” Dois exemplos da transformação do mercado são a Zara e a Forever 21, impactadas principalmente pelo modo insustentável de produção têxtil e sua decadência. Das duas empresas, a Zara resolveu se reinventar para uma abordagem mais sustentável aos olhos do público, assim como a Riachuelo, que deixa em suas propagandas e etiquetas informações de que aquela roupa foi feita em um processo mais eco amigável. Apesar disso, essas empresas ainda são acusadas de trabalho escravo/infantil para a produção de suas roupas. Já a Forever 21 resolveu continuar com sua abordagem Fast Fashion sem mudar nada sobre o propósito da empresa, o que resultou em perda de lucros e consequentemente na declaração de falência do conglomerado.  

Para Natalya Picheictt, fundadora da marca Slow Fashion FAMME, a primeira coisa que vem a sua mente ao pensar em sustentabilidade é progresso. “Assim como assuntos como veganismo levantam bandeiras ambientalistas, muitas vezes você pode olhar pra dentro do teu guarda-roupa mesmo e ver que a moda também é uma forma de você ajudar o meio ambiente sem fazer muito”, ressaltou. Reutilizar roupas ou pensar em doá-las ou mesmo comprar alguma peça pensando na sua longa duração já é um grande passo. Para a empreendedora, o mais difícil ao iniciar um modelo de negócios sustentável é saber a procedência dos materiais utilizados em sua marca. Além da pesquisa para encontrar os fornecedores certos, é um desafio também rastrear toda a cadeia.

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Com o avanço dessa nova tendência, novos movimentos surgem para atingir o maior número de adeptos. Um deles é o Fashion Revolution, ONG criada em 2013 que, com atuação em mais de 100 países, opera para uma moda limpa, segura e responsável. Como uma rede de designers, acadêmicos, escritores, comerciantes, marcas e qualquer pessoa “amante da moda”, realiza anualmente a Fashion Revolution Week, evento para o debate dos temas acerca da moda. Em 2021, a Semana que se encerrou no dia 25 teve como tema central os Direitos Humanos, Natureza e Revolução Sistêmica. Onde seu principal objetivo, em 7 dias de evento, é a mobilização de pessoas para além de suas realidades. Para Ana Carolina Olyveira, representante da Fashion Revolution no Brasil, a sustentabilidade ainda é uma bolha. Por que não pensar ao invés de um sistema linear, num sistema circular, onde os produtos sejam reutilizados? O conserto é uma das formas de se pensar ecologicamente. Segundo Ana Carolina, o evento também faz perguntas às próprias marcas. O fator pandemia fez com que as pessoas parassem para pensar sobre sua relação com o que vestem. “Pessoas começaram a olhar o que têm no guarda-roupas”. Por outro lado, também fez pessoas comprarem mais através da Internet.

A sustentabilidade não significa produtos mais acessíveis financeiramente. Pelo contrário. Roupas e acessórios provenientes do Slow Fashion ainda são inacessíveis para parcela de baixa renda da população. Mas cada vez mais a tendência é de transformação de hábitos. Segundo a empreendedora e representante do Movimento, parte dessa mudança vem do consumidor. É preciso também questionar e cobrar as marcas para serem mais flexíveis.

 

Ao mesmo tempo, frente a essa nova tendência comportamental, os preços atrativos do modelo Fast Fashion ainda sustentam a suposta necessidade de consumo desenfreado. Apesar desses delírios por peças de vestuário não ser algo recente, a consolidação dos e-commerces e a publicidade das marcas nas redes sociais, especialmente no Instagram, colaboraram para um aumento no frenesi pela prática. No entanto, para que essa rede de consumo se sustente e alguns possam se deleitar com uma nova vestimenta, muitas das empresas assumem um sistema de exploração e abuso de seus funcionários, mesmo dentre aquelas que se promovem com a sustentabilidade.

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O mercado da moda possui uma notória relação com a escravidão contemporânea. Em 2018, a fundação Walk Free, através de uma pesquisa efetuada pelo The Global Slavery Index, apontou a moda como o segundo setor com maior exploração de trabalho análogo a escravidão. No mesmo ano, o Índice de Escravidão Moderna divulgou dados mostrando que dos 354 bilhões de dólares em itens importados para países do G20, - produzidos através de mão de obra escrava – um terço são peças de vestuário.

Não são poucas as marcas que já estiveram ou ainda estão relacionadas a práticas de exploração da força de trabalho, ocorrendo principalmente em países subdesenvolvidos. Durante a década de 1990, a Nike foi incriminada por utilizar mão de obra infantil em suas fábricas na Ásia. Nos últimos dez anos, a Renner, Marisa e Pernambucanas estiveram envolvidas com a exploração de costureiros bolivianos trabalhando de forma análoga à escravidão. Sem contar a Zara, que já foi flagrada mais de três vezes submetendo trabalhadores estrangeiros a situações degradantes e de abuso.

A ONG Repórter Brasil forneceu dados apontando que no território nacional mais de 35 marcas do setor estiveram relacionadas ao trabalho escravo e, desde 2010, foram resgatados mais de 400 costureiros e costureiras em condições análogas à escravidão. O relatório da Walk Free também indicou a existência de mais de 40 milhões de pessoas colocadas nessas condições de trabalho dentro do setor da moda - considerando um cenário mundial – sendo que 70% desses trabalhadores são mulheres.

Esses índices expressivos se devem a cadeia de produção da moda, especialmente àquela conhecida como fast fashion, que almeja maior produtividade em suas fabricas pagando menos pelos serviços e obtendo maior lucro com as vendas no varejo. Essa tática de produção é a mais seguida pelo mercado, o que já proporciona a venda de aproximadamente 80 bilhões de peças de roupas por ano ao redor do mundo. Para a manutenção desse sistema, muitas marcas de moda passaram a migrar suas fabricas para países com legislação mais favoráveis – como Índia, China, Coreia, Bangladesh entre tantos outros.

Tal medida já proporcionou, por exemplo, que Bangladesh se tornasse o segundo maior exportador de vestuários do mundo, movimentando US$ 28 bilhões na economia do país, conforme informações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Contudo, a invasão da indústria da moda nesses países não traz apenas benefícios econômicos. Em 2013 ocorreu a tragédia do edifício Rana Plaza, localizado na periferia da capital de Bangladesh, na qual uma construção de oito andares desabou deixando 1.133 pessoas mortas; nela 2 mil funcionários que recebiam aproximadamente R$360 para trabalhar - durante 10 horas em seis dias na semana - para fabricas de cinco confecções estadunidenses.

A tragédia do Rana Plaza foi o estopim para o surgimento da Fashion Revolution. Ana Carolina Olyveira explica melhor acerca das reflexões promovidas pela campanha: “A #quemfezminhasroupas é uma das principais do Fashion Revolution. Quando a gente pergunta "quem fez minhas roupas?" a gente quer saber o nome da pessoa que faz a sua roupa. Às vezes respondem "ah, foi tal confecção", mas quais foram as condições de trabalho nessa confecção? Como essas pessoas trabalham? Do que as minhas roupas são feitas? Quem cortou minhas roupas? Quem bordou minhas roupas? Então é um questionamento muito mais a fundo que se estende.”

Sobre o mercado nacional, ela ainda diz: “entre 2016 e 2018, a cada cinco trabalhadores resgatados nessa situação análoga à escravidão, quatro eram negros. Então, é além, você vai percebendo que a questão vai ficando mais profunda, porque aí vira uma questão estrutural”.

O Brasil é o quarto maior produtor de roupas mundial, faturando de US$ 55,4 bilhões em 2014, proporcionando 1,6 milhão de empregos e tendo 85% da produção consumida dentro do país, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). E assim como em Bangladesh, existem inúmeras histórias de flagras e tragédias envolvendo exploração de mão de obra escrava – principalmente estrangeira oriunda da Bolívia – nas fábricas das confecções.

Em 1995, o Brasil foi uma das nações pioneiras em reconhecer oficialmente as práticas de trabalho forçado em sua extensão. Institucionalmente o país possui certo programa de combate a essa forma de exploração, com uma legislação regulamentando práticas de trabalho, um Código Penal prevendo pena de 2 a 8 anos para o cidadão que explorar seus funcionários e com a “Lista Suja” – um recurso para registrar e divulgar empregadores irregulares.

Já em 2005 houve uma CPI do trabalho escravo na Câmara Municipal de São Paulo, proporcionando que Auditores-Fiscais do Trabalho pudessem usar o poder público no combate ao trabalho escravo na indústria paulista de moda. Em 2009, também houve articulações políticas para a proteção do trabalhador imigrante, o que resultou na homologação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções.

Além das medidas em âmbito político, ONG’s e instituições colaboram na conscientização da população acerca do tema. O aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, reúne informações de diversas marcas sobre seus envolvimentos na exploração de mão de obra escrava e avalia as ações adotadas pelos varejistas do país; o que permite ao consumidor se conscientizar sobre a produção da peça que será consumida.

Diversos projetos também surgem diariamente, tornando-se fortes aliados na divulgação e na conscientização acerca dos problemas no mundo da moda. Uma iniciativa que surgiu nas redes sociais é o Devagarzin, instagram criado por Srah Rabello como trabalho de conclusão do curso de publicidade, em 2017. No qual tem o propósito de informar os consumidores sobre as marcas, a partir de análises de campanha. Dando assim, a oportunidade para os consumidores de pensar e refletir se o que consomem é o mesmo em que acreditam. Para ela, as principais mudanças hoje se dão através da Internet e de propostas como a dela: “a Internet e as mídias sociais trouxeram poder pro consumidor, [...] que começa a entender o papel dele de exigir das marcas o que ele quer. Então agora o poder vai mais para a mão de um consumidor que tem melhor acesso à informação e que entende mais as consequências da sustentabilidade. Com isso, o movimento sustentável, o movimento slow fashion, vêm crescendo muito”.

Outro projeto que se consolidou através das redes sociais é o Não É Moda, instagram criado no início de 2020 junto com o podcast Esse Não É Um Podcast Fashion, por Gabriel Coutinho e Rafaella Parma diante da insatisfação de não encontrar tantas pessoas expondo tais problemas de maneira popular. Para eles, a melhor maneira de mudar esse cenário é através da cobrança das marcas e também do aprendizado. “é uma questão de transparência, de cobrar, de perguntar “quem são os seus trabalhadores?”. Você está remunerando para que eles tenham uma vida digna? Que eles tenham um mínimo de condições de sobreviver? Você está dando condições para esse(a) trabalhador(a) também poder consumir uma outra moda, ou ele(a) está só fazendo porque precisa do mínimo pra poder dar comida pros filhos?”.

A tendência mundial de mudança comportamental no mundo da moda veio para ficar. O próprio movimento Slow Fashion e a urgência quanto ao cuidado ambiental se tornaram ainda mais evidentes, levando muitas pessoas a se questionarem sobre o modo pelo qual se relacionam com suas próprias roupas e acessórios. Esse movimento, influenciado principalmente pelas gerações Z e Millenials, é um novo respiro no modo insustentável de produção têxtil, nas questões trabalhistas e no pensamento cíclico de consciência, desde o início do processo até seu final. A reutilização dos artigos de vestimenta é uma âncora também para a fiscalização e exigência de mais e mais consumidores conscientes para que as marcas erradiquem a escravidão contemporânea.

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