Olhares podem determinar o que a avenida mais movimentada de São Paulo é...
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Vitor Bonets
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12/06/2025

Por Vitor Bonets


Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida. 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada. 

A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves.  Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos. 

Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”. 

Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson. 

Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”. 

E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão. 

Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí. 

Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família. 

A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um.  Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta. 
 

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Tido como foragido por um erro na Justiça, Victor Lopes Centeno viveu um pesadelo por quase 7 anos
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Julia Quartim Barbosa
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12/06/2025

Por Julia Quartim Barbosa

 

Em agosto de 2018, Victor conversava com amigos em uma rua perto de casa quando a polícia apareceu. Entre as agressões e o algemamento, os policiais perguntavam onde estavam as chaves, que mais tarde Victor descobriria serem de um veículo roubado a 2 quilômetros dali, encontrado na mesma rua. Uma amiga da família viu a situação e correu para chamar Ivanilda, a mãe de Victor, que agora era tido como assaltante.

 Victor foi apontado pelas vítimas como o responsável pelo roubo e reconhecido por uma foto, porém, voltaram atrás. Um vídeo de câmera de segurança ajudou a comprovar sua inocência, no entanto, a imagem, que mostrava o carro roubado passando pela rua enquanto ele caminhava ao lado de um colega, não foi suficiente, e as evidências de sua inocência não impediram que o rapaz ficasse mais de três meses preso.

Em novembro do mesmo ano, o caso foi a julgamento e ele foi absolvido por falta de provas, porém, esse não era o fim da história de Victor com o erro da justiça. Mesmo depois do alvará de soltura, Victor ainda foi detido injustamente outras 10 vezes. Isso porque, até maio de 2025, quase 7 anos depois, o mandado de prisão ainda seguia ativo.

Detido em casa, no trabalho e até mesmo diante de seu filho, na época, Victor perdeu seus dois empregos e juntou dinheiro para comprar uma moto, que até hoje utiliza para trabalhar como motoboy. O problema, é que os radares inteligentes dispostos pela cidade acionavam a polícia assim que o rapaz, tido como foragido, passava por um deles. 

Depois da sétima prisão, a advogada de Victor entrou com um pedido para que determinassem a baixa definitiva do mandado de prisão e a comunicação urgente a todos os órgãos públicos competentes para eliminação de qualquer registro de procurado junto com uma atualização cadastral. A solicitação seguiu sem resolução até o dia 13 de maio deste ano, dois dias depois da exibição do caso no domingo à noite, em um programa da TV aberta, quando ele recebeu a notícia de que, finalmente, poderia viver tranquilo.

O sistema judiciário brasileiro, em sua complexidade e morosidade, é palco de diversas injustiças que afetam diretamente a vida dos cidadãos. Na edição de 2024 do “Rule of Law Index”, publicado pela World Justice Project, o Brasil ocupava a 80º posição no ranking global de Estado de Direito entre 142 países. Entre as categorias analisadas pelo índice, o Brasil teve seu pior desempenho no campo da justiça criminal, disputando o primeiro lugar de judiciário mais parcial do mundo com a Venezuela.

Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2024 com informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que 40 milhões de processos no país contêm algum tipo de erro, evidenciando falhas que vão desde a coleta de informações até a análise de provas. Esses erros, por sua vez, contribuem para condenações equivocadas, prisões indevidas e a perpetuação de ineficiências que minam a confiança da população no sistema. 

Um dos aspectos alarmantes se manifesta nos problemas relacionados aos mandados de prisão. De acordo com uma pesquisa da Innocence Project Brasil, mandados com erro e falhas no reconhecimento já levaram quase 2 mil inocentes ao cárcere.

Devido a falhas na base de dados ou falta de atualizações no sistema, mandados já cumpridos, revogados ou com informações errôneas permanecem ativos. A gravidade é tamanha que advogados chegam a recomendar que seus clientes, mesmo sem pendências, portem um habeas corpus no bolso para evitar prisões injustas. Essa foi a realidade de Victor Lopes Centeno, de 25 anos, por quase sete anos. O caso de Victor é um entre os 40 milhões de processos com algum tipo de erro e se junta às quase 2 mil prisões de inocentes já identificadas no Brasil por falhas em mandados ou processos de reconhecimento. Para além de uma falha burocrática, a advogada do rapaz entende a situação como uma grave violação da dignidade da pessoa humana, e uma violação à honra e à imagem.

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Condição ginecológica é uma das principais causas da infertilidade feminina, mas não significa que seja impossível engravidar
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Philipe Mor
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12/06/2025

Por Philipe Mor

 

A voz amarrada e os desvios de olhares já apontavam o que estava por vir. São sete da manhã e Madureira se espreguiça. No quarto abafado, Luana desperta com o corpo inquieto e a mente nublada. Pela janela, o dia se anuncia com um céu claro, mas seus pensamentos seguem pesados, como um típico domingo chuvoso fora de estação. O café preto esfria devagar na caneca, enquanto ela tenta engolir a ansiedade com os goles mornos e calmos da bebida. A cada colher de açúcar, a esperança se mistura à inquietação. É início de semana, e ela parte, como quem precisa encontrar respostas.

Uma hora depois, veste-se com cuidado e sai. Por volta das oito, sobe no ônibus que cruza a cidade. Fone nos ouvidos, os sambas-enredo tentam acalmar o redemoinho de dúvidas que se faz dentro dela. A consulta era para ser apenas mais uma visita de rotina, mas a dor antiga. Aquela que já morava no seu corpo desde o início da adolescência. Dizia que havia algo a mais. No consultório silencioso, a médica examina, questiona, anota. Pede novos exames. Os simples já não bastam para traduzir o que o corpo gritava.

Então vem a espera. Uma espera que pesa e cria fragmentos de incerteza. A ginecologista promete agilidade nos resultados, mas Luana já sabe: o “logo” da medicina raramente respeita o tempo da aflição. Chega o dia. Outra manhã de céu bonito do lado de fora e tempestade do lado de dentro. Ela acorda cedo, se apronta sem dizer palavras e pega o mesmo “busão” de sempre. A cidade se move ao redor, indiferente. Mas dentro dela, tudo treme. O caminho até a clínica é o mesmo, mas o destino agora carrega peso. Ao sentar-se diante da médica, a palavra que muda tudo é dita com a mesma delicadeza de um tiro: endometriose.

Era a semana do seu aniversário de 15 anos, ou seja, junho, de novo. E se, para outras meninas, a data marca vestidos rodados e valsas com o pai, para Luana marcou um silêncio novo. Uma dor que não vinha só do corpo, mas do futuro. Seu mundo desabou. Desde pequena escutava, nos centros espíritas, que sua vida seria de caminhos abertos, que ela não pararia em lugar nenhum. Que construir uma família talvez não fosse parte do seu destino. Ainda assim, ouvir da médica que as chances de gerar uma vida eram nulas trouxe uma sensação estranha. Como se lhe negassem algo que ela mesma ainda nem havia pedido.

Voltou da consulta só. Ninguém a acompanhava. Coincidentemente, o mesmo ônibus, a mesma janela. Mas agora, tudo pesava diferente. Em casa, contou para a mãe. Com a voz embargada e o peito apertado. Ao pai, não disse. Não por medo ou por falta de confiança. Mas porque sempre foi assim: Luana guarda o que dói dentro, como quem precisa proteger o mundo de si mesma.

Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana
Luana e sobrinho Foto: Arquivo Pessoal/Luana

O domingo chegou, e com ele, o ritual da feijoada. A cerveja gelada na mesa, os sambas na vitrola e as piadas de futebol enchem a sala. Mas, naquele dia, a casa não estava cheia de risos como de costume. A voz de Luana saiu amarrada, os olhos desviavam. Assim como no momento deste relato. E, no meio da refeição, a notícia se espalhou: endometriose. A mesa, antes recheada de afeto barulhento, foi silenciada por uma palavra só.

Desde então, Luana aprendeu a dançar com as ausências. Aprendeu que há dores que não cessam, só se acomodam. O afeto que nutre pelo sobrinho, por vezes, acalma o eco de um sentimento materno que ela ainda não conhece, mas que pulsa em algum lugar. A vida, para ela, se tornou exercício de improviso, como quem desfila na avenida sem saber a próxima coreografia. Aliás, carrega o samba e o improviso desde a barriga da mãe.

Diferente de Luana, a voz de Raquel expressava alívio e esperança. Eram três da manhã e o silêncio de sua casa foi cortado por um som inesperado: sua bolsa rompeu. Grávida de oito meses, ela mal teve tempo de processar o susto. O bebê entrou em sofrimento, e o hospital virou destino urgente. A cesariana foi feita às pressas, e dali nasceu Maria. Pequena, mas forte, como se soubesse que, antes mesmo de chegar ao mundo, já havia vencido uma guerra. A história desse nascimento, no entanto, começa muito antes. Raquel tinha 27 anos quando sentiu, pela primeira vez, que queria ser mãe. Não esposa, não dona de casa. Mãe. Tinha um amor de dez anos, firme e tranquilo. Cada um na sua casa, no seu tempo. Mas o desejo dela era outro: gestar. Gerar uma vida. Vieram as tentativas, uma a uma. E o tempo, que no início parecia cúmplice, começou a pesar. Um ano se foi sem nenhum sinal. A esperança, antes tão serena, começou a se inquietar. Procurou ajuda médica. O diagnóstico foi direto, frio, quase cruel: endometriose no ovário direito. Um ovário três vezes maior que o útero. Um “não” dito em linguagem de exames e laudos.

Vieram outros médicos. O segundo, o terceiro, o sexto. Todos repetiam o mesmo coro desafinado: “você não vai conseguir engravidar”. Raquel chorava, sofria, pensava em desistir. Mas algo dentro dela ainda acreditava. Foi esse fio de fé que a levou até um especialista em endometriose. Ele não lhe prometeu milagre, mas também não lhe negou esperança. Disse que sim, havia chances. Com tratamento, com paciência, com tempo. Naquela tarde, depois da consulta, Raquel voltou para casa como quem volta de um templo. Agradeceu, como fazia todos os dias, à sua santa de devoção: Nossa Senhora. Mulher de fé, fez uma promessa. Se fosse menina, o nome seria Maria. Uma homenagem à mãe de todas as mães. E assim foi.

Dois anos depois, outra gravidez. Outra chama acesa. Mais uma promessa de futuro. Mas, com apenas oito semanas, a perda. Uma dor silenciosa, que ela carrega sem alarde, mas nunca esquece. Aprendeu que a maternidade, às vezes, não é apenas o que se tem nos braços — é também o que se guarda no peito. Hoje, Raquel vive entre milagres e memórias. É mãe de uma menina que desafia estatísticas e filha de uma promessa feita com fé.

Raquel e sua filha Maria Fernanda Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel
Raquel e sua filha Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal Raquel

 

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57% da população brasileira não se prepara para a aposentadoria, mas o sistema previdenciário segue sendo maior de todos os programas sociais no País.
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Ana Julia Bertolaccini
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12/06/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

 

A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.

No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA).  Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria. 

Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora. 

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Seu Pedro em uma festa de aniversário 

 

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais. 

Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria. 

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Nilton Santos de Souza antes de ir para a musculação 

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer. 

A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de  futebol pela televisão  são a maneira como ele decide usufruir  desses momentos. 

Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.

Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado. 

Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário. 
 

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Aos 63 anos, Dona Elza mantém viva a tradição da família
por
Giulia Fontes Dadamo
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29/05/2025

Por Giulia Fontes

 

São 5 da manhã e a cozinha de dona Elza já está aquecida. O cheirinho doce de bolo assando se mistura com o café que, em cada gole, traz a promessa do dia seguinte. Em cima da mesa, uma receita que tem o gosto da infância, da avó, da mãe - aquela receita que ela sabe de cor, mas que seu ritual de cozinha não permite que ela a deixe de lado. Como alguém para quem o mundo corporativo jamais foi uma escolha, não por falta de caminhos, mas porque deixar morrer a tradição de sua família seria como renunciar ao próprio nome. Não foi uma escolha impulsiva, nem uma busca por uma renda extra. Para dona Elza, a confeitaria tornou-se a única forma de sustento. O prazer de cozinhar era só a base do que a movia, mas o peso de um legado familiar de afeto, de lembranças que se carregam de geração em geração é algo muito maior, como a lida com o milho.

A história do bolo de fubá começou com a avó, no fogão à lenha de Lupionópolis, no Paraná, um município de menos de 5 mil habitantes. Ela, menina, ajudava a mãe a preparar os pães e bolos que alimentavam a casa e os vizinhos. Desde então, a receita passou de mãos, mas o sabor sempre foi o mesmo que marcou a infância de Elza. Hoje, já adulta, transformou aquele aprendizado em um negócio. No começo, ela vendia apenas para vizinhos, mas com o tempo, a pequena loja foi crescendo. Não uma grande loja, mas um espaço simples, um lugar que nunca chama muita atenção, mas que sempre tem fila na porta. O bolo de fubá, com a goiabada que derrete por dentro, se tornou o grande atrativo. Cada fatia, uma mistura de lembrança e afeto. A loja de Elza não é apenas um ponto de venda. Ela é uma ponte entre o presente e o passado, entre a tradição e a sobrevivência.

Embora seu trabalho seja essencial para o sustento de sua família, a vida de quem depende da confeitaria para viver não é fácil. Dona Elza acorda antes do sol nascer, começa a mistura dos ingredientes, ajeita as formas e faz o forno funcionar, tudo para garantir que o bolo esteja pronto para o começo do dia. A clientela é fiel, mas o custo do trabalho não vem só na medida dos ingredientes. O preço do aluguel, os gastos com fornecedores e a constante preocupação de manter a qualidade, sem perder a identidade que construiu ao longo dos anos, são desafios que ninguém vê.

Segundo dados do IBGE, seis em cada dez profissionais autônomos estão na informalidade. No setor da confeitaria, esse número representa cerca de 46% do mercado, segundo o estudo conduzido pela Zupgo em parceria com a Associação Brasileira de Comércio de Artigos para Festas. Dona Elza faz parte dessa porcentagem — trabalha sem garantias, sem férias, sem direito a descanso. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias. Mas ela segue, com o mesmo zelo de sempre, preparando o bolo com a mesma receita da avó, um elo que nunca quebra, por mais difíceis que sejam os dias.

Na pandemia, quando o mundo parou e a cidade silenciou, dona Elza não teve esse luxo. Fechou a loja, mas não a cozinha. Continuou assando bolos e entregando de porta em porta, com a ajuda de um sobrinho de bicicleta. Os dias pareciam mais longos, e o medo, seja de pegar o vírus, de não vender, ou de faltar leite e fubá, virou ingrediente invisível em cada receita. A farinha subiu, a goiabada sumiu das prateleiras e tudo parecia acabado. Mas o forno não apagou. No improviso das entregas com máscara de pano e potinhos reciclados, ela manteve a tradição funcionando como uma resistência silenciosa, dessas que só se percebe quando tudo ameaça ruir.

E embora o bolo de fubá com goiabada tenha virado símbolo da pequena loja, outros doces também fazem parte desse acervo afetivo: o pão de mel com cobertura de chocolate meio amargo, feito em datas especiais; os biscoitinhos de polvilho, que ela aprendeu com uma vizinha mineira; e o doce de abóbora com coco, enrolado em papel celofane colorido, que só aparece na época de festa junina. Cada receita tem uma história, uma origem que atravessa quintais, comadres e panelas antigas. Dona Elza diz que quando cozinha, ouve vozes da avó dizendo para não abrir o forno antes da hora, da mãe lembrando de peneirar duas vezes o fubá, do pai pedindo o canto do tabuleiro, onde o bolo fica mais crocante.

Foi com esses doces que ela criou os filhos. E é com eles que agora sustenta os netos. A memória do que se come também constrói a memória de quem se é. Quando uma cliente pede o “bolo do costume”, não está pedindo só um sabor, está pedindo a continuidade de um tempo que parece cada vez mais distante. Um tempo em que as receitas passaram de boca em boca, em que o corpo sabia o ponto certo da massa sem precisar de cronômetro. Dona Elza, com sua touca branca e avental florido, é mais do que uma doceira. É guardiã de um saber que mistura sobrevivência, afeto e resistência. E talvez, nesse país onde tudo que é simples vira luxo, o verdadeiro privilégio seja ainda poder sentir o cheiro do bolo antes do café esfriar.

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Representatividade feminina ainda deixa a desejar nesse universo
por
Anna da Matta
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12/05/2022

Por Anna da Matta

Caminhando pelos longos corredores e salas de uma exposição cada pessoa vai entrando em contato com diversas informações, sejam das obras expostas ou apenas do local. Os cheiros de perfume no ar, as gargalhadas e conversas paralelas ao fundo de seus próprios pensamentos, as cores e formas das produções artísticas tentando chamar a atenção de quem está presente. As interpretações e óticas para as criações são diferentes de indivíduo para indivíduo. Cada um tem suas próprias perspectivas e concepções, e vão ter sentimentos distintos em relação ao que estão observando. Mas, nota-se, em algum canto do ambiente, pelo menos um trabalho inspirado em uma mulher. 

No universo das artes, a imagem de mulheres é constantemente reproduzida. De incontáveis formas e em uma larga escala. As obras as retratam como objeto de desejo, de maneira angelical, de uma ótica polêmica, como inspiração etc. Seja qual o modo elas estejam representadas, estas figuras são grande parte do foco de produções artísticas. Apesar disso, não necessariamente torna esse ambiente um espaço de igualdade ou de representatividade. 

O ano era 2017 e o coletivo Guerrilla Girls vinha ao Brasil para uma retrospectiva de trinta e dois anos de seu trabalho. Elas vestem máscaras de gorilas carregadas de pelo e com expressões faciais diferentes, mostrando apenas os olhos e com buracos para as narinas. O anonimato faz parte e ajuda a manter o foco nas questões em que querem problematizar.  São reconhecidas por serem artistas ativistas feministas. Pregam que podem ser qualquer um. Dizem que estão em todo lugar. 

Guerrilla Girls protestando nas ruas de Nova York, 1985. (George Lange/Divulgação)

Em público, elas utilizam do humor e de visões afrontosas para evidenciar questões de gênero e étnicos, bem como corrupção na arte, no cinema, na cultura pop e na política. As ativistas construíram, e continuam a construir, uma narrativa nada convencional, e colocam nos holofotes as injustiças e assuntos que, normalmente, são quase que invisíveis. 

Ao levantarem dados — um tanto quanto chocantes — sobre a presença feminina no mercado das artes, as Guerrilla Girls passaram a influenciar o setor. 

Num fundo amarelo vibrante, com a imagem de uma figura feminina com cabeça de gorila em tons de cinza, preto e branco, virada de costas e reclinada em uma espécie de pano com tonalidade meio vinho, um dos cartazes provocativos que fazem parte das ações do coletivo feminista, estampa as frases “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. 

Cartaz realizado por Guerrilla Girls, 2017. (Foto / Reprodução)

Lamentavelmente a desigualdade dentro desse universo não se classifica como fora da normalidade, como se fosse algo surreal. Segundo o veículo de comunicação ArtNet, foram gastos mais de US$196 bilhões, entre os anos de 2008 e 2019, em leilões de arte. Dentre esse valor, os trabalhos produzidos por mulheres representam apenas 2% das obras vendidas.

Não é nenhum segredo que o setor cultural não escapa à regra quando se fala em desigualdade de gênero. Em uma pesquisa feita pelo IBGE em 2018 foi exposto que as mulheres atuantes no campo da cultura ganham, em média, 67,8% do salário dos homens para executar tarefas semelhantes. Segundo a criadora de conteúdos e fundadora do Museu do Isolamento, Luiza Adas, o valor do trabalho de um artista tem que ser dado de acordo com o prestígio e com as reflexões que trazem para a sociedade, e com certeza, as mulheres têm a capacidade de terem trabalhos tão incríveis quanto, senão até mais, que artistas homens, então, para ela, não faz o menor sentido essa diferença salarial.

Ao adentrar em um estúdio — ou algum outro lugar reservado para a criação — os artistas mergulham em seus próprios universos, silenciando por algumas vezes o mundo externo. A artista e tatuadora Lua Clara Faria, de vinte e um anos, é brasileira mas já mora em Lisboa faz alguns anos. Para ela, poder se expressar com a arte é extremamente gratificante. Através de suas produções, ela consegue enxergar aquilo que estava sentindo quando decidiu realizar algum projeto. Tanto no processo, quanto no final. 

Lua compreende a sua arte como uma forma de meditação. É, de diversas maneiras, contemplativo. Ela desenha mandalas e florais em diferentes superfícies. Quadros, telas, paredes, já até pintou violão. Também já produziu em lã e artesanatos como almofadas, capas de celular, cadernos, canecas etc. E há algum tempo, decidiu se aventurar no universo das tatuagens. 

Quando Lua desenha, principalmente as mandalas, consegue deixar sua mente mais calma no processo. Ela conta que serve de ajuda para a ansiedade. 

A artista já teve algumas oportunidades de expor suas criações. Para além de sites de vendas online, Lua expôs sua arte em uma feira de artesanato. Através da internet, ela sempre teve contato com clientes ou pessoas que elogiam suas produções, mas, não acredita que essa comunicação chegue perto da sensação do encontro presencial, de algo mais pessoal. Ao relembrar da experiência, ela se enche de emoções e memórias boas. Era uma tarde agradável. Aqueles que não tinham acesso a suas redes, puderam conhecer seu trabalho. 

No entanto, Lua enxerga a desigualdade que se faz presente no mundo artístico. Neste início como tatuadora, ela nota que ainda existem diversos estereótipos e concepções de que mulheres são mais delicadas do que os homens. Também observa a maior quantidade de tatuadores com reconhecimento no mercado.  

Mulher observa quadro em exposição no Museu do Prado em Madri, 2020. (AFP) 

Jochen Volz, diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, já organizou pelo menos 30 exposições individuais de artistas mulheres entre 2001 até hoje. Ele também assinou como curador duas mostras que foram, cada uma em seu momento histórico, as com maior presença feminina. A 53ª Bienal de Veneza, no ano de 2009, com 43% de artistas mulheres, e a 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, com 60% de artistas mulheres.   

O diretor diz entender que ainda é necessário um grande esforço até que os acervos dos principais museus tenham um equilíbrio maior entre os artistas. A presença feminina no acervo da Pinacoteca chega a 30% dos artistas aproximadamente. De acordo com Jochen, o número é melhor do que já foi alguns anos atrás, mas afirma não ser o suficiente. 

Naomi Cary, que se considera multiartista audiovisual, explica que toda vez que alguém se pergunta se alguma coisa é arte ou não, ela passa a ser. O papel dessas produções é de colocar as pessoas nesse conflito com elas mesmas e com as suas próprias concepções. Quando trabalha com arte manual, em formato de pintura de telas, Naomi realiza uma série intitulada “Black Alien”, que é toda de autorretrato. É uma forma de reinventar sua identidade e desafiar as maneiras de como é vista para criar. A artista tenta, em suas criações, questionar e abandonar esse lugar de musa, passiva, de ser olhada. De consumir a arte sempre de um lugar distante e se aventurar a produzir algo diferente disso. 

Um dos privilégios masculinos é retratar qualquer assunto ou tema em suas produções. Para a mulher, em sua maioria das vezes, é dado um espaço apenas das representações. Quase como se fosse uma obrigação falar do universo feminino. É o que a sociedade espera dessas artistas. Vão criando segmentações a serem seguidas. Como se a criatividade — em um trabalho majoritariamente imaginativo e criativo — não pudesse falar mais alto, como se estivessem limitadas a caberem nas caixinhas das expectativas dos outros. 

Entretanto, há esperança para o futuro feminino nas artes. As mulheres estão cada vez se sentindo mais abertas a entregarem algo que, de fato, condiz com aquilo que elas querem produzir — não que esse feito não esteja presente no passado também, as revolucionárias são a prova disso.  Progressivamente, as artistas mulheres têm tomado seus devidos espaços nesse universo. Já não é mais aceitável fazer uma seleção sem nenhuma imagem feminina presente.

 

O caminho ainda é longo e árduo, mas existem esperanças para novos olhares feministas. 

 

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Cultura e Entretenimento

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Como o mundo de hoje é impactado pelo passado e segue destinado a cometer os mesmo erros
por
Paulo Castro
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16/06/2022

Por Paulo Victor Castro 

O século XX é visto como o século da grande modernidade. O período é marcado por grandes guerras, lutas sociais e culturais e, uma grande mudança de visão para a sociedade. Uma forte influência do que ficou conhecido como o Modernismo e suas fases. No começo de 1900, é possível enxergar um mundo feito por construções rebuscadas, estéticas e trabalhadas. Essa é a principal mudança que marca essa troca. Nas artes e arquitetura, as coisas passam a ser mais práticas, sendo assim tendo uma preocupação menor para a estética e um grande investimento em sua função e habilidade de desempenhar a ação em curto e médio prazo. Algo que para época ia completamente contra o “natural”, já que a cultura sempre esteve mais conectada à beleza, riqueza e poder. Entretanto, esta mudança de pensamento não é algo visto apenas no mundo artístico e arquitetônico, a troca era principalmente no modo de se viver e enxergar o futuro da sociedade, algo que acabou culminando com o que hoje é conhecido como um grande período de momentos e revoluções.

A primeira década do século XX é marcada, ainda, por um forte e intenso Imperialismo, período que chegou a durar até a segunda metade desses 100 anos em colônias europeias. Uma dos conflitos mais marcantes desse momento foi a Guerra Russo-Japonesa (1904-05). O Japão derrota a Rússia na Manchúria (China), e conquista, na época, o que o mundo tinha de mais valioso a oferecer: terras. Ter terras simbolizava força, tamanho e poder, sendo assim o desejo de todas e qualquer potência. Não à toa, a Primeira Grande Guerra não demoria muito a chegar, tendo enormes implicações na questão territorial e militar dos grandes países do planeta. Ainda no assunto da Guerra Russo-Japonesa, a vitória do Japão é o marco do início e caminhada de uma forte militarização do país asiático e, do outro lado, uma enorme insatisfação russa com o seu atual regime, que à época era comandado por Nicolau-II. Importante destacar como isso é extremamente importante e crucial para as mudanças que vieram a ocorrer nos países e suas revoluções nacionais e internacionais.

A segunda década do século XX possui uma importante e intensa influência com o presente e suas grandes brigas, intrigas e questionamentos. A Primeira Guerra Mundial foi o grande embate e o conhecido palco de uma brutal batalha entre as potências de todo mundo durante os anos de 1914 e 1918. A pluralidade cultural, social, artística e a enorme disputa territorial culminam em uma sangrenta guerra. A batalha entre os países muda completamente o rumo do mundo, novas grandes potências surgem, como os Estados Unidos, e um futuro passa a ser desenhado por aqueles que controlavam a maioria das “cartas”.

A arte e a guerra

Evidentemente, é impossível cair dentro do mundo do passado e não comentar sobre a enorme influência que a arte carrega. Desde os famosos movimentos artísticos como o Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, o Expressionismo e muitos outros, a sociedade em formação passa por belos períodos de conhecimento e cultura. Algo que ainda é extremamente importante e necessário nos dias atuais. Movimentos como o Jazz, que surgiu em New Orleans, nos Estados Unidos, são extremamente valiosos e cheios de conhecimento e história. Mesmo sem o poder de influência das armas e das grandes batalhas, a arte e cultura sempre esteve presente na sociedade e são fontes de conhecimento para também entender os dilemas atuais que os países carregam.

Em conversa com o professor Mauro Luiz Peron, doutor em Multimeios pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas em 2006, e professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a arte foi algo muito debatido. “A Arte constitui uma das mais extraordinárias expressões humanas e, por ser expressão de sensibilidades construídas em meio a experiências econômicas, sociais e políticas, em seu bojo toda realização musical (cultural que é) indica as escolhas estilísticas e estéticas de seus criadores e, por isso mesmo, toda arte é mesmo plena de sentidos multifacetados. Mas talvez o mais intrigante nas obras de grande impacto seja o fato de detectarem, no banal, o mais inusitado, e vice-versa. O resultado é a contundência, o assombro e, assim, o convite para uma nova chamada para a educação do Olhar. As consciências de classe, por exemplo, são mobilizadas o tempo todo por grandes obras musicais, teatrais, cinematográficas e literárias. E é sempre um olhar específico que vai procurar quantificar (e qualificar) o alcance de tais obras”, explica.

As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por momentos importantes e, também, relevantes para o futuro da sociedade, mas o ponto de partida do pensamento será exatamente o olhar da cultura apontado por Mauro Perón. Em uma sociedade que passou por uma transformação lá atrás de um estético para o prático, a arte hoje, em algumas situações, passou a ser vista como “secundária”, tanto em importância e necessidade. Não é atoa, que a sua falta é um dos grandes erros da modernidade. O tal problema tem claramente uma conexão com o passado e as escolhas. O prático, por muitas vezes, esteve não à frente do estético, mas, sim, do pensamento. 

O lado das escolhas também é algo importante na análise do tempo e a sua enorme diferença no espaço. Como cada escolha, momento, guerra, ação e outras diversas coisas podem ter influenciado o passado e o presente. Como que mesmo tudo tão longe, alguns problemas seguem o mesmo. Em 2022, a Rússia volta a estar em guerra, a potência dos Estados Unidos entra em um dos seus piores períodos nos últimos 50 anos, e um Brasil desesperado e inflacionado de problemas e mais problemas. Como os dilemas do passado voltam a aparecer no presente? Onde ocorreu a evolução? “Somente podemos avaliar épocas passadas na perspectiva do presente que experimentamos. Por esse motivo, olhamos seletivamente para o passado. Nessa perspectiva, avalio que a trajetória humana é configurada por uma extraordinária dialética, na qual as interações, as interdependências, as influências recíprocas redefinem o tempo todo mesmo as projeções de sociedades futuras”.

Um dos temas principais do século XXI é o Capitalismo e a sua influência nos mais diversos pontos da sociedade. Repare que a troca feita no passado entre o estético para o prático também pode ser visto por alguns ângulos no modo de viver capitalista. O mundo pode ser daqueles que produzem e desempenham hoje algo que o outro não pode oferecer, e quando no topo, assim como as potências dos 1900, lutam para permanecer e afundar ainda mais quem está por baixo dessa grande cadeia. O ciclo segue o mesmo. “O Capitalismo é um Modo de Produção de existência. O dinamismo da sociedade capitalista arrasta tudo e todos para a realização ampliada da exploração, em nome da realização ampliada do lucro. Toda a riqueza socialmente produzida é plantada na exploração da imensa maioria da população humana. Tudo tende a ser transformado em mercadoria”.

Nos dias atuais é muito claro e escancarado uma enorme evolução tecnológica do novo século. Talvez os grandes carros voadores e nenhum dos ETs tenham chegado a terra, mas o rápido desenvolvimento em grandes áreas também faz parte do começo da história do século XXI. Alguns extremamente positivos e animadores mas nem tudo aparenta ter seguido esse caminho. Uma questão levantada durante a entrevista com o professor Mauro Peron foi qual a explicação para um avanço tão forte e intenso em algumas áreas da sociedade, e um retrocesso, ou melhor, “continuação de pensamento” em outras. Repare bem, o início dos anos de 1900 é marcado pelo racismo e uma grande diferença de classes em boa parte do mundo, realmente houve evolução nesse sentido até o atual ano de 2022? 

“Há uma questão de base a ser considerada: todo avanço só existe em nome ou de uma opressão, ou de uma resistência a toda forma de opressão. Esse processo tem acompanhado a história de todas as sociedades. E talvez seja preciso apontar que, afinal, “racismo”, “desigualdade social”,  e “guerras” expõem (ou ocultam) experiências fundamentais e limítrofes da sobrevivência. Nesses termos, é preciso interrogar: a Tecnologia é avanço para quê? Para quem? Existe para perpetuar violências, ou para emancipar a todos? Não é possível responder a essas perguntas sem olharmos para todos os horrores pelos quais um “bem” também significou a dor mais devastadora. Afinal, toda “evolução” não pode ser simplesmente um “bem”, porque se ela é a mudança de um estado de sociedades para outro, muitas sociedades viveram os piores pesadelos em regimes totalitários antes impensáveis”.

Um ponto importante é saber como gerir tudo aquilo que é visto como evolução, ainda mais nos novos tempos de máquinas e grandes descobertas. Saber trocar o que não passa de uma invenção para realmente uma progressão. A tecnologia por muitas vezes é vista como uma liberdade. Realmente é um enorme avanço, mas na mesma medida em que constrói, também é capaz de privatizar e oprimir. Nem todo “bem” é realmente às custas de ninguém. E contra isso, a luta jamais parará. Tanto da mudança mais simples, até a mais sofisticada. Porque e como evoluir, essa é a pergunta mais importante.

 

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Relatos de mulheres que sofreram violência sexual e psicológica durante suas aulas práticas de direção
por
Fernanda Fernandes
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27/06/2022

Por Fernanda Fernandes 

 

Era uma conquista estar indo tirar a carta, pois isso só foi possível por fruto de seu trabalho. Lavínia se dedicou como menor aprendiz e juntou dinheiro para a habilitação. Por já ter passado por violências ao longo de sua vida, tinha um certo receio de ficar em um carro com um homem. No dia 13 de setembro de 2020, era a sua primeira aula. Tomou um banho demorado, pois ficava pensando o que poderia acontecer neste dia, mas foi. Ao entrar no carro, Lavínia alega já se sentir desconfortável, pois o instrutor começou a elogiá-la constantemente. Ele dizia: “Você é muito linda”, “Que pele maravilhosa”, “Que cabelo lindo”.

No primeiro momento ela achou estranho, mas pensou que ele estava querendo criar uma intimidade, de uma forma invasiva, mas entendeu. Com o passar das aulas os elogios foram aumentando, e novas atitudes começavam a surgir.

Lavínia relata que em um dos dias, o instrutor pediu para ela tirar uma foto da folha que continha a explicação sobre as infrações de trânsito, e na hora de tirar a foto ele passou a mão na coxa dela. No momento Lavínia ficou sem reação, paralisada, só conseguia olhar para a tela de seu celular, e sem saber o que fazer, disse para continuarem a aula.

Quando começavam a fazer a baliza, ele falava para ela: Lavínia se você acertar a baliza eu mereço um abraço, se você errar, você também merece um abraço. Eu gosto de dar prêmios aos meus alunos.

Lavínia explica que o instrutor partia para cima dela, sem sua permissão. “Eu nunca falei que podia, eu tentava fugir. Só que eu ficava, será que isso está acontecendo ou é coisa da minha cabeça, será que ele realmente está sendo invasivo ou eu estou inventando. Minha intuição dizendo que era um assédio, mas minha bondade falando que era coisa da minha cabeça”.

Com dúvida e com esperança de que a próxima aula poderia ser melhor, Lavínia foi em mais uma. Era um dia muito chuvoso, ela conta que não dava pra ver nada, nem com o para-brisa na velocidade maior, e nesse dia ele a levou para uma rua sem saída.

Em seu relato ela afirma que foi desesperador. Indo em direção do final da rua, ele andava a menos de 10 km/h e não parava de olhar para ela. Com medo, ela pensava em como poderia reagir. “Eu não posso dizer que a intenção dele era me estuprar, mas deu a entender muito que era isso”.

Mas ao chegar no final da rua, o alívio veio, quando enxergaram três homens tendo aulas de moto. Nesse momento, o instrutor mudou seu comportamento – para disfarçar – e Lavínia pediu para trocarem de lugar e começarem a aula – na qual ela não conseguiu dirigir por medo.

Assustada, mas também com coragem, a moça que na época tinha 19 anos, parou as aulas, enviou um relato para a autoescola – que fez pouco caso da situação – e publicou também em suas redes sociais, o que gerou muita repercussão e descobertas. A partir de sua publicação, mais de vinte casos de assédio na mesma auto-escola começaram a surgir. Samantha foi um desses.

Como sempre quis dirigir, ao completar 18 anos ganhou a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) de presente dos seus pais. Mas por já ter sofrido assédio em outros momentos da vida, estava receosa. Sua terapeuta a incentivou a enfrentar seus medos e não se privar de fazer aulas com um instrutor homem, mas como ainda não se sentia completamente preparada Samantha preferiu fazer as aulas com uma mulher.

Para conseguir agendar com a instrutora, demorou muito mais tempo, pois era a única mulher da autoescola. Mas ela não se importou, esperou e fez suas aulas com tranquilidade – que segundo ela foram fantásticas.

Porém em um dos dias em que tinha duas aulas, o sistema da autoescola estava quebrado e ela não conseguiu registrá-las como feitas. A partir disso, teve que repor as aulas perdidas. Como não queria esperar tanto tempo e estava ansiosa para pegar a habilitação logo, deu a chance de fazer com um homem.

Na primeira reposição tudo ocorreu bem – tirando o fato dele ficar apenas no celular e não dar atenção a o que ela estava fazendo. Já na segunda aula, como Samantha estava tendo dificuldades com a baliza, ele disse que iria ensiná-la a fazer.

Sentado no banco do passageiro, e Samantha no do motorista, ele começou a virar o volante ele mesmo. “Nesse momento ele encostou no meu peito várias e várias vezes, as primeiras vezes com o braço, como se fosse sem querer”.

Samantha relata que por ter os seios grandes e por causa do banco estar perto do volante, mesmo incomodada, relevou. Mas depois percebeu que quando ele tirava a mão do volante ele passava em seu seio. Ao perceber, ficou paralisada e sem reação, mas por não ter certeza se havia ocorrido de propósito ou acidentalmente, não tomou nenhuma atitude.

Depois de dois meses, após já ter finalizado o seu processo de habilitação, ela viu o relato da Lavínia nas redes sociais. “Uma amiga minha me enviou a publicação e disse: foi o mesmo instrutor que te deu aula? E na hora eu não sei explicar, naquele momento eu pensei aquilo realmente aconteceu, não era coisa da minha cabeça”.

Samantha relata, que foi assustador, ao perceber que era o mesmo instrutor sua ficha caiu. E então ela se sentiu invadida e desrespeitada. 

Após ver a publicação, ela expôs o seu caso para Lavínia, e juntas foram até a autoescola falar com o dono e lutar por justiça. A autoescola, que fica localizada na Vila Sônia ficou se justificando, e colocando as vítimas como culpadas da situação. Mas após um período, o instrutor foi demitido.

Samantha abriu um boletim de ocorrência na justiça, mas até o momento não teve respostas. Lavínia também pretende abrir. Os ocorridos uniram as duas, que construíram uma amizade que prevalece até hoje. O apoio foi fundamental e durante a entrevista elas mostraram que ficam felizes em poder ajudar mulheres com os seus relatos, além de se sentirem muito corajosas em denunciar e expor a situação.

“Sozinha eu não teria feito nada, com ela eu tive muito mais força” conta Samantha.

Agressividade e menosprezo

Além do assédio, a violência também se faz presente em atitudes grosseiras e falas machistas, que desestimulam e menosprezam o conhecimento e a credibilidade das mulheres.

Era sua penúltima aula, o nervosismo e medo da prova prática estavam cada vez maiores, e a insegurança também tomava sua cabeça. Mas o que já era um grande problema, se tornou ainda maior após esses dois dias.

Enquanto dirigia, o instrutor de Rafaela que sempre a tratou bem, conversava sobre diversos assuntos cotidianos, o que para ela era tranquilo e até a deixava menos nervosa no momento de dirigir. Porém, existem assuntos e assuntos, e aqueles que – às vezes – não cabem, a política é um deles.

Estava no meio da aula quando o instrutor começou a perguntar para Rafaela sobre o presidente do Brasil e as próximas eleições, ela até pensou em não comentar, mas não aguentou, seguindo com a conversa e trazendo suas pontuações em relação a política atual.  

Os minutos foram passando e o clima já não era o mesmo, estava tenso e as opiniões divergentes ecoavam, o que fez Rafaela querer encerrar o assunto, mas ele não parou e continuou falando até o final da aula. Após o ocorrido, ela ficou um pouco desanimada para o próximo treinamento, por ter se incomodado com as afirmações que escutou, além de perceber o quanto isso afetaria o dia seguinte. 

Sua última aula chegou, e como já esperado, o professor mudou completamente. As risadas e o jeito simpático de conversar, se tornaram caras fechadas e frases secas. Desconfortável com a situação a jovem de 18 anos seguiu o caminho quieta, até que, quando menos esperava, o instrutor começou a falar novamente sobre política em tom de provocação e insinuando que a mulher não sabia o que estava dizendo, por ter pouca idade e que ela precisava ler mais.

Ao chegar ao local da aula, Rafaela se sentou no banco do motorista e começou a dirigir como sempre fazia, até que em meio a troca de marchas e disparadas de setas, começou a ouvir em tom agressivo “Rafaela não é assim”, “Rafaela você está errando pois não está me escutando”. As correções do instrutor, que nas primeiras aulas afirmavam “Fica tranquila, você está aqui para aprender”, começaram a ser rudes. Com o nervosismo de ser a última aula, o desconforto em ter que ouvir que não tem competência para ter suas próprias ideias, além das grosserias, Rafaela não aguentou, com a cabeça cheia, parou o carro, respirou e começou a chorar. Ao ver as lágrimas, o instrutor, outra vez, muda completamente, mas agora soa como preocupado e diz para irem embora.

Contando sobre o fim da história, Rafaela com raiva diz “No caminho de volta após o choro passar, o professor virou para mim e disse para eu ficar tranquila, pois mulher é assim mesmo, quando não consegue fazer alguma coisa, senta e chora”.

A experiência de escutar uma frase machista também aconteceu com Larissa, que sempre teve o sonho de dirigir, pois quando era pequena seu pai a colocava no colo enquanto estava ao volante. A jovem comenta que fez suas aulas práticas com um homem, mas que tudo ocorreu bem. Diferente dos outros relatos, esse caso ocorre na Rua do Carmo Marialva Aranha, local em São Paulo, onde ocorrem as provas práticas do Detran (Departamento Estadual de Trânsito).

Ansiosa e com medo de ser avaliada, lembra que pegou uma fila quilométrica e não parava de andar de um lado para o outro. Com um pouco de agonia de falar do ocorrido, ela explica que depois de 2 horas esperando, chegou a sua vez. Ao entrar no carro, deu bom dia ao avaliador, e o silêncio ecoou, sem resposta começou a arrumar o cinto, retrovisor, banco, até que escuta: eu não tenho todo tempo do mundo para esperar não viu, se continuar lerda assim não vai dar.

Tentando manter a concentração, não quis que isso a desestabilizasse e então seguiu com calma. Ligou o carro, saiu, fez baliza, a primeira parada, tudo perfeito, sem nenhuma pontuação, o que a deixou mais confiante.  Quando estavam chegando próximo da última rua, o avaliador comentou que ela estava ficando muito perto dos carros da direita e que se ela continuasse assim ele iria reprová-la. “Presta atenção eu não vou falar de novo” era o que ela ouvia, enquanto pedia desculpa.

Quanto mais perto do final da prova, Larissa começou a ficar mais nervosa com medo do último estacionamento. “Eu lembro que enquanto eu estava esperando na fila, eu vi a quantidade de pessoas que foram reprovadas exatamente ali na guia, e isso me deixou extremamente tensa” conta.

E foi o que aconteceu, ao estacionar e pisar o pé no freio, sentiu o pneu encostando na calçada. Nessa hora de frustação e indignação com o erro no último momento, ela relata com raiva e tristeza “Eu fiquei morrendo de vontade de chorar, eu lembro que eu só queria pegar o papel e ir embora. Mas o instrutor olhou para mim, assinou o papel e disse: viu Larissa, você reprovou pela sua incapacidade, eu te avisei que você estava perto dos carros, você está reprovada por sua causa". Chorando ela saiu do veículo.

 

O machismo de outro ângulo

Lindomar Costa, instrutor teórico e prático credenciado pelo Detran, atualmente ministra aulas para pessoas que têm medo de dirigir, e por 85% de seus alunos serem mulheres, conta em entrevista que para muitas esses medos são decorrentes de traumas e experiências negativas dirigindo.

Mas além das problemáticas presentes dentro da autoescola, ele traz uma outra perspectiva do machismo. Lindomar afirma ter percebido ao longo dessa trajetória de instrutor, principalmente para habilitados, que muitas mulheres casadas deixam de dirigir por conta de seus maridos, que preferem ter um domínio sobre elas e não as incentivam a tirar a carta de motorista. Dizem, “eu te levo, não se preocupa”, criando assim uma falsa proteção e as impedindo de ter uma liberdade.

O instrutor comenta que outro problema ocorre quando os maridos tentam ensinar as mulheres a dirigir, “Muito dos medos dessas mulheres vem de experiências desastrosas, por exemplo, tentou aprender com o marido e ele grita, chama ela de burra”.

Em relação ao assédio, ele relata que já escutou o relato de várias alunas que foram assediadas na autoescola, a ponto de desistirem de fazer as aulas. “A pessoa deposita toda a confiança dela no instrutor e de repente ele desmorona toda aquela expectativa. É uma decepção para a aluna, que acaba desistindo de tentar dirigir” comenta.

Ao longo da conversa, ele acrescenta que durante o curso de instrutor teórico e prático do Detran, é abordado o comportamento do instrutor, o que ele pode e não pode fazer, além da temática do assédio. “Eles abordam de uma forma bem clara e ensina realmente qual que é o papel do instrutor, como ele deve se posicionar”. Segundo o instrutor, uma das coisas ensinadas durante o curso é que o professor não pode andar com o braço atrás do banco do aluno, que a mão deles tem que estar sempre na perna, e que é proibido qualquer assunto que não seja direcionado a aula.

Perigo constante?

"Mulher no volante perigo constante". Essa é a clássica frase dita por homens para diminuir a capacidade de dirigir das motoristas. Porém, com um novo olhar e mergulhando fundo em relatos é possível ressignificar essa afirmativa tão corriqueira, pois de fato, sim, mulher no volante perigo constante. Mas em qual contexto?

O perigo está presente quando a mulher se senta em frente ao volante, mas ele ocorre quando um homem desconhecido está do seu lado. Esses são apenas alguns dos diversos relatos existentes, esse problema não é pontual, não é pequeno, ele é realmente constante, causando traumas e impedindo que muitas mulheres se tornem independentes e dirijam as suas próprias vidas.

Todos os dias querem podar e desestimular as mulheres, mas a denúncia precisa acontecer para que assim como, Lavínia e Samantha se ajudaram, outras mulheres possam ser salvas. A frase machista ganhou um novo significado ajudando a compreender que a violência e o machismo no trânsito começam muito antes da carteira de habilitação.

 

 

 

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Reajustes dos servidores foram viabilizados por retirada de direitos ao longo do mandato do tucano
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Lucas Martins
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14/04/2022

Por Lucas Martins

A tarde estava chuvosa, a água batia na cobertura do Palácio 9 de Julho, mas não fazia mais barulho do que os manifestantes que estavam na porta da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Dentro do Plenário Juscelino Kubistchek, os deputados e deputadas estaduais chegavam um. Os progressistas sentavam à esquerda do presidente da Casa, Carlão Pignatari, e os conservadores, à direita, enquanto a base governista se espalhava pelas fileiras do fundo e se acomodava nas cadeiras verdes acolchoadas. 

Nas galerias, diversas categorias de servidores públicos, que carregavam faixas e bandeiras, aguardavam inquietos o início da votação da reforma da previdência estadual quando o deputado Frederico D'Ávila, em processo de afastamento por ataques à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, apontou as mãos em formato de arma para eles. A atitude do parlamentar foi como um fósforo em um barril de pólvora, que gerou uma explosão na ala dos manifestantes.

Mais tarde, um dos eventos mais marcante da história da Alesp aconteceu. Durante o seu discurso, o ex-deputado Arthur do Val, que renunciou e amargou uma cassação de mandato em votação no plenário após ter áudios sexistas vazados, chamou os sindicalistas presentes de "vagabundos" diversas vezes, enfurecendo Teonílio Barba, que partiu para cima de "Mamãe Falei". Esse foi o momento em que tudo se inverteu e a base governista criou uma falsa narrativa. Os manifestantes, que estavam sendo agredidos pelo projeto que era votado, se tornaram os agressores . Por volta da primeira hora da madrugada, o gesto de Frederico D'Ávila fez mais sentido do que nunca. A reforma da previdência estadual havia sido aprovada. Um tiro na perna dos servidores, que saíram aleijados, mas sem saber que era apenas um começo de uma série de ataques promovidos pela gestão de João Doria.

Em 2021, o Executivo lançou mais uma proposta covarde ao Legislativo paulista. O Projeto de Lei complementar proposto buscava promover uma reforma administrativa ao acabar com diversos direitos dos funcionários públicos. O PLC foi a plenário em uma terça-feira de muito sol, quente como o clima que se instaurava nas galerias. Novamente os sindicatos mobilizaram diversos manifestantes para lutar contra mais um ataque. Durante as falas que apoiavam a proposta, a líder do Partido dos Trabalhadores na Alesp Professora Bebel fazia círculos com as mãos, um comando para que todos virassem de costas e ignorassem as atrocidades que eram faladas.

Entre os discursos na tribuna, a oposição contava os parlamentares presentes no local. Constatado um baixo número de governistas, era pedida verificação de quórum. Os deputados do campo progressista, juntamente com os conservadores da extrema direita, corriam para as portas do plenário e se escondiam do olhar atento de Carlão Pignatari, que queria levar mais um troféu para Doria e receber um tapa em seu topete.

A técnica de obstrução não funcionou. Os capangas do Executivo, como eram chamados os deputados da base do então governador com suas emendas parlamentares liberadas, mantiveram o quórum necessário. Ao final da sessão extraordinária, um silêncio reinou. Luto pelo funcionalismo público, que já estava mancando, e naquele momento foi ao chão. A sequência de cruzados que levou os servidores à lona não foi ocasional. O plano de Doria estava escrito, desde o começo, e ficou explícito em sua última reunião com parlamentares da Alesp, realizada mensalmente durante seu mandato, para que as estratégias da base fossem definidas.

O Secretário da Casa Civil, Cauê Macris, presente no encontro virtual, questionou em tom amigável o líder do governo na Assembleia Legislativa o porque de eles não estar nos gabinetes articulando com outros parlamentares para que a cartada final de Doria fosse aprovada em plenário. Cercado em grandes árvores em uma praça de Marília, Vinicius Camarinha riu, e disse que já estava tudo certo para que o tucano presidenciável deixasse seu cargo em paz.

O último ato de Doria seria tentar ganhar de volta o funcionalismo público com projetos de revalorização salarial. Porém, os servidores mostraram que não tinham memória curta. Através de seus óculos sustentados por uma fina aração, José Gozze assistiu à votação das duas reformas e à diversas outras lutas. Cercado por bandeiras de sindicatos que já participou ou presidiu, e quadros com líderes progressistas, ele condena todos os passos de Doria, da prefeitura ao governo. Ansioso, ele mostra suas conversas com diversos movimentos, destacando as articulações feitas para derrubar os recentes ataques feitos pelo Executivo.  Além disso, em seu caderno com adesivos de diversos partidos de esquerda colados, ele lê os dados inflacionários dos últimos dez anos, condenado a esmola oferecida por Doria em forma reajuste salarial.

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O racismo e a xenofobia contra um povo que aparenta não ligar para o seu sofrimento
por
Gabriel Yudi Gati Isii
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16/05/2022

Por Gabirel Yudi

 

Em uma luta sem voz, Lucas Hideki mostrou sua força e contou sobre um problema pouco discutido no Brasil, praticamente uma batalha sem a atenção necessária. O racismo e xenofobia contra amarelos deixa marcas silenciosas em mim, no Lucas, em todos, mesmo que não admitam.

Os descendentes de países do Leste Asiático que estão no Brasil vêm sofrendo preconceito. Os sucessores de pessoas vindas da China, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Japão, Mongólia, Taiwan, Hong Kong e Macau, são amarelas, caso tenham em seu fenótipo características de seus antepassados. “Abre o olho, japonês”. “Volta pro seu país”. “Xingling”. “Japinha”. “Para passar no vestibular tem que matar um japonês”. “Asiático é tudo igual”. “Vírus chinês”. Frases diariamente ditas para amarelos e que tem teor de menosprezar ou ‘tirar’ com a cara.  

Antes de tudo, antes de você, leitor, achar que é apenas frescura, abra o olho (como vocês mesmos dizem) mostrarei números e fatos que te farão entender rmelhor o problema, a médio e/ou longo prazos, às situações que suas frases de “brincadeira” podem levar.

Me sentia mal, bem mal. O pior de tudo é que eu mesmo, por crescer com esse apelido, por muito tempo achei normal e não tive capacidade de sozinho entender o quanto isso me fazia mal”, diz Lucas Hideki Maesaka, estudante. Muitas das vezes sua personalidade e sua história são rotuladas apenas pela sua descendência. Como se você fosse única e exclusivamente aquilo. Sofrer ataques verbais é comum, principalmente querendo desmerecer pela sua descendência. Lucas sentiu isso ainda jovem e seu avô o aconselhou com ‘sabedoria’, como o mesmo diz:  Tenho uma memória muito forte de quando eu estava no 1º ano do Ensino Fundamental e um colega tentou me ofender me chamando de japonês, eu reportei o fato ao meu avô, que com grande sabedoria ele me respondeu com uma pergunta "Mas isso não é verdade?", desde aquele dia até o presente momento eu não me sinto ofendido mesmo quando alguém tem a intenção de me ofender. Eu tenho meu avô, que aprendeu isso sozinho”. 

Protesto nos Estados Unidos contra o racismo/xenofobia amarelo (Foto: Dia Dipasupil/Getty Images)

Segundo o Censo de 2010, dois milhões de brasileiros se declaram amarelos. Pessoas amarelas se encontram principalmente em São Paulo, cerca de 70% do total. Porém tem populações significativas no Paraná, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pará e Pernambuco. 

A família de Lucas, provavelmente já sofreu racismo e/ou xenofobia, mas Hideki pode explicar melhor o porquê desse talvez: “A resposta para isso é: muito provavelmente. Não coloco certeza em minha resposta uma vez que meu avô, o Senhor Domingos, representa a minha família inteira, e ele sabe que se algum dia ele sofreu preconceito e ficou mal, de modo algum poderia se mostrar abalado para mim”. 

Segundo o Grupo de Defesa da América Asiática e das ilhas do Pacífico (Stop AAPI Hate), em onze meses, de março de 2020 até fevereiro de 2021, houve 3.800 agressões, sendo verbais e físicas, contra asiáticos e seus descendentes. Esse número expressivo, uma média de 10 casos por dia, aumentou em 150%.  

Em março de 2021, três casas de massagens foram atacadas por Robert Long, homem branco de 21 anos. O homem matou oito pessoas, sendo seis delas mulheres asiáticas. Outro crime de ódio xenofóbico e racista é o caso de Danny Yu Chang, que foi espancado na rua e ficou parcialmente cego, o homem disse: “Eu nem vi a pessoa. Não me roubaram, então acho que foi um crime de ódio”. 

Outra ação extremamente preconceituosa foi quando um homem jogou uma bomba dentro do Consulado Chinês, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ninguém se machucou, mas caso alguém estivesse próximo, poderia ter morrido. Isso ocorreu em setembro de 2021. A causa do atentado terrorista não foi descoberto pela polícia, mas basta ligar pontos que o motivo é óbvio.  

Uma coisa que penso desde quando comecei a me entender como homem amarelo é sobre a falta de união do povo para tentar acabar com esses problemas. Compreendo totalmente a cultura ser algo de resistência e não se abalar. Porém vejo uma necessidade de se juntar para acabar com algo maior. Lucas Hideki concorda sobre a falta de união e fala com mais propriedade sobre os descendentes de japoneses: “Claro! Como em todas as minorias, a união é a principal força no combate às desigualdades. Porém existe uma característica específica nos nipo-brasileiros, essa comunidade incrível, talvez por medo, talvez por preconceito, talvez desconfiança, tende a se isolar, e isolando-se perdem a chance de conquistar um espaço maior na sociedade”. 

Minha família chegando do Japão (Foto: Arquivo pessoal)

Talvez meu povo se mexa quando for um dos nossos familiares que seja encontrado morto por conta da brutalidade contra nós, amarelos. 

No Brasil, a luta de pessoas amarelas para que o racismo e xenofobia acabe é invisibilizado pelo seu próprio povo, que não enxerga esses fatos como preocupantes, ou que se auto-sabotam para enturmar com outras pessoas. É uma batalha que os leste-asiáticos e seus descendentes se abstêm. 

Estereotipar um povo por conta de seus traços raciais é presente na vida de muitos descendentes do leste-asiático. A junção de grupos étnicos diferentes e tratar como se fosse da mesma classe incomoda. Nenhum sucessor de europeu gostaria de ser chamado de espanhol sendo que sua origem é portuguesa. Ou que zombassem da comida que sua “Nonna” faz uma comida estranha e que a cultura dela é nojenta. 

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