Por Carolina Rouchou
O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.
Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.
Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.
Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.
Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.
Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.
Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.
Mudanças de cenário
Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.
Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.
O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.
O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.
A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.
O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.
O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.
Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.
O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.
Por Nicolly Golz
Valdete, ou simplesmente Val, nasceu entre plantações de milho e cheiro de terra molhada, na pequena São João do Pacuí, no norte de Minas Gerais. Em um lugar onde o tempo parecia andar mais devagar, o destino das meninas era quase sempre o mesmo: casar cedo, ter filhos e servir à lavoura. A tradição era regida tanto pelos costumes familiares quanto pela força da religião, Val e sua família são da Congregação Cristã no Brasil, onde o silêncio das mulheres é um mandamento e o casamento é, mais que um compromisso, uma sentença perpétua.
Val era a filha do meio de cinco irmãos. Seus pais, primos entre si, se casaram aos 13 anos e iniciaram uma vida pautada pela roça e pela rigidez religiosa. Naquela casa de chão batido e paredes frágeis, estudar não era prioridade. Mas Val tinha outros planos, com a ajuda de um padrinho persistente, convenceu os pais a deixá-la ir para a escola. Caminhava mais de 10 quilômetros para pegar o ônibus, e só faltava quando o pai a obrigava a trocar os cadernos pela enxada. Mesmo assim, estudou e se tornou a única alfabetizada de sua família. Porque entendia que a educação era sua única chance de escapar.
Mas escapar não seria tão simples. Aos 17 anos, Val foi forçada a se casar com um primo, como tantos antes dela. A justificativa era religiosa, cultural e inevitável. Com ele, teve dois filhos: Miriam e Lucas. E foi por eles que, anos depois, encontrou forças para dar o passo que mudaria sua história. Ela já tinha aceitado o próprio destino, acreditava ser mais uma mulher marcada pela invisibilidade, pelo silêncio, pela submissão. Mas quando viu seus filhos crescendo, percebeu que ainda havia tempo para mudar o curso deles, e talvez o seu também. Pegou o pouco que tinha e partiu para São Paulo.
Chegou à capital com uma mala pequena e um coração em pedaços. Dormiu no chão de casas emprestadas, dividiu espaços com desconhecidos e trabalhou no que apareceu: faxineira, cozinheira, babá, cuidadora de idosos. Com fé em Deus e força nos braços, reconstruiu sua rotina sem nunca deixar que o cansaço a definisse. Em uma de suas primeiras faxinas em São Paulo foi chamada para limpar uma mansão em um bairro nobre da zona sul. Ao entrar, seus olhos se perderam entre os detalhes: a piscina de azulejos claros, o chão de mármore, uma geladeira maior que o quarto onde dormia. Ali, pela primeira vez, viu um vaso sanitário aquecido e uma máquina de lavar louça. E também ali, pela primeira vez, entendeu que a desigualdade não era apenas econômica era estrutural, cotidiana e cruel.
Val teve que levar Miriam para o trabalho um dia, por não ter com quem deixá-la. Enquanto limpava o chão da sala, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. Miriam brincava com a filha da patroa. Minutos depois, a patroa a chamou em voz baixa, com um sorriso gelado. Pediu que, por favor, não levasse mais a filha. E, dias depois, mandou Val embora. Disse que "não estava dando certo". Val entendeu o recado. Não era só o olhar torto. Era o prato separado, o copo de plástico, os talheres guardados em um armário diferente. Era a desconfiança velada, o “você pode esperar na área de serviço”, o “não precisa entrar”, e entender que sua presença era tolerada. E mesmo assim, ela permaneceu. Por necessidade, por orgulho, por amor aos filhos. Miriam e Lucas cresceram vendo a mãe sair antes do sol nascer e voltar exausta, mas ainda sorrindo, ainda tentando. Val se recusava a ser reduzida ao estigma de “mais uma empregada”. Por isso, foi atrás de cursos. Queria se profissionalizar, entender técnicas, estudar padrões de organização. Descobriu que era apaixonada por isso, por transformar o caos em ordem, o excesso em funcionalidade. Já fez mais de dez cursos, pagou cada um com suor e fé. E não para de estudar.
Seu trabalho hoje é em Mogi das Cruzes, onde conquistou uma clientela fiel como personal organizer. Uma antiga patroa, sensibilizada pela sua dedicação, pagou a última mensalidade do curso e a indicou para outras mulheres. A agenda de Val cresceu e com ela, a sua autoestima. Mas nem tudo está resolvido.
O marido, com quem foi obrigada a se casar, vive encostado. Não trabalha, não ajuda, não participa. Val sustenta a casa sozinha e ainda não conseguiu se divorciar. A religião que sempre lhe deu força, hoje também é sua prisão. A Congregação Cristã não aceita o divórcio. Dentro dela, mulheres como Val devem suportar caladas. Val, no entanto, vive uma batalha íntima, silenciosa, mas diária. Ela sabe que precisa se libertar desse casamento. E está decidida a fazê-lo. A fé, para ela, não está na instituição, mas em Deus. Val não perde um culto. Vai de cabeça coberta, Bíblia na bolsa e joelhos prontos para dobrar. É nas orações que encontra fôlego. Conversa com Deus a todo momento no ônibus, na limpeza, ao organizar uma gaveta. Sente a presença de Deus em tudo. E é essa presença que a mantém firme, mesmo quando o mundo parece desabar.
Hoje, aos 43 anos, Val vive com os filhos em uma casa simples, mas só dela. Decidiu que não vai mais se curvar para sobreviver. Quer viver com dignidade, com escolha, com liberdade. Ainda enfrenta preconceito, ainda batalha por respeito, mas não aceita mais ser silenciada. Val não é exceção. É o retrato de milhares de mulheres negras, pobres, invisibilizadas. Mas o que ela construiu com fé, estudo e força ninguém tira. Sua história é sobre coragem não a coragem de quem vence tudo, mas a de quem continua mesmo quando tudo conspira contra, Val sempre sendo simplesmente Val.
por Arthur Rocha
As luzes de São Paulo, em sua dança incessante, sempre foram um palco para sonhos e desassossegos. Mas nos últimos anos, uma sombra sutil, quase invisível, começou a alongar-se sobre o horizonte de concreto e vidro: a sombra da Inteligência Artificial. Não a IA dos filmes, com robôs a caminhar entre nós, mas uma presença silenciosa, um código a reescrever destinos, a destecer carreiras.
Pedro Vasconcelos, aos 42 anos, era um artista das cores e das formas. Seus 15 anos como designer gráfico na agência "Conceito & Traço", de médio porte na Vila Olímpia, eram uma tapeçaria rica de campanhas visuais, logotipos que cantavam e layouts que seduziam. Ele amava a tangibilidade de seu trabalho, o toque da caneta na prancheta, o ritual de dar vida a uma ideia. Seu escritório era seu santuário, um refúgio da agitação urbana, onde a criatividade fluía como um rio calmo.
No entanto, o rio da sua vida profissional estava prestes a encontrar uma barragem digital. Era março de 2024 quando o e-mail, frio como metal polido, pousou em sua caixa de entrada: "Reestruturação Departamental". A linguagem burocrática mascarava a verdade brutal: uma ferramenta de IA generativa assumiria as tarefas repetitivas e de alta demanda visual. A promessa era clara: redução de custos e agilidade sem precedentes. Pedro, um dos três designers, foi "realocado para o mercado".
Pedro diz que sente como se anos de experiência, de noites em claro para um cliente exigente, de cada linha traçada com intenção, tivessem sido reduzidos a um mero comando. Ele observa o horizonte de sua pequena varanda na Lapa, onde o cheiro de pão fresco se mistura ao burburinho da cidade. A notícia doeu mais que um corte. Doeu na alma. Ele não é um caso isolado. Pesquisas indicam que 53% dos empregos no Brasil podem ser alterados pela IA, com setores como o de serviços criativos, atendimento ao cliente e análise de dados entre os mais vulneráveis. Globalmente, o Fórum Econômico Mundial projeta que a automação pode substituir 85 milhões de empregos até 2025, uma onda silenciosa que avança.
Os primeiros dias foram um vácuo. Pedro acordava sem um propósito claro, o corpo ainda acostumado ao ritmo frenético da agência. A raiva deu lugar a uma angústia profunda, um desamparo quase existencial. Ele se questionava como sua arte e sua identidade poderiam ser replicadas por um conjunto de algoritmos. Os dados da Robert Half, que revelam que mais de 70% das empresas brasileiras já utilizam ou planejam utilizar IA em suas operações, eram agora uma estatística fria que o atingia em cheio.
O dinheiro da rescisão, antes um pequeno alívio, tornou-se uma contagem regressiva. Com o custo de vida crescente em São Paulo, o orçamento apertou. Pedro relata que cortou tudo que não era essencial, desde ir ao cinema até o café especial de sábado, que se tornaram luxos. Ana Clara, sua esposa, professora em uma escola pública, sentiu o peso e precisou assumir mais responsabilidades. A casa, antes um porto seguro de prosperidade compartilhada, agora ecoava uma tensão silenciosa. Pedro tentou se candidatar a vagas similares, mas percebeu que o mercado buscava algo mais: profissionais com competências digitais avançadas, familiaridade com as novas IAs. A consultoria Korn Ferry alerta que o Brasil pode enfrentar uma escassez de talentos qualificados em tecnologia em paralelo a um excedente de profissionais com habilidades desatualizadas. Pedro era uma dessas estatísticas vivas.
Hoje, nove meses após a demissão, Pedro está em um limbo. Ele fez cursos online sobre ferramentas de IA para designers, buscando entender como a tecnologia pode ser uma aliada. Ele explora a ideia de se tornar um "prompt engineer" – alguém que sabe dar as instruções certas para a IA. Para ele, não é mais sobre "criar do zero", mas sobre "dialogar com o que já existe" e refinar. Ele também busca refúgio em nichos que valorizam o toque humano insubstituível: design de experiência do usuário (UX), que exige empatia, e branding conceitual, onde a estratégia e a alma de uma marca ainda dependem de uma mente humana. Pedro afirma que é uma corrida contra o tempo e que precisa aprender a usar essas ferramentas para não ser completamente engolido, para achar sua voz de novo, enquanto esboça novas ideias em seu tablet, agora com a ajuda de um software de IA.
Clara Rezende, aos 35 anos, era uma analista de dados brilhante. Sua mente trabalhava com a precisão de um relógio suíço, transformando planilhas complexas em insights acionáveis para a "Synapse Consultoria", uma grande empresa na Berrini. Ela amava a lógica, a beleza dos padrões ocultos nos números, a sensação de desvendar mistérios através da matemática. Seu trabalho era seu orgulho, sua torre de babel construída em códigos e relatórios que orientavam decisões corporativas de milhões.
Em outubro de 2024, a notícia chegou como um raio em céu azul, sem a menor previsão em seus modelos estatísticos. O diretor do departamento anunciou um novo "parceiro estratégico": um sistema de IA capaz de processar volumes massivos de dados, identificar tendências e gerar relatórios preditivos em uma fração do tempo que um humano levaria. "Otimização de processos" foi a palavra-chave. Clara, juntamente com metade da equipe de análise de nível júnior e pleno, foi dispensada.
Clara relembra, com um tom de voz ainda carregado de uma incredulidade amarga, que lhe disseram que suas tarefas eram "rotineiras demais", que a máquina faria isso com mais "eficiência". Ela, que dedicou anos a aprimorar seus modelos e a entender as nuances dos dados, viu seu conhecimento ser sumariamente descartado. A ironia era cruel: ela própria, com sua expertise em sistemas, havia ajudado a construir plataformas que agora a substituíam. Pesquisas indicam que a IA tem potencial para impactar significativamente 2,4 milhões de empregos no Brasil nos próximos três anos, com o setor financeiro e de serviços sendo altamente expostos.
O desemprego para Clara foi um choque que reverberou em cada aspecto de sua vida. Acostumada à estrutura e à clareza dos dados, ela se viu em um mar de incertezas. A rotina desabou. As manhãs, antes preenchidas por reuniões e algoritmos, agora se estendiam em uma busca incessante por vagas. As ofertas, quando surgiam, eram para salários muito menores ou exigiam habilidades que ela não possuía, como "engenharia de prompt" ou "ciência de dados com IA generativa", áreas que sequer existiam em sua formação inicial.
O impacto financeiro foi imediato e severo. Clara, que sempre foi independente, viu suas economias minguarem rapidamente. Ela teve que se mudar do seu apartamento confortável nos Jardins para um menor e mais distante, no Tatuapé. Ela tenta racionalizar, dizendo que é um recuo, um passo para trás para talvez poder dar um passo para frente, mas a frustração transborda. A pressão social, o olhar dos amigos que ainda estavam empregados, era um peso invisível.
Clara, em sua jornada, abraça a complexidade. Ela mergulhou em cursos de machine learning e ética em IA, buscando entender não apenas como as máquinas operam, mas quais são suas limitações e vieses. Ela se matriculou em um bootcamp intensivo de programação avançada, um caminho difícil, mas que ela vê como sua única saída. Seu objetivo é ser uma cientista de dados com especialização em IA responsável, atuando na fiscalização e aprimoramento dos próprios algoritmos que um dia a demitiram. Ela reflete que, por ironia, precisa entender o "inimigo" para poder vencê-lo, ou, pelo menos, para conviver com ele de forma mais justa. Ela colabora com um grupo de estudos online que discute o futuro do trabalho e a necessidade de regulamentação da IA, buscando uma voz coletiva em meio à sua luta individual.
As histórias de Pedro Vasconcelos e Clara Rezende não são apenas sobre desemprego. São sobre a resiliência humana diante de um futuro incerto, sobre a busca por propósito em um cenário profissional que se reinventa a cada dia. Elas são um espelho das transformações digitais que afetam milhões, e um lembrete de que, mesmo quando os algoritmos reescrevem o mundo, a capacidade de adaptação e a busca por um novo sentido ainda pertencem aos humanos. A questão não é se a IA substituirá empregos, mas como as pessoas como Pedro e Clara se reinventarão para coexistir e prosperar, desenhando novos caminhos em uma tela que nunca para de mudar.
Por Vitor Bonets
Ande. Passeie. Pedale. Dirija. Trabalhe. Viaje. Venda. Compre. Veja, faça ou seja arte. Seja paulista ou turista, a Avenida é a mesma, mas cada olhar determina o que ela é de fato. Ao andar pela famosa “Paulista” é possível ver de tudo, desde o homem que se equilibra em pernas de pau na frente do farol até a mulher que equilibra os produtos em cima da cabeça. O empresário engravatado que carrega a vida dentro de uma pasta embaixo do braço até o morador de rua que carrega seu mundo de papelão na palma das mãos. Nenhum deles debaixo do mesmo teto, a não ser que estejam por algum motivo abaixo do MASP. Porém, todos em cima da mesma calçada. Para alguns, um solo sagrado. Para outros, um solo sangrento. E para todos, a mesma Avenida.
Cerca de 1,5 milhão de pessoas passam pela Paulista todos os dias. 63% estão na avenida a trabalho. 14% escolhem a região para atividades de lazer. Seis em cada dez frequentadores são mulheres. 60% são da classe emergente. 73% dos adultos que transitam pela avenida - sete em cada dez - têm até 35 anos. Apenas 1% dos visitantes tem acima de 56 anos. Sabe o que esses números significam? Nada.
A não ser que sejam acompanhados de uma história. Números são só números. Histórias são mais que histórias. Assim como a de Gerson, que conta a sua e canta a de outros cantores. O homem, de 36 anos, faz o papel de quem dá luz à Avenida mais iluminada de toda a cidade de São Paulo. Com apenas um cavaco e um banquinho, vestido com sandálias da humildade e travestido de Zeca Pagodinho, Gerson canta como se fosse estrela, em uma noite estrelada na capital, a música “Naquela Mesa”, de Nelson Gonçalves. Ele cantava a história, que hoje na memória todos que estavam ao redor quase sabiam de cor. Ao invés da mesa, ele juntava gente na frente do banco, seja no que ele estava sentado ou no Santander que figurava atrás de seus ombros, para ouvir em alto e bom som a música. E nos seus olhos era tanto brilho, que nem os postes da Avenida entendiam de onde vinha tanta luz. Gerson e seu chapéu para as moedas estão no mesmo ponto desde 2022. Uma hora na cabeça, outra no chão, o amuleto que carrega os trocados está sempre presente. O cantor usa o acessório que ganhou do pai para recolher o dinheiro de quem passa e tem os ouvidos agraciados com as canções. Graça mesmo sente o artista, que abre um belo sorriso quando o faz-me-rir é depositado no protetor de sonhos.
Nascido em 1979, 20 anos após o ídolo Jessé Gomes da Silva Filho, Gerson teve tempo suficiente para aprender o que Zeca tinha para ensinar. Deixou a vida lhe levar, até que ela a levou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até o ponto principal da Metrópole. A Avenida Paulista. Ali, ele encontrou tudo aquilo que ainda não tinha visto. E já que o camarão que dorme a onda leva, ele decidiu ficar sempre de olhos abertos no meio desse mar de gente. Mar esse que parece não dar trégua para ninguém que se atreva a pegar uma onda. Mas Gerson subiu na prancha e dominou a praia paulista cheia de prédios comerciais altos e com banhistas que te olham de cima a baixo se você estiver com “roupas inadequadas”. E como todo bom artista, o cantor não está nem aí para as vestes e faz questão de ser olhado. Porém, ainda sente que só te olham, mas não o veem. Aliás, se sente surpreso quando alguém pergunta seu nome e quase que em tom de esperança entoa que se chama “Gerson da Paulista”.
Se a Bahia é de todos os santos, se todos os Zecas têm um quê de Rio de Janeiro, a Paulista tem algo para chamar de seu também. Ou melhor, a Avenida tem o seu artista e vice-versa, assim como versa Gerson.
Foi na Paulista que Gerson se viu como parte do todo. Com tantas pessoas que passavam em sua frente desde o primeiro dia em que lançou os dedos sob o cavaco, ficou fácil para o músico escolher onde queria ficar. Ele faz da calçada seu “palco a céu aberto” e dá um show para quem quiser parar e ouvir o que o cantor tem a cantar. Sem ingresso para entrar e sem área vip para assistir, são todos um só conectados apenas pela voz de quem “dá uma palinha”.
E não são poucos que param para apreciar sua arte. Principalmente nas noites em que a cidade não dorme, forma-se um público ao redor do banquinho do cantor. E que sorte de quem acompanha o espetáculo. Pedro é um deles. Impressionantemente, o jovem de apenas 19 anos, sabia todas as músicas que Gerson puxava. Desde o samba do mais velho até o pagode do mais novo. Só não colocou a ginga para jogo, porque não nasceu com o samba no pé, mas pelo menos estava com o ritmo na palma da mão.
Pedro, após mais uma grande apresentação foi agradecer pelo show proporcionado. E como forma de retribuição, estendeu a mão ao artista, colocou uma onça-pintada no chapéu do artista e fez um pedido especial. Agora, não era para que outra música fosse tocada, mas sim para que ele pudesse dar um abraço em Gerson. O jovem arrancou um sorriso do cantor que nenhuma nota, seja qual fosse o valor, poderia arrancar. O abraço foi dado, o público em volta aplaudiu e talvez o artista tenha ganho um dos seus maiores cachês de todas as noites de apresentação na Paulista. Gerson fez um amigo com uma onça e não um amigo da onça como muitos que existem por aí.
Após o show, as estrelas se recolhem no céu e na calçada. As únicas luzes que continuam a iluminar a Avenida são as dos edifícios e é difícil não reparar em como elas não se apagam. A paulista sempre tão movimentada, de madrugada deixa só que alguns “gatos pingados” andem por ela. E se há gato, há rato. Alguns, de cinza, sempre estão pelo local, já que para eles os Gerson’s que estão pelas ruas são criminosos. E para eles, infelizmente, não é por roubarem a atenção dos que passam pelo local com a família.
A Paulista que nunca dorme, virou mais uma noite. Ao raiar do sol, já se viu lotada novamente. Cheia, quase entupida de tanta gente, trouxe a velha máxima de que mesmo que esteja apertada, sempre cabe mais um. Seja a passeio ou a trabalho, a calçada é a mesma. Seja como caminho para o trabalho ou casa, a calçada é a mesma. Seja como vitrine ou palco, a calçada ainda é a mesma. A Avenida Paulista é para todos, por bem ou por mal. Sagrada ou sangrenta. Tudo depende dos olhos de quem olha, dos pés de quem anda, dos ouvidos de escuta ou da voz de quem canta.
Por Beatriz Alencar
A cada dia, em média, 34 pessoas tiram a própria vida no Brasil. Por ano, são registrados 14 mil ocorrências. Apesar de um assunto banalizado, não é uma atitude pensada de repente. O suicídio é o último pedido de ajuda daqueles que mais querem viver. Encarando esse cenário diariamente, Rosa* (*nome inventado para poupar a identidade verdadeira da entrevistada), que faz parte de um Centro de Valorização da Vida, um instituto que tem como função prestar apoio emocional para prevenção de suicídios, declara que uma das lições mais importantes que aprendeu trabalhando com isso, é que palavras tem o poder tanto de preservar a vida de alguém como ajudar a afundar uma.
Nos primeiros meses de trabalho, Rosa prestava apoio apenas através do telefone. Mas era difícil ajudar ainda tendo em pensamento que a vida era valiosa e que dar fim a ela não acabava com o sofrimento, só gerava outros em quem ficava. Porém, esse conceito mudou depois de uma ligação. Rosa explica que a identidade dela ou de quem atende pode ser preservada caso queiram. Ela não tinha o costume de trocar o próprio nome, mas em um atendimento específico, nem teve a chance de dizer.
A pessoa do outro lado da linha chorava muito. Rosa apenas conseguia pedir para respirar fundo. E permaneceu assim por minutos. Até que ela conseguiu dizer que tinha tentado mas nem isso conseguia fazer dar certo. Às vezes, a pessoa tem que lutar tanto pela vida que nem sobra tempo para viver. Nosso sistema nos diz que podemos ser grandes vencedores, mas não nos contam a respeito das misérias, dos suicídios ou do terror de uma pessoa sofrendo sozinha em um lugar qualquer. E no fim, criam uma população frustrada.
Parte disso passou na cabeça de Rosa ao ouvir aquela frase de um desconhecido que tinha ela como confidente. Ela sabia dessa versão "sombria" da vida, mas confessa que se assustou ao lembrar que teve que atender, em um único dia, mais de 5 ligações. Ao longo da chamada, a pessoa do outo lado da linha revelava cada ponto da vida dela, tentando achar uma explicação do porquê se sentia assim e por que tinha ligado, mesmo achando que o suicídio era a melhor solução. De acordo com Rosa, isso era comum.
A pessoa também contou já ter beijado mais bocas de garrafas do que pessoas, e como cada memória de momentos bons da sua jornada não era uma bênção. Isso, porque as lembranças vinham como flashes incovenientes que surgiam sem nenhum consentimento. Como algo que deveria ajudar ele a viver, só dava mais desespero? Para Rosa, vida é um ato de desapego. E o que mais dói é não reservar um momento para se despedir. Por mais que falasse desejar acabar com a vida, a pessoa do outro lado da linha ainda não tinha se despedido dela.
Rosa entendeu que aquela ligação não exigia mais do que seu ouvido. Só se fosse pedido. E ela sentiu esse querer em um suspiro. A pessoa do outro lado da linha declarou que sabia o porquê tinha ligado: depois de desligar, tudo ia ser esquecido. E ele também. Rosa não podia deixar a pessoa desligar.
Foi quando declarou: "eu vou me lembrar de você".
Depois de um silêncio, a pessoa agradeceu. Mas Rosa não conseguiu ser tão bendita quanto a morte, que é o fim de todos os milagres.
O último som que conseguiu escutar foi um grito seguido de um estalo. Ela o perdeu. E passou meses se culpando e sonhando com aquela voz do outro lado da linha. Por conta dessa ligação, Rosa demorou para começar os atendimentos presenciais, mas conta que, quando iniciou o trabalho tendo contato com as pessoas e a imagem de um rosto real, ficou muito mais fácil de controlar o próprio desespero.
Rosa já foi a parapeitos, casas de repouso, em ruas consideradas perigosas e centros de detenção. Ela revela que o medo do lugar nunca passou pela cabeça, mas sim, o receio de ir até alguém que não conseguisse segurar sua mão. O que já aconteceu algumas vezes, mas preferiu não comentar os casos isolados.
A vida pode ser emocionante e magnífica e, essa, é a sua maior tragédia. Sem a beleza, o amor, o perigo e as expectativas, seria mais fácil de viver. Rosa teve que lidar com perdas mas também guarda vezes em que foi capaz de preservar uma vida. Às vezes, se via até mesmo encarando em como lidar com a própria e se esse era seu objetivo. Ela ficou o quanto pôde, considerando as limitações da idade, então diz que hoje, sabe que, pelo menos uma das metas, foi cumprida.
Com o tempo, as vivências de Rosa se assemelharam ao dia a dia de alguém que trabalha no setor da saúde: com situções difíceis de lidar, mas corriqueiras o suficiente para não absorver o sofrimento. Mas para isso foi preciso acumular muitas histórias.
No fim do dia, conseguimos suportar muito mais do que pensávamos e, no fim da vida, guardamos tudo o que dela nos foi proporcionado.
As cicatrizes não precisam de "porquês", e o suicídio também não. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor. É um processo que nem todos estão dispostos a encarar sozinhos. E essa era a função que Rosa desempenhava.
Como tudo começou
Rosa entrou para esse meio em uma fase que todos compartilhamos em comum em algum momento da vida: no auge dos seus 20 anos, precisando de um emprego e com dificuldades para encontrar um. Não se identificava com muitas das opções do mercado de trabalho mas, mesmo assim, esperava um retorno das empresas das quais, diariamente, entregava currículos.
Foi então que esbarrou em um CVV. Depois de andar por todos os cantos procurando uma chance de ganhar alguma renda, encontrou uma oportunidade a poucas quadras de casa. No curso de treinamento, ela aprendeu diversos conceitos, como a importância de escutar, mas não achar que isso é a única solução; a necesidade de mostrar para as pessoas que, independente das escolhas dela, a vida dela é tão importante como qualquer outra; além do poder do afago, da palavra e, sobretudo, a falta de julgamento.
Rosa perdeu as contas de quantas ligações atendeu, de quantas reunões frequentou, lugares visitou e de quantas pessoas que ajudou encontrou por acaso na vida. De acordo com ela, todas essas experiências a fizeram ter uma relação diferente com o que chamam de destino e final. Aprendeu que as emoções que ficam muito tempo guardadas, ao invés de serem esquecidas, devem ser reiventadas. Mas é sempre cristalino como a força de alguém aumenta quando percebe que ela está segura, quando é notada e quando percebe que pode e deve ser amado.
Rosa não trabalha mais diretamente com o CVV, mas é sócia de uma instituição sem fins lucrativos que acolhe pessoas em profundo estado de depressão e as ajudam a retornar a viver sem culpa. Ou, como ela mesma declara, voltar a enxergar prazer nas pequenas coisas e agradecer até em sentir um pingo de chuva no cabelo que acabou de passar chapinha.
Por Danilo Zelic
Em detalhes, Rosalina Santa Cruz, Assistente Social e Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), conta sua perspectiva sobre como foi o processo de instalação, trabalho e encerramento da Comissão da Verdade da PUC-SP - Reitora Nadir Gouvea Kfouri (CVPUC). Nessa entrevista, a professora fala também de sua análise sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), como avalia seus resultados, impacto que teve no âmbito político e social brasileiro e da importância da instalação de uma Comissão da Verdade para apurar e apontar os graves crimes de violações aos direitos humanos no Brasil.
Por Anna Beatriz Barreto da Matta
As cidades do interior de São Paulo ainda sofrem com a falta de investimento, infraestrutura e de saneamento básico. Todos os dias, os moradores de Araçariguama enfrentam problemas e prejuízos causados pela negligência da prefeitura para com a cidade. O dia-a-dia e a rotina dessas pessoas são continuamente prejudicadas devido a tantas faltas.
Por Lucas Martins Alves de Oliveira
Em entrevista, Thiago Castro, militante do PSOL, filho de Clóves de Castro, fundador da Aliança Libertadora Nacional, conta, sob sua perspectiva, os fatos que antecederam e sucederam o golpe contra a ex-presidente Dilma Roussef.
Por Isabella Pugliese Vellani
Em junho de 2022, a foto que virou símbolo dos horrores da Guerra do Vietnã completou 50 anos. Em junho de 1972, o fotógrafo Nick Ut estava do lado de fora da aldeia de Trang Bang, quando a região foi bombardeada com napalm - uma substância altamente inflamável. O profissional, se virando para a estrada, viu um grupo de moradores fugindo do ataque. Entre eles, estava a jovem Kim Phuc Phan Thi, que corria nua e que gritava desesperadamente “Nóng quá, nóng quá” (muito quente, muito quente). Após tirar a foto, ele e seu colega de trabalho socorreram a menina com água.

O conflito marcou a história e fez com que diversos vietnamitas, ainda durante a guerra, buscassem uma nova oportunidade de reconstruir suas vidas em novos países. Essa é a história de Paulo Lam, imigrante vindo do Vietnã: quando era apenas um garoto de 4 anos de idade, sua família decidiu se lançar ao mar, sem rumo, mas determinados a vencer. No Brasil, puderam se sentir novamente em casa!
Por Manuela Troccoli
A cadela Laka, princesa da família, corre rapidamente pela sala ao ver que sua mãe chegou em casa. Para muitos, o que se imagina é que outra cadela quem entra pela porta; entretanto, quem chega de mansinho com um novo brinquedo em mãos é uma menina loira de um metro e sessenta, que decidiu apadrinhar a cachorra em 2018. Ana Clara Salles, a menina em questão, sempre sonhou em ter um cachorro para chamar de seu, mas sua família nunca foi muito a favor da ideia e sempre tentaram arranjar jeitos de resolver o desejo da menina: “meus pais já me deram de tudo” - afirma Ana. “Gato, tartaruga, passarinhos e até já ganhei um aquário lotado de pequenos peixinhos dourados. Mas nada matava minha vontade de ter um cachorro para chamar de meu”, conta. Entre os anos de 2018 e 2019 muitas mudanças familiares e estruturais aconteceram em sua família, o que a levava cada dia mais a pensar que talvez um dia, seu sonho viraria realidade. E foi o que aconteceu, no final de 2019, sua mãe a puxou para uma conversa e disse que agora, no apartamento novo, caberia um novo pet.
Rapidamente Ana já começou a procurar algum canil de confiança no qual ela conseguisse comprar a espécie ideal, e que ainda, não fosse de pelos longos para não atacar a alergia de seu irmão mais velho, João Pedro. Com tudo decidido, o cachorrinho já estava separado para ela no canil, aguardando o dia do pagamento. Porém, alguns dias antes, algo curioso aconteceu: Ana Clara se deparou com um vídeo em seu Instagram de uma pequena cadelinha branca de pelagem curta para adoção, vira-lata e com olhinhos pretos penetrantes. “Foi amor à primeira vista, eu me apaixonei por ela na hora. Queria ela para mim, o mais rápido possível. Entrei em contato com a pessoa que estava oferecendo lar temporário para o pet e disse que a queria para mim, expliquei para minha mãe e fomos juntas na ideia”. Em seu relato, Ana ainda acrescenta que o processo de adoção foi muito simples e tranquilo. Além disso, com toda sua experiência junto a Laka, se tornou uma grande apoiadora das adoções: “Eu tenho me tornado cada dia mais contra a venda de animais - são vidas, não devem ser comercializadas. Se você pesquisar mais a fundo, perceberá como essas empresas trabalham com aberrações genéticas; são espécies feitas em laboratórios para serem fofas e vendidas por preços estratosféricos”. “Existem muitos cachorros na rua em condições desprezíveis, precisando de lar, amor e carinho. Eu considero um absurdo financiar a compra de pets; um cachorro é como se fosse um filho, e não se escolhe o filho que tem apenas pelo fato de ser “bonitinho”. Você apenas dá todo o amor que você tem”.