Entre sintomas, aprendizados e novas percepções sobre o próprio corpo, mulheres contam como estão enfrentando a fase da menopausa.
por
Mohara Ogando Cherubin
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04/11/2025

Por Mohara Cherubin

 

Janaina Martins lembra com um sorriso do dia em que “virou mocinha”. Tinha apenas onze anos quando o sangue apareceu pela primeira vez, em casa, e correu para contar à mãe. As amigas também já começavam a menstruar e a empresária ficou feliz, era como se tivesse se tornado mulher de um dia para o outro. Nos primeiros meses, tudo parecia novidade, mas a euforia logo deu lugar à realidade dos ciclos longos, de sete dias, acompanhados de cólicas intensas que a faziam interromper o que estivesse fazendo.

Na adolescência, conciliava a rotina da escola com os treinos de natação. O medo de que a menstruação vazasse na piscina a acompanhava em cada mergulho. Usava apenas absorventes comuns, e as preocupações com manchas e constrangimentos eram constantes. Desde cedo, aprendeu que menstruar era também lidar com o desconforto de algo que não era capaz de controlar.

Os anos seguiram marcados por essa relação complexa com o corpo. As dores e o fluxo intenso persistiam, mas ela se adaptava a cada novo ciclo, sem deixar de lado os compromissos, o trabalho e a vida ativa. Teve duas gestações, aos 27 e aos 32 anos. A primeira foi tranquila, mas a segunda trouxe complicações, como varizes na vulva e dores fortes que a obrigavam a reduzir o ritmo. No parto cesárea, os médicos identificaram varizes pélvicas, condição rara e de risco. Anos mais tarde, um exame vascular revelou uma estenose na veia renal esquerda. O diagnóstico a levou a um cateterismo e a novas cirurgias de varizes.

Mesmo com os tratamentos, as dores não cessaram. Em 2016, seu ginecologista sugeriu a histerectomia, procedimento que consistiu na retirada do útero, das trompas e de um dos ovários. A cirurgia trouxe alívio imediato do fluxo e das cólicas que a acompanharam por quase trinta anos. Foi a primeira vez que se sentiu livre do ciclo que marcava sua rotina desde a infância.

Por alguns anos, o corpo permaneceu o mesmo. Até que, aos 45, as mudanças voltaram a se manifestar de outro modo. O sono, antes contínuo, tornou- se leve, interrompido por despertares no meio da noite. Ondas de calor surgiam de repente, e o humor oscilava sem explicação. Mais do que os sintomas físicos, o que mais a angustiava era o esquecimento. Sempre pontual, começou a perder compromissos e a confundir horários. Os exames hormonais confirmaram que Janaina estava entrando na menopausa. A notícia não provocou medo, mas exigiu aceitação, já que percebeu que não conhecia muito sobre essa fase, e que os médicos pouco falavam sobre ela. Acredita que a mulher deveria ser preparada ainda no período fértil, para compreender melhor as mudanças do corpo e da mente. Por conta das condições vasculares, não pode recorrer aos tratamentos hormonais convencionais, o que torna a adaptação ainda mais desafiadora.

Os filhos e amigos logo notaram as mudanças. A empresária, antes sempre organizada e de humor constante, passou a se mostrar mais irritada e distraída. As reações de espanto ao seu redor a fizeram perceber o quanto a menopausa altera não apenas o corpo, mas também a forma como os outros a enxergam. Hoje, aos 47 anos, Janaina encara a menopausa como um exercício de autoconhecimento. Aprendeu a reconhecer os próprios limites e a compreender as mensagens do corpo. Procura não se cobrar tanto, mesmo diante dos esquecimentos e das falhas de memória que ainda a incomodam. Vê nessa fase um convite à escuta e à reconciliação consigo mesma.

Como foi o que aconteceu com a jornalista Neivia Justa, que sangrou pela primeira vez aos 11 anos. Ela se recorda com nitidez da madrugada em que acordou com fortes cólicas e acreditou estar com um problema intestinal. Estudava em um colégio de freiras, daqueles em que as meninas usavam saias plissadas e o uniforme de educação física incluía uma sunga de jogadora de vôlei. Com medo de se sujar, improvisou enchendo a calcinha de papel. Foi o que a salvou. Ao chegar em casa, percebeu o sangue e chamou a mãe, que reagiu com euforia, e logo a notícia se espalhou por Fortaleza, local onde morava. 

Desde pequena, sabia o que significava menstruar. Entendia o processo biológico, que o sangramento viria todos os meses, e que fazia parte do crescimento. A mãe a havia preparado para isso, já que seu corpo começou a se desenvolver bem cedo. Mas, além da explicação biológica, não houve grandes conversas. O tema da menstruação estava cercado de tabus, especialmente no que dizia respeito ao corpo feminino, à sexualidade e à virgindade, assuntos que não se discutiam abertamente em casa.

Na adolescência, Neivia passou a lidar com o ciclo menstrual de forma prática, mas sem afeto. Contou que nunca gostou de menstruar. O cheiro, o fluxo intenso, o desconforto, nada nisso lhe parecia natural. O medo de manchar a roupa era constante, principalmente nos dois primeiros dias de sangramento. Não conseguia usar absorvente interno e via a menstruação como um incômodo a ser suportado. Quando começou a vida sexual, o período menstrual continuava sendo uma barreira, era algo que preferia esconder, manter distante de qualquer relação.

Se lembra que, na época, a menstruação carregava ainda mais tabu do que hoje. Evitava praias, roupas claras, e dificilmente comentava sobre o assunto. Foi a primeira da turma a menstruar, o que a colocou, involuntariamente, no centro das atenções, uma posição que a incomodava. Com o tempo, aprendeu a reconhecer o próprio corpo, a identificar sintomas e ritmos. Seu ciclo era regular como um relógio, e essa previsibilidade lhe trazia certo controle sobre si mesma. As cólicas a acompanharam até a primeira gravidez, aos 32 anos; depois da segunda, desapareceram de vez.

Por volta de 47 anos os sintomas da menopausa começaram a dar sinais. O primeiro foi o calor noturno, acordava suada toda madrugada, sem entender o que acontecia. Vieram também a irritação constante e a sensação de estar em uma TPM que nunca terminava. Mesmo antes de os exames confirmarem, ela insistia com o médico que o corpo já estava mudando. Sabia reconhecer seus sinais, e estava certa. Neivia nunca tratou a menopausa como tabu. Pelo contrário, queria lidar com os sintomas o quanto antes. Iniciou a reposição hormonal logo que as alterações começaram e segue com o tratamento até hoje. Para ela, é uma questão de equilíbrio e bem-estar, sem medo nem preconceito.

Para ela, a falta de informação ainda é um dos maiores desafios. Acredita que, embora haja avanços, o tema continua cercado de desconhecimento e até negação. Muitas mulheres ainda não entendem o que estão sentindo ou acreditam estar adoecendo. Os médicos especializados são poucos, e o acolhimento é insuficiente. Por isso, enxerga na menopausa uma oportunidade de transformação coletiva, de falar mais, educar e incluir também as famílias — maridos, esposas, filhos, colegas e chefes — nesse diálogo.

Neivia encara o assunto com humor e naturalidade. Costuma brincar com o marido, que dorme enrolado em cobertores, como um pinguim, enquanto ela precisa do ar-condicionado ligado no máximo. Fala abertamente sobre estar na menopausa, sobre o corpo e a idade, como forma de desmistificar o envelhecimento feminino. Já escreveu sobre o tema e faz questão de mostrar que essa é apenas mais uma etapa que deve ser vivida com leveza.

Hoje, aos 56 anos, ela entende a menopausa como parte da sua identidade atual. Depois de retirar o útero, passou a compreender com mais clareza as transformações do corpo e do metabolismo. Acredita que aceitar e cuidar de si é o caminho para atravessar essa fase com serenidade. Para ela, a menopausa representa maturidade e liberdade. Deseja viver os melhores anos de sua vida agora, sem nostalgia e sem ansiedade. Encarar o presente como ele é, com seus desafios e descobertas, tem sido sua forma de existir plenamente, abraçando o corpo e o tempo como aliados, não inimigos.

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Gleice e Bruna, mãe e filha, formaram laços de sangue ao viverem a experiência do cárcere
por
Vitor Bonets
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24/10/2025

Por Vitor Bonets

 

É tarde de sábado, mais um dia de visita. 20 minutos. É tudo que elas têm. Passado e presente, frente a frente, em uma mesa apertada para duas. Sacolas nas mãos, filas lotadas, muitas mulheres e poucos homens. Primas, irmãs e cunhadas ansiosas. Sem contar as "mainhas", que se precisar dormem em frente a Penitenciária Feminina de Sant'ana. Do lado de fora, um sol pra cada uma. Do lado de dentro, apenas a ânsia de ver o sol nascer redondo novamente. Desde o dia 12 de dezembro de 2020, Bruna não sabe o que é a liberdade. Ela é uma daquelas que, se pudesse, escreveria nas paredes da cela a quantidade de dias que faltam para voltar a ser livre. Por falta de espaço e ferramenta, não faz. Mas na cabeça, guarda a data da prisão e o dia em que sairá. Aliás, ao falar da possível saída, ela esboça um sorriso, frente a um olhar que já não parece ser tão doce quanto o das fotos antigas. Bruna foi vítima do amor cego. Seu crime, como brincam os mais jovens, talvez tenha sido amar demais.

Aos 16 anos, quando era apenas uma garota, ela conheceu Kaynan. O jovem, com 19, já era conhecido por todo o bairro do Livieiro, na zona Sul de São Paulo. Jogava bola como poucos, tinha nos pés uma leveza difícil de se encontrar nos campos e nas quadras. Mas leves mesmo eram suas mãos. Bobeou na frente do "muleke" era gol. Ou melhor, era bolso, onde ele guardava com maestria os pertences das vítimas que fazia pelas redondezas. 

Não demorou muito para enxergarem o talento de Kaynan no bairro. E não, não era o talento nas quadras. Porém, "os meninos do ramo" não gostaram muito quando viram que o jovem atuava próximo às áreas deles. Então, certo dia, Kaynan foi chamado para uma conversa e tomou o famoso "salve". Sem violência, a princípio, mas ouviu palavras que certamente não foram de consolo. Entre toda a mensagem passada, uma coisa fez com que o jovem mudasse. Ele ouviu que se fosse para tirar de alguém, teria que ser dos que tem, dos endinheirados, e não de trabalhadores da comunidade. E então, não precisou de muito tempo para as mãos leves de Kaynan sentiram o peso de pegar em uma arma, essa até dada pelos meninos. E já que a peça já estava em mãos, e a cena já tinha sido roubada, o jovem se tornava protagonista da história. Porém, havia uma coadjuvante que ainda entraria em ação. 

Ela era Bruna, que sabia do que Kaynan fazia nos últimos tempos. De mero furtador para assaltante número um do bairro. Não só sabia, como aproveitava de alguns privilégios que havia tido por ser a "namoradinha da vez" do jovem. Ninguém mexia com Bruna, muito menos ousava desrespeitá-la. Ela passava e as outras garotas abaixavam a cabeça. Era a "princesa da quebrada", intocável, cheia de si, na flor da idade e com um certo "poder" que cada vez mais subia para a mente. Mas em casa, o tratamento era diferente. Sua mãe, Dona Cleide, fazia de tudo para que Bruna não seguisse seus passos. Com toda experiência de quem já viveu as ruas, ela sabia que o caminho que a filha tomava só tinha um final. O dela mesma, como foi há 32 anos. Cleide não admitia o relacionamento da filha com Kaynan, não queria que ela se envolvesse com os meninos, mas já não era mais capaz de frear a garota. Talvez por não ficar tanto em casa devido ao trabalho de diarista, a mulher que tentava mostrar para filha um futuro melhor, não conseguiu a tirar das mãos do crime. Ela dizia à filha que depois que entra, não tem mais volta. Dizia que Kaynan, quando a casa caísse, não iria segurar nem a própria bronca, imagine a de Bruna. A menina decidiu não escutar a mãe e preferiu ficar com o jovem, que cada vez mais ganhava destaque pelas ruas. E no final, quem é peixe pequeno no meio do grande mar do crime vira isca de peixe grande. 

Era dia 10 de dezembro. Kaynan recebeu uma missão. Coisa rápida e fácil, como a vida errada que levava. Ele só precisava pegar uma encomenda com os meninos e deixar em uma "casa bomba", local usado para o armazenamento de drogas vindas do crime. Porém, a única coisa que explodiu foi a liberdade de Kaynan. Ao virar na Rua João Semeraro, a polícia já o esperava no endereço. A fuga nem foi cogitada, pois já não havia mais para onde correr. Kaynan foi pego no flagra e desde esse dia a vida de Bruna virou de cabeça pra baixo. Ao ser preso, o jovem disse que Bruna o ajudava nos delitos. Era ela quem armazenava drogas e os objetos frutos de roubo em casa. Era ela quem entrava em contato com os mandantes do crime. Era ela quem decidia as missões que valiam a pena ou não para Kaynan. E foi ela o primeiro alvo da polícia após a prisão do namorado. A polícia localizou Bruna em casa e, de fato, encontrou drogas e produtos roubados. Porém, ela não sabia que Kaynan guardava os flagrantes em casa e, então, já era muito tarde para se explicar. Foi levada para o 3º DP (Sacomã) e prestou depoimento. 

Dois dias depois, estava decretada sua prisão. Foi cúmplice e culpada por um amor que o levou para cadeia. E só pensava que era melhor ter escutado a própria mãe. Gleice avisou, pois sabia como tudo acontecia. Três décadas atrás, havia sido presa também com envolvimento em um amor criminoso. Ela também levou a culpa por crimes cometidos pelo namorado. Era jovem e também se vislumbrou com as regalias da vida bandida. Mas após passar quatro anos na cadeia entendeu o que tentou explicar para filha. Não vale a pena, mesmo que a pena seja pouca. 

Hoje, mãe e filha se encontram. Uma na frente e outra atrás das grades. A vida separada pelas barras de ferro. Passado e presente. Só restam 20 minutos nos dias de visita e o gosto da liberdade e da falta dela. Os homens não estão mais presentes. As abandonaram, assim como a fila de espera para entrada na Penitenciária Feminina de Sant'Ana identifica um padrão. São mulheres do lado de fora que cuidam de mulheres do lado de dentro. Passados os 20 minutos, só as resta voltar para suas famílias. As de cela e as de ceia. Dividem e vestem laços de sangue, juntas e misturadas. Após pouco tempo de voo livre, uma das borboletas em formação volta para o casulo. A outra, em liberdade plena, pode voltar para casa sem medo de se tornar lagarta novamente.

Cleide e Bruna, dois lados da mesma moeda, duas faces de uma mulher leal. Duas encarceradas. Liberdade e cárcere. Memórias da prisão. De qualquer forma, passado e presente. Mas acima de tudo, juntas. Uma família, que ao lado de irmãs, primas e cunhadas, ganha outros familiares no convívio. Ainda sim, nada é como ver o sol nascer redondo, deitar na própria cama, comer uma boa comida e degustar do sabor de estar livre. Para Gleice, o crime não compensou. E para Bruna, os ensinamentos da mãe ainda ecoam nos ouvidos e pelas paredes da cela.

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A crença da autonomia financeira e a liberdade de horários esconde a precarização do trabalho.
por
Rafael Rizzo
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23/09/2025

Por Rafael Rizzo

 

A luz dourada e cansada do final de tarde de uma terça-feira paulistana invadia o carro pelas frestas dos arranha-céus, pintando listras fugazes no painel e no rosto de José. Aceitei a corrida na Avenida Paulista, e o cheiro que me recebeu não era de um carro de aplicativo qualquer. Era um odor de vida vivida ali dentro; um misto do aromatizante de baunilha pendurado no retrovisor, do café que ele devia ter tomado horas antes e de algo mais profundo, o cheiro de um espaço que é, ao mesmo tempo, ferramenta de trabalho, refeitório e, por vezes, confessionário.

José me cumprimentou com um "boa tarde" que carregava o peso do dia inteiro. Seus olhos, vistos pelo retrovisor, eram fundos, cercados por uma teia fina de rugas que a tela do celular parecia ter gravado ali. As mãos, calejadas e grossas, seguravam o volante com uma firmeza que contrastava com a vulnerabilidade em sua voz quando disse ter começado como motorista de Uber há seis anos.

- "A gente ouve aquela conversa, né? 'Seja seu próprio chefe', 'faça seu próprio horário'. Parece um sonho." Ao dizer "sonho", ele soltou uma risada curta, um som seco, sem alegria, que morreu rapidamente no ar abafado do carro. Seus dedos tamborilaram no volante.

- "A maior mentira que já me contaram."

A primeira emoção que transpareceu em José foi o desengano. Não era raiva, não era tristeza ainda. Era o cansaço de um homem que perseguiu uma miragem e encontrou um deserto. Ele gesticulou com a mão direita, tirando-a do volante para desenhar um círculo no ar. Disse que era uma liberdade falsa e que era livre para escolher a hora que começa a se acorrentar. Conta que inicia o aplicativo às seis da manhã se quiser ter a chance de pagar as contas no fim do mês. Só desliga depois das sete, oito da noite. Isso num dia bom. Doze horas.

Ele disse o número como se fosse uma sentença.

- "Doze horas é o mínimo. É o chão. Mas nesse chão, você não constrói nada. Você só sobrevive."

Enquanto falava, o trânsito forçou a parar. José não olhou para os outros carros. Seu olhar se perdeu em algum ponto da rua, talvez vendo não os pedestres apressados, mas os boletos que o esperavam em casa. Havia uma quietude em seu corpo que era assustadora; a imobilidade de quem se sente encurralado.

- "E o corpo cobra", ele continuou. A voz agora um tom mais baixo, mais íntimo. Ele ajeitou as costas no banco, um movimento que era claramente para aliviar uma dor crônica na coluna, nos joelhos... Ficar sentado aqui o dia todo nos destrói aos poucos. Comemos mal, comemos rápido. Um salgado aqui, um lanche ali. Sua saúde vira um luxo que você não pode pagar, porque parar para se cuidar é deixar de ganhar o dinheiro do aluguel.

Foi quando ele falou sobre o risco que suas mãos, antes repousadas, voltaram a se agitar. Ele não gesticulava de forma ampla, mas seus dedos se fechavam e abriam sobre o volante, como se testassem a própria força. Ele tem o medo. Todo dia. Não sabe quem vai entrar no seu carro. Já entrou em cada lugar... Cada beco escuro, cada rua sem saída. Uma vez, de madrugada, entraram três rapazes. Ficaram o caminho todo em silêncio. Um deles só o olhava pelo retrovisor, conta.

Nesse momento, o tom de José ficou denso, pesado. A luz do dia já se despedia, e as luzes de neon dos prédios começavam a piscar, lançando sombras dançantes dentro do carro. O rosto dele ficou parcialmente na penumbra. Só pensava nos seus filhos. A cabeça só repetia o nome deles, um por um. Graças a Deus, não era nada. Eles desceram, pagaram e foram embora. Mas o gelo na espinha... esse ficou com ele por dias. A menção aos filhos mudou completamente a atmosfera. A dureza em sua voz se desfez, dando lugar a uma ternura que era quase palpável. São cinco, ele disse, e pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que breve, tocou seus lábios. A mais velha tem catorze, o mais novo tem três. Ele pegou o celular por um instante no semáforo, a tela de bloqueio iluminando uma foto de um grupo de crianças sorridentes e um pouco bagunçadas. O olhar dele para a tela era o de um devoto.

- "É por eles. Tudo. Cada quilômetro rodado, cada 'bom dia' forçado, cada engarrafamento... é pensando no prato de comida deles, no material da escola, no remédio quando ficam doentes. A emoção embargou sua fala por um segundo. Ele pigarreou, virando o rosto para a janela como se quisesse esconder uma lágrima que teimava em se formar. A mão esquerda, que antes se fechava em tensão, agora repousava suavemente sobre a marcha, um gesto de cansaço e resignação. "Mas tem dia...", ele fez uma longa pausa, e o silêncio foi preenchido apenas pelo zumbido do ar-condicionado. Tem dia que a vontade é de desistir. De verdade. De parar o carro no acostamento, desligar esse aplicativo e nunca mais ligar. Se sente um rato de laboratório numa roda gigante. Corre, corre, corre e não sai do lugar. O dinheiro que entra mal cobre a gasolina, a manutenção do carro, o seguro... o que sobra é tão pouco pelo tanto que a gente se doa, confessa.

Seu suspiro foi profundo, um som que parecia vir do fundo da alma, carregando o peso de anos de exaustão. José é só um número para eles, para o aplicativo. Se quebrar o carro, em um minuto eles bloqueiam e ativam outro José qualquer. Não tem direito, não tem segurança, não tem amparo. É seu próprio patrão na hora de arcar com todos os custos e todos os riscos, mas é um empregado sem direitos na hora de receber. Chegando ao fim do trajeto, que no mapa parecia curto, a voz de José já não tinha o desengano do início, nem a tensão do medo, nem a ternura da família. O que restava era um esgotamento puro e simples. A energia de suas palavras havia se esvaído, deixando apenas a casca de um homem que se preparava para a próxima corrida, a próxima batalha.

 

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Comerciante histórico do Centro de SP resiste à onda de gentrificação que transforma bairros tradicionais em polos de luxo.
por
Carolina Rouchou
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16/09/2025

Por Carolina Rouchou

 

O ar dentro da cafeteria pesava, um caldo espesso de gordura fria de rosca, o dulçor enjoativo de calda de glucose e o amargo persistente do café requentado que impregnava as paredes, as cortinas, as roupas, a própria pele. Era um cheiro que se tornara parte dele, uma segunda camada que carregava para casa todas as noites e que retornava todas as manhãs. O mármore do balcão guarda a memória de milhares de cotovelos, a superfície lisa e gelada sob a pele áspera da mão do homem que a limpa, um ritual de meio século que começava sempre antes do amanhecer, quando a cidade ainda respirava o hálito úmido e frio da noite. Seus dedos, calejados e marcados por pequenas queimaduras antigas, percorriam cada centímetro da pedra polida com um movimento estudado, removendo os últimos vestígios do dia anterior.

Um ventilador de teto quebrado há tempos acumulava poeira em suas pás. As grades enferrujadas testemunhavam a umidade de cinquenta verões paulistanos. Lá fora, o asfalto já começava a derreter em ondas visíveis, exalando um ar de borracha e concreto que entrava pela porta entreaberta, um antagonista ao cheiro familiar de dentro.

Era um calor que grudava na nuca, uma segunda pele salgada de suor que escorria em filetes lentos pelas costas, marcando a camisa com mapas de umidade. Seus pés doíam, uma dor surda e enraizada que subia pelas canelas, testemunha silenciosa de décadas na mesma posição, sobre o mesmo piso de ladrilhos que outrora brilhavam com o vai-e-vem de centenas de sapatos, e que agora apresentavam lascas e falhas, pequenas crateras de um mundo em desgaste constante.

Toninho observava, através do vidro embaçado e sujo onde se acumulava uma película fina de poluição urbana, o novo fluxo que fluía na calçada. Não era mais a maré humana familiar, aquela massa diversa e barulhenta que cheirava a trabalho, a cigarro barato, a perfume forte de madame e a suor honesto de quem dependia do ônibus lotado. Esse novo fluxo era mais lento, mais silencioso, e exalava um perfume estranho, doce e amadeirado, que vinha da nova loja do outro lado da rua, onde uma xícara de café custava o que ele cobrava por cem. Eles passavam com seus copos de líquido verde e opaco, vestindo roupas de tecidos leves e neutros que não pareciam soar, seus olhos fixos nas telas brilhantes que carregavam nas mãos, alheios ao mundo que os cercava, consumindo o espaço como consumiam a imagem no aparelho. Seus passos eram diferentes, não o arrastar cansado dos que carregavam fardos invisíveis, mas um andar despreocupado, quase flutuante, de quem sabia que um conforto artificial o aguardava a poucos metros de distância.

Antes, o centro da cidade era um corpo quente, pulsante, um organismo complexo onde o suor do office-boy que corria com envelopes se misturava com o cheiro de alfazema da senhora que comprava fios para tricô, onde o pão com mortadela era devorado com a mesma urgência que o pastel de vento mole. A cafeteria era um órgão vital naquele corpo, um ponto de encontro onde o dinheiro era pouco, mas a conversa era farta. O balcão era quente ao toque, aquecido pelos corpos aglomerados, e o ar tremulava com as vozes, com as risadas, com os protestos. O som das colheres batendo nas xícaras formava uma percussão constante, acompanhando o burburinho das conversas que iam desde os preços da feira até as notícias do jornal da tarde. O chão, à hora do almoço, ficava pegajoso de restos de café e migalhas, e o ar ficava tão denso com fumaça de cigarro e vapor de comida que se podia quase mastigá-lo. Agora, o centro estava a ser transformado noutra coisa, um corpo com ar-condicionado, onde o silêncio era uma mercadoria cara e o toque casual, um incômodo. O frio do ar-condicionado das novas lojas invadia a rua em rajadas fugazes quando as portas de vidro automáticas se abriam, um sopro de gelo artificial que cortava o calor real como uma faca, um contraste tão violento que fazia a pele arrepiar.

Ele lembrava das mesas de fórmica rachada, sempre ocupadas e manchadas de café serviam como um testemunho de incontáveis histórias sussurradas sobre dívidas, amores e empregos perdidos. Lembrava do toque áspero do açúcar de papelinho, do cheiro de leite fervendo às pressas, do vapor quente da máquina de espresso antiga que queimava as pontas dos dedos dos seus funcionários, marcas de um ofício vivo.

Cada manhã começava com o ranger metálico das portas de aço enroláveis sendo levantadas, um som que ecoava na rua ainda silenciosa, anunciando o início de mais um dia. O primeiro cheiro a tomar o ar era o do café fresco moído na hora, um aroma terroso e vigoroso que dominava todos os outros por alguns minutos preciosos. Depois vinham os cheiros dos pães sendo aquecidos, da manteiga derretendo nas chapa, dos ovos sendo fritos na gordura. Tudo isso estava a ser apagado, lixado, substituído por superfícies lisas e frias, por madeiras de demolição que fingiam uma história que não era delas, por luzes indiretas que não deixavam sombra para a poeira se esconder. O som do centro mudara; o burburinho vital dera lugar ao zumbido baixo de conversas contidas e ao ruído de fundo de playlists cuidadosamente curadas que vazavam pelas portas das novas lojas.

Mudanças de cenário

 

Os preços subiam como a temperatura num dia de verão paulistano, ultrapassando os quarenta graus na sombra, um calor que fazia o metal da porta queimar ao toque e que obrigava a deixar a entrada entreaberta, por mais que isso permitisse a entrada da poeira fina que cobria tudo com um manto cinzento em questão de horas. O imposto, um fantasma que antes assombrava de longe, agora batia à porta com uma fome nova, um apetite que só aumentava à medida que o endereço ganhava valor nos cadastros da prefeitura, valor esse que ele nunca veria, mas que seria cobrado em notas cada vez mais altas. As contas de luz, outrora previsíveis, agora chegavam com valores que parecia piada de mau gosto, um custo proibitivo para manter os freezers ligados e as luzes acesas. Os antigos vizinhos, as lojas de ferragens, as barbearias, as casas de fio, foram fechando, um a um, substituídos por estúdios de ioga e hamburguerias artesanais onde o pão era preto e o queijo, derretido sobre a carne, custava mais que um prato feito completo. A cada porta que se fechava para sempre, um pedaço da história do lugar morria, e o silêncio que ficava era mais pesado, mais opressivo.

Ele se via ali, uma ilha de fórmica e gordura num mar de concreto polido e plantas ornamentais. Sua cafeteria era a última contra-utilidade, um obstáculo orgânico no caminho da pasteurização total daquela quadra. Os novos moradores dos apartamentos reformados, aquelas caixas de vidro que refletiam o sol cego da tarde, olhavam para a sua vitrine com um misto de curiosidade e desdém. Entravam às vezes, para experimentar o "autêntico", compravam um café e saíam rapidamente, sem sentar, sem tocar nas mesas, sem se contaminar com aquele ar parado que cheirava a um passado que eles pagavam caro para observar de longe. Seus dedos limpos batiam levemente no balcão manchado, e ele via o discreto enrugar do nariz quando o cheiro de óleo requentado os atingia. Eram como visitantes de um museu, observando uma relíquia de um tempo que não entendiam, protegidos pela barreira invisível do seu próprio mundo higienizado.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a última ruga num rosto que estava a ser esticado e alisado para agradar a um novo olhar, um olhar que comprava o espaço, mas não sabia habitá-lo.

O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo. As tardes eram as piores. O sol incidia violentamente sobre a fachada, transformando o interior numa estufa, apesar da ventoinha pequena e barulhenta que ele mantinha atrás do balcão e que só movia o ar quente de um lado para o outro. O suor escorria por suas têmporas, e ele usava um pano áspero e já úmido para enxugar o rosto, vezes sem conta. Era nesses momentos que as memórias mais fortes vinham. Lembrava do barulho ensurdecedor dos bondes que passavam lá fora, do apito do afiador de facas, do grito do vendedor de amendoim. Lembrava dos clientes fixos, aqueles que vinham todos os dias à mesma hora, ocupavam o mesmo lugar, pediam a mesma coisa. O homem do jornal, que lia as notícias em voz alta para quem quisesse ouvir. A costureira, que trazia sempre um trabalho para fazer enquanto tomava seu café com leite. O estudante universitário, de ideais fervorosos e livros espalhados pela mesa. Eles não existiam mais. Tinham sido substituídos por uma rotatividade silenciosa e anônima.

A noite chegava, e com ela uma luz diferente banhava a rua. As antigas lâmpadas que davam um tom alaranjado e quente à calçada, foram substituídas por LEDs brancos e frios que iluminavam tudo com uma claridade crua e sem sombras, como um interrogatório. As sombras, outrora cheias de vida e mistério, foram banidas. A própria escuridão se tornara uma mercadoria rara, um luxo que só existia nos cantos mais esquecidos, onde a iluminação pública ainda não fora modernizada. Ele fechava a porta com a mesma chave pesada de sempre, sentindo o peso do cansaço nos ossos, um cansaço que ia além do físico, era um esgotamento da alma. O caminho para casa era agora uma viagem por um território estranho. Onde antes havia bares com mesas na calçada e conversas altas, agora havia esplanadas silenciosas com velas e menus em inglês. O cheiro de comida de boteco, fritura e cerveja derramada, dera lugar ao aroma de cozinha de fusão e cocktails caros. Ele caminhava rápido, seus sapatos gastos ecoando no calçada nova e lisa, um som solitário na noite que já não lhe pertencia. Sua casa, um pequeno apartamento num prédio antigo que milagrosamente ainda resistia, era o último reduto onde o tempo parecia ter parado. Lá, o cheiro era de mofo e de comida caseira, a iluminação era amarela e fraca, e o silêncio era quebrado apenas pelos ruídos familiares dos vizinhos antigos. Era o único lugar onde ainda podia respirar fundo sem sentir o perfume artificial da nova cidade.

O verão avançava, trazendo consigo chuvas torrenciais que alagavam as ruas e revelavam a fragilidade da nova beleza. A água suja subia pelas calçadas, carregando consigo o lixo e a sujeira, invadindo as lojas reluzentes e deixando um rastro de lama e destruição. Enquanto os novos estabelecimentos fechavam em pânico, protegendo seus pisos de madeira clara e seus móveis de design, a cafeteria permanecia aberta. O velho dono estava acostumado. Sabia que a água baixaria, e ele sabia como limpar o chão depois. A resistência era a sua única linguagem. Uma tarde, após uma dessas chuvas, o ar estava estranhamente fresco. Uma brisa rara varria a cidade, limpando temporariamente a fuligem do ar. Ele estava lá, como sempre, quando a porta se abriu e entrou um casal jovem. Não eram como os outros. Vestiam-se bem, mas sem a frieza dos outros. Olharam em volta com curiosidade genuína, não com desdém. Sentaram-se a uma mesa, ignorando a ligeira camada de gordura na superfície. Pediram dois cafés. E, então, ficaram em silêncio, não mergulhados nos seus celulares, mas olhando em volta, absorvendo a atmosfera. O homem notou as mãos do dono, a forma como ele manuseava os equipamentos com uma familiaridade que era quase uma dança. Notou o vapor subindo do líquido, o som da colher batendo na porcelana rachada. E, pela primeira vez em muito tempo, o dono da cafeteria sentiu que estava sendo visto, não observado. Eram apenas dois clientes, um momento breve, mas naquele instante, naquele sopro de ar fresco após a tempestade, pareceu-lhe que talvez nem tudo estivesse perdido. Que talvez, por baixo do verniz novo, o coração velho da cidade ainda pudesse, de vez em quando, dar uma única, fraca, batida.

O pó de café queimado no fundo da chaleira era a mesma textura de sempre, áspera e escura sob a unha. Era o único cheiro que não mudara, a única certeza térmica da água a ferver. Tudo à sua volta se transformara num cenário, e ele, o dono da cafeteria, era agora um figurante, um artefato pitoresco na paisagem gentrificada. O centro já não era um lugar de encontros, mas um produto. E ele, com suas mãos calejadas e seu balcão gasto, era a pièce de résistance. O ventilador quebrado pendurado no teto era o seu coração ali, silencioso, coberto de pó, testemunha de um calor que já não era mais bem-vindo.

Certa manhã, ele encontrou um papel debaixo da porta. Era um envelope fino e elegante, com o logotipo de uma imobiliária que ele não reconhecia. A carta, redigida em um português impecável e frio, expressava um "interesse genuíno" no seu "quiosque comercial de carácter tradicional" e oferecia uma proposta numérica que, outrora, lhe pareceria uma fantasia. O valor era astronômico, obsceno. Ele leu e releu o papel, seus dedos manchados de café deixando uma marca suave no papel brilhante. Aquelas cifras representavam uma vida de descanso, uma fuga daquela luta diária. Mas também representavam o apagamento final. A aceitação seria a última assinatura no atestado de óbito daquele pedaço de cidade que ele conhecera. Dobrou o papel com cuidado e guardou-o numa gaveta cheia de talões e recibos, debaixo do balcão. Não era uma recusa consciente, era um adiamento. Um adiar do inevitável. Nos dias que se seguiram, a presença dos corretores de imóveis na rua tornou-se mais óbvia. Eles usavam ternos leves e sapatos caros, e falavam em voz alta sobre metros quadrados, potencial e valorização. Apontavam para os prédios, mediam as fachadas com olhos clínicos, calculavam. Eles não olhavam para as pessoas, olhavam para os espaços vazios que as pessoas ocupavam provisoriamente. Eram os arquitetos do novo mundo, desenhando uma cidade sobre a cidade, sem precisar de lápis ou papel, apenas comprovantes de transações bancárias.

O dia terminava como começara, com o gesto lento de limpar o balcão. O pano, agora úmido e sujo, percorria a superfície lisa, removendo os últimos vestígios do dia. Lá fora, a cidade nova brilhava, iluminada por luzes LED, enquanto na vitrine da cafeteria, a lâmpada incandescente tremulava, fraca e amarela, uma estrela prestes a apagar-se num céu que já não reconhecia as suas constelações. Ele apagou a luz e ficou na penumbra, olhando para a rua através do vidro. Um último grupo de jovens passou rindo, o som das suas risadas ecoando no silêncio da noite. Eles não olharam para dentro. A cafeteria já era parte da paisagem noturna, invisível como um móvel antigo numa casa nova. Ele trancou a porta, sentindo o peso da fechadura pesada girar com um clique familiar. O som ecoou na calçada vazia, um ponto final minúsculo num texto que ninguém mais lia. O cheiro do café velho impregnou-lhe os dedos uma última vez, um fantasma de um mundo que teimava em não morrer completamente, enquanto ele se perdia nas sombras do seu centro, que já não era seu.

 

 

 

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Comportamento

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O corpo da feminino se reinventa como profissão, mercadoria e alternativa de trabalho.
por
Mohara Ogando Cherubin
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23/09/2025

Por Mohara Cherubin

 

Atualmente, os dias começam com a checagem de mensagens e propostas no perfil de conteúdo adulto, antes mesmo do café da manhã de Maria. A academia, os compromissos e o almoço ocupam as primeiras horas do dia, mas é no retorno para casa que o trabalho realmente começa. As tardes e noites são dedicadas a gravar vídeos, responder clientes e editar conteúdos. A rotina, que pode facilmente ultrapassar 12 horas de dedicação, exige organização e disponibilidade. Embora muitos ainda julgam a atividade como algo distante de um “trabalho de verdade”, ela descreve longas jornadas de produção, chamadas de vídeo e edição, realizadas sem apoio externo.

Demissão, dívidas e a responsabilidade de ajudar nas contas de casa foram os fatores que a levaram descobrir, por meio de uma amiga, a criação de conteúdo adulto como uma forma de garantir sua sobrevivência financeira. Provida apenas de um celular e da necessidade de pagar suas despesas, ela decidiu abrir um perfil em uma plataforma e, no primeiro dia, já conseguiu lucrar 300 reais em poucas horas. O resultado imediato a convenceu de que, apesar das dúvidas e inseguranças, havia ali um meio de se sustentar. A partir daquele momento, a rotina de trabalho passaria a girar em torno de gravações, interações com clientes e a construção de uma nova fonte de renda.

O início, contudo, não foi marcado apenas por ganhos. Como era anônima e não tinha seguidores, demorou para alcançar estabilidade financeira na plataforma. Nos primeiros meses, precisou pedir dinheiro emprestado e lidar com a desconfiança da família, que até hoje não sabe exatamente de onde vem sua renda. Para ela, lidar com o estigma social que associa a profissão à piedade é um dos maiores desafios, quando, em sua visão, foi uma escolha consciente diante das circunstâncias que enfrentava.

Apesar de ainda não saber se seguirá no mercado por muitos anos, garante que, por agora, não pensa em parar. Reconhece que sua relação com os clientes é de dependência, mas não admite ser “tirada” dessa vida, como já lhe foi oferecido por um dos consumidores mais recorrentes. Solteira, ela prefere manter o controle sobre suas decisões, sem dever nada a ninguém. Entre o cansaço das longas jornadas, as incertezas sobre o futuro e a satisfação de ver o dinheiro cair na conta, segue encarando um dia de cada vez, certa de que, se for preciso mudar de caminho, encontrará uma forma de se reinventar, como sempre fez.

De acordo com Maria Cláudia Neves, psicanalista especialista em adolescentes, embora o discurso do empoderamento seja colocado como um instrumento de defesa e apareça com frequência nesse contexto, a Psicanálise observa que a sensação de controle dessas mulheres é temporária. No início, a mulher acredita decidir o que mostrar e como se expor, porém à medida em que o sustento dela só é possível com o pagamento de seus assinantes, ela se vê dependente do desejo do cliente. Toda aquela liberdade sentida no começo passa a se tornar vulnerabilidade, uma vez que os conteúdos passam a responder às exigências externas, caso contrário o cliente deixará de pagar e procurará um perfil que atenda às suas vontades. 

Do outro lado da tela, o consumidor busca satisfação em uma fantasia que nunca se completa. Para a psicanalista, trata-se de uma busca por pulsão de vida, por um corpo idealizado que nunca é suficiente. É por essa razão que tantos indivíduos desenvolvem vícios em pornografia. De acordo com dados do PornHub, site canadense de compartilhamento de vídeos pornográficos, o Brasil está entre os dez países que mais consomem pornografia, com 39% de usuárias mulheres e 61% de usuários homens. Os conteúdos são esporádicos e a satisfação é sempre passageira, levando ao consumo repetitivo. Assim como a criadora de conteúdo se torna refém da manutenção de sua imagem e dos gastos associados a ela, o cliente também se torna refém de seu próprio desejo.
 

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Comportamento

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Sem aliados, o movimento tenta se manter vivo politicamente usando as mesmas estratégias eleitorais do pleito de 2018
por
Raphael Dafferner e Lucas Martins
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25/09/2022

O Movimento Brasil Livre lançou novos candidatos tanto à Assembleia Legislativa, quanto à Câmara Federal para as eleições de 2022, em São Paulo. Os candidatos possuem o objetivo de tentar recuperar, no âmbito estadual, a força do movimento, que, de 2020 para cá, tem sido alvo de escândalos.

O MBL vem de uma série de derrotas políticas. Além da cassação do ex-deputado Arthur do Val - também conhecido como Mamãe Falei -  (União Brasil) após o vazamento de áudios sexistas durante a sua viagem à Ucrânia após o início da guerra contra a Rússia, a saída Fernando Holiday (Novo) e o rompimento com o bolsonarismo durante a pandemia da Covid-19 enfraqueceram o movimento.

A professora da PUC-SP, e cientista política especialista em estudos eleitorais, Rosemary Segurado, destaca que o rompimento com o bolsonarismo no meio da pandemia da Covid-19 foi outro duro golpe ao movimento:

“Romperam com o Bolsonaro mas não rompem com os principais princípios defendidos pelo bolsonarismo, então eles ficam sem lugar, pois já tem o bolsonarismo, que é uma parcela consolidada do eleitorado, que não é o caso deles”. 

A crise no MBL

A crise se agravou em maio deste ano, quando o então deputado estadual, Arthur do Val, teve seu mandato cassado.

Em março, o ex-parlamentar usou expressões misóginas para se referir às refugiadas ucranianas, e declarou que “elas eram fáceis porque eram pobres”. Além disso, do Val falou sobre uma viagem que um dos líderes do MBL, Renan Santos, fazia anualmente à Europa Oriental para se relacionar com mulheres loiras. A excursão se caracterizaria como turismo sexual.

Mamãe Falei teve seu mandato cassado com 73 votos a favor e nenhum contra.

A professora afirma ainda a pauta da defesa dos valores morais na sociedade sempre foi uma das bandeiras do MBL, e que, portanto, o vazamento dos áudios sexistas de Arthur do Val é um importante fator que ajuda a explicar a sua queda de influência recente, por conotar uma certa hipocrisia.

“O peixe acabou morrendo pela boca. Em 2019, eles organizaram um protesto em uma exposição queer em Porto Alegre e com um discurso muito conservador e preconceituoso, mas aconteceu o que aconteceu com o Arthur do Val. Caíram-se as mascaram e acabaram se enfraquecendo”, afirmou.

Ademais, segundo a professora, a falta de apoio a Arthur do Val durante seu processo de cassação por parte de outros partidos, simboliza um isolamento do MBL ocasionado por uma divisão das direitas após divergências com o atual governo.

A efeito de comparação, o também Deputado Estadual Fernando Cury (União Brasil) teve apoio na Casa após assediar a parlamentar Isa Penna (PC do B). Ele foi punido com a perda do cargo por apenas 119 dias.

O MBL ganhou notoriedade ao se destacar durante grandes mobilizações da direita, como as manifestações antipetistas e a ascensão bolsonarista. Portanto, após o impeachment da ex-presidente Dilma e todos estes golpes, o movimento começou a enfraquecer.

Além de Arthur do Val, outro duro golpe que abalou o movimento foi a saída de Fernando Holiday para ingressar no Partido Novo. 

Holiday anunciou sua saída do MBL em janeiro do ano passado. Em seguida, ele se filiou ao Partido Novo - antes era ligado ao Patriota. Segundo declaração do vereador na época, um dos motivos de sua saída foram algumas divergências quanto à importância das causas LGBTs e da luta contra o aborto para o movimento.

Apostas que se mostraram erradas do movimento também acabaram acarretando em perda de notoriedade. No âmbito federal, o MBL apostou em duas candidaturas à presidência que não se firmaram. Primeiro o comediante Danilo Gentili, apoiador das ideias neoliberais, e, posteriormente, o ex-juiz e atual candidato ao Senado, Sergio Moro.

Atualmente, o movimento tenta sobreviver na política com novos nomes, mas mantendo o mesmo discurso, e as formas de propagar as ideias.

“Por outro lado, em termos mais eleitorais, a estratégia segue a mesma. Muita ênfase nas pautas culturais, no choque com a esquerda, um pouco do sensacionalismo. O que se vê é que essa estratégia, que funcionou para eles antes, ainda segue sendo praticada”, afirma Caio Marcondes especialista em comportamento eleitoral e direita brasileira, e doutorando em Ciência Política pela USP.

Marcondes, no entanto, ressalta que, mesmo após as falas machistas de Arthur do Val, o movimento ainda tem uma base fiel que o apoia:

“É importante notar que o Arthur do Val não é candidato porque teve o mandato cassado. Mas se ele se lançasse ao legislativo, a chance de ele se eleger era muito alta. Apesar do escândalo que abalou a imagem dele, ele ainda tinha uma imagem muito positiva com uma margem grande de eleitores. Mesmo caso do Gabriel Monteiro do Rio, que consegue mobilizar uma base muito grande de seguidores”.

Apostas para a Alesp

Uma das candidaturas do MBL nas eleições à Assembleia Legislativa de São Paulo é Amanda Vettorazzo. Segundo Caio Marcondes, a candidata à Assembleia Legislativa de São Paulo tem grandes chances de se eleger.

“Já vi vídeos da Amanda Vettorazzo tentando polemizar com bolsonaristas, se colocando uma alternativa à direita. O potencial está aí”, afirma Marcondes.

Em contrapartida, Rosemary Segurado não crê o MBL terá tanto sucesso na competição com o Bolsonarismo:

“Eles lançaram três candidatos à Alesp, e eles estão planejando uma campanha com o olho no retrovisor em 2018. Se eles conseguirem eleger um, já está ótimo”.

Segurado afirma ainda que o eleitorado, diferentemente das eleições de 2018, está mais focado em candidatos com experiência na política e presentes no campo progressista, o que pode ser mais um empecilho ao movimento.

A especialista completa ainda afirmando que o MBL perdeu muito espaço após o rompimento com o bolsonarismo, o que tirou muito do seu poder de mobilização.

“As últimas manifestações convocadas pelo MBL foram desprezíveis do ponto de vista numérico, de repercussão. Eles estão voltando pro lugar que eles estariam se não fosse a Lava Jato, o impeachment da Dilma e a onda bolsonarista. Então eles começam a perder um pouco desse espaço”, ressaltou.

Candidatos do movimento, na ambição de conquistar uma das 94 cadeiras da Alesp, costumam defender, além das pautas de costumes, o controle do orçamento, uma diminuição do Estado e uma menor intervenção do governo na economia.

“Tenho o Estado tatuado no meu braço. E eu defendo muito que o orçamento fique aqui em São Paulo, e não vá todo para Brasília. Essa é minha principal luta”, afirmou Amanda Vettorazzo em entrevista ao ContraPonto Digital. 

Além disso, a candidata tentou se descolar da imagem de Arthur do Val, apesar de minimizar a fala do colega:

“Eu acredito que [o caso do Arthur] não vá me prejudicar. Isso já passou, ele já pediu desculpa e pagou caro, até demais, pelo que fez. Já pagou pelo áudio que, claro, não é bacana. Eu até repudiei na época, mas não repudio o trabalho que ele faz e que eu tentarei seguir na Alesp, que é a luta contra privilégios”.

Outra aposta do MBL para este ano é Guto Zacarias (União Brasil).  Como um homem negro conservador que se opõe às cotas, o candiato busca emular a dinâmica de Fernando Holiday (Novo), mostrando-se um forte opositor da esquerda.

“O cara tá com a camiseta do Lula, bora discutir? Fica com camiseta de bandido aí mano”, questiona o candidato para a Assembleia Legislativa de São Paulo em um de seus vídeos para sua página no TikTok. 

O ContraPonto Digital tentou contato com Guto Zacarias, que não respondeu aos pedidos de entrevista.

Apostas para a Câmara de Deputados

Para a Câmara de deputados, o MBL lançou Cristiano Beraldo (União Brasil), ex-secretário do turismo da cidade do Rio de Janeiro, posto que deixou para assumir a coordenação da campanha de Arthur do Val ao Governo de São Paulo. Porém, após o escândalo dos áudios e a retirada da candidatura de do Val, Beraldo decidiu concorrer à deputado. 

Em sua campanha, Kim busca se mostrar como alternativa à direita. O forte uso das redes sociais e de termos utilizados pela juventude é uma grande aposta do candidato para tentar conquistar o público jovem. 

O ContraPonto Digital entrou em contato com Cristiano Beraldo, que decidiu não responder aos questionamentos feitos. Kim Kataguiri também não quis dar entrevista. 

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Aplicativo de viagens explora mão-de-obra e repassa ainda menos ao trabalhador
por
Isabela Mendes
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22/09/2022

São Paulo, 20/09/2022 - Os motoristas do aplicativo de viagens Uber têm sofrido com o aumento da precarização do trabalho pela plataforma nos últimos meses. Com a elevação da tarifa sobre o valor das corridas e a redução dos direitos, os trabalhadores se veem desamparados pelo do aplicativo.

A falha da Uber em oferecer condições de trabalho dignas a seus associados não é novidade. Em março deste ano, por exemplo, a empresa constava na lista de aplicativos que não provêm boas condições laborativas, ao lado de outras plataformas conhecidas por ofertarem trabalho semelhante, num movimento chamado de “uberização do trabalho”. São elas: iFood, 99, Get Ninjas, Rappi e Uber Eats, ramo da companhia voltado para o delivery de comida. O estudo foi elaborado pelo Oxford Internet Institute em parceria com WZB Berlin Social Science Centre, e foi denominado “Fairwork Brasil 2021”.

No mesmo mês, a plataforma anunciou um reajuste de 6,5% na taxa a ser retida nas corridas e, com o aumento constante no preço dos combustíveis, para muitos motoristas, o trabalho – que já era precário – passou a não compensar mais.

Perguntado sobre as condições para trabalhar oferecidas pela empresa, Marcello Del Vecchio, estudante de geografia na Universidade de São Paulo (USP), metalúrgico e motorista da Uber aos finais de semana, dispara: “Então, ‘mano’, não é o justo, ‘tá ligado’? Pelo menos não era o justo antes da pandemia. Também teve toda essa alta do combustível, e aí muitas pessoas foram deixando de fazer, e eles foram ‘obrigados’ a aumentar a tarifa. E também não tem nenhuma garantia de acidente, roubo… O Uber nada mais é do que um aplicativo de recepção de chamadas”. “A empresa pega um ‘tecão’ de mais de 25% pra ela e você que se vire”, afirma.

No entanto, devido à atual conjuntura econômica do país, marcado por 11,3 milhões de desempregados e um aumento histórico no número de trabalhadores na informalidade, isto é, aderindo à chamada “pejotização” ou à onda forçada dos MEIs (microempreendedores individuais), Marcello confessa ainda ser necessário se submeter às corridas exaustivas e mal-remuneradas para complementar a renda mensal. 

“A Uber nesse momento é o que me salva, ‘tá ligado’? É uma graninha que entra, já dependi muito da Uber para pagar as minhas coisas, pagar meu carrinho...”, explica.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 38,7 milhões de trabalhadores sem carteira, alcançando uma taxa de informalidade de 40,1%. 

Em dezembro do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei (PL)  1665/2020 que garantia seguro contra acidentes e afastamento por infecção pela covid-19 a entregadores de aplicativos como iFood, Loggi, Rappi e Uber Eats, ou seja, plataformas de entregas. O aplicativo de viagens, porém, não foi incluído no projeto. Apesar do aparente avanço, a proposta não configurava vínculo empregatício entre o autônomo e a plataforma, e foi pensada para durar apenas até o fim da pandemia no país, decretado em maio deste ano pelo Ministério da Saúde. 
 

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Escolha de nomes para a composição de candidaturas considera representatividade e articulação política, e deve ser decisiva na conquista por apoio do eleitorado neste ano
por
Daniel Seiti Kushioyada, Gabriela Costa e Maria Luiza Marinho
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19/09/2022

Cinco vice-governadores assumiram o governo de São Paulo nos últimos seis mandatos. Quatro deles herdaram a posição porque os titulares deixaram o posto para disputar as eleições presidenciais. Apesar da forte presença das figuras dos vices no estado, para o pleito deste ano, dois dos três principais nomes foram definidos somente nas duas semanas finais do prazo de registro de candidaturas, encerrado em 15 de agosto.

Fernando Haddad (PT) designou Lúcia França (PSB) no dia 5 de agosto. Rodrigo Garcia (PSDB) confirmou Geninho Zuliani (União) no dia anterior — nome que quase sofreu impugnação após ser contestado pela Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo (PRE-SP) por contas rejeitadas e por ter sido condenado por improbidade quando era prefeito de Olímpia. O único dos três principais candidatos que já tinha um vice definido previamente era Tarcísio de Freitas (Republicanos), com Felício Ramuth (PSD), em uma chapa estabelecida desde o início de julho. O deputado federal Vinicius Poit (NOVO) teve a sua candidatura confirmada para o governo do estado de São Paulo no final de julho, tendo como vice Doris Alves (NOVO). Elvis Cezar (PDT) confirmou no dia 4 de agosto que a sua vice seria Gleides Sodré (PDT).

Diante da importância da escolha de nomes para a formação das chapas, a diversidade na identificação da figura dos vices foi interesse de alguns candidatos. "Temos o exemplo da Marina Silva (Rede). O Haddad foi atrás dela, porque seria uma boa vice e ocuparia esse espaço de diversidade por ser preta, mulher e com pautas. Mas ela recusou por suas divergências com PT e também porque preferiu ser candidata à deputada federal", comenta o cientista político e professor da PUC-SP, Eduardo Viveiros. Essa mesma pressão para o fechamento da chapa era colocada sobre o candidato Rodrigo Garcia, antes de definir Geninho para a posição.

 

O trampolim de governadores

São Paulo é a unidade federativa mais populosa e rica do Brasil. Dessa forma, a disputa pelo cargo de governador deste estado é considerada a segunda mais importante do país, atrás somente da corrida presidencial.

“Você tem um estado que é protagonista no país em uma área que é muito fundamental para o eleitor decidir o voto: a economia”, aponta o cientista político, Henrique Curi. O pesquisador da Unicamp explica que é um processo quase natural os governadores de São Paulo se verem num “protagonismo de abrangência natural para tentar um cargo no maior âmbito.”

O início dessa sequência de substituição de cargos começou em março de 2001, quando Mário Covas precisou se afastar do governo do estado por motivos de saúde. Na ocasião, o vice-governador Geraldo Alckmin assumiu – pela primeira vez – o governo de São Paulo. Alckmin foi reeleito em 2002 e governou até março de 2006, quando deixou o cargo para concorrer à eleição presidencial daquele ano. Seu vice, Cláudio Lembo, assumiu o posto.

Eleito em 2006, José Serra governou São Paulo até abril de 2010, quando o tucano abandonou o cargo para disputar a presidência da República contra Dilma Rousseff — que, em outubro, resultou na vitória da rival petista. Nesse cenário, o estado paulista passou a ser governado por Alberto Goldman.

Alckmin venceu a eleição estadual em 2010 e, pela terceira vez, assumiu o governo de São Paulo – seguido por uma reeleição, em 2014, que consolidou o seu quarto mandato. Em 2018, quando já não podia concorrer à reeleição, decide disputar o cargo à presidência da República – processo que resultou na eleição de Jair Bolsonaro. O vice de Alckmin, Márcio França, completou o mandato até dezembro do mesmo ano.

O caso mais recente aconteceu com João Dória que assumiu o posto de governador de São Paulo em janeiro de 2019. Sua gestão, entretanto, ficou incompleta quando o tucano decidiu abandonar o governo ainda no primeiro mandato para concorrer à presidência da República em abril de 2022 — em uma tentativa frustrada de se lançar com um nome da “terceira via”. Assim, São Paulo passou a ser governado pelo vice, Rodrigo Garcia.

doria e garcia
João Dória ao lado de Rodrigo Garcia em 2019 - Foto: Divulgação

 

A figura do vice

Historicamente, no Brasil, o vice nasceu em um período em que a comunicação era menos acessível do que nos dias atuais. Hoje, em um contexto de era tecnológica e digital, em que governantes conseguem atuar à distância, o papel desempenhado por esses cargos políticos também se transformou, ganhando outras finalidades.

ramuth e tarcisio
Ao lado de Tarcísio (esq.), Ramuth (dir.) discursa em evento do PSD - Foto: Reprodução

“O vice faz um aceno ao eleitorado”, pontua Curi. Assim, “chapas puras”, formadas apenas por um partido, limitam a quantidade de votos a um tipo de público somente. A preferência, portanto, é por nomes pertencentes a siglas diferentes na hora de fechar as chapas, em uma tentativa de conquistar mais apoio entre a população ao mostrar que determinada candidatura está mais aberta para além de um partido só.

De acordo com o especialista, o vice será mais importante em candidatos que estão bem definidos no espectro ideológico de polarização. Logo, partidos que não se definem nem à direita ou nem à esquerda não têm tanta necessidade de ter uma figura distinta.

Quando a formação de chapa deixa de ser fundamental para acenar a um eleitorado específico, um vice pode auxiliar na articulação política. “É importante ter um vice que seja habilidoso com outros políticos, que seja uma figura importante na relação que vai se estabelecer com o legislativo, por exemplo”, aponta Curi.

O candidato a vice-governador de São Paulo, Felício Ramuth se enxerga cumprindo essa função. “O Tarcísio [candidato a governador da chapa] ainda não tem experiência política e eu vou poder ajudá-lo, ao longo do mandato, com a minha experiência”, afirma o ex-prefeito de São José dos Campos ao Contraponto Digital.

Ramuth acredita que existem dois tipos de vice, dependendo da abertura do governo. “Existem muitos vices que acabaram tendo um papel de coadjuvante. Do ponto de vista público, pouca gente sabe quem são os vices, mas internamente ele pode ajudar, dependendo do espaço que vão abrir para sua atuação”, complementa.

Nessa mesma linha de pensamento, Lúcia França, vice de Fernando Haddad, declara ao Contraponto Digital: “Nós dois, um não se elege sem o outro. Na nossa legislação, precisamos dessa união para sermos eleitos, então é claro que os dois têm importância. E eu não pretendo fazer um papel figurativo.”

 

Vices e inclusão na política

Há também uma demanda do eleitorado por um número maior de membros da comunidade LGBTQIA+ e, principalmente, de mulheres e negros. Apesar da maior parte da população brasileira ser composta, atualmente, por negros (56%) e mulheres (51%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estes grupos seguem sendo pouco representados no meio político.

Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontam que, para as eleições gerais deste ano, 49% dos candidatos são autodeclarados pretos ou pardos. As mulheres representam 33% do total das candidaturas. Na disputa pelo governo do estado de São Paulo, os cinco primeiros colocados nas pesquisas eleitorais são homens brancos.

candidatos sp 2022
Da esq. para dir. Poit, Elvis, Garcia, Haddad e Tarcício em debate promovido pelo 'pool' TV Cultura, Folha S. Paulo e UOL 

A questão da representatividade aparece como fator decisivo na formação de chapas: candidatos buscam vices para contrapor essa identidade. “Nós já tivemos 164 governadores e vice-governadores no estado de São Paulo eleitos ou nomeados. Nunca tivemos uma mulher. Nunca”, destaca Lúcia França.

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Lúcia França (esq.) ao lado de Fernando Haddad (dir.) - Foto: Reprodução/Instagram

Portanto, a figura do vice atua também como um fator de legitimidade para a candidatura, cumprindo o papel de representatividade de grupos pouco representados na política. “Essa é uma preocupação atual do eleitorado. Então, hoje, como você faz só uma reunião de cabeças brancas? Como você faz uma chapa só com homens brancos sexagenários héteros? Nos últimos anos, se tornou uma preocupação que essas pautas identitárias sejam colocadas em questão, que exista uma representatividade maior desses grupos”, afirma Curi.

Apesar da importância e da necessidade de construção de candidaturas que sejam plurais, formadas por candidatos representativos, Eduardo Viveiros alerta que esse processo deve ser feito em defesa de pautas relacionadas à diversidade e não somente para criar uma falsa imagem para o eleitor.

“É um fenômeno sociológico, político e cultural da existência de uma preocupação e de uma militância em defesa desses assuntos. Nessa eleição, houve uma atenção na escolha de candidatos para o fechamento de chapa justamente por entenderem que os eleitores estão mais atentos a essa questão”, conclui Viveiros.

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Sem aliados, o movimento tenta se manter vivo politicamente usando as mesmas estratégias eleitorais do pleito de 2018
por
Lucas Martins e Raphael Dafferner
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05/09/2022

Para as eleições de 2022, em São Paulo, o Movimento Brasil Livre lançou novos candidatos, tanto à Assembleia Legislativa, quanto à Câmara Federal. A “nova safra de liberais” possui a missão de tentar recuperar, no âmbito estadual, a força do movimento, que, de 2020 para cá, tem se tornado cada vez mais fraco.

 

O movimento sofreu uma grande derrota no Poder Legislativo, que foi a cassação do ex-deputado estadual Arthur do Val - também conhecido como Mamãe Falei - (União Brasil) após o vazamento de áudios sexistas durante a sua viagem, supostamente humanitária, à Ucrânia após o início da guerra contra a Rússia.

O ex-parlamentar usou expressões misóginas para se referir à refugiadas ucranianas, e declarou que “elas eram fáceis porque eram pobres”. Além disso, do Val falou sobre uma viagem que um dos líderes do MBL, Renan Santos, fazia anualmente à Europa Oriental para se relacionar com mulheres loiras. A excursão se caracterizaria como turismo sexual.

Mamãe Falei teve seu mandato cassado com 73 votos a favor e nenhum contra.

 

A crise no MBL

 

A professora da PUC-SP, e cientista política especialista em estudos eleitorais, Rosemary Segurado, destaca que a pauta da defesa dos valores morais na sociedade sempre foi uma das bandeiras do MBL, e que, portanto, o vazamento dos áudios sexistas de Arthur do Val é um importante fator que ajuda a explicar a sua queda de influência recente, por conotar uma certa hipocrisia.

"O peixe acabou morrendo pela boca. Em 2019, eles organizaram um protesto em uma exposição queer em Porto Alegre e com um discurso muito conservador e preconceituoso, mas aconteceu o que aconteceu com o Arthur do Val. Caíram-se as mascaram e acabaram se enfraquecendo”, afirmou.

Ademais, segundo a professora, a falta de apoio a Arthur do Val durante seu processo de cassação por parte de outros partidos, simboliza um isolamento do MBL ocasionado por uma divisão das direitas após divergências com o atual governo. 

A efeito de comparação, o também Deputado Estadual Fernando Cury (União Brasil) teve apoio na Casa após assediar a parlamentar Isa Penna (PC do B). Ele foi punido com a perda do cargo por apenas 119 dias.

Romperam com o Bolsonaro mas não rompem com os principais princípios defendidos pelo bolsonarismo, então eles ficam sem lugar, pois já tem o bolsonarismo, que é uma parcela consolidada do eleitorado, que não é o caso deles”, completou. O

O MBL ganhou notoriedade ao se destacar durante grandes mobilizações da direita, como as manifestações antipetistas e a ascensão bolsonarista. Portanto, após o impeachment da ex-presidente Dilma e o rompimento com o Governo Bolsonaro depois do começo da pandemia, o movimento começou a se enfraquecer.

Após o divórcio com o bolsonarismo e as gafes de Arthur do Val, o movimento tenta sobreviver na política com novos nomes, mas mantendo o mesmo discurso, e as formas de propagar as ideias.

"Por outro lado, em termos mais eleitorais, eu acho que a estratégia segue a mesma. Muita ênfase nas pautas culturais, no choque com a esquerda, um pouco do sensacionalismo. O que se vê é que essa estratégia, que funcionou para eles antes, ainda segue sendo praticada”, afirma Caio Marcondes especialista em comportamento eleitoral e direita brasileira, e doutorando em Ciência Política pela USP.

Marcondes, no entanto, ressalta que, mesmo após as falas machistas de Arthur do Val, o movimento ainda tem uma base fiel que o apoia:

"Acho que é importante notar que o Arthur do Val não é candidato porque teve o mandato cassado. Mas se ele se lançasse ao legislativo, a chance de ele se eleger era muito alta. Apesar do escândalo que abalou a imagem dele, ele ainda tinha uma imagem muito positiva com uma margem grande de eleitores. Mesmo caso do Gabriel Monteiro do Rio, que consegue mobilizar uma base muito grande de seguidores”.


 

Quais são as apostas do MBL?

 

"O cara tá com a camiseta do Lula, bora discutir? Fica com camiseta de bandido aí mano”, questiona Guto Zacarias (União Brasil), candidato para a Assembleia Legislativa de São Paulo e membro do Movimento Brasil Livre (MBL) em um de seus vídeos para sua página no TikTok. 

Zacarias é um dos nomes cotados pelo partido para assumir uma das vagas na Assembleia Legislativa. Marcondes explica que a retórica do candidato lembra a de Fernando Holiday (Novo), quando fazia parte do movimento.

"O Guto Zacarias tenta emular um pouco da dinâmica que o Fernando Holiday impunha, ou seja, um candidato negro que se opõe às cotas”, explica.

Holiday anunciou sua saída do MBL em janeiro do ano passado. Em seguida, ele se filiou ao Partido Novo - antes era ligado ao Patriota. Segundo declaração do vereador na época, um dos motivos de sua saída foram algumas divergências quanto à importância das causas LGBTs e da luta contra o aborto para o movimento.

Além de Guto Zacarias, outra aposta do MBL nas eleições à Assembleia Legislativa de São Paulo é Amanda Vettorazzo. Segundo Caio Marcondes, a candidata à Assembleia Legislativa de São Paulo tem grandes chances de se eleger.

"Já vi vídeos da Amanda Vettorazzo tentando polemizar com bolsonaristas, se colocando uma alternativa à direita. O potencial está aí”, afirma Marcondes.

Em contrapartida, Rosemary Segurado não crê o MBL terá tanto sucesso na competição com o Bolsonarismo:

Eles lançaram três candidatos à Alesp, e eles estão planejando uma campanha com o olho no retrovisor em 2018. Se eles conseguirem eleger um, já está ótimo”.

Segurado afirma ainda que o eleitorado, diferentemente das eleições de 2018, está mais focado em candidatos com experiência na política e presentes no campo progressista, o que pode ser mais um empecilho ao movimento.

A especialista completa ainda afirmando que o MBL perdeu muito espaço após o rompimento com o bolsonarismo, o que tirou muito do seu poder de mobilização.

"As últimas manifestações convocadas pelo MBL foram desprezíveis do ponto de vista numérico, de repercussão. Eles estão voltando pro lugar que eles estariam se não fosse a lavajato, o impeachment da Dilma e a onda bolsonarista. Então eles começam a perder um pouco desse espaço”, ressaltou.

Em entrevista ao ContraPonto Digital, Vettorazzo falou sobre a sua candidatura e sua ambição à uma das 94 cadeiras da Alesp.

"Eu defendo muito o Estado de São Paulo. Nasci e cresci aqui. Tenho o Estado tatuado no meu braço. E eu defendo muito que o orçamento fique aqui em São Paulo, e não vá todo para Brasília. Essa é minha principal luta”

Além disso, a candidata tentou se descolar da imagem de Arthur do Val, apesar de minimizar a fala do colega:

Eu acredito que [o caso do Arthur] não vá me prejudicar. Isso já passou, ele já pediu desculpa e pagou caro, até demais, pelo que fez. Já pagou pelo áudio que, claro, não é bacana. Eu até repudiei na época, mas não repudio o trabalho que ele faz e que eu tentarei seguir na Alesp, que é a luta contra privilégios”.

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Comissão da Verdade da PUC-SP - Reitora Nadir Gouvea Kfouri, um olhar sobre ela cinco anos depois de seu encerramento
por
Danilo Zelic
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02/07/2022

Por Danilo Zelic

Em detalhes, Rosalina Santa Cruz, Assistente Social e Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), conta sua perspectiva sobre como foi o processo de instalação, trabalho e encerramento da Comissão da Verdade da PUC-SP - Reitora Nadir Gouvea Kfouri (CVPUC). Nessa entrevista, a professora fala também de sua análise sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), como avalia seus resultados,  impacto que teve no âmbito político e social brasileiro e da importância da instalação de uma Comissão da Verdade para apurar e apontar os graves crimes de violações aos direitos humanos no Brasil.

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