O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Meio Ambiente

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
|
04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Mulheres trans vivem uma luta constante contra o preconceito do Feminismo Radical, o Radfem.
por
Luiza Nascimento
|
30/03/2021

Quando falamos sobre feminismo, a imagem que vem à mente é um grupo de mulheres unidas, lutando contra o patriarcado e defendendo umas às outras com unhas e dentes. Essa imagem, no entanto, está longe de ser a realidade vivida pelo movimento, que ao longo das décadas se dividiu.

Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas.
Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas. | Foto: Reprodução.

Essa necessidade de separação surge das divergências de luta e da visão que cada mulher possui do movimento feminista e de seu papel na sociedade. Grupos como o feminismo liberal, feminismo negro e o feminismo radical (o popular Radfem), buscam o mesmo objetivo, porém, com meios diferentes. 

 

Mas para aqueles que acreditam que os fins justificam os meios, essa noção pode estar abalando a luta feminista. Com essa divisão, surge a marginalização das vertentes dentro do feminismo e a homogeneização da luta. O movimento se torna exclusivo para aquelas que atendem as expectativas de cada vertente. 

 

Um dos grupos mais afetados por essa exclusão é o de mulheres trans, que lutam para serem reconhecidas como mulheres e detentoras de pautas feministas.  

O Radfem e o Movimento Trans

O Radfem surge por meio de obras de autoras como Shulamith Firestone (A dialética do Sexo), Kate Millet (Política Sexual) e Simone de Beauvoir (O segundo sexo). Elas abordam qual seria a origem do patriarcado e do machismo enraizado na sociedade, afirmando que essa busca é necessária para a mudança do comportamento social e político, analisando questões como elementos históricos e sociopolíticos, contrapondo-se às explicações e abordagens deterministas, como por exemplo o fator biológico. 

 

Essa vertente que se popularizou na década de 70, contudo, possui suas próprias derivações. Com o advento da internet, a comunicação de movimentos sociais ganhou força e atraiu novas pessoas para esses grupos. O Radfem se tornou um movimento dentro da internet com seu próprio pensamento. 

 

O grupo aborda atualmente a questão biológica como um fator determinante na construção da imagem do feminino. Elas defendem que não há subjetividade em ser mulher e que o preconceito surge a partir do gênero associado ao nascimento. O movimento afirma que suas ideias se baseiam na teoria clássica do feminismo radical, utilizando autoras como Robin Morgan, Julie Bindel, entre outras, como exemplo. 

 

A transfobia se tornou um dos sintomas do Radfem atual, que divulga por meio das redes sociais o pensamento que pessoas trans não possuem uma identidade verdadeira. 

 

Segundo elas, essas mulheres não podem se considerar parte do gênero feminino, pois em sua nascença são homens. Há, aquelas que acreditem que a mulher trans é uma reação da sociedade patriarcal à luta feminista, que pretende desestabilizar suas pautas com sua participação. Homens trans, por sua vez, podem ser associados a mulheres que não aceitaram seu papel como oprimidas e transformaram-se nas opressoras. 

 

Para Djamila Ribeiro, no entanto, as performantes do Radfem, atualmente, não compreendem o que foi escrito pelas primeiras autoras. Para a filósofa, houve uma distorção de suas ideias, o que resultou em um movimento transfóbico. 

O preconceito na prática 

Para compreender, na prática, como a transfobia por parte do movimento Radfem impede ou atrapalha mulheres trans de participarem das pautas feministas, foram entrevistadas Nicolly e Pâmela, duas mulheres trans que se relacionam com o feminismo de maneiras distintas. 

 

Nicolly iniciou sua transição aos 18 anos, após sair do colégio. Segundo ela, a partir do momento que começou a tomar seus hormônios adquiriu liberdade. Para ela, entretanto, se assumir como uma mulher foi algo difícil, pois ao longo de sua vida sofreu preconceito em todos os lugares que adentrou, seja para trabalhar ou em seu convívio. Mas alerta para o preconceito que sofreu quando era apenas um jovem garoto gay, sendo algo explícito e mais agressivo. 

Segundo Nicolly, ela compreendeu seu papel como mulher na sociedade quando começou a fazer programa, em suas palavras “fazer programas como trans foi a maneira que conheci a vida”. Quando o assunto feminismo foi abordado, ela afirmou que pautas feministas nunca fizeram parte de sua vida, pois durante sua transição e sua vida como mulheres, essas questões jamais se aproximaram de sua realidade.  

 

O feminismo é algo distante para ela, porém, algo que a sociedade trata a todo o momento. De acordo com o que disse: “tudo é feminismo hoje em dia, mas isso nunca me afetou como mulher trans”.  

Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis.
Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis. | Foto: Reprodução/Instagram.

A jovem paulistana sente a segregação entre mulheres cis e trans, seja dentro do movimento feminista ou na sociedade em que vive. Ela afirma que emprego para mulheres cis é algo fácil, assim como suas relações, enquanto pessoas trans, em geral, sofrem para serem reconhecidas. A maneira que encontra para que uma mudança dentro do feminismo ocorra é que surja o feminismo trans, assim como o feminismo negro, o intuito é abordar as pautas de gênero direcionando-as para mulheres. Em sua visão, não apenas o Radfem, mas todo o movimento, exclui mulheres trans de suas decisões, deslegitimando suas mudanças e necessidades. 

 

Se para Nicolly o feminismo é algo distante, para Pâmela é uma pauta que está presente desde sua adolescência. Sua transição começou quando tinha apenas 15 anos de idade e, de acordo com ela, foi algo turbulento e complicado. 

 

Sua família resistiu a ideia desde o princípio, porém Pâmela estava decidida a se tornar quem nasceu para ser. 

 

Na escola, afirma que participou ativamente de seu grêmio estudantil e ingressou nas pautas feministas abordadas pelo grupo. Na época, já sabia ser uma mulher e não se escondia de seus colegas. Essa participação, entretanto, foi dificultada por figuras importantes de sua escola, como sua professora de Ciências Sociais e a Coordenadora da escola.  

 

Segundo Pâmela, as duas deslegitimavam sua participação por ser menino e reafirmavam a ideia de que mulheres são mulheres por determinação biológica. Ela relembra que ambas faziam parte do pequeno grupo Radfem que existia em sua região, porém, os ideais do movimento não eram de seu conhecimento. 

 

Foi apenas quando ficou mais velha e concluiu sua transição, que Pâmela compreendeu a necessidade de lutar contra um movimento de repressão e exclusão dentro do feminismo. Em suas palavras “o feminismo pertence a todas e a pauta de todas as mulheres que, em algum momento, sofreram com a opressão da sociedade por seu gênero, seja cis ou trans.” 

 

Ela ingressou na faculdade de Ciências Sociais aos 22 anos e iniciou um pequeno blog durante seu período de estudante. A jovem, no entanto, se viu forçada a excluir suas redes sociais e sua página após ataques frequentes na internet, associados a grupos feministas de dentro da universidade. A partir desse momento, começou a escrever para o pequeno jornal impresso pelo Movimento de Feministas Negras de seu campus.  

 

Pâmela diz que as feministas negras são as únicas que se aproximam da dor de uma mulher trans, pois reconhecem o sofrimento que é ser deslegitimado em seu campo político e social, de forma opressora e histórica.  

 

“Em um país onde negros são assassinados com frequência ao andarem por suas comunidades ou carregarem um guarda-chuva e mulheres trans são espancadas, violentadas e destinadas a prostituição, se unir por uma causa é a solução que mulheres negras e mulheres trans encontraram para ganharem força. Mulheres sozinhas não fazem verão, mas quando se unem provocam mudanças. É triste observar grupos que nos ignoram e excluem de pautas que nos interessam ou se quer ouvem nosso sofrimento, nos diminuindo a uma questão biológica. Sei que homens fazem coisas terríveis para essas mulheres e que o sofrimento pode gerar raiva e angústia, mas também sei que generalizar não é a solução, pois conheci feministas radicais que foram duríssimas comigo e me humilharam, mas outras que apresentaram a simples vontade de mudar o que vivemos.” 

 

Pâmela acredita que a solução não é o feminismo trans, mas sim, a unificação de ideias. Ela acredita que o feminismo deve expandir para dentro de comunidades, para o interior do País e da comunidade LGTQIA+, quebrando a homogeneização existente. 

Contraponto ao Radfem

Segundo Lola, do blog feminista Escreva Lola Escreva, o movimento feminista precisa dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e o patriarcado. E acredita que o movimento necessita compreender o papel do machismo na vida de meninos e pessoas trans, pois assim como as mulheres são oprimidas e presas a um estigma social, homens também participam dessa opressão.  

 

Durante uma entrevista ao Universa, Uol, sobre a resistência de feministas aceitarem mulheres trans nas pautas, ela observa que um dos maiores problemas entre as Radfem e mulheres trans, é o uso de estereótipos femininos, construídos por uma sociedade machista, por parte das mulheres trans. A feminista aponta que o grupo de feministas radicais não compreende as razões que essas mulheres possuem para utilizar desses padrões. 

 

Lola afirma que utilizar batom, salto, maquiagem, e outras características que são sempre atribuídas por mulheres é uma maneira da mulher trans se afirmar como mulher. Segundo ela, uma mulher cis não necessita disso, pois quando abandona esse padrão é ainda mulher e seu gênero jamais é questionado, mas sim sua feminilidade. 

 

A feminista reafirma que o feminismo deve ser para todas, para que assim ele mude algo dentro dessa construção patriarcal e machista que vivemos. Abraçar mulheres trans, as suas pautas e afirmar seus direitos, exigindo sua segurança, é trazer uma nova face ao feminismo. 

 

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O movimento feminista já teve muitas conquistas. Entenda como ele é muito necessário ainda hoje.
por
Niara Viana de Brito
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29/03/2021

A luta feminista: novidade que perdura por muito tempo

 

A luta feminista é um movimento social, político e econômico que perdura até os dias de hoje, com o objetivo de discutir e lutar por direitos igualitários das mulheres. O movimento feminista busca, principalmente, a igualdade de direitos, oportunidades e tratamento entre homens e mulheres, além de lutar contra a inferioridade e opressão que as mulheres são submetidas na sociedade até os dias de hoje.

Para entender melhor como esse movimento persiste até hoje, é necessário, primeiro, saber como surgiu essa luta, suas conquistas e sua caminhada histórica.

Como surgiu o movimento feminista e suas as ondas

Uma das maiores influências para a criação do movimento foi a Revolução Francesa e as alterações sociais que começaram a acontecer nesta época, durante o século XIX. A partir das mudanças causadas pela Revolução, as mulheres começaram a entender as desigualdades políticas e de direitos a que eram submetidas e passaram a questionar, lentamente, sobre os modelos sociais em que viviam. Esse período ficou conhecido como a primeira onda do feminismo.

Nessa mesma época, nos Estados Unidos e, principalmente, no Reino Unido, mulheres começaram a se reunir em manifestações para garantir o direito à participação na vida política, direito de votos femininos nas eleições, aos estudos e melhores condições de trabalho. Dando assim, origem ao chamado movimento sufragista.

No período entre os anos 60 e 90, aconteceu a segunda onda do feminismo. Neste período, a luta pela igualdade social e de direitos se intensificou e as mulheres passaram a questionar todas as formas de submissão e inferioridade que enfrentavam.

Além disso, fizeram parte das questões debatidas pelo movimento nessa fase, as decisões sobre liberdade sexual, maternidade e direitos de reprodução. Uma das principais discussões nessa época girava em torno das opressões sofridas e do motivo de existirem tantas formas diferentes de opressão a que as mulheres eram submetidas. Ainda nesta época, começou a surgir a ideia da coletividade, da força da união das mulheres enquanto movimento capaz de provocar alterações na sociedade.  Mulheres negras e lésbicas também se juntaram ao movimento feminista, trazendo ainda mais força feminina, novas demandas e novas discussões para o feminismo.

A terceira onda feminista é o período iniciado a partir dos anos 90, que perdura até hoje, podendo ser definido como a busca de total liberdade de escolha das mulheres em relação às suas vidas. Nessa fase, surgiu o termo interseccionalidade (ou feminismo interseccional), usado para se referir às diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer, sendo em função de sua raça, classe, comportamento ou orientação sexual, por exemplo.

Nesta fase, foi dada uma maior importância para as trocas de informações e debates entre uma maior quantidade possível de mulheres, cada qual com suas condições e exigências especificas, trazendo mais visibilidade para o movimento feminista. Entendeu-se, também, que os comportamentos e submissões enfrentados pela mulher são resultados de construções sociais ao longo de vários anos, deixando espaço para serem discutidos e reconstruídos nessa luta.

Seus grupos e ideais feministas

Algumas questões importantes para a luta feminista são: o fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres; igualdade na participação política do país, tanto na tomada de decisões quanto na ocupação; problemas de saúde ligadas diretamente às mulheres, como sexualidade e a discussão sobre o aborto; direitos relacionados a maternidade e a amamentação; luta contra estereótipos; e combate aos diferentes tipos de assédio e violências sofridas pela mulher, como moral, sexual, psicológica, dentre outras.

O movimento também leva em consideração questões específicas de alguns grupos de mulheres: como negras, lésbicas, periféricas, prostituas, indígenas e transexuais. Cada grupo possuiu uma demanda diferente a mais para ser questionada e discutida em relação às suas vidas e condições.

Suas principais conquistas e lutas

Em 1791, no contexto da Revolução Francesa, foi publicada a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que exigia a igualdade jurídica entre homens e mulheres, escrita por Olympe de Gouges.

Em 1827, as brasileiras obtiveram autorização para estudar, mas apenas o ensino elementar. Foi a brasileira Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte, a pioneira a levantar a bandeira da educação. Em 1879, as mulheres receberam a autorização do governo para cursar o ensino superior, porém, as que seguiam o caminho eram criticadas. Apenas em 1887 a primeira brasileira recebeu um diploma de ensino superior. Rita Lobato Velho Lopes se formou na Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1911, o dia 8 de março ficou marcado como Dia Internacional da Mulher, devido a morte de cerca de 130 operárias em uma fábrica têxtil de Nova York, quando as mesmas se revoltaram pelas más condições de trabalho que estavam submetidas. Apesar da data só ter sido oficializada em 1975, ela é relembrada todo ano como um dia de lutas sociais, políticas e econômicas das mulheres.

Em 1918, as mulheres do Reino Unido tiveram o direito ao voto, após uma extensa luta feminista gerada pelo movimento sufragista, com a fundação União Nacional pelo Sufrágio Feminino, criada pela educadora britânica Millicent Fawcett. Já no Brasil, em 1932, o voto feminino foi liberado para mulheres casadas com autorização dos maridos, viúvas e solteiras com renda própria. Essas restrições foram removidas em 1934.

No dia 27 de agosto de 1962, há apenas cinquenta e cinco anos atrás, foi sancionado o Estatuto da Mulher Casada que, entre outras coisas, instituiu que a mulher não precisaria mais da autorização do marido para trabalhar, receber herança e, em caso de separação, ela poderia requerer a guarda dos filhos. Antes disso, o cônjuge precisava autorizá-la a exercer tais atividades. No mesmo ano, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil, Apesar de não ser o melhor método contraceptivo, o medicamento trouxe autonomia à mulher e iniciou uma discussão importantíssima sobre a liberdade sexual feminina.

Em 2006, a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06) foi criada para reprimir a violência familiar ou doméstica contra as mulheres. A lei trouxe regulamentações específicas em relação à punição e tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei recebeu este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher que sofreu violência doméstica do marido durante o casamento e ficou paraplégica em razão das violências sofridas, tornando-se um símbolo da luta contra a violência doméstica no país.

O movimento atualmente

De uns tempos para cá, o tema vem se espalhando e ganhando forças em vários lugares, e isso se deu, sobretudo, por causa das redes sociais. “As plataformas online proporcionaram a propagação das experiências e vivências diárias, em relação ao machismo e patriarcado, de diversos grupos de mulheres”, diz Tatiane Viana, estudante de Artes Visuais na UNESP de Bauru e participante do coletivo feminista do campus.

“Sejam elas lidando com a desvalorização no mercado de trabalho, casos de assédio, estupros, violência doméstica, entre outros” acrescentou Tatiane. Assim, a ideia da coletividade pôde unir ainda mais as mulheres e fortalecer o movimento, dando maior relevância e aumentando as demandas de disseminação sobre o assunto.

A importância dessa luta

Apesar de todas essas conquistas e, aos poucos, a valorização do movimento, a luta feminista perdura muito atualmente, não estando perto de acabar. “Isso porque muitos dos direitos das mulheres ainda não foram debatidos e oficializados, como a discussão sobre o direito de aborto no Brasil”, comenta Letícia Barbosa, estudante de biologia e ativa no coletivo feminista da UNESP, no campus de Santos.

De modo geral, o feminismo busca desconstruir os ideais machistas e patriarcais que estão enraizados na sociedade desde muito tempo, e luta por uma comunidade mais igualitária na questão de acesso à direitos entre todos. “Longe de pregar a dominação das mulheres sobre os homens ou odiar o sexo oposto, o feminismo busca apenas igualdade de gênero”, enfatizou Letícia.  

 

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Comportamento

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Mesmo depois de tantos anos de luta, gênero feminino ainda sofre para obter seu espaço ao fazer e falar de automóveis no Brasil.
por
Thiago Pereira
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22/03/2021

Campanhas, criação de ongs, manifestações... A luta das mulheres por uma sociedade mais igualitária não é novidade para ninguém e já vem atravessando séculos. É fato que o cenário não é o mesmo de tempos atrás; as mulheres já conseguiram conquistar diversos direitos, como ingressar no mercado de trabalho e ter sua própria independência, mas isso não significa que dentro desse âmbito não sofram com os preconceitos e dificuldades de viverem em uma sociedade enraizada em conceitos patriarcais e machistas.

 

Dados do Ministério do Trabalho mostram que a participação feminina no mercado de trabalho formal atingiu o patamar de 44% em todo o território nacional em 2018; mesmo assim, apenas 3 em cada 100 CEOs no país são mulheres. Dados como esse comprovam que, mesmo depois de muitos anos de luta para que se tornasse um ambiente mais justo e igualitário em termos de oportunidade e valorização do trabalho, o mercado continua sendo um meio muito machista e sexista. Dentro desse cenário, algumas áreas estão mais avançadas e outras menos, no que diz respeito aos tópicos apresentados, e uma das que estão menos avançadas é a automotiva, aquela que envolve tudo aquilo relacionado a automóveis e afins. Piadas que envolvem a questão de gênero ainda são muito recorrentes e a ideia de que "mulher não entende de carro" também.

 

A indústria automotiva conta com 83% dos cargos em empresas de cadeia produtiva ocupados por homens, informam dados da pesquisa Presença Feminina no Setor Automotivo, realizada pela Automotive Business em parceria com a MHD Consultoria no segundo semestre de 2017. Um fato que, além de problemático simplesmente pela presença do preconceito relacionado ao gênero, é prejudicial para as próprias empresas, porque como é óbvio, as mulheres fazem parte do mercado consumidor, e por isso é imprescindível que essas empresas estejam alinhadas às expectativas e filosofias desse público, e ninguém melhor do que uma mulher para saber o que outra mulher espera de um produto. Em casos como esse, a representatividade ajuda a superar não somente barreiras sociais, mas também comerciais, gerando maior rentabilidade.

 

Infelizmente e obviamente, o jornalismo automotivo, assim como o segmento em que se apoia para produzir seus conteúdos, também ainda é um meio muito opressor, mas com muito esforço e uma qualidade de trabalho impecável para provar o que não precisaria ser provado, alguns nomes vêm ajudando a transformar essa realidade, mostrando para o público que mulher entende sim de carro, que elas devem estar inseridas nesse cenário e que o conteúdo produzido por elas faz frente a qualquer outro produzido por qualquer um.

 

Um desses nomes é Michelle de Jesus. Com experiência de 15 anos na oficina mecânica do pai, ela também foi piloto automobilístico por mais de 10, apresentadora do programa Oficina Motor, veiculado no canal +Globosat e colunista de revistas especializadas em automóveis. Hoje, apresentadora do seu próprio canal de Youtube (que já conta com mais de 120 mil inscritos) e Head de Marketing de uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, ela ainda consegue ajustar sua rotina à um MBA executivo no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Multifacetada como se vê, Michelle conta que, ao longo de sua carreira, sempre viveu e conviveu com vários homens e, por isso, enfrentou muitas dificuldades simplesmente pelo fato de ser mulher, mas nunca deu importância à elas. “Meu conselho é para que as mulheres não fiquem dando voz à essas pessoas, que elas simplesmente façam e sejam melhores que elas, porque é inevitável o talento, a capacidade, quando você tem e mostra seu talento e capacidade, é inevitável que você consiga seu espaço”.

 

Um verdadeiro caso de sucesso, Michelle, que já havia feito seu primeiro milhão antes dos 30 e viajado o mundo inteiro pilotando, testando e avaliando os carros mais legais do mundo, conta que a necessidade de empreender e aproveitar as oportunidades que lhe apareciam foram as principais “motivações” para ela alcançar o patamar onde está hoje. “Às vezes a gente fica buscando algo com o qual nos identificamos, mas na verdade o que temos de fazer é abraçar as oportunidades que aparecem e fazer delas as melhores oportunidades do mundo. Eu fiz isso lá atrás”. Sem formação de Jornalismo, ela conta também que a experiência em frente às câmeras foi fundamental para torná-la uma comunicadora. “Eu não era jornalista, não era apresentadora; fiz alguns cursos e treinamentos então acabei me especializando, virando uma apresentadora, influencer, garota propaganda (...) fiz vários comerciais, trabalhei pra várias marcas, várias montadoras, enfim, as coisas foram acontecendo meio que de forma natural, pelo fluxo e pela persistência de querer dar certo. Tanto faz a área, o que importa é fazer dar certo”, afirma.

 

Ao ser questionada sobre a possibilidade de estudantes de Jornalismo fazerem algo para tornar o cenário automotivo mais “justo”, Michelle é certeira: “eu acho que justiça é você batalhar pela mínima oportunidade que se tem, ela pode ser pequena, boba ou até sutil, às vezes passa desapercebida por algumas pessoas, mas aí você pega essa oportunidade que ninguém deu valor e faz aquilo que ela propõe de maneira muito bem feita, assim você vai conseguir ter voz, alcançar o maior número de pessoas possíveis, não se esquecendo sempre de fazer isso de uma forma justa e honesta com a informação. Acho que pra qualquer profissional, jornalista ou não jornalista, a questão de justiça é essa, é pegar algo mínimo, nem que seja dentro do seu bairro, e transformá-lo em algo verdadeiro, transparente e de grande valor para a comunidade”, finaliza.

Michelle de Jesus avalia Volkswagen Virtus GTS
Michelle de Jesus avalia o Volkswagen Virtus GTS. / Foto: Canal Michelle J

Além de Michelle, Giu Brandão, apresentadora do canal MundoSobreRodas, no YouTube, e Silvia Garcia, apresentadora do canal da Webmotors, que se encontra também no YouTube e representa uma gigante no meio de compra e venda de automóveis e motocicletas, também produzem um conteúdo de altíssima qualidade. É claro que muitas outras também o fazem, mas nesse texto seria impossível citar todas, elas são muitas e cada vez mais, o que é ótimo; mas para quem gosta ou precisa de dicas sobre o assunto, o conteúdo dessas mulheres é um prato cheio, e consumi-lo é um favor a si mesmo.

 

 

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Economia e Negócios

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Informalidade e falta de assistência são alguns dos problemas apontados nas últimas greves
por
Adriane Garotti, Beatriz Leite, Gabriela Reis e Liliane de Lima
|
19/10/2020

Há quase dois anos, quando começou a trabalhar com aplicativos de entrega, o carioca Paulo Ribeiro, 22, não encontrava nenhum empregador disposto a contratá-lo. Foi com a popularidade dos serviços de delivery, que o jovem encontrou uma oportunidade para manter a renda da família estável. 


Porém, com o início da pandemia de Covid-19, Paulo e outros entregadores tiveram que aumentar a jornada de trabalho para ganhar cada vez menos. “Eu saio para rua porque infelizmente não tem jeito”, conta Paulo. E acrescenta: "tá mais puxado, eu tô tendo que trabalhar o dobro para conseguir dinheiro”.


Desde o início de abril, os entregadores de aplicativos têm reivindicado melhorias nas condições de trabalho do setor. Aumento no pagamento, prestação de auxílio-acidente e doença, locais que ofereçam banheiros e espaço de descanso, uma legislação que regularize as relações empregatícias com as plataformas de entrega, auxílio pandemia, para custear equipamentos de proteção e licença médica, fim dos bloqueios e desligamentos indevidos (que podem ocorrer quando o entregador se nega a fazer uma entrega ou até se foi identificado que ele participou de alguma paralisação da categoria) e mudança no sistema de pontuação dos aplicativos.


O serviço terceirizado realizado com a tecnologia - como os aplicativos Rappi, iFood, UberEats, LivUp, James - se tornou um dos trabalhos essenciais durante a pandemia do novo coronavírus. Isso serviu para realçar a precariedade que os trabalhadores desse setor enfrentam. “A mudança só é que está saindo um pouco mais de pedidos, mas também estamos correndo bem mais risco do que antes”, afirma Paulo.


Durante a quarentena, os pedidos de delivery, uso de motoristas por aplicativos e outras atividades que podem ser feitas através da tela de um smartphone, aumentaram. O fato das pessoas terem que ficar em isolamento social, algumas tendo a oportunidade de trabalhar em casa, fez com que esse mercado crescesse ainda mais no ano de 2020. 


Segundo os dados da Pesquisa Gestão de Pessoas na Crise Covid-19, realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), 41% dos funcionários das empresas foram colocados em regime de home office, praticamente todos os que poderiam trabalhar à distância, que representavam 46% do total dos empregados. No setor de comércio e serviços, 57,5% dos empregados adotaram o home office, enquanto nas pequenas empresas o percentual ficou em 52%. Os dados foram coletados em abril, em 139 pequenas, médias e grandes empresas que atuam em todo o Brasil. 


Segundo o levantamento feito pela Corebiz, empresa de inteligência para marcas do varejo, as vendas online cresceram 330% no começo do ano só no setor alimentício. O diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio, afirma que com aumento da procura, o comércio enxergou as entregas como uma forma de continuar funcionando. "Os mais diferentes serviços, inclusive de diferentes atividades econômicas, fazem hoje a sua atividade por meio da entrega desses produtos."


Ainda assim, o cenário desses profissionais não mudou. Os entregadores continuam trabalhando sem nenhuma garantia de auxílio de renda em caso de acidentes, sem descanso semanal remunerado e férias, e muito menos Fundo de Garantia (FGTS) ou 13˚salário.


As empresas afirmam que os associados são autônomos e que trabalham de acordo com a sua disposição e necessidade, de forma que a plataforma funciona apenas como intermédio para auxiliar a comunicação entre as partes. A ideia de parceria e não de trabalho é um dos motivos que faz os trabalhadores se enxergarem como microempreendedores em cargos terceirizados. 


Então, utilizam seus próprios transportes para trabalhar. Um carro particular ou alugado, se for motorista de aplicativo. Bicicleta ou motocicleta para o serviço de entrega. Um levantamento da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas mostra que um ciclista que trabalha mais de 12 horas por dia ganha mensalmente, em média, R$995,30. 


Segundo apuração feita pela reportagem, dos 12 entrevistados, cerca de 33% dos entregadores trabalham até 12 horas e 25% chegam a trabalhar mais do que isso.

Infográfico 1: Jornada de trabalho
Infográfico 1: Jornada de trabalho

A entregadora Luciana Kasai, 21, usa a bicicleta como transporte de trabalho. “Eu pedalo uns 50 quilômetros por dia. Mas trabalho pouco comparado a outras pessoas”, comenta. Ela também é porta-voz do Movimento dos Entregadores Antifascistas e relata os problemas do meio de trabalho. “Tenho minha bike própria. Já as bicicletas para alugar, [de empresas como Itaú Bike] estão limitando o acesso, porque não pode ficar o dia inteiro”, disse Luciana. E, ainda relata: “Uma amiga minha tava fazendo esse trampo e em um dia ela gastou R$30 para alugar uma bike e teve que trabalhar o dobro de tempo para conseguir algum dinheiro.”

 

Mobilização dos entregadores 


Com tantas demandas e sem a resposta dos aplicativos, os entregadores já organizaram pelo menos três greves, chamadas de “#BrequeDosApps”. A paralisação ocorreu em diversas capitais do país, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. As mobilizações têm como intenção mais do que chamar atenção das empresas, mas também da população e do Governo Federal.


A manifestação é organizada pelas redes sociais, nos grupos de trabalhadores de entrega. É nas plataformas de comunicação que tudo começa: o início da mobilização, agendamento para o dia da greve e divulgação entre parceiros e população. Para apoiar o movimento, cartilhas circulam pelas redes ensinando como a população pode ajudar na mobilização.


Ao longo do dia escolhido para o protesto,  os trabalhadores pedem para que os usuários não realizem pedidos e que as pessoas cozinhem em casa, ou então, façam postagem comparando os valores entre o que os usuários pagam de taxa de entrega e o que os entregadores recebem. “Se as pessoas começaram a tomar consciência de que entregador é gente, foi devido às greves”, aponta Luciana Kasai.


Apesar das manifestações serem um movimento dos trabalhadores sem o apoio de nenhuma organização, foi nesse espaço que nasceu o grupo Entregadores Antifascistas. Para a porta-voz, Luciana, é importante aliar a luta pelos direitos dos entregadores à luta contra o fascismo. 


“Há um genocídio que não é direto. Você obrigar as pessoas a sair nessa pandemia sem o mínimo [de equipamentos de proteção] é uma forma de genocídio também. Por isso, é necessário se posicionar contra uma política fascista”, declara a porta-voz do movimento.


A entregadora aponta dificuldades em se manifestar, como o bloqueio sem justificativa dos aplicativos e as discordâncias dentro da própria classe. Dentre esses pontos de conflito está o discurso de liberdade do trabalhador, uma falsa sensação de empreendedorismo alimentada pelo neoliberalismo. Essa é uma ideologia política-econômica que também é social. Segundo a análise da doutora em economia política e professora da PUC-SP, Camila Kimie Ugino, o trabalhador torna-se o próprio capital. 


Ela afirma que o movimento de trabalhos cada vez mais informais, com uma mão de obra cada vez mais precária, por intermédio de uma plataforma online, foi apelidado de “uberização”. 


É essa lógica que os aplicativos usam ao chamar o entregador de “parceiro” e colocar como vantagem que nesse tipo de trabalho a pessoa pode ser seu próprio chefe, fazer seu próprio horário e ter um rápido retorno financeiro. Porém, são inúmeros os relatos de entregadores que foram bloqueados dos aplicativos após sofrerem algum acidente na rota e não conseguirem concluir uma entrega. Além disso, tiveram que arcar com custos médicos e reparos do veículo utilizado.


 
Questão de gênero


A profissão de entregador é a que apresenta um maior número de homens. No levantamento feito pela reportagem, 91,7% dos que responderam eram homens. Já o iFood informa que apenas 1,8% dos parceiros são mulheres.  


Luciana Kasai aponta as dificuldades das discrepâncias de gênero na categoria, pois, apesar de estarem em uma luta incomum, há questões que não abrangem os homens, “dá uma solidão, não tem com quem compartilhar”, comenta Kasai. 
 

Infográfico 2: Gênero
Infográfico 2: Gênero

 

Entre elas, a entrevistada aponta a falta de banheiro como um dos principais problemas que as mulheres enfrentam nesta profissão, principalmente quando estão menstruadas. “Mas vou falar o que? Falar pra quem?”, questiona. 


A presença de mulheres nos aplicativos de entrega, como “parceiras”, sofre  boicote das empresas também. Em entrevista ao Portal Uol, a entregadora Luana Belmiro, 18, relata o recebimento de mensagens de serviços exclusivos para homens. “Querem dizer pessoas do sexo masculino mesmo. Tanto que os meus colegas homens recebem um aviso de que há pouca demanda naquele momento. Já eu, recebo isso [aviso de que é preciso homens].”


O assédio é outro problema que o público feminino enfrenta na profissão, principalmente de clientes ou durante o tráfego nas ruas. “Como mulher, você tem certa carapaça. Não é muito fora do normal,  de qualquer outro lugar que a mulher quer ocupar. Não é específico da mulher entregadora, mas tem poucas mulheres fazendo [entregas]”, conclui Luciana. 

 

A visão dos restaurantes


No início da pandemia, uma das medidas impostas pela quarentena foi que os restaurantes fechassem os salões onde a comida era servida. Uma das soluções encontradas para continuar o funcionamento dos estabelecimentos foi a adesão ao sistema de delivery próprio ou por cadastramento nos aplicativos. 


Porém, uma pesquisa feita em junho pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, a Abrasel, com empresários de São Paulo, mostrou que 73,5% aderiram às entregas. Desses, 86,2% usa aplicativos (principalmente iFood, Rappi e Uber Eats) e 80% está insatisfeito com o atendimento recebido. E as reclamações são diversas: taxas abusivas, deficiência no suporte online e problemas com os entregadores.


Jorge Rafael, 31, gerente de um restaurante em Santa Cecília, na zona central de São Paulo, conta que quando começou o isolamento social, pensou em adotar o serviço de entregas pelo aplicativo. Chegou até a entrar em contato com as plataformas, mas as taxas do serviço acabaram impossibilitando a adesão:  “não tem como ficar pagando pra trabalhar”, comenta. Ele conta que para aderir às plataformas seria preciso aumentar o valor dos pratos, o que prejudicaria o restaurante, que visa um atendimento mais do bairro. A solução foi o boca a boca. Ir nas empresas ao redor,  divulgar o trabalho, dar a possibilidade de fazer pedidos por WhatsApp, sem cobrar a entrega e com funcionários do próprio estabelecimento levando o pedido.


Jorge ainda ressalta que não gosta da forma que os entregadores são tratados pelos aplicativos e também da falta da criação de vínculo do empregador com o estabelecimento. Porém, como consumidor, reconhece ser difícil escapar disso, pela facilidade que o serviço online oferece.


Já Roni Mesquita, 46, conta que abriu seu pequeno restaurante, também na Santa Cecília, durante a pandemia, após ter perdido seu emprego numa loja de móveis. Ele optou por utilizar as plataformas de entrega, porém visando mais uma divulgação, não o retorno financeiro.

 

Imagem da capa: Reprodução Uol/Gilnei J. O. da Silva/Arquivo Pessoal

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A cobertura sensacionalista por parte do jornalismo pode interferir nas decisões jurídicas do país.
por
Luísa Eller
|
25/08/2020

A mídia, frequentemente, joga holofotes nos casos criminais de grande comoção. Isso resulta em uma cobertura jornalística profunda e exagerada, o que gera uma exposição enorme em torno de todos os personagens envolvidos e afetados pelo crime cometido. Desde os culpados até as vitimas são afetados pela exposição midiática. Os efeitos que isso causa são sentidos em diversos âmbitos e a mídia tem a capacidade de moldar as consequências desses atos, desde a sentença até mesmo a ressocialização dos réus.

Sociedade do espetáculo 

Constantemente, as tragédias criminais são transformadas em espetáculo midiático. A sociedade consome, com frequência, a exposição que a mídia faz em torno de crimes de repercussão nacional. No livro, a sociedade da exposição, de Guy Debord, o autor explica que a sociedade vive em um constante especulo e torna a vida um filme. O mesmo acontece quando alguns casos criminais são vendidos pela mídia como entretenimento. A mídia é considerada um quarto poder, segundo autor Auriney Uchôa de Brito: “A ideia de mídia como o "quarto poder" surgiu na Inglaterra no início do século XX, quando, na sede no parlamento inglês, criou-se uma galeria para receber os repórteres que acompanhariam as decisões dos representantes dos três poderes da época, o poder temporal, o poder espiritual e o poder dos comuns.”. Portanto, desde sua formação a mídia vem trazendo impactos muito fortes na sociedade, em geral. Além de servir como um poder paralelo à justiça, interferindo nos âmbitos, políticos, sociais e econômicos de uma nação também.

Além disso, podemos perceber que o ser humano tem o hábito de querer ver coisas chocantes. Por isso, os crimes mais brutais são os que mais dão audiência nos jornais. As pessoas tendem a querer ver e se chocar com os acontecimentos, por mais sangrentos que seja. A fascinação pelos fatos sangrentos, violentos, ante os quais sempre está unida uma justiça implacável, toma parte dessa literatura que [...] igual a seus consumidores, tende a valorizar os efeitos exagerados, a exacerbação sentimental e lacrimal em torno dos acontecimentos violentos. (BARATA, 2003 apud LEITE, 2017, p.3). O jornalismo, então, se apoia nesse desejo da sociedade para divulgar as narrativas, porém de forma sensacionalista, para alcançar mais visibilidade e envolvimento do público. Budó afirma também que Ele [o sensacionalismo] permite que se mantenha um elevado índice de interesse popular (o que é conveniente para o veículo, na época de competição por leitores e de maximalização publicitária), refletindo, na divulgação de crimes e grandes passionalismos, uma realidade violenta muito próxima de imprecisos sentimentos do leitor; oferece-lhe, em lugar da consciência, uma representação de consciência (...). Quanto aos problemas, eles se esvaziam no sentimentalismo ou se disfarçam na manipulação da simplificação e do inimigo único. (LAGE, 1979 apud BUDÓ, 2013, p. 251).

Mas esse sensacionalismo envolvido nas coberturas jornalistas tem suas consequências. A principal delas é o furor popular que elas causam, fazendo com as pessoas desejem justiça. A linguagem sensacionalista, caracterizada com ausência de qualquer moderação, busca chocar o público, causar impacto, exigindo seu envolvimento emocional. Quando a população se rebela contra algo ou alguém, essa indignação se estende ao júri popular e até mesmo aos juízes. Se comparamos as sentenças de casos, podemos perceber a interferência que a mídia causa nas decisões judicias. 

Comparando casos

Foto mostra o rosto de Suzane Von Richthofen
O rosto da menina foi exposto em todos os jornais na época. (Foto: AP Photo/Flavio Grieger-Folha Imagem)

 

Por exemplo, analisando dois casos parecidos, o de Suzane Von Richthofen e Amarildo Martins Borges. No primeiro, a criminosa planejou e cometeu o homicídio de seus pais, juntamente com o namorado e o cunhado. Amarildo foi acusado e condenado por executar seu pai, com um tiro a queima roupa. Suzane foi condenada por dois crimes de homicídio e pelo crime de fraude processual, recebendo uma pena de 39 anos de reclusão e seis meses de detenção. Além disso, ela teve prisão preventiva decretada. Já no segundo caso, Amarildo foi condenado a seis anos de reclusão, podendo recorre em liberdade. Mesmo com crimes parecidos entre si, as sentenças foram extremamente desiguais. A maior diferença entre os dois, foi a superexposição que o caso Richthofen sofreu por parte da mídia. Suzane teve seu rosto, sua história e vida expostos em todos os noticiários, de forma sensacionalista, visando chocar a população. Já Amarildo sequer teve uma foto sua divulgada, o caso não passou em nenhum canal de televisão. Essa discrepância foi a principal causa da diferença entre as penas recebida por cada um. E esse padrão se repete constantemente no sistema judiciário brasileiro.

Entretanto, as consequências não ficam apenas na maneira como a sentença e o julgamento são conduzidos. Após uma superexposição midiática e a transformação da tragédia real em espetáculo, os acusados ficam impedidos de ter uma ressocialização. Com os rostos conhecidos no país todo, é impossível que réus em casos dessa magnitude possam voltar a conviver ou ter uma vida normal em sociedade. O que contraria o sistema penitenciário brasileiro, que visa a ressocialização dos condenados. Como não existe pena perpetua ou de morte no Brasil, as pessoas devem ter o direito a voltar a conviver em sociedade, após cumprirem sua pena. Mas a mídia tem o poder de permitir ou não que os condenados tenham direito à ressocialização. Aqueles que tiveram suas vidas expostas não terão esse direito. Já em casos que não se tornam espetáculos midiáticos, os réus podem ter a seus direitos de cidadão respeitados. Ou seja, a mídia dosa as penas em alguns casos.

Esse reflexo também é sentido pela família, tanto dos réus, quanto das vitimas, que veem os casos expostos em rede nacional. O sensacionalismo midiático não tem moderação e expõe a vida pessoal de todos envolvidos em uma tragédia. Sem pensar nas consequências que isso pode trazer, inclusive, para vitimas inocentes envolvidas nos casos.

Portanto, fica claro a influencia que a mídia exerce no sistema penal brasileiro. Mas, por mais que a população exija condenação dos culpados e tenha direito a revolta, a Justiça deve ter autonomia e competência para julgar sem a interferência midiática. A cobertura jornalística não deveria influenciar nas decisões judiciais ou como nos direitos civis do cidadão. Além de precisar ter a sensibilidade e senso para tratar de assuntos trágicos. 

Crimes cometidos por homens X mulheres

Um estudo sobre homicídios feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e publicado em 2014 aponta que 95% dos assassinos no mundo são homens. Com 5% dos crimes de homicídio na conta, as mulheres que cometem esse crime, entretanto, sofrem com uma maior degradação de sua imagem por parte da mídia. Principalmente por conta das exposições sensacionalistas que a cobertura jornalística faz de casos comoventes ou chocantes. A mídia, frequentemente, é apontada por especialistas como o quarto poder em uma sociedade. O que faz sentido, se entendermos a magnitude e efeitos que a exposição midiática causa na vida das pessoas. O impacto é enorme tanto por quem assiste e, principalmente, por quem está sendo exposto. 

A ideia da natureza feminina

Foto mostra meninas brincando de boneca
Foto: Thinkstock

Os crimes cometidos pelas mulheres já causam impacto, pois o crime é visto como um ambiente masculino. Como o corpo feminino é entendido como frágil e dócil na sociedade, atos bárbaros só poderiam ser cometidos por seres humanos do sexo masculino. Então, quando a mulher é criminosa especula-se que ela tenha desvios de conduta e seja um individuo que deva ser linchado da sociedade. O mesmo não acontece com os homens, que são os maiores autores de crimes no mundo. Desde que as penitenciárias femininas começaram a ser criadas, existe-se a ideia de que as mulheres criminosas são seres piores do que os homens, devendo ter algum problema. A saúde mental da mulher estava relacionada à sua natureza, em especial, a sexual, enquanto a do homem, aos seus atributos sociais de trabalhador e provedor (ENGEL, 1997). As teorias médicas predominantes afirmavam que a fisiologia sexual feminina era inerentemente problemática, facilmente propensa a patologias e capaz de provocar desvios de comportamento (Rohden 2001). Lombroso alegava que “a mulher seria duas vezes mais fraca que o homem e, por tanto, pelo menos duas vezes menos criminosa”. E continua: “a inferioridade delinquencial da mulher também decorria de certa falta de habilidade e de inaptidão”.

 Uma das explicações, avança, é da área da psicossociologia e prende-se com o facto de Segundo a investigadora Raquel Matos "as mulheres serem mais conformadas com as normas: comportam-se mais de acordo com as regras, ponderam mais", o que está relacionado "com a forma como são educadas".  Comenta em entrevista ao jornal português Diário de Notícias. Isto faz que não seja esperado que cometam crimes, sobretudo os mais violentos. "Estranha-se menos ser um homem a cometer um crime. Este é um fenómeno mais raro. Neste último caso mediático, se fosse um homem a matar a mãe, provavelmente não se faria esta reportagem", diz a investigadora.

Mas a especialista em psicologia forense, Adriana Eiko explica que “as vivências e as identificações do que diz respeito à gênero papéis sociais formas de manifestar certo formas de manifestação desejo afetivo-sexual tudo isso são também construções e depende da forma como esse sujeito está inserido no contexto em que ele vive né dizendo tudo isso porque primeiro a gente tem que pensar constituição de gênero sempre nessa forma relacional e também de uma construção histórica e social”.  Por isso, a ideia de papeis são definidos por questões sociais.

Portanto, os problemas que as mulheres criminosas apresentam estariam, frequentemente, relacionados à sua vida sexual. Alguns autores acreditam que a mulher tem sua imagem mais degradada do que os homens, pois cometer um crime significaria uma traição do feminino, cuja "natureza" deve estar estreitamente ligada à domesticidade e maternidade. Já o homem, seria violento por natureza, não sendo um desvio natural das coisas que um ser masculino cometesse um ato ilícito. Como a mídia procura discursos sensacionalistas para criar envolvimento do público, quando os crimes brutais são cometidos ou planejado por mulheres, a cobertura se intensifica. Pois na cabeça das pessoas um corpo feminino do mundo do crime é ainda mais chocante. Contudo, a maneira com que as mulheres são expostas e retratadas, mesmo que em uma cobertura midiática sensacionalista, ainda é diferente dos homens. 

Por isso, as mulheres criminosas são vistas frequentemente como deploráveis, péssimas mães e esposas, mesmo se essas características nada tiverem a ver com seus crimes.  Isso é uma ideia que surge na sociedade médica e se torna um senso comum. Mas a mídia tem um forte papel de corroborar com essas ideias, até os dias atuais.

Mídia corrobora para o problema

Segundo Budó (2006, p. 8): “[...] mais do que divulgar acontecimentos, o jornalismo possui um papel de definir quais são os fatos que repercutirão na mídia, e quais não serão conhecidos. Além desse quadro de abordagem da realidade, ainda o jornalista define qual o ângulo será privilegiado na notícia, mesmo que isto ocorra inconscientemente. Quando se trata de notícias sobre crimes, o senso comum jornalístico é preponderante ao definir a forma de abordagem do fato.”. A mídia, muitas vezes descrita como quarto poder, tem a capacidade de corroborar ou não a manutenção de estereótipos. Quando falamos de mulheres criminosas, dificilmente a mídia não contribui para a exploração de suas imagens. Segundo os autores Bird e Dardene, as notícias são como mitos. Pois não apresentam os fatos da maneira real em que eles aconteceram, mas segundo seus significados. Ou seja, o jornalismo cria espetáculos em torno de histórias reais, contribuindo para o que Guy Debord chama de Sociedade do Espetáculo. Na qual os seres humanos estão frequentemente buscando fazer de tudo um show.

A autora Jewkes identificou oito formas narrativas padrão (standard narratives) das quais o jornalismo lança mão ao falar de mulheres criminosas: 1) sexualidade e desvio sexual (sexuality and sexual deviance); 2) atração física (physical attractiveness); 3) condição matrimonial, como más esposas (bad wives); 4) maternidade, como más mães (bad mothers); 5) monstros mitológicos (mythical monsters); 6) “vacas loucas” (mad cows); 7) manipuladoras do mal (evil manipulators); e 8) não agentes (non-agents). Nos jornais brasileiros é possível identificar a maioria desses exemplos quando as reportagens tratam sobre mulheres criminosas.

Exemplo famoso na mídia? 

Os maiores exemplos no Brasil são de casos que causaram alvoroço na mídia. Por exemplo, no caso de Elize Matsunaga, que matou e esquartejou seu marido, Marcos, a mídia jogou um foco sobre seu passado. As matérias não se limitaram a cobrir o caso, mas encheram o leitor ou telespectador de informações irrelevantes sobre as características físicas da mulher e sobre seu passado. Como se isso fosse de interesse público. Várias reportagens frisaram o fato de sua filha estar dormindo enquanto ela matou o marido – o que reforça a ideia de a condenada ser uma péssima mãe. Mas o mesmo não é visto com homens que matam suas companheiras, inclusive as mães de filhos também.

“O romance de um rico executivo que se casa com uma bela garota de programa começa como uma história de cinema e termina em tragédia.” diz trecho da reportagem na revista Veja. “As fotos bem produzidas da mulher loira, de traços delicados, corpo sinuoso e codinome Kelly chamaram a atenção do jovem executivo de ascendência japonesa.” Trecho de outra reportagem da revista Veja. Esses trechos apontam seu passado e ainda exploram as características físicas da mulher, o que não interessa para a cobertura do caso. Além disso, a matéria aborda de forma sexualizada seus aspectos físicos. Uma coluna na Folha de S.Paulo fez um alerta aos homens sobre o perigo de se casar com uma garota de programa. No texto, intitulado de "Uma Linda Mulher", que faz alusão ao filme de Julia Roberts e Richard Gere, o autor fala sobre como é preciso que os homens tomem cuidado com as mulheres que escolhem. O que ofende uma classe e diversas mulheres, fazendo com que as pessoas acreditem que Elise cometeu um crime apenas por já ter sido garota de programa. Além do mais, na maioria dos casos, as maiores vítimas de violência doméstica são as mulheres e não os homens. 

Foto mostra capa da revista Veja
Capa da revista Veja sexualiza a imagem de Elize
coluna da folha de sp
Coluna publicada na Folha de S.Paulo alertando os homens dos perigos de se envolver com uma garota de programa.
print de site
Site do antigo trabalho de Elize, divulgado nas mídias (Foto: Reprodução)

 

Suzane Von Richthofen

Outro exemplo que podemos retratar é o caso de Suzane. Quando a jovem foi acusada e, posteriormente, condenada pela morte dos pais, a mídia fez do caso um espetáculo com a menina no centro. Contudo, novamente, a cobertura jornalística não focou no acontecido, em si, mas na figura de Suzane. Por ser uma menina rica e padrão, o caso chocou o país, como uma estudante que tem tudo poderia cometer tal atrocidade? Além disso, as características físicas da menina eram levadas em consideração nas matérias produzidas. Fotos de Suzane de biquíni foram divulgadas, além dos comentários sobre seu corpo, antes e depois da cadeia. 

A capa da revista Época também foi sensacionalista, com a manchete "Matou os pais e depois foi pro motel", apontando uma perversidade e desvio sexual da acusada. 

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Foto de Suzane apenas de biquíni divulgada nas mídias
capa da revista Época
Capa da revista Época

Outra polêmica que a mídia criou foi em torno do relacionamento de Suzane com outra mulher dentro da prisão. A então namorada da jovem era ex de Elize Matsunaga, por isso, as matérias noticiaram como uma coluna de fofoca. Um exemplo foi a capa da revista Meia Hora, que além de machista pode ser considerada homofóbica, por usar termos pejorativos. 

capa da revista meia hora
Capa da revista Meia Hora (Foto: Reprodução)

Por isso, com base nas teorias de criminalistas e analisando as reportagens sobre mulheres criminosas, é possível perceber a lógica patriarcal em torno do sistema criminal. Um problema que atinge o Brasil, mas também o resto mundo. O ambiente do crime ainda é ligado ao masculino e as mulheres que entram neste meio são também vitimas de um machismo, por parte do sistema criminal e, principalmente, por parte da mídia, que as expõe de maneira irrelevante para a cobertura jornalística.

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