O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
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04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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O aumento pela busca do lado humanitário e ecológico da moda volta a trazer à tona os bastidores da indústria
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Ana Vitória Borges, Anna Ferreira, Beatriz Lauerti, Bruna Janz e Camilo Libério
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02/05/2021

Imagem: Joanna e Marc Bolland, CEO da Marks & Spencer, na East London Street coberta por roupas descartadas para realçar o problema de roupas indo para o aterro. 


O mercado da moda movimenta por ano cerca de 2,3 trilhões de dólares no mundo. São cerca de 100 milhões de toneladas de fibras processadas em escala global. Nesse setor, o Brasil é responsável pela 5ª posição mundial, e somente por aqui são geradas cerca de 100 mil toneladas de lixo todo ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Mas, a indústria têxtil, bastante rentável, está vendo seu antigo modelo Fast Fashion - produção em escala, rápida e que segue a lógica do descarte - perder espaço substancialmente à Slow Fashion - conceito de moda que pauta a ecologia no processo industrial, preservando as pessoas e natureza. Tendência ainda mais urgente com o início da pandemia.

Depois de décadas de um modelo de produção que prioriza o lucro, condições precárias de trabalho em várias partes do mundo e o descarte exacerbado de lixo, novas tendências, estratégias e meios de produção surgiram. Isso está ligado à pauta ambiental, que vem ganhando maior visibilidade devido às crises enfrentadas pelo mundo atualmente. A inovação pensada na redução dos impactos ambientais se faz necessária, assim como a consciência social, de quem produz e de quem consome. A relação entre moda e sustentabilidade está conquistando cada vez mais espaço nos últimos anos. A Internet, as mídias digitais e grande parte da geração Z são responsáveis pelo movimento que exige cada vez mais um olhar crítico para a procedência e uso cotidiano da moda.

A Abit realizou um painel online com o tema Como a Indústria da Moda Está Cuidando do Seu Lixo, no dia 1º de abril do ano passado. Para responder à pergunta “O que fazer com o que nós geramos?” Fernando Valente Pimentel, presidente da Associação, apontou que a melhor forma de não poluir é fazer isso desde o início, ter uma concepção do produto. Como observado por Pimentel, o começo dos processos deve ser modificado para uma possível solução da questão ambiental no mundo da moda.

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Intervenção artística War on Waste, por Hugh Fearnley-Whittingstall (Foto: https://www.edie.net/news/5/Hugh-Fearnley-Whittingstall-War-on-Waste-fashion-sustainability/)

Nesse sentido, a estudante de moda Marina Guimarães, 21 anos, que é aluna da Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, comentou que não existe uma disciplina específica na graduação sobre o assunto, mas os professores buscam incluir isso nos temas que abordam. “Os professores fazem a gente pensar nessa questão e a influência dela em todos os aspectos que estudamos. Em todas as matérias, a relação com o meio ambiente é evidenciada, além da realização de palestras sobre sustentabilidade”, relatou.

Marina afirmou que o maior problema hoje em dia é o uso da água. “Um jeans para ser feito, precisa ser lavado muitas vezes. Na hora de tingir os tecidos, também se gasta muita água”. Outro ponto destacado foi a volatilidade da moda e a geração de lixo. “Hoje você quer ter uma determinada blusa que está em alta, e semana que vem quer comprar algo que é uma tendência nova. A compra excessiva e o descarte incorreto das roupas contribuem para a poluição. As próprias marcas deveriam informar aos clientes o jeito certo de se desfazer da peça.”

Cerca de 80 bilhões de peças de roupas são adquiridas a cada ano, de acordo com o estudo “A injustiça ambiental global da moda rápida”. Nesse sentido, a estudante ainda evidenciou o papel relevante dos consumidores no processo de mudança para que o mundo da moda se torne um meio mais sustentável. “É preciso prestar atenção à vida útil das vestimentas. Comprar aquilo que realmente vai ser usado por um bom tempo”.

Ela também falou sobre tendências inovadoras para evitar a geração de lixo ou o descarte inadequado, e apresentou a técnica chamada de Upcycling.  “É possível juntar duas roupas, costurar e transformar em algo diferente. Não precisa nem ir longe. Por exemplo, posso pegar uma camiseta, cortar, e terei um top. A proposta muda totalmente e você fica com uma peça nova.” Dois exemplos da transformação do mercado são a Zara e a Forever 21, impactadas principalmente pelo modo insustentável de produção têxtil e sua decadência. Das duas empresas, a Zara resolveu se reinventar para uma abordagem mais sustentável aos olhos do público, assim como a Riachuelo, que deixa em suas propagandas e etiquetas informações de que aquela roupa foi feita em um processo mais eco amigável. Apesar disso, essas empresas ainda são acusadas de trabalho escravo/infantil para a produção de suas roupas. Já a Forever 21 resolveu continuar com sua abordagem Fast Fashion sem mudar nada sobre o propósito da empresa, o que resultou em perda de lucros e consequentemente na declaração de falência do conglomerado.  

Para Natalya Picheictt, fundadora da marca Slow Fashion FAMME, a primeira coisa que vem a sua mente ao pensar em sustentabilidade é progresso. “Assim como assuntos como veganismo levantam bandeiras ambientalistas, muitas vezes você pode olhar pra dentro do teu guarda-roupa mesmo e ver que a moda também é uma forma de você ajudar o meio ambiente sem fazer muito”, ressaltou. Reutilizar roupas ou pensar em doá-las ou mesmo comprar alguma peça pensando na sua longa duração já é um grande passo. Para a empreendedora, o mais difícil ao iniciar um modelo de negócios sustentável é saber a procedência dos materiais utilizados em sua marca. Além da pesquisa para encontrar os fornecedores certos, é um desafio também rastrear toda a cadeia.

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Com o avanço dessa nova tendência, novos movimentos surgem para atingir o maior número de adeptos. Um deles é o Fashion Revolution, ONG criada em 2013 que, com atuação em mais de 100 países, opera para uma moda limpa, segura e responsável. Como uma rede de designers, acadêmicos, escritores, comerciantes, marcas e qualquer pessoa “amante da moda”, realiza anualmente a Fashion Revolution Week, evento para o debate dos temas acerca da moda. Em 2021, a Semana que se encerrou no dia 25 teve como tema central os Direitos Humanos, Natureza e Revolução Sistêmica. Onde seu principal objetivo, em 7 dias de evento, é a mobilização de pessoas para além de suas realidades. Para Ana Carolina Olyveira, representante da Fashion Revolution no Brasil, a sustentabilidade ainda é uma bolha. Por que não pensar ao invés de um sistema linear, num sistema circular, onde os produtos sejam reutilizados? O conserto é uma das formas de se pensar ecologicamente. Segundo Ana Carolina, o evento também faz perguntas às próprias marcas. O fator pandemia fez com que as pessoas parassem para pensar sobre sua relação com o que vestem. “Pessoas começaram a olhar o que têm no guarda-roupas”. Por outro lado, também fez pessoas comprarem mais através da Internet.

A sustentabilidade não significa produtos mais acessíveis financeiramente. Pelo contrário. Roupas e acessórios provenientes do Slow Fashion ainda são inacessíveis para parcela de baixa renda da população. Mas cada vez mais a tendência é de transformação de hábitos. Segundo a empreendedora e representante do Movimento, parte dessa mudança vem do consumidor. É preciso também questionar e cobrar as marcas para serem mais flexíveis.

 

Ao mesmo tempo, frente a essa nova tendência comportamental, os preços atrativos do modelo Fast Fashion ainda sustentam a suposta necessidade de consumo desenfreado. Apesar desses delírios por peças de vestuário não ser algo recente, a consolidação dos e-commerces e a publicidade das marcas nas redes sociais, especialmente no Instagram, colaboraram para um aumento no frenesi pela prática. No entanto, para que essa rede de consumo se sustente e alguns possam se deleitar com uma nova vestimenta, muitas das empresas assumem um sistema de exploração e abuso de seus funcionários, mesmo dentre aquelas que se promovem com a sustentabilidade.

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O mercado da moda possui uma notória relação com a escravidão contemporânea. Em 2018, a fundação Walk Free, através de uma pesquisa efetuada pelo The Global Slavery Index, apontou a moda como o segundo setor com maior exploração de trabalho análogo a escravidão. No mesmo ano, o Índice de Escravidão Moderna divulgou dados mostrando que dos 354 bilhões de dólares em itens importados para países do G20, - produzidos através de mão de obra escrava – um terço são peças de vestuário.

Não são poucas as marcas que já estiveram ou ainda estão relacionadas a práticas de exploração da força de trabalho, ocorrendo principalmente em países subdesenvolvidos. Durante a década de 1990, a Nike foi incriminada por utilizar mão de obra infantil em suas fábricas na Ásia. Nos últimos dez anos, a Renner, Marisa e Pernambucanas estiveram envolvidas com a exploração de costureiros bolivianos trabalhando de forma análoga à escravidão. Sem contar a Zara, que já foi flagrada mais de três vezes submetendo trabalhadores estrangeiros a situações degradantes e de abuso.

A ONG Repórter Brasil forneceu dados apontando que no território nacional mais de 35 marcas do setor estiveram relacionadas ao trabalho escravo e, desde 2010, foram resgatados mais de 400 costureiros e costureiras em condições análogas à escravidão. O relatório da Walk Free também indicou a existência de mais de 40 milhões de pessoas colocadas nessas condições de trabalho dentro do setor da moda - considerando um cenário mundial – sendo que 70% desses trabalhadores são mulheres.

Esses índices expressivos se devem a cadeia de produção da moda, especialmente àquela conhecida como fast fashion, que almeja maior produtividade em suas fabricas pagando menos pelos serviços e obtendo maior lucro com as vendas no varejo. Essa tática de produção é a mais seguida pelo mercado, o que já proporciona a venda de aproximadamente 80 bilhões de peças de roupas por ano ao redor do mundo. Para a manutenção desse sistema, muitas marcas de moda passaram a migrar suas fabricas para países com legislação mais favoráveis – como Índia, China, Coreia, Bangladesh entre tantos outros.

Tal medida já proporcionou, por exemplo, que Bangladesh se tornasse o segundo maior exportador de vestuários do mundo, movimentando US$ 28 bilhões na economia do país, conforme informações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Contudo, a invasão da indústria da moda nesses países não traz apenas benefícios econômicos. Em 2013 ocorreu a tragédia do edifício Rana Plaza, localizado na periferia da capital de Bangladesh, na qual uma construção de oito andares desabou deixando 1.133 pessoas mortas; nela 2 mil funcionários que recebiam aproximadamente R$360 para trabalhar - durante 10 horas em seis dias na semana - para fabricas de cinco confecções estadunidenses.

A tragédia do Rana Plaza foi o estopim para o surgimento da Fashion Revolution. Ana Carolina Olyveira explica melhor acerca das reflexões promovidas pela campanha: “A #quemfezminhasroupas é uma das principais do Fashion Revolution. Quando a gente pergunta "quem fez minhas roupas?" a gente quer saber o nome da pessoa que faz a sua roupa. Às vezes respondem "ah, foi tal confecção", mas quais foram as condições de trabalho nessa confecção? Como essas pessoas trabalham? Do que as minhas roupas são feitas? Quem cortou minhas roupas? Quem bordou minhas roupas? Então é um questionamento muito mais a fundo que se estende.”

Sobre o mercado nacional, ela ainda diz: “entre 2016 e 2018, a cada cinco trabalhadores resgatados nessa situação análoga à escravidão, quatro eram negros. Então, é além, você vai percebendo que a questão vai ficando mais profunda, porque aí vira uma questão estrutural”.

O Brasil é o quarto maior produtor de roupas mundial, faturando de US$ 55,4 bilhões em 2014, proporcionando 1,6 milhão de empregos e tendo 85% da produção consumida dentro do país, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). E assim como em Bangladesh, existem inúmeras histórias de flagras e tragédias envolvendo exploração de mão de obra escrava – principalmente estrangeira oriunda da Bolívia – nas fábricas das confecções.

Em 1995, o Brasil foi uma das nações pioneiras em reconhecer oficialmente as práticas de trabalho forçado em sua extensão. Institucionalmente o país possui certo programa de combate a essa forma de exploração, com uma legislação regulamentando práticas de trabalho, um Código Penal prevendo pena de 2 a 8 anos para o cidadão que explorar seus funcionários e com a “Lista Suja” – um recurso para registrar e divulgar empregadores irregulares.

Já em 2005 houve uma CPI do trabalho escravo na Câmara Municipal de São Paulo, proporcionando que Auditores-Fiscais do Trabalho pudessem usar o poder público no combate ao trabalho escravo na indústria paulista de moda. Em 2009, também houve articulações políticas para a proteção do trabalhador imigrante, o que resultou na homologação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções.

Além das medidas em âmbito político, ONG’s e instituições colaboram na conscientização da população acerca do tema. O aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, reúne informações de diversas marcas sobre seus envolvimentos na exploração de mão de obra escrava e avalia as ações adotadas pelos varejistas do país; o que permite ao consumidor se conscientizar sobre a produção da peça que será consumida.

Diversos projetos também surgem diariamente, tornando-se fortes aliados na divulgação e na conscientização acerca dos problemas no mundo da moda. Uma iniciativa que surgiu nas redes sociais é o Devagarzin, instagram criado por Srah Rabello como trabalho de conclusão do curso de publicidade, em 2017. No qual tem o propósito de informar os consumidores sobre as marcas, a partir de análises de campanha. Dando assim, a oportunidade para os consumidores de pensar e refletir se o que consomem é o mesmo em que acreditam. Para ela, as principais mudanças hoje se dão através da Internet e de propostas como a dela: “a Internet e as mídias sociais trouxeram poder pro consumidor, [...] que começa a entender o papel dele de exigir das marcas o que ele quer. Então agora o poder vai mais para a mão de um consumidor que tem melhor acesso à informação e que entende mais as consequências da sustentabilidade. Com isso, o movimento sustentável, o movimento slow fashion, vêm crescendo muito”.

Outro projeto que se consolidou através das redes sociais é o Não É Moda, instagram criado no início de 2020 junto com o podcast Esse Não É Um Podcast Fashion, por Gabriel Coutinho e Rafaella Parma diante da insatisfação de não encontrar tantas pessoas expondo tais problemas de maneira popular. Para eles, a melhor maneira de mudar esse cenário é através da cobrança das marcas e também do aprendizado. “é uma questão de transparência, de cobrar, de perguntar “quem são os seus trabalhadores?”. Você está remunerando para que eles tenham uma vida digna? Que eles tenham um mínimo de condições de sobreviver? Você está dando condições para esse(a) trabalhador(a) também poder consumir uma outra moda, ou ele(a) está só fazendo porque precisa do mínimo pra poder dar comida pros filhos?”.

A tendência mundial de mudança comportamental no mundo da moda veio para ficar. O próprio movimento Slow Fashion e a urgência quanto ao cuidado ambiental se tornaram ainda mais evidentes, levando muitas pessoas a se questionarem sobre o modo pelo qual se relacionam com suas próprias roupas e acessórios. Esse movimento, influenciado principalmente pelas gerações Z e Millenials, é um novo respiro no modo insustentável de produção têxtil, nas questões trabalhistas e no pensamento cíclico de consciência, desde o início do processo até seu final. A reutilização dos artigos de vestimenta é uma âncora também para a fiscalização e exigência de mais e mais consumidores conscientes para que as marcas erradiquem a escravidão contemporânea.

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Brasil teve 12 denúncias por hora em 2020 segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
por
Beatriz Lauerti
|
06/04/2021

    A violência física contra as mulheres é a mais conhecida, mas não é a única. Existem pelo menos 5 tipos previstos na lei Maria da Penha, sancionada em 2006 e que visa prevenir e proteger o público feminino dessas hostilidades.

    Além das atitudes que interfiram na integridade corporal, a agressão acontece na forma psicológica, sexual, patrimonial e moral. Relacionamentos abusivos, assédios, estupros, privação ou destruição de bens, recursos pessoais e outros relacionados a dinheiro, e calúnias, são alguns exemplos na prática. Não ocorrem isolados uns dos outros e são considerados violação dos direitos humanos.

    Atualmente, o movimento feminista tem ganhado mais força, e os outros modos de opressão têm sido disseminados. A informação é uma parte importante na luta em favor da causa.

    Um exemplo disso pode ser visto no caso Marielle Franco. A vereadora, mulher e negra, foi assassinada no dia 14 de março de 2018, vítima de violência política. A fatalidade gerou repercussões e manifestações em larga escala.

    A investigação permanece inconclusiva e estão em aberto, 3 anos após o ocorrido, as principais dúvidas, como quem foram os mandantes da execução e o motivo. Outro questionamento que pode ser feito é: porquê os conhecimentos sobre a causa, que afeta uma grande parcela das cidadãs do mundo inteiro todos os dias, dependem de tragédias para serem propagados com maior intensidade?

    Esse é um ponto que ainda precisa evoluir, apesar das conquistas que a luta feminina vem alcançando. Outro fato que explicita essa necessidade de mais avanço são os dados de um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde. A pesquisa constatou que um terço das mulheres do mundo, o que representa cerca de 736 milhões de pessoas, já sofreram com a violência de gênero.

    Ainda, a OMS destacou que os agressores geralmente são os parceiros ou indivíduos próximos. Thedros Ghebreyesus, diretor da entidade, revelou que do número exposto, 641 milhões dos crimes foram de responsabilidade do companheiro.

    As conclusões mostraram que o sofrimento tem começado cada vez mais cedo e das adolescentes de 15 a 24 anos, 25% já esteve envolvida em algum episódio. O líder também comentou que esses casos estão presentes em todas as culturas e países. Isso é visto na prática, a partir de depoimentos de meninas dessa faixa etária.

    A estudante de Moda Marina Guimarães, de 20 anos, citou circunstâncias vivenciadas em festas universitárias, e na visão dela “é um ambiente que concentra algumas dessas situações com frequência, principalmente o assédio, já que quase todas as vezes presencia garotos insistindo ou até mesmo forçando meninas a beijá-los, por exemplo”.

    Já a estudante de Psicologia, Ingrid Guillen, também de 20 anos, relatou o medo de andar sozinha na rua, especialmente para ir até a academia. “Eram 4 quadras para chegar na SmartFit, e eu recebi 5 cantadas, ou seja, mais de uma por quarteirão. Foi um dos dias que fiquei com mais medo de voltar para casa depois do treino, e eu sempre ficava muito nervosa, já que roupa de academia é apertada e marca mais o corpo. Eu nunca podia ir de shorts, porque já faziam tudo isso comigo de calça, imagina se eu estivesse de shorts. “

    Segundo Thedros, os desdobramentos da pandemia de Covid-19 agravaram o cenário. Ele disse que os governos devem possibilitar maior acesso e investir mais em oportunidades para essa parte da população, e assim reforçar o combate à violência.

    Além dos casos citados, milhares de outros acontecem a todo momento. 12 denúncias foram feitas a cada hora no Brasil em 2020, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o que mostra a grande incidência da opressão contra as mulheres, dentro e fora das casas e do núcleo familiar delas.

No combate à violência contra a mulher, A GAZETA lança projeto "Todas Elas"  | A Gazeta

Moça protesta em favor do combate à violência contra as mulheres.

 

    Essas informações e os relatos só evidenciam a insuficiência de recursos para realmente combater todos os modos de violência contra o público feminino. Ficam explícitas a necessidade e a urgência em melhorar o apoio, os meios, auxílios e instrumentos para ajudar as vítimas e para evitar que o número de atingidas aumente cada vez mais.

    A intervenção do governo e de líderes mundiais é essencial, principalmente quanto ao investimento em educação em todos os países, e em políticas públicas de defesa e proteção das mulheres. A comunidade e a imprensa também têm um papel importante nesse processo.

    Exemplos de atitudes que seriam colaborativas são a criação de programas que desconstruam o machismo enraizado na sociedade, o apoio a entidades dedicadas à causa, a divulgação de informações para que todos entendam a gravidade do assunto, reforçar a relevância da união para lutar contra isso, incentivos para que os agressores sejam denunciados, e todos os esforços possíveis que contribuam e possam salvar vidas femininas.

 

 

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Mulheres trans vivem uma luta constante contra o preconceito do Feminismo Radical, o Radfem.
por
Luiza Nascimento
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30/03/2021

Quando falamos sobre feminismo, a imagem que vem à mente é um grupo de mulheres unidas, lutando contra o patriarcado e defendendo umas às outras com unhas e dentes. Essa imagem, no entanto, está longe de ser a realidade vivida pelo movimento, que ao longo das décadas se dividiu.

Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas.
Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas. | Foto: Reprodução.

Essa necessidade de separação surge das divergências de luta e da visão que cada mulher possui do movimento feminista e de seu papel na sociedade. Grupos como o feminismo liberal, feminismo negro e o feminismo radical (o popular Radfem), buscam o mesmo objetivo, porém, com meios diferentes. 

 

Mas para aqueles que acreditam que os fins justificam os meios, essa noção pode estar abalando a luta feminista. Com essa divisão, surge a marginalização das vertentes dentro do feminismo e a homogeneização da luta. O movimento se torna exclusivo para aquelas que atendem as expectativas de cada vertente. 

 

Um dos grupos mais afetados por essa exclusão é o de mulheres trans, que lutam para serem reconhecidas como mulheres e detentoras de pautas feministas.  

O Radfem e o Movimento Trans

O Radfem surge por meio de obras de autoras como Shulamith Firestone (A dialética do Sexo), Kate Millet (Política Sexual) e Simone de Beauvoir (O segundo sexo). Elas abordam qual seria a origem do patriarcado e do machismo enraizado na sociedade, afirmando que essa busca é necessária para a mudança do comportamento social e político, analisando questões como elementos históricos e sociopolíticos, contrapondo-se às explicações e abordagens deterministas, como por exemplo o fator biológico. 

 

Essa vertente que se popularizou na década de 70, contudo, possui suas próprias derivações. Com o advento da internet, a comunicação de movimentos sociais ganhou força e atraiu novas pessoas para esses grupos. O Radfem se tornou um movimento dentro da internet com seu próprio pensamento. 

 

O grupo aborda atualmente a questão biológica como um fator determinante na construção da imagem do feminino. Elas defendem que não há subjetividade em ser mulher e que o preconceito surge a partir do gênero associado ao nascimento. O movimento afirma que suas ideias se baseiam na teoria clássica do feminismo radical, utilizando autoras como Robin Morgan, Julie Bindel, entre outras, como exemplo. 

 

A transfobia se tornou um dos sintomas do Radfem atual, que divulga por meio das redes sociais o pensamento que pessoas trans não possuem uma identidade verdadeira. 

 

Segundo elas, essas mulheres não podem se considerar parte do gênero feminino, pois em sua nascença são homens. Há, aquelas que acreditem que a mulher trans é uma reação da sociedade patriarcal à luta feminista, que pretende desestabilizar suas pautas com sua participação. Homens trans, por sua vez, podem ser associados a mulheres que não aceitaram seu papel como oprimidas e transformaram-se nas opressoras. 

 

Para Djamila Ribeiro, no entanto, as performantes do Radfem, atualmente, não compreendem o que foi escrito pelas primeiras autoras. Para a filósofa, houve uma distorção de suas ideias, o que resultou em um movimento transfóbico. 

O preconceito na prática 

Para compreender, na prática, como a transfobia por parte do movimento Radfem impede ou atrapalha mulheres trans de participarem das pautas feministas, foram entrevistadas Nicolly e Pâmela, duas mulheres trans que se relacionam com o feminismo de maneiras distintas. 

 

Nicolly iniciou sua transição aos 18 anos, após sair do colégio. Segundo ela, a partir do momento que começou a tomar seus hormônios adquiriu liberdade. Para ela, entretanto, se assumir como uma mulher foi algo difícil, pois ao longo de sua vida sofreu preconceito em todos os lugares que adentrou, seja para trabalhar ou em seu convívio. Mas alerta para o preconceito que sofreu quando era apenas um jovem garoto gay, sendo algo explícito e mais agressivo. 

Segundo Nicolly, ela compreendeu seu papel como mulher na sociedade quando começou a fazer programa, em suas palavras “fazer programas como trans foi a maneira que conheci a vida”. Quando o assunto feminismo foi abordado, ela afirmou que pautas feministas nunca fizeram parte de sua vida, pois durante sua transição e sua vida como mulheres, essas questões jamais se aproximaram de sua realidade.  

 

O feminismo é algo distante para ela, porém, algo que a sociedade trata a todo o momento. De acordo com o que disse: “tudo é feminismo hoje em dia, mas isso nunca me afetou como mulher trans”.  

Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis.
Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis. | Foto: Reprodução/Instagram.

A jovem paulistana sente a segregação entre mulheres cis e trans, seja dentro do movimento feminista ou na sociedade em que vive. Ela afirma que emprego para mulheres cis é algo fácil, assim como suas relações, enquanto pessoas trans, em geral, sofrem para serem reconhecidas. A maneira que encontra para que uma mudança dentro do feminismo ocorra é que surja o feminismo trans, assim como o feminismo negro, o intuito é abordar as pautas de gênero direcionando-as para mulheres. Em sua visão, não apenas o Radfem, mas todo o movimento, exclui mulheres trans de suas decisões, deslegitimando suas mudanças e necessidades. 

 

Se para Nicolly o feminismo é algo distante, para Pâmela é uma pauta que está presente desde sua adolescência. Sua transição começou quando tinha apenas 15 anos de idade e, de acordo com ela, foi algo turbulento e complicado. 

 

Sua família resistiu a ideia desde o princípio, porém Pâmela estava decidida a se tornar quem nasceu para ser. 

 

Na escola, afirma que participou ativamente de seu grêmio estudantil e ingressou nas pautas feministas abordadas pelo grupo. Na época, já sabia ser uma mulher e não se escondia de seus colegas. Essa participação, entretanto, foi dificultada por figuras importantes de sua escola, como sua professora de Ciências Sociais e a Coordenadora da escola.  

 

Segundo Pâmela, as duas deslegitimavam sua participação por ser menino e reafirmavam a ideia de que mulheres são mulheres por determinação biológica. Ela relembra que ambas faziam parte do pequeno grupo Radfem que existia em sua região, porém, os ideais do movimento não eram de seu conhecimento. 

 

Foi apenas quando ficou mais velha e concluiu sua transição, que Pâmela compreendeu a necessidade de lutar contra um movimento de repressão e exclusão dentro do feminismo. Em suas palavras “o feminismo pertence a todas e a pauta de todas as mulheres que, em algum momento, sofreram com a opressão da sociedade por seu gênero, seja cis ou trans.” 

 

Ela ingressou na faculdade de Ciências Sociais aos 22 anos e iniciou um pequeno blog durante seu período de estudante. A jovem, no entanto, se viu forçada a excluir suas redes sociais e sua página após ataques frequentes na internet, associados a grupos feministas de dentro da universidade. A partir desse momento, começou a escrever para o pequeno jornal impresso pelo Movimento de Feministas Negras de seu campus.  

 

Pâmela diz que as feministas negras são as únicas que se aproximam da dor de uma mulher trans, pois reconhecem o sofrimento que é ser deslegitimado em seu campo político e social, de forma opressora e histórica.  

 

“Em um país onde negros são assassinados com frequência ao andarem por suas comunidades ou carregarem um guarda-chuva e mulheres trans são espancadas, violentadas e destinadas a prostituição, se unir por uma causa é a solução que mulheres negras e mulheres trans encontraram para ganharem força. Mulheres sozinhas não fazem verão, mas quando se unem provocam mudanças. É triste observar grupos que nos ignoram e excluem de pautas que nos interessam ou se quer ouvem nosso sofrimento, nos diminuindo a uma questão biológica. Sei que homens fazem coisas terríveis para essas mulheres e que o sofrimento pode gerar raiva e angústia, mas também sei que generalizar não é a solução, pois conheci feministas radicais que foram duríssimas comigo e me humilharam, mas outras que apresentaram a simples vontade de mudar o que vivemos.” 

 

Pâmela acredita que a solução não é o feminismo trans, mas sim, a unificação de ideias. Ela acredita que o feminismo deve expandir para dentro de comunidades, para o interior do País e da comunidade LGTQIA+, quebrando a homogeneização existente. 

Contraponto ao Radfem

Segundo Lola, do blog feminista Escreva Lola Escreva, o movimento feminista precisa dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e o patriarcado. E acredita que o movimento necessita compreender o papel do machismo na vida de meninos e pessoas trans, pois assim como as mulheres são oprimidas e presas a um estigma social, homens também participam dessa opressão.  

 

Durante uma entrevista ao Universa, Uol, sobre a resistência de feministas aceitarem mulheres trans nas pautas, ela observa que um dos maiores problemas entre as Radfem e mulheres trans, é o uso de estereótipos femininos, construídos por uma sociedade machista, por parte das mulheres trans. A feminista aponta que o grupo de feministas radicais não compreende as razões que essas mulheres possuem para utilizar desses padrões. 

 

Lola afirma que utilizar batom, salto, maquiagem, e outras características que são sempre atribuídas por mulheres é uma maneira da mulher trans se afirmar como mulher. Segundo ela, uma mulher cis não necessita disso, pois quando abandona esse padrão é ainda mulher e seu gênero jamais é questionado, mas sim sua feminilidade. 

 

A feminista reafirma que o feminismo deve ser para todas, para que assim ele mude algo dentro dessa construção patriarcal e machista que vivemos. Abraçar mulheres trans, as suas pautas e afirmar seus direitos, exigindo sua segurança, é trazer uma nova face ao feminismo. 

 

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O movimento feminista já teve muitas conquistas. Entenda como ele é muito necessário ainda hoje.
por
Niara Viana de Brito
|
29/03/2021

A luta feminista: novidade que perdura por muito tempo

 

A luta feminista é um movimento social, político e econômico que perdura até os dias de hoje, com o objetivo de discutir e lutar por direitos igualitários das mulheres. O movimento feminista busca, principalmente, a igualdade de direitos, oportunidades e tratamento entre homens e mulheres, além de lutar contra a inferioridade e opressão que as mulheres são submetidas na sociedade até os dias de hoje.

Para entender melhor como esse movimento persiste até hoje, é necessário, primeiro, saber como surgiu essa luta, suas conquistas e sua caminhada histórica.

Como surgiu o movimento feminista e suas as ondas

Uma das maiores influências para a criação do movimento foi a Revolução Francesa e as alterações sociais que começaram a acontecer nesta época, durante o século XIX. A partir das mudanças causadas pela Revolução, as mulheres começaram a entender as desigualdades políticas e de direitos a que eram submetidas e passaram a questionar, lentamente, sobre os modelos sociais em que viviam. Esse período ficou conhecido como a primeira onda do feminismo.

Nessa mesma época, nos Estados Unidos e, principalmente, no Reino Unido, mulheres começaram a se reunir em manifestações para garantir o direito à participação na vida política, direito de votos femininos nas eleições, aos estudos e melhores condições de trabalho. Dando assim, origem ao chamado movimento sufragista.

No período entre os anos 60 e 90, aconteceu a segunda onda do feminismo. Neste período, a luta pela igualdade social e de direitos se intensificou e as mulheres passaram a questionar todas as formas de submissão e inferioridade que enfrentavam.

Além disso, fizeram parte das questões debatidas pelo movimento nessa fase, as decisões sobre liberdade sexual, maternidade e direitos de reprodução. Uma das principais discussões nessa época girava em torno das opressões sofridas e do motivo de existirem tantas formas diferentes de opressão a que as mulheres eram submetidas. Ainda nesta época, começou a surgir a ideia da coletividade, da força da união das mulheres enquanto movimento capaz de provocar alterações na sociedade.  Mulheres negras e lésbicas também se juntaram ao movimento feminista, trazendo ainda mais força feminina, novas demandas e novas discussões para o feminismo.

A terceira onda feminista é o período iniciado a partir dos anos 90, que perdura até hoje, podendo ser definido como a busca de total liberdade de escolha das mulheres em relação às suas vidas. Nessa fase, surgiu o termo interseccionalidade (ou feminismo interseccional), usado para se referir às diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer, sendo em função de sua raça, classe, comportamento ou orientação sexual, por exemplo.

Nesta fase, foi dada uma maior importância para as trocas de informações e debates entre uma maior quantidade possível de mulheres, cada qual com suas condições e exigências especificas, trazendo mais visibilidade para o movimento feminista. Entendeu-se, também, que os comportamentos e submissões enfrentados pela mulher são resultados de construções sociais ao longo de vários anos, deixando espaço para serem discutidos e reconstruídos nessa luta.

Seus grupos e ideais feministas

Algumas questões importantes para a luta feminista são: o fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres; igualdade na participação política do país, tanto na tomada de decisões quanto na ocupação; problemas de saúde ligadas diretamente às mulheres, como sexualidade e a discussão sobre o aborto; direitos relacionados a maternidade e a amamentação; luta contra estereótipos; e combate aos diferentes tipos de assédio e violências sofridas pela mulher, como moral, sexual, psicológica, dentre outras.

O movimento também leva em consideração questões específicas de alguns grupos de mulheres: como negras, lésbicas, periféricas, prostituas, indígenas e transexuais. Cada grupo possuiu uma demanda diferente a mais para ser questionada e discutida em relação às suas vidas e condições.

Suas principais conquistas e lutas

Em 1791, no contexto da Revolução Francesa, foi publicada a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que exigia a igualdade jurídica entre homens e mulheres, escrita por Olympe de Gouges.

Em 1827, as brasileiras obtiveram autorização para estudar, mas apenas o ensino elementar. Foi a brasileira Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte, a pioneira a levantar a bandeira da educação. Em 1879, as mulheres receberam a autorização do governo para cursar o ensino superior, porém, as que seguiam o caminho eram criticadas. Apenas em 1887 a primeira brasileira recebeu um diploma de ensino superior. Rita Lobato Velho Lopes se formou na Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1911, o dia 8 de março ficou marcado como Dia Internacional da Mulher, devido a morte de cerca de 130 operárias em uma fábrica têxtil de Nova York, quando as mesmas se revoltaram pelas más condições de trabalho que estavam submetidas. Apesar da data só ter sido oficializada em 1975, ela é relembrada todo ano como um dia de lutas sociais, políticas e econômicas das mulheres.

Em 1918, as mulheres do Reino Unido tiveram o direito ao voto, após uma extensa luta feminista gerada pelo movimento sufragista, com a fundação União Nacional pelo Sufrágio Feminino, criada pela educadora britânica Millicent Fawcett. Já no Brasil, em 1932, o voto feminino foi liberado para mulheres casadas com autorização dos maridos, viúvas e solteiras com renda própria. Essas restrições foram removidas em 1934.

No dia 27 de agosto de 1962, há apenas cinquenta e cinco anos atrás, foi sancionado o Estatuto da Mulher Casada que, entre outras coisas, instituiu que a mulher não precisaria mais da autorização do marido para trabalhar, receber herança e, em caso de separação, ela poderia requerer a guarda dos filhos. Antes disso, o cônjuge precisava autorizá-la a exercer tais atividades. No mesmo ano, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil, Apesar de não ser o melhor método contraceptivo, o medicamento trouxe autonomia à mulher e iniciou uma discussão importantíssima sobre a liberdade sexual feminina.

Em 2006, a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06) foi criada para reprimir a violência familiar ou doméstica contra as mulheres. A lei trouxe regulamentações específicas em relação à punição e tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei recebeu este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher que sofreu violência doméstica do marido durante o casamento e ficou paraplégica em razão das violências sofridas, tornando-se um símbolo da luta contra a violência doméstica no país.

O movimento atualmente

De uns tempos para cá, o tema vem se espalhando e ganhando forças em vários lugares, e isso se deu, sobretudo, por causa das redes sociais. “As plataformas online proporcionaram a propagação das experiências e vivências diárias, em relação ao machismo e patriarcado, de diversos grupos de mulheres”, diz Tatiane Viana, estudante de Artes Visuais na UNESP de Bauru e participante do coletivo feminista do campus.

“Sejam elas lidando com a desvalorização no mercado de trabalho, casos de assédio, estupros, violência doméstica, entre outros” acrescentou Tatiane. Assim, a ideia da coletividade pôde unir ainda mais as mulheres e fortalecer o movimento, dando maior relevância e aumentando as demandas de disseminação sobre o assunto.

A importância dessa luta

Apesar de todas essas conquistas e, aos poucos, a valorização do movimento, a luta feminista perdura muito atualmente, não estando perto de acabar. “Isso porque muitos dos direitos das mulheres ainda não foram debatidos e oficializados, como a discussão sobre o direito de aborto no Brasil”, comenta Letícia Barbosa, estudante de biologia e ativa no coletivo feminista da UNESP, no campus de Santos.

De modo geral, o feminismo busca desconstruir os ideais machistas e patriarcais que estão enraizados na sociedade desde muito tempo, e luta por uma comunidade mais igualitária na questão de acesso à direitos entre todos. “Longe de pregar a dominação das mulheres sobre os homens ou odiar o sexo oposto, o feminismo busca apenas igualdade de gênero”, enfatizou Letícia.  

 

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Mesmo depois de tantos anos de luta, gênero feminino ainda sofre para obter seu espaço ao fazer e falar de automóveis no Brasil.
por
Thiago Pereira
|
22/03/2021

Campanhas, criação de ongs, manifestações... A luta das mulheres por uma sociedade mais igualitária não é novidade para ninguém e já vem atravessando séculos. É fato que o cenário não é o mesmo de tempos atrás; as mulheres já conseguiram conquistar diversos direitos, como ingressar no mercado de trabalho e ter sua própria independência, mas isso não significa que dentro desse âmbito não sofram com os preconceitos e dificuldades de viverem em uma sociedade enraizada em conceitos patriarcais e machistas.

 

Dados do Ministério do Trabalho mostram que a participação feminina no mercado de trabalho formal atingiu o patamar de 44% em todo o território nacional em 2018; mesmo assim, apenas 3 em cada 100 CEOs no país são mulheres. Dados como esse comprovam que, mesmo depois de muitos anos de luta para que se tornasse um ambiente mais justo e igualitário em termos de oportunidade e valorização do trabalho, o mercado continua sendo um meio muito machista e sexista. Dentro desse cenário, algumas áreas estão mais avançadas e outras menos, no que diz respeito aos tópicos apresentados, e uma das que estão menos avançadas é a automotiva, aquela que envolve tudo aquilo relacionado a automóveis e afins. Piadas que envolvem a questão de gênero ainda são muito recorrentes e a ideia de que "mulher não entende de carro" também.

 

A indústria automotiva conta com 83% dos cargos em empresas de cadeia produtiva ocupados por homens, informam dados da pesquisa Presença Feminina no Setor Automotivo, realizada pela Automotive Business em parceria com a MHD Consultoria no segundo semestre de 2017. Um fato que, além de problemático simplesmente pela presença do preconceito relacionado ao gênero, é prejudicial para as próprias empresas, porque como é óbvio, as mulheres fazem parte do mercado consumidor, e por isso é imprescindível que essas empresas estejam alinhadas às expectativas e filosofias desse público, e ninguém melhor do que uma mulher para saber o que outra mulher espera de um produto. Em casos como esse, a representatividade ajuda a superar não somente barreiras sociais, mas também comerciais, gerando maior rentabilidade.

 

Infelizmente e obviamente, o jornalismo automotivo, assim como o segmento em que se apoia para produzir seus conteúdos, também ainda é um meio muito opressor, mas com muito esforço e uma qualidade de trabalho impecável para provar o que não precisaria ser provado, alguns nomes vêm ajudando a transformar essa realidade, mostrando para o público que mulher entende sim de carro, que elas devem estar inseridas nesse cenário e que o conteúdo produzido por elas faz frente a qualquer outro produzido por qualquer um.

 

Um desses nomes é Michelle de Jesus. Com experiência de 15 anos na oficina mecânica do pai, ela também foi piloto automobilístico por mais de 10, apresentadora do programa Oficina Motor, veiculado no canal +Globosat e colunista de revistas especializadas em automóveis. Hoje, apresentadora do seu próprio canal de Youtube (que já conta com mais de 120 mil inscritos) e Head de Marketing de uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, ela ainda consegue ajustar sua rotina à um MBA executivo no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Multifacetada como se vê, Michelle conta que, ao longo de sua carreira, sempre viveu e conviveu com vários homens e, por isso, enfrentou muitas dificuldades simplesmente pelo fato de ser mulher, mas nunca deu importância à elas. “Meu conselho é para que as mulheres não fiquem dando voz à essas pessoas, que elas simplesmente façam e sejam melhores que elas, porque é inevitável o talento, a capacidade, quando você tem e mostra seu talento e capacidade, é inevitável que você consiga seu espaço”.

 

Um verdadeiro caso de sucesso, Michelle, que já havia feito seu primeiro milhão antes dos 30 e viajado o mundo inteiro pilotando, testando e avaliando os carros mais legais do mundo, conta que a necessidade de empreender e aproveitar as oportunidades que lhe apareciam foram as principais “motivações” para ela alcançar o patamar onde está hoje. “Às vezes a gente fica buscando algo com o qual nos identificamos, mas na verdade o que temos de fazer é abraçar as oportunidades que aparecem e fazer delas as melhores oportunidades do mundo. Eu fiz isso lá atrás”. Sem formação de Jornalismo, ela conta também que a experiência em frente às câmeras foi fundamental para torná-la uma comunicadora. “Eu não era jornalista, não era apresentadora; fiz alguns cursos e treinamentos então acabei me especializando, virando uma apresentadora, influencer, garota propaganda (...) fiz vários comerciais, trabalhei pra várias marcas, várias montadoras, enfim, as coisas foram acontecendo meio que de forma natural, pelo fluxo e pela persistência de querer dar certo. Tanto faz a área, o que importa é fazer dar certo”, afirma.

 

Ao ser questionada sobre a possibilidade de estudantes de Jornalismo fazerem algo para tornar o cenário automotivo mais “justo”, Michelle é certeira: “eu acho que justiça é você batalhar pela mínima oportunidade que se tem, ela pode ser pequena, boba ou até sutil, às vezes passa desapercebida por algumas pessoas, mas aí você pega essa oportunidade que ninguém deu valor e faz aquilo que ela propõe de maneira muito bem feita, assim você vai conseguir ter voz, alcançar o maior número de pessoas possíveis, não se esquecendo sempre de fazer isso de uma forma justa e honesta com a informação. Acho que pra qualquer profissional, jornalista ou não jornalista, a questão de justiça é essa, é pegar algo mínimo, nem que seja dentro do seu bairro, e transformá-lo em algo verdadeiro, transparente e de grande valor para a comunidade”, finaliza.

Michelle de Jesus avalia Volkswagen Virtus GTS
Michelle de Jesus avalia o Volkswagen Virtus GTS. / Foto: Canal Michelle J

Além de Michelle, Giu Brandão, apresentadora do canal MundoSobreRodas, no YouTube, e Silvia Garcia, apresentadora do canal da Webmotors, que se encontra também no YouTube e representa uma gigante no meio de compra e venda de automóveis e motocicletas, também produzem um conteúdo de altíssima qualidade. É claro que muitas outras também o fazem, mas nesse texto seria impossível citar todas, elas são muitas e cada vez mais, o que é ótimo; mas para quem gosta ou precisa de dicas sobre o assunto, o conteúdo dessas mulheres é um prato cheio, e consumi-lo é um favor a si mesmo.

 

 

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