A trajetória de brasileiros e irmãos latinos que atravessam a fronteira México-Estados Unidos em busca de novas oportunidades.
por
Rayssa Paulino
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18/11/2025

Por Rayssa Paulino

 

Isadora Ferreira é natural de São Paulo e tinha apenas dezessete anos quando deixou amigos, família para trás, buscando moldar o novo futuro em solo estadunidense. Se tornou uma a mais no meio dos cerca de 230 mil brasileiros, segundo dados do instituto Pew Research Center de 2022, que vivem ilegalmente nos Estados Unidos. Sua motivação era o noivo, que é um cidadão americano e a única pessoa que conhecia no hemisfério norte.

A forma que usou para entrar no país é talvez a mais conhecida entre as não convencionais - ou ilegais. O cai-cai, termo comum para este tipo de travessia, é liderado pelo “coiote”, uma pessoa que guia um grupo cheio de sonhos e esperança pela fronteira debaixo de chuva, sol, vento, cansaço e inúmeras intempéries - climáticas ou humanas- por dias a fio até chegarem à fronteira e se entregarem à imigração americana. Ali estão de fato a própria sorte, podem ser aceitos ou deportados.

Quinze de janeiro de 2023 foi o dia D. Isadora acordou muito antes do sol nascer, às quatro horas da manhã, para enfrentar a experiência que poderia mudar sua vida para sempre. Se arrumou, pegou sua mochila e saiu rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos acompanhada de Vanessa e José Rocha, casal de mineiros que se juntaram à garota pelo coiote. O peito tomado de ansiedade. 

O check-in já estava feito e a próxima parada seria uma escala na Colômbia. Já em outro país, o tempo de espera não foi tanto, apenas três horas. Próxima parada, Guatemala. Ali a situação ficou um pouco mais apreensiva, a informação que chegava era de que a imigração estava mais chata, muito em cima e deportando passageiros. Já estava ali e não poderia arriscar, por isso esperou dentro do aeroporto até o horário do voo. Próxima parada, El Salvador. Neste momento o medo tomou conta, teria que sair do aeroporto e enfrentar a imigração. O que você veio fazer neste país? Quantos dias vai passar e quanto dinheiro tem com você? Vai ficar hospedada onde? Tem um endereço? Foram algumas das perguntas feitas pelos agentes na entrevista. Por sorte, Isadora tinha algumas informações e as que não tinha, conseguiu verificar rapidamente pelo celular. Os nervos, que já estavam nas alturas, duplicaram de intensidade quando somente ela e Vanessa atravessaram para o outro lado.

Atrás das grandes portas automáticas, outro coiote esperava para guiá-las até a próxima etapa. "Dale, dale, dale", apressava o homem. Elas foram levadas para um carro e conduzidas para um motel, onde iriam descansar e passar a noite. As cinco da manhã começaria tudo de novo.

No dia seguinte foram novamente colocadas dentro de um carro, mas dessa vez a companhia seria maior, passaram em outro motel para pegar mais imigrantes. O trajeto durou quarenta minutos e desembarcaram próximo a um rio, o primeiro desafio a ser enfrentado. O dia estava ensolarado, a mata em volta era esverdeada e o caminho do chão era rasteiro, quase que moldado pelos tantos pés que já o percorreram. A água não era funda, ficava quase a um palmo abaixo do joelho de Isa, mas a correnteza era bem forte. De braços dados, formaram uma corrente humana para se apoiar, muitos homens, mulheres e uma ou duas crianças pequenas.

Nesse momento, a paciência e perseverança foram grandes virtudes a serem testadas. A cada mini trajeto, mais duas a três horas de espera para serem levados até outro ponto. Até parados pela polícia local foram, mas nada que alguns dólares não resolvessem. Logo tiveram mais uma noite de descanso.

No dia seguinte se repetiu a rotina de acordar cedo e se mover. Sem andar tanto, foram colocados numa espécie de Pau de Arara e rodaram por quatro horas, os corpos pressionando uns aos outros debaixo de um sol de rachar, o suor escorrendo pelas testas e, num cantinho, uma pequena lágrima escorreu dos olhos exaustos de Vanessa. O carinho de Isa na mão da mulher foi leve - e o máximo que conseguiria fazer sem se mexer muito - mas o suficiente para demonstrar apoio naquele momento. Passaram de desconhecidas ao único rosto familiar que tinham. Já estavam chegando perto do México.

A nova hospedagem nada glamourosa era uma fazendinha que ficaram por dois dias. De todos os lugares que passou achava que esse era o pior, mas mal sabia o que ainda estava por vir. Não tinha chuveiro, o banho era de balde e a comida não tinha condições de comer. Mas o próximo lugar com certeza foi o mais difícil, a parte de dentro é extremamente abafada, estava lotado, a sustentação do teto era feita com vigas de madeira e todo o espaço era tomado por redes de pano. Nunca achei que ficaria tão triste vendo uma rede, disse Isadora em um riso leve.

A estadia em Cancún foi quase um devaneio comparado aos outros dias que tinha vivido até ali. O hotel era confortável, tinha piscina e pela primeira vez sentiu que estava comendo comida de verdade, parecia até que os pássaros estavam cantando para ela. Ok, era um lanche do Burger King, mas com certeza foi a melhor coisa que havia provado. Antes do balde de água fria que seria a realidade próxima, parecia estar em um mundo utópico. 

O último deslocamento das meninas foi para Tijuana, ali estariam somente a um passo do tão esperado American Dream, pelo menos era o que elas achavam. A última noite na cidade trazia um misto de emoções, cansaço, apreensão, saudade de casa e da família, mas uma esperança e a sensação de que tudo daria certo. A caminhada do último transporte acompanhadas por um coiote até o muro da fronteira foi feito por pernas bambas, mas surpreendentemente firmes, com ânsia de estar do outro lado.

Chegaram no deserto por volta das quatro horas da tarde do dia vinte e quatro de setembro. Nove dias de deslocamento. Foram abordadas por um policial, até que bem educado considerando a situação, perguntou de onde eles eram e instruiu através do google tradutor que esperassem por ali. Levou água e lanches rápidos para que pudessem se recompor. Por volta das dez horas da noite, uma van apareceu para levar quem estivesse no deserto para a imigração e assim terem os seus destinos traçados. O procedimento dali para frente foi de criminosos mesmo, colheram as digitais, conferiram documentos e tiraram fotos com fundo listrado. Por ser uma menor de idade, mesmo que emancipada, Isadora foi separada de todos que tinham chegado com ela até ali e levada para uma cela de jovens.

O sentimento era completo desespero. Viu diversos outros adolescentes que estavam ali há bastante tempo, conversou com uma guatemalense que havia chegado há sete dias. Mais uma vez, questionamentos de autoridades. O que veio fazer aqui? Por qual motivo saiu do seu país? Com quem você vai morar aqui? Tem um endereço e telefone? Para a última, a resposta era sim! Seu contato fixo no país era o padrasto do noivo. Isa conseguiu falar com ele rapidamente e mais uma vez aquele fio de esperança enlaçou seu coração, achava que por terem deixado ter um contato, mesmo que mínimo e muito rápido, seria liberada mais facilmente.

Ao final Isa se sentiu muito agradecida, apesar de todo o perrengue que passou até chegar em solo americano. Sempre soube que a travessia seria difícil, tanto pelas condições ambientais, quanto pelas condições emocionais em deixar tudo para trás. Sabia que poderia ter sido muito pior, no processo muitos são presos, deportados, se ferem gravemente ou até mesmo perdem a vida. Resta a dúvida sobre se o pagamento pelo American Dream é o suficiente para compensar as marcas que ficam para sempre na alma.

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Por trás de uma imagem forte, mulheres lidam com sobrecarga emocional, ausência de apoio e um silêncio que a sociedade normalizou.
por
Ingrid Luiza Lacerda
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25/11/2025

Por Ingrid Lacerda

 

Em meio a correria diária na favela do Peri Alto, aos 51 anos, recém-viúva e mãe de três filhos, Cristiana Silva Ferreira enfrenta uma realidade compartilhada por muitas: a solidão que se impõe sem aviso, silenciosa e persistente. Sua história, porém, começa muito antes da viuvez. Cresceu sem referências maternas, criada em um ambiente predominantemente masculino onde aprendeu a guardar seus sentimentos. Logo, no fundo, sempre esteve sozinha de certa forma. A solidão não chegou com a morte do marido e o luto recente não a parou, pelo contrário, exigiu que se reconstruísse, passando a organizar sentimentos que já lhe eram conhecidos. 

Assim como Cristiana, Neilde Santos Rosa, 63 anos, vive realidade semelhante há décadas. Mãe solteira há mais de 40 anos, saiu de Aracaju, no Sergipe, no caminho silencioso que leva milhares para o Sudeste em busca de realizar seus sonhos modestos com uma determinação inabalável, mas encontrou uma metrópole que oferecia condições duras de vida e pouca dignidade. Trabalhando como diarista, suas mãos carregam as marcas do ofício, que, dia após dia, limparam o mundo para que seus dois filhos pudessem viver confortavelmente. A maternidade solo nunca foi uma escolha, mas sim um caminho aceito com aquela dignidade silenciosa de quem compreende que o amor, muitas vezes, se veste de sacrifício. Aos poucos, seu corpo foi se transformando em instrumento de trabalho, sua saúde tornando-se moeda de troca por um futuro que, talvez, nem chegasse a usufruir completamente.

Um medo persistente a acompanhava o temor constante de que sua filha pudesse um dia conhecer a mesma solidão e as mesmas dificuldades que marcaram sua própria trajetória. Esse receio se materializava em gestos cotidianos na insistência com que priorizava a educação da filha, nos conselhos repetidos sobre independência financeira, nas advertências cautelosas sobre relacionamentos amorosos. Mais do que simples preocupação materna, tratava-se do legado inevitável de quem conhecia intimamente o preço amargo de uma autonomia conquistada.

Cristiana conta que, no final das contas, a solidão virou sua parceira. Não como algo desejado, mas como algo com o qual aprendeu a lidar. Admite que se reinventou, criou novos vínculos consigo mesma e aprendeu a não se culpar por não estar sempre realizada, mas, este processo de reinvenção não foi linear; envolveu recaídas, noites de choro silencioso e, aos poucos, aceitação de que felicidade poderia ter contornos diferentes daqueles que imaginara.

Para a diarista, a solidão também se tornou mestra dura, porém sábia: aprendeu a ouvir silêncio da casa, além de se ouvir - na ausência de vozes alheias, descobriu ressonâncias internas que desconhecia. Aprendeu a distinguir entre solidão que oprime e solitude que liberta, ainda que esta distinção seja tênue e móvel. A vivência da diarista aponta para processo que muitas mulheres relatam, que consiste na transformação da solidão em universo interior. Entretanto, este processo está longe de ser leve, pois, envolve desconstruções dolorosas, como quebra da crença de que ser suficiente para todos é caminho para ser amada. 

A reclusão, antes ameaçadora, vira escuta. Assim, consolida-se como um dos únicos momentos em que essas mulheres deixam de cuidar dos outros para, enfim, perguntarem-se sobre si mesmas. Consequentemente, nesse caso, deixa de ser apenas ausência e torna-se também resistência. É a recusa silenciosa de definhar completamente na solidão que a estrutura social impôs.

Ademais, as duas trajetórias demonstram como a solidão da mãe solo é qualitativamente diferente de outras formas de solidão, sentindo um vazio peculiar: era a sobrecarga de ser a única a tomar todas as decisões, a única depositária de todas as preocupações. Faltava alguém para quem ela pudesse voltar-se e partilhar as pequenas vitórias e os aborrecimentos cotidianos. Com o tempo, este sentimento mudou completamente. Dos anos de agitação com crianças, passou para uma casa vazia; se antes eram preenchidas por demandas incessantes, agora é preenchida por memórias e esperas, trazendo sempre presentes em pensamento, justamente e trazendo próprios desafios, como reconstruir identidade que não seja apenas materna, como redescobrir desejos próprios após décadas de adiamento.

Frequentemente, a solidão feminina é reflexo de sociedade que espera demais e oferece de menos. Falta rede e escuta. Falta reconhecer que por trás da mulher forte existe mulher que quer poder parar e respirar. Bem como, imagem da mulher que dá conta de tudo é conveniente, principalmente para sistema que ainda delega a elas maioria das tarefas de cuidado, sem oferecer estrutura. Solidão, nesse cenário, não é ausência de pessoas, mas ausência de escuta e partilha real.

Enfim, nenhuma mulher deveria ter que desmoronar em silêncio para provar que está viva, já que talvez o que mais falte não seja força, mas liberdade para não precisar ser forte tempo todo. Inúmeras narrativas convidam a imaginar sociedade onde cuidado não seja privilégio de poucos nem fardo de alguns, mas responsabilidade de todos; até lá, seguiremos ouvindo essas vozes.

Sob o disfarce da resiliência feminina, a sociedade ainda normaliza uma estrutura de abandono emocional, invisibilidade afetiva e sobrecarga funcional. Majoritariamente, a solidão feminina é o produto final de um sistema que cobra, mas não sustenta, exigindo que mulheres sejam mães presentes, profissionais competentes, parceiras compreensivas, filhas atentas, cidadãs produtivas - tudo ao mesmo tempo. Por isso, quando essa regra falha, o que sobra não é acolhimento, e sim julgamento.



 

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Da produção clandestina às bancas do Brás, o mercado que movimenta R$ 100 bilhões por ano e veste um Brasil que não cabe nas lojas oficiais
por
Arthur Rocha
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18/11/2025

Por Arthur Rocha

 

A madrugada ainda envolvia São Paulo quando as primeiras luzes se acendiam no Brás. Das furgonetas e caminhões baús desciam caixas e mais caixas, formando pilhas que seriam distribuídas pelas centenas de bancas do maior centro de comércio popular da cidade. Homens de rostos marcados pelo cansaço e pelas horas não convencionais descarregavam mercadorias com a agilidade de quem repetia aquela coreografia há décadas. Entre eles, Renan movimentava-se com familiaridade, seus gestos precisos revelando uma vida inteira dedicada àquele ofício.

Ele havia aprendido o trabalho ainda menino, observando o pai, Josué, negociar com fornecedores e clientes. Aos oito anos, começara carregando caixas leves após as aulas, orgulhoso por poder ajudar. Aos poucos, foi sendo introduzido nos segredos do comércio - como distinguir a qualidade dos tecidos, como reconhecer um bom fornecedor, como lidar com os diferentes tipos de clientes. Aos quinze, já dominava as nuances do negócio familiar, e aos dezoito tornara-se essencial para o sustento da casa. Sua educação formal acontecera entre um cliente e outro, seus deveres de escola muitas vezes feitos no balcão da banca, entre intervalos de atendimento.

Agora, na flor da juventude, o jovem conhecia como poucos os meandros do comércio de falsificações. Seus olhos percebiam instantaneamente a diferença entre uma réplica bem-feita e outra de qualidade inferior. Seus dedos reconheciam o toque do bom algodão, a costura bem executada, o detalhe que fazia a diferença. Mas acima do conhecimento técnico, ele compreendia a psicologia por trás de cada compra - entendia que não vendia apenas produtos, mas acessos a sonhos, mesmo que temporários e imperfeitos.

Enquanto arrumava pilhas de camisetas de times europeus, Renan observava os primeiros compradores chegarem. Uma mãe examinava atentamente cada peça, calculando mentalmente quanto duraria nas brincadeiras do filho. Um casal jovem discutia baixo sobre qual modelo de tênis escolher, pesando o custo-benefício de cada opção. Um homem maduro mexia nas gavetas de meias, buscando aquelas que melhor resistiriam ao trabalho braçal. O jovem vendedor sabia que todos eles, assim como ele e seu pai Josué, navegavam constantemente entre o desejável e o possível.

Seu pai, Josué, chegara mais cedo ainda, como sempre fazia. Homem de poucas palavras e muitos gestos práticos, ensinara ao filho não apenas o ofício, mas a filosofia por trás dele. "Não estamos enganando ninguém", dizia, "estamos oferecendo o que as pessoas podem pagar". Josué começou com uma simples banca de calçados há trinta anos, e através de trabalho duro conseguiu estabelecer o pequeno império familiar - três bancas lado a lado, cada uma com sua especialidade.

Ao longo do dia, o movimento no Brás transformava-se em um espelho da sociedade brasileira. Havia os compradores regulares, que vinham toda semana em busca de novidades; os trabalhadores procurando roupas resistentes a preços acessíveis; os jovens das periferias em busca dos símbolos de status que viam nas novelas e nas redes sociais; e até profissionais de classe média que, mesmo podendo comprar originais, preferiam a relação custo-benefício das réplicas.

Renan notava como cada grupo tinha seu próprio comportamento. Os mais velhos, cautelosos, examinavam cada costura, cada detalhe. Os mais jovens, por outro lado, preocupavam-se mais com a estética do que com a durabilidade. As mães de família calculavam mentalmente quantas peças poderiam comprar com o orçamento disponível. E ele, no centro daquela dança de desejos e realidades, adaptava seu discurso para cada situação.

Às vezes, nos raros momentos de calma, o jovem observava o movimento do Brás e pensava na complexidade daquela economia paralela. Não se tratava apenas de vender produtos falsificados, mas de fazer parte de uma cadeia que envolvia milhares de pessoas, desde os costureiros das oficinas muitas vezes clandestinas até os consumidores finais, passando por transportadores, fornecedores e vendedores como ele. Uma rede complexa que, embora operando na ilegalidade, sustentava famílias e realizava sonhos modestos.

Seu pai Josué interrompia esses devaneios com um gesto prático - uma caixa para ser aberta, um cliente para ser atendido, um fornecedor para ser recebido. A realidade sempre falava mais alto, e ela ditava que, enquanto houvesse mercadoria para vender e clientes para comprar, o trabalho não podia parar.

Ao entardecer, quando as luzes do mercado começavam a se acender anunciando o fim do dia, pai e filho iniciavam o ritual de fechamento. Enquanto arrumavam as sobras e faziam o balanço do dia, Josué compartilhava histórias dos tempos em que o Brás era menor, mais simples. Falava das dificuldades, das crises superadas, dos clientes que se tornaram amigos. Renan ouvia atentamente, compreendendo que herdava não apenas um negócio, mas uma história de resistência.

No caminho de volta para casa, no ônibus lotado de trabalhadores igualmente cansados, o jovem permitia-se sonhar. Imaginava uma loja legalizada, produtos originais, etiquetas verdadeiras. Visualizava-se mostrando a um filho hipotético um negócio honesto, regularizado, longe da sombra da ilegalidade. Mas depois olhava para o pai ao seu lado, o rosto marcado por anos de trabalho duro, e entendia que a realidade era mais complexa que seus sonhos.

A verdade era que, num lugar de contrastes como o Brasil, o mercado das falsificações representava tanto um problema quanto uma solução. Era sintoma de uma economia que não conseguia incluir todos formalmente, mas também demonstração de uma resiliência popular que encontrava seus próprios caminhos para a sobrevivência. E Renan, assim como o pai Josué e milhares de outros trabalhadores do Brás, era apenas um elo nessa cadeia complexa - um jovem que herdara não apenas um ofício, mas um lugar específico no intricado quebra-cabeça da economia brasileira.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer, ele estaria novamente no Brás, abrindo a banca com o pai, arrumando as mercadorias que, embora carregassem logos falsos, sustentavam sonhos verdadeiros. E naquele ciclo infinito de trabalho e sobrevivência, ele seguia escrevendo, junto com Josué, mais um capítulo de uma história que era, acima de tudo, sobre a capacidade humana de se adaptar e perseverar, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

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Novo relacionamento na terceira idade faz com que o mundo de dois casais de amigos vire de ponta-cabeça e divida famílias entre apoio e repulsa
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Vitor Bonets
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18/11/2025

Por Vitor Bonets

 

Três. Dois. Um. A contagem regressiva que tirou de Carlos seu bem mais valioso. Na cama do hospital, no dia 26 de julho deste ano, o homem ouviu as últimas batidas do coração de sua esposa. O que havia lhe sobrado era somente o silêncio, que naquele momento, se tornara um barulho ensurdecedor. Ana, aos 62 anos, morreu por uma parada cardiorrespiratória após ficar internada durante três dias. Em seus últimos momentos, ela viu Carlos, um homem grande, chucro, daqueles forjados ao longo de 67 anos na antipatia, se despedaçar. Parecia que ao passo em que as lágrimas caiam, uma parte da alma de Carlos ia embora junto. Junto com o vento e junto de Ana. 

Nem a indignação sobrou ao homem, já que a morte da mulher veio de repente. Chegou sem avisar e foi embora sem nem dar explicações. Carlos até perguntava a Deus sobre o porquê daquilo, mas ele talvez nem estivesse preparado para a resposta que estaria por vir. Com a maior perda de sua vida, o homem, pai de dois filhos, precisou se apegar cada vez mais à família e aos amigos do casal. Amigos esses que foram essenciais durante a trajetória de amor de Carlos e Ana. Todos em volta dos dois presenciaram o nascimento do amor no condomínio Torres do Sul, na Zona Sul de São Paulo. Por ali,  se formou um grupo que seria como uma rede de apoio para os que moravam no local. 

Quando Ana morreu, Edu e Aline, filhos do casal, já eram crescidos e não estavam mais debaixo das asas de Carlos. Os dois sentiram a morte da mãe, mas sabiam que precisavam ser os alicerces do pai. Porém, não contavam que três meses após a morte de Ana, Carlos teria descoberto um novo amor. Mas nem tão novo assim. Vizinhos do mesmo prédio e amigos de longa data, o ex-casal Márcia e Antônio, prestaram apoio a Carlos no momento difícil. Mesmo já separados há dois anos, eles se uniram para consolar o amigo. Antônio e Carlos eram como fiéis escudeiros. Márcia e Ana eram as primeiras-damas. E os casais construíram uma amizade de mais de 20 anos. Mas, o clima de harmonia chegaria ao fim após a morte de Ana. 

Um mês após o velório da esposa, Carlos e Márcia decidiram se encontrar para conversar, o que não era muito costumeiro por parte do homem, já que ele nunca foi muito bom com as palavras. Motivo esse, que por diversas vezes, fez a mulher de seu melhor amigo sentir certa repulsa. No encontro, Carlos estava leve, como alguém que nem parecia carregar mais de 100kg em um corpo de dois metros. Márcia, já com 65 anos, estava a mesma. Vaidosa, produzida, arrumada e até mesmo com aquele ar de quem "se acha". Mas quem se achou mesmo nessa noite foi Carlos. 

Ele, que não era muito de se expressar, mostrou uma outra face para a companhia em um jantar a dois. Os dois conversaram e riram a noite toda e nem parecia que as desavenças do passado estavam presentes. Nem mesmo parecia que Ana havia partido. O primeiro encontro foi talvez um passo que nenhum dos dois estava certo de ter dado, mas depois que o clima ficou no ar, o que restou foi seguir caminhando. Igual ao primeiro, vieram outros. Restaurantes chiques, risadas, comida, conversa boa e, principalmente, sigilo.Ali estava a sensação de conhecer alguém novo após tanto tempo casados. O sentimento de, já no caminho final da vida, encontrar um novo amor. Esse, de certa forma, proibido. 

As coisas não seriam fáceis depois de Carlos e Márcia decidirem anunciar que estavam juntos. Depois de três meses em que Carlos conhecia uma Márcia que nunca viu e vice-versa, eles foram contar para as respectivas famílias. E não, a história não convenceu muita gente. Os filhos de Carlos, Edu e Aline, repudiaram a ideia completamente. Ainda machucados com a partida da mãe, não concebiam a ideia de que o pai havia arranjado uma outra mulher, ainda mais ela sendo a melhor amiga de Ana. Porém, disseram que se era da vontade de Carlos, que assim fosse feito. Os filhos de Márcia também não se sentiram confortáveis com a notícia. Murilo e Jéssica, que ouviram a mãe falar mal de Carlos durante toda a vida, não entendiam como as coisas haviam mudado em tão pouco tempo. Mas, a pior reação foi a de Antônio, que viu seu melhor amigo anunciar um romance com a mulher com quem dividiu a vida, as contas, as felicidades e as tristezas do casamento. Hoje, Antônio não frequenta mais as festas de família se Márcia e Carlos estiverem presentes. Ele mesmo diz que sente nojo do casal e que não sabe como os dois tiveram a coragem de desonrar não só o próprio matrimônio, mas também a morte de Ana. 

Carlos e Márcia se juntaram para dar respostas à solidão que sentiam no peito ao chegarem no fim de suas caminhadas e estarem sem ninguém. Talvez, essa tenha sido a forma de driblar um fim solitário. Um viúvo e uma recém-divorciada. O útil ao agradável. Talvez, o amor tenha também driblado as convenções e regras do que é "certo e errado". Se até mesmo Seu Jorge passou por um momento difícil como esse, quem dirá os meros mortais. Talvez, seja natural que Antônio sinta desgosto pelos "dribles" que tomou das pessoas em que mais confiava. E por fim, a sensação de Ana sempre ficará no talvez, já que ela foi a única que não pôde ver com seus próprios olhos o rumo que sua morte daria para a vida de todos os outros. Uma coisa é fato, alguns agradecem por ela não ter presenciado isso.

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Caso de Jesse expõe padrão de violência policial contra jovens negros e periféricos.
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Philipe Mor
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18/11/2025

Por Philipe Mor
 

1998. Por volta de seis da tarde, o céu de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo, se tingia de um amarelo cansado, cor de fim de turno e de fogão aceso. Na viela principal da Comunidade Divinéia, Jesse caminhava com o corpo leve de quem carregava apenas um desejo: completar o álbum da Copa. Faltava pouco, um dia, para a semifinal entre Brasil e Holanda. O bairro inteiro parecia batucar o nome de Ronaldo Fenômeno pelas janelas, escadas e campinhos improvisados. Jesse tinha 15. O mais novo dos cinco irmãos. Era franzino, riso fácil e tinha olhar de quem ainda acreditava na vida. Além da amarelinha, amava o time de verde, o Palmeiras, que tem a cor da esperança. 
 
Próximo ao “Bar do Seu Paulo” e da “Mercearia do Wilson”, os meninos se juntavam onde o asfalto quebrado servia de mesa para figurinhas repetidas. A cada troca, um campeonato inteiro nas mãos. A voz alta, o vai-e-vem das pernas finas, o futuro ainda intacto. Até que o silêncio se impôs pela força de um motor. A viatura dobrava a esquina com pressa de quem não veio perguntar nome, nem idade, nem história. No primeiro instante, a gritaria. Depois, o instinto. Correr. Em poucos segundos, o que era brincadeira virou fuga. 

A confusão riscou as vielas como um estopim. Dentro da “quebrada” cada criança buscou um caminho diferente. Jesse entrou no primeiro beco, onde um muro sem saída guardava restos de obras, roupas no varal e o cheiro do feijão que subia de uma janela. A respiração curta, o suor frio, o álbum preso no bolso da bermuda. Ao virar, deu de frente com o policial. Branco, farda alinhada e mira treinada. A voz dura ordenou a revista. Jesse ergueu as mãos devagar, tentando pescar o objeto do bolso, como quem oferece a prova de sua inocência. Era só papel. Um álbum. Nada além disso. 

O tiro veio antes da explicação. O estampido rasgou o silêncio como um gol contra no último minuto. O projétil atravessou o corpo pequeno e encontrou o coração. Aquele que batia forte pelo jogo do dia seguinte e pelo sonho simples de crescer. Segundo o policial, ele acreditava que o garoto estava armado. E por isso agiu. A frase que, desde então, se repete como reza torta nos corredores de delegacias e manchetes de jornal. “Parecia armado.” Aparentar perigo virou sentença para tantos meninos que carregam a cor da noite estampada na pele. 

 

Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.
Jesse M. da Silva Foto: Arquivo pessoal/Carmem Cruz da Silva.

 

Na casa dos irmãos, a notícia chegou como quebra-cabeça impossível de montar. O álbum - com pingos de sangue - ficou sobre a mesa, aberto. A figurinha do Ronaldo, seu jogador favorito, ainda faltava. Agora, como sua vida. A mãe Carmem, evangélica praticante, sem chão, tentava contar os filhos com as mãos para garantir que ainda tivesse todos, mas, a partir dali, faltava um. Thais, a irmã, guardou silêncio. Desde aquele dia, não fala sobre futebol. O pai insistia no nome de Jesse como quem repete um mantra que tenta trazer de volta o que já não respira. 

O enterro foi breve. A vizinhança segurava o choro como podia, alguns com raiva, outros com medo. Todos com um nó na garganta ao perceber que, naquela noite, algo mudaria para sempre na Divinéia. Aos poucos, os irmãos mais velhos, Jayro e Tony, que antes sonhavam com motos, empregos, até viagens, passaram a sonhar menos. A revolta, lenta e silenciosa, entrou pelas portas abertas, como vento ruim que escolhe ficar. Por vingança, por dor, por falta de escolha, os meninos buscaram refúgio no mundo do crime. A morte de Jesse não foi o fim. Foi o começo de uma outra estatística. 

E, enquanto o Brasil entrava em campo no dia seguinte, com discussões sobre escalação, defesa, ataque, a casa de Jesse se enchia de lembranças. Não houve camisa amarela, nem torcida. Só o eco de uma pergunta sem resposta que a família repete até hoje: como se mata um menino que só queria completar um álbum? 

No beco onde o tiro ecoou, o muro ainda está lá. O tempo insiste em passar, mas a marca daquele dia segue presa no chão. Entre os adesivos colados, as figurinhas trocadas e as memórias guardadas, permanece uma certeza amarga: para muitas famílias negras das periferias brasileiras, a vida vale menos que um álbum de Copa. 

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A bancada das mulheres da Câmara de São Paulo ganha mais 6 parlamentares, mas presença do gênero feminino em espaços de poder ainda é tímida
por
Anna Beatriz Barreto da Matta e Vanessa Orcioli
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21/11/2022

A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aumentou sua bancada feminina de 19 mulheres para 25 candidatas eleitas em 2023. O número de deputadas no órgão estadual cresceu 31,57%. Das definidas pela população nas urnas, 13 foram reeleitas e outras 12 ou inauguraram pela primeira vez na Casa ou voltaram ao cargo após um ou dois mandatos fora.

Neste ano, segundo o veículo de comunicação Gazeta de S. Paulo, dos 2.059 nomes nas urnas disputando por uma vaga na Alesp, apenas 677 eram mulheres, o que representa 33% do total. O crescimento feminino nos espaços de poder ainda é tímido, porém, a legislatura de 2023-2026 terá a maior representatividade feminina da história da Assembleia. As deputadas eleitas no último dia 2 de outubro representam 27% do total de 94 cadeiras no Legislativo estadual. 

Embora a representatividade feminina tenha aumentado nas cadeiras do Parlamento Paulista, os dados apurados pelo TSE mostram que ainda existe uma alta sub-representatividade feminina. Se por um lado elas representam 52% da população brasileira, no outro extremo, ocupam apenas 12% das prefeituras, somente 15% do Congresso Nacional e nem 4% nos governos estaduais. Apesar de serem a maioria do eleitorado, o número de candidatas (33,6%) é quase a metade do número de candidatos homens (66,4%).

Divulgação: Carla Morando
Divulgação: Carla Morando

Partidos e suas representantes

A atuação do Legislativo estadual ficou em evidência por questões de gênero nos últimos anos. Na visão da cientista política e professora da PUC-SP Rosemary Segurado, as parlamentares eleitas souberam explorar os últimos acontecimentos polêmicos da Câmara em suas campanhas. “Em algumas campanhas foi possível notar a articulação dessas discussões importantes em relação a violência contra as mulheres e, principalmente, a violência política contra as mulheres.”

Liderando as três mulheres mais bem votadas para a Câmara neste ano, a deputada Paula Nunes dos Santos, da Bancada Feminista do PSOL, obteve 259 mil votos. Em seguida, Ana Carolina Serra (Cidadania) e Bruna Furlan (PSDB) ficaram com cerca de 190 mil votos cada uma. As parlamentares eleitas são novas no órgão estadual, e tirando Furlan, que já tinha um cargo político de deputada federal, Nunes e Serra são estreantes na política. 

Divididas por 13 partidos, as parlamentares eleitas foram contabilizadas sendo 5 do Partido dos Trabalhadores - esse com maior número de mulheres para 2023 na Alesp - 4 do Partido da Social-Democracia Brasileira, e 4 do Partido Livre. 

Em conversa com o Contraponto Digital, a deputada estadual Carla Morando enxerga que seu partido, o PSDB, equilibra a inserção feminina na política. “Sempre deixaram espaço para a presença de mulheres dentro do partido. Foram muitas as parlamentares que ocuparam quadros de primeiro escalão no governo do estado comandado pelo PSDB.

Morando contempla que as mulheres vêm sendo combativas e estão conseguindo conquistar cada vez mais espaços dentro do poder público. A deputada afirma que o interesse feminino pela política vem aumentando gradativamente. 

“A mulher já vem buscando cada vez mais a política. Esse processo vem acontecendo desta maneira, pois as bancadas femininas têm sido propositivas em suas ações, fiscalizando o debate no Legislativo e Executivo”, destaca a parlamentar.

Em um panorama geral, a sociedade tem reconhecido esse aspecto da eleição de mulheres para os parlamentos, bem como a nomeação em cargos de administrações públicas vem aumentando. “O atual momento do Brasil e Estado tem mostrado a preocupação de todos com a efetividade das ações, diminuindo esse tipo de comportamento. Ainda é necessário seguir trabalhando bastante para avançar ainda mais”, diz Morando

Para a jornalista, cientista política e pesquisadora em Comunicação e Política na Sociedade do Espetáculo, da Cásper Líbero, Deysi Cioccari, as mulheres tendem a ser combativas no campo das ideias, mas ela acredita que há certo respeito por serem minoria e um sentimento de união que existe também entre as mulheres. “O embate pode ser muito no campo ideológico, como tem que ser, mas jamais para aquele confronto que a gente vê na ala masculina mesmo, de agressão simbólica, verbal. Isso eu não acredito. Mas no campo das ideias é sempre a oposição democrática”, pontua Cioccari. 

Segundo Cioccari, um dos confrontos no papel da mulher na política ocorre devido à ligação instantânea da imagem feminina à pauta feminina. “Quando elas entram na política, parece que não conseguem ser políticas se não for longe do feminino e isso acaba afastando-as da participação política, não só da Alesp, mas como um todo.”

Cioccari afirma não ver as mulheres em pé de igualdade com os homens para discutir questões econômicas ou orçamentais devido ao machismo e misoginia instaurados na política brasileira. Essa diferença se dá também pela própria Constituição da Alesp. “Outro ponto divergente ocorre na estruturação das bancadas, quando as bancadas são femininas, há uma conversa maior, quando as mulheres discutem política, a busca é pelo entendimento. Já quando os homens discutem política, há uma certa busca pelo dissenso.”

Deysi Cioccari | Foto: Reprodução/ LinkedIn
Deysi Cioccari | Foto: Reprodução/ LinkedIn 

Crescimento da Bancada Feminina nos últimos anos

Em 2014, a Câmara contava com apenas 11 mulheres eleitas. Já no ano de 2018, o número de parlamentares femininas subiu para 19. Essa quantidade de mulheres na composição da Casa já era considerada uma marca histórica. Agora, com mais 6 deputadas eleitas, a Assembleia paulista teve um aumento de 31, 57% da representação feminina no órgão estadual. 

“O crescimento ainda é bastante lento, ainda que a gente possa e deva comemorar um aumento de representatividade feminina, não podemos esquecer que ainda estamos muito longe da paridade e da igualdade de condições”, afirma a advogada eleitoral Paula Bernardelli. 

Paula Bernadelli | Foto: Reprodução/ LinkedIn
Paula Bernadelli | Foto: Reprodução/ LinkedIn 

Esse tardio e tímido avanço decorre de um cenário influenciado por diversos fatores, como pontua Bernardelli. “Existem partidos que, em regra, têm baixíssima democracia interna, um ambiente político ainda muito machista e com muita violência política de gênero, e uma sociedade muito conservadora com relação aos papéis de gênero, que ainda não vê com bons olhos a mulher fora do ambiente doméstico e disputando espaços de poder”, diz.

Porém, em um panorama geral, a advogada enxerga com bons olhos a questão de votar e eleger mulheres, que têm ganhado destaque a cada eleição. De acordo com Bernardelli, a sociedade brasileira se encontra em um cenário mais positivo para as mulheres que lançam suas candidaturas.

Rosemary Segurado | Foto: Divulgação
Rosemary Segurado | Foto: Divulgação 

 

Legislativo e incentivo da participação das mulheres na política

Desde a década de 90, têm sido implementadas regras eleitorais com o objetivo de aumentar a quantidade de mulheres, tanto candidatas como eleitas, em eleições proporcionais. Entre elas, está a Lei eleitoral 9504/97, estabelecendo as cotas de gênero nas candidaturas. “A reserva de cadeiras no Parlamento parece ser a medida com resultados mais imediatos que poderia ser adotada. Para além e independentemente dela, são necessárias políticas de incentivo que efetivamente alterem a estrutura machista da política, protegendo e acolhendo mulheres que se lançam nesses espaços”, frisa a advogada Paula Bernardelli.

Outra lei criada para apoiar esta representatividade das mulheres na política é a Lei 12.034/2009, que transformou obrigatório o preenchimento do percentual mínimo de 30% para candidaturas femininas. 

A PEC 18/2021, apresentada pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT) e com o apoio de outros 28 senadores, procura garantir que as candidaturas femininas sejam efetivamente financiadas pelos partidos políticos. A proposta, que tem como relator o senador Nelsinho Trad (PMDB-MS), insere na Constituição uma regra que foi introduzida em 2015 na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096, de 1995): a reserva mínima de 5% do fundo partidário para a criação, manutenção e promoção de campanhas de mulheres na política.

“Quando se luta por mais mulheres na política é natural e esperado que o resultado seja um aumento de mulheres em todos os espectros políticos. As políticas de incentivo ao lançamento de mulheres trazem vantagem a todos os partidos. A ideia da luta por mais mulheres é justamente que mulheres são diversas e podem ser representantes políticas de pessoas e pautas diversas, assim como são os homens”, pontua Bernardelli.

Gabriela Rollemberg | Reprodução ABRADEP
Gabriela Rollemberg | Reprodução ABRADEP

Caminhos que incentivam transformações

Contudo, quanto mais mulheres estiverem nos espaços de poder, mais possibilidade há de se eleger parlamentares que lutam pelo direito das mulheres. “Ainda temos um caminho muito longo pelo aumento dessa representação das mulheres e acredito que isso expressa também muito sobre como é a dinâmica, tanto política quanto eleitoral, nas regiões do país”. Ela afirma que não há mais como usar as mulheres “como laranjas”,  ou seja, colocarem candidaturas que não vão ser efetivas apenas para cumprir a questão eleitoral.  

Para possibilitar a diminuição da falta de equidade e igualdade na distribuição de poder, a advogada e cientista política Gabriela Rollemberg enxerga como fundamental que a sociedade olhe para dentro dos partidos políticos.

“Precisamos notar as governanças desses partidos, para como eles destinam os seus recursos, do fundo partidário, do fundo eleitoral. E, precisamos controlar e cobrar mais coerência deles, para que se crie, de fato, um estímulo para aprimorar o que acontece hoje”, afirma a advogada. 

Do ponto de vista de Rollemberg, “hoje, basicamente, o destino dos recursos é definido pelo presidente do partido, no máximo, ou com o tesoureiro. E são sempre homens e homens brancos que definem isso. E, obviamente, essa questão tem todo um peso na perpetuação do poder dentro do partido, na forma de distribuição dos recursos e na conversão de candidaturas em mandatos”.

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Candidatas a deputada federal pelo Estado de São Paulo e especialistas explicam a importância do enfoque em políticas públicas voltadas para as mães
por
Helena Sereza, Hiero de Lima e Julio Cesar Ferreira
|
26/11/2022

As mulheres brasileiras representam mais de 51% da população, de acordo com o IBGE. Porém, apenas 15% do Congresso Nacional é formado por mulheres, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Para especialistas, a falta de representatividade feminina entre os parlamentares cria uma lacuna para a implementação de políticas públicas focadas na maternidade em que as mulheres sejam autoras. 

Isto é comprovado ao entrar no site da Câmara dos Deputados e pesquisar pelas propostas legislativas a partir da palavra “maternidade”, é possível notar que, muitas são de homens e poucas de mulheres.  

As deputadas federais candidatas à reeleição pelo Estado de São Paulo, Sâmia Bomfim (Psol), Renata Abreu (Podemos) e Carla Zambelli (PL) são algumas das mulheres que trazem a pauta para dentro do Congresso.

Para a candidata de centro Renata Abreu, a parentalidade é uma pauta priorizada apropriadamente por todo o Congresso Nacional. Zambelli, por outro lado, acredita que muitos políticos não entendem sobre a maternidade. Já Sâmia Bomfim adiciona, dizendo que “de fato, existem poucos projetos voltados para essa realidade: da mãe, da mãe trabalhadora, da mãe solo”.

A doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carla Cristina Garcia, argumenta que vivemos numa situação em que as mulheres têm uma atuação política pouco reconhecida, porque o “Estado é profundamente patriarcal”. Portanto, como a maioria dos políticos são homens, grande parte das legislações, mesmo as voltadas para as mães, são pensadas e formuladas por eles. 

Já Maíra Kubik, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de Teorias Feministas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), complementa apontando a divisão irregular de tarefas domésticas como motivo que afasta as mulheres da política. 

“As parlamentares mulheres estão o tempo todo tendo que lidar com a sobrecarga de trabalho, inclusive de trabalho mental, com o acúmulo de tarefas e funções”, diz, em entrevista à CNN Brasil.

Por outro lado, as expectativas do papel das legisladoras variam de acordo com seus partidos: “Ter uma mulher como legisladora, deputada, senadora, não significa que leis sobre igualdade de gênero vão imediatamente aparecer. Isso é universalizar o comportamento feminino”, argumenta Garcia. 


Mães e o mercado de trabalho

Uma pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) com 247,4 mil mães evidenciou que metade das mulheres inseridas no mercado de trabalho são demitidas até dois anos depois que acaba a licença maternidade. A maior parte das saídas se dá sem justa causa e por iniciativa do empregador.

“Dentro da legislação brasileira, os direitos são iguais para homens e mulheres. Entretanto, na prática, por conta da divisão sexual do trabalho, as mulheres acabam sendo as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos e as que ficam mais sobrecarregadas com essa tarefa”, explica a advogada Ana Paula Braga, sócia fundadora da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas, primeiro escritório do Brasil especializado em direito das mulheres e desigualdade de gênero. 

Por Braga lidar diariamente com esses temas, ela conta que as áreas em que mais recebem demandas relacionadas à maternidade são a trabalhista, família e penal, especialmente em processos judiciais que tangenciam ou tratam diretamente sobre o tema, como a dispensa discriminatória e o desrespeito à licença maternidade. 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 54,6% das mães de 25 a 49 anos que têm crianças de até três anos em casa estão empregadas. A maternidade negra, nesta mesma situação, representa uma taxa ainda menor: menos da metade está no mercado de trabalho (49,7%).


Mães solo 

De acordo com o IBGE de 2018, há mais de 11 milhões de mães solo no país, sendo 61% delas mulheres negras. Também de acordo com o instituto, 63% dessas famílias são pobres. 

Dados levantados pelos Cartórios de Registro Civil do Brasil (Arpen) a pedido do jornal O Globo mostram que, nos últimos cinco anos, houve um aumento de 1,2% no nascimento de bebês sem o nome do pai nos documentos. No primeiro semestre deste ano, nasceram 1.313.088 bebês e, destes, 86.610 não têm o sobrenome paterno. No mesmo período de 2018, foram 1.452.161 recém-nascidos, dos quais 78.798 ficaram sem o nome do pai.

Para as mães chefes de família, a única medida feita para elas foi o programa de assistência financeira que garantiu que elas recebessem o dobro do valor, como foi o caso do Auxílio Emergencial que, durante a pandemia, chegava a R$ 1.200 mensalmente. Contudo, o Auxílio Brasil para as mães deixou de ter esse valor duplicado em novembro de 2021.

Impossibilitadas de trabalhar por conta de diversos fatores sociais, as mães inscritas no Benefício de Prestação Continuada (BPC) também não são permitidas de ter acesso a outros programas de seguridade social. Além disso, mais recentemente, tiveram o acesso ao Vale Gás dificultado por parte do Governo Federal. Treze mil mães solo estão cadastradas no BPC e somente uma foi amparada pelo programa Vale Gás. 

“Como a raça constitui classe no Brasil, são majoritariamente as mulheres negras as afetadas”, retoma Maíra, explicando que essa realidade impacta especialmente as mulheres da classe trabalhadora e aquelas que não possuem meios para colocar seus filhos em instituições particulares ou arcar com salários de babás. 

Hoje, há um Projeto de Lei de autoria masculina em tramitação na Câmara dos Deputados, que institui os Direitos da Mãe Solo, prevendo o dobro de benefícios, prioridade em creches, cotas mínimas de contratação em empresas e acesso a crédito. O PL 3. 717/2021 criado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM)  beneficia mulheres chefes de família que, segundo o autor e a relatora Leila Barros (Cidadania-DF), ficaram ainda mais vulneráveis após a pandemia. 


Saúde e maternidade

Os principais projetos levados ao Congresso envolvem a questão médica da maternidade. Do direito ao tratamento inicial custeado pelo Estado até a garantia de um parto saudável, a segurança das mães na hora da concepção é um dos tópicos mais citados em projetos de leis levados ao plenário.

Contudo, não há nenhuma lei federal ou estadual em São Paulo que puna a violência obstétrica. No país, apenas oito estados possuem alguma criminalização contra tais formas de abuso.

Em maio de 2019, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica contrária ao uso da expressão, afirmando que "o Conselho Federal de Medicina entende que o termo 'violência obstétrica' é inapropriado, devendo ser abolido, pois estigmatiza a prática médica e interfere de forma deletéria na relação entre médicos e pacientes". Porém, alguns meses depois, o conselho voltou atrás e reconheceu o direito das mulheres de denunciarem a violência durante o parto. 

No Brasil, 45% das mulheres que têm filhos no Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem violência obstétrica. Em contrapartida, somente 30% dessas mulheres sofrem com o problema em hospitais privados. Os dados são do Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de 2012. 

Melissa de Oliveira Pereira, Doutora e Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, explica a importância de programas envolvendo a maternidade que entendam a diversidade entre as mães.

"Mesmo as políticas públicas voltadas ao que é dito 'mulher' tem muita dificuldade de entender a multiplicidade do corpo feminino", exalta. "As políticas públicas precisam avançar, e muito, em relação às mulheres mães”. 

Melissa também explica que muitas mães amparadas pelo sistema de saúde têm demandas que saem do âmbito clínico, e que a grande maioria das mulheres precisam de um encaminhamento a centros de serviço social, por exemplo. Ela também ressalta o valor de espaços onde as crianças possam ficar enquanto as mães procuram atendimento médico. "Muitos serviços de saúde funcionam das 8h às 19h e as mulheres não têm tempo e acabam não conseguindo procurar ajuda médica".


Candidatas e suas propostas

Dentre as candidatas entrevistadas, Sâmia Bomfim é a que mais apresenta políticas públicas voltadas para as mães. Um exemplo é o PL 4.389/2021, que fala sobre a escolha de métodos contraceptivos. Há ainda um projeto da deputada que propõe o acolhimento de gestantes e mães de crianças e adolescentes em ambiente universitário, e outro que torna obrigatório a instalação de fraldários em ambientes públicos e privados.

Carla Zambelli, por sua vez, apresenta o PL 3.635/2019, criado em conjunto com Janaína Paschoal (PRTB), que dá a liberdade para a mulher optar pelo parto cesariano a partir da 39ª semana de gestação. 

Já Renata Abreu tem, em sua trajetória, o PL 8.702/2017, que estabelece que a contagem da licença maternidade seja suspensa, a critério da mãe, em caso de internação de seu recém-nascido, e retomada após a alta hospitalar. Além disso, ela defende a ampliação da assistência à gestante e à mãe no período pré e pós-natal.

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Tribunal Superior Eleitoral registrou aumento de 1.671% no volume de denúncias de desinformação recebidas por meio de plataformas digitais
por
Gabrielly Mendes
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18/11/2022

Após duas semanas do fim do período eleitoral no País, vídeos e imagens falsas continuam circulando pelas redes sociais. A propagação de conteúdos enganosos, irônicos e distorcidos esteve presente durante toda a campanha presidencial dos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL). Evidenciando um Brasil dividido, Lula foi eleito para o seu terceiro mandato por uma diferença de pouco mais de 2 milhões (50,90%) de votos válidos durante o segundo turno das eleições. 

Entre fakes que sugerem fraude eleitoral e o fim do Auxílio Brasil, um vídeo de cunho golpista circulou por redes como WhatsApp e Telegram incentivando apoiadores de Bolsonaro a seguirem o perfil oficial do Exército Brasileiro no Instagram. Alegando que o crescimento da conta aumentaria a influência das Forças Armadas no campo político e facilitaria uma intervenção federal, a ação resultou no aumento de 2,1 milhões de seguidores para 8,3 milhões desde a última terça-feira (15). 

De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a eleição teve, em comparação com as eleições municipais de 2020, um aumento de 1.671% no volume de denúncias de desinformação recebidas por meio das plataformas digitais. 

A escalada do número de notícias enganosas levou o TSE a aprovar, no dia 20 de outubro, a Resolução 23.714, medida que dispõe sobre o enfrentamento de desinformações que comprometem a integridade do processo eleitoral. Ações como “divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral” são cabíveis de exclusão de conteúdo das plataformas digitais, “sob pena de multa de R$100,000,00 a R$150.000,00 por hora de descumprimento”, ou suspensão temporária de perfis, contas ou canais em redes sociais. 

Em entrevista ao O Globo, Tatiana Dourado, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, explicou que personalidades políticas e demais usuários das redes sociais passaram a compartilhar publicações antigas que não foram alvos de ações da Justiça.

“Mesmo com uma série de medidas da Justiça Eleitoral no enfrentamento à desinformação, com grandes avanços em termos de moderação de conteúdo e distribuição de notícias verdadeiras, a transmissão de conteúdos enganosos continuou e até se avolumou. Eles são produzidos até pelo contexto de radicalização política, que reverbera na produção de conteúdo nas redes e na forma como as campanhas operam”, disse ao veículo. 

 

Imagem: Shutterstock

 

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Economia e Negócios

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Diversidade de pessoas que passam pelas cabines revela um aspecto bonito do pleito, mesmo diante da polarização
por
Esther Ursulino
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17/11/2022

 

Por Esther Ursulino

Não sei onde estava com a cabeça quando decidi me inscrever para ser mesária de uma das eleições mais polarizadas da história do Brasil. Afinal, quem em sã consciência escolhe acordar cedo em um domingo para cumprir funções burocráticas?! Conheço alguns amigos que foram mesários pelo direito aos dias de folga no trabalho. Já eu, que tenho a mania de achar tudo interessante, quis apenas participar ativamente desse momento histórico. 

Dois meses antes do pleito recebi um email de convocação que dizia: “Para desempenhar a função para a qual foi convocado(a), você deverá comparecer no local de votação acima indicado às 7 horas do dia 2/10/2022 e, se houver 2° turno, também no dia 30/10/2022. Sua participação, juntamente com a de milhares de eleitores(as) que foram convocados para esse fim, será de extrema importância para a lisura e transparência do processo eleitoral e da democracia brasileira.”

Contei a novidade para alguns amigos. Um deles brincou: 

Vish… se prepare porque a partir de agora você vai ser convocada eternamente! 

Dei risada. Mesmo com esse “risco” eu estava feliz. Quer dizer, feliz e um pouco apreensiva. Em meio a tantos ataques às urnas eletrônicas, ao sistema eleitoral e à própria democracia, senti medo que essa fosse a única e última eleição em que eu trabalharia. Também tive receio de sofrer algum tipo de agressão física ou verbal enquanto estivesse realizando minhas funções no colégio, devido a propagação de ódio através das fake news. Entretanto, a experiência que tive foi outra. Apesar do contexto de polarização e de alguns rostos apáticos, consegui ver beleza nesse ritual de passagem chamado eleição. 

No domingo do primeiro turno acordei às seis, tomei café da manhã, me troquei e segui para a escola. Conforme fui me aproximando do local, notei que pessoas já formavam uma fila antes mesmo dos portões se abrirem para o início da votação. Queriam ser as primeiras. Entrei no colégio, procurei minha sessão e, juntamente com os outros mesários da sala, testamos e ajustamos os equipamentos. Às oito em ponto o sinal tocou, e os mais variados tipos de pessoas foram surgindo. 

Ao folhear o caderno de nomes notei que havia muitas “Marias”. Maria de Lourdes, Maria de Fátima, Maria das Graças, Maria das Dores… quanta Maria! Mesmo com nomes semelhantes, cada uma tinha sua particularidade. Me lembro que uma das primeiras a chegar foi uma senhora com roupas brilhantes e vários anéis nos dedos, que me disse: 

Já nem preciso vir, mas quero votar até meus cem anos! 

Notei que uma mulher trans, super sorridente, também estava empolgada para votar. Ela me disse que tinha sido incentivada por amigos, e por isso entraria na cabine pela primeira vez para escolher seus representantes. Assim que o terminal do mesário a habilitou para ir até a urna, a jovem apertou as teclas do equipamento com a maior satisfação do mundo. Depois de terminar a votação disse:

Só isso? Caramba, que legal!

E saiu da sala agradecendo. 

No decorrer do dia, pessoas com deficiências visuais, cognitivas e de locomoção,  também compareceram às urnas. Um eleitor autista, mesmo com algumas dificuldades, fez questão de assinar seu nome completo no caderno. A mãe, que o acompanhava, observava a cena com orgulho:

Ele treinou bastante só para isso.

Em outro momento, uma senhora simples entrou na sala um pouco sem graça. Disse que não conseguiria deixar seu nome no caderno pois não sabia escrever. Um colega de mesa disse: 

Não tem problema nenhum, dona Maria. A senhora pode assinar a folha com sua digital. De qualquer forma vão pedir sua biometria lá na frente. O importante é votar! 

Ela sorriu e posicionou seu polegar contra a almofada de carimbo, pressionando, em seguida, o dedo no papel. 

Ao decorrer do dia, tive flashbacks da minha infância. Diversas mães e pais chegavam com baixinhos animados para apertar as teclas da urna e ouvir o famoso som do “trililili”, que tanto os fascina. No segundo turno das eleições, uma das crianças, ingenuamente, me perguntou:

Tia, quanto custa pra votar? 

Todos na sala riram. O pai da menina disse: 

Não custa nada não, filha. Quando você tiver dezesseis anos vai poder votar, tá bom?

A questão que aquela garotinha tinha colocado me deixou pensativa. Quanto será que custa um voto? As eleições se tornaram um evento tão comum que sequer nos perguntamos como adquirimos o direito de escolher nossos representantes. A sensação que muitos têm é de que isso foi dado “de graça”. Entretanto, não se pode comprar com 600 reais algo que tem um valor imensurável. Não há como calcular o preço de vidas perdidas, sangue, suor e lágrimas derramados em prol da participação política. 

Sei que a democracia brasileira está longe de ser, de fato, uma democracia. Não são todos que têm voz e vez neste sistema. Sei também que não basta apertar teclas a cada dois anos, esperando que a mudança aconteça. Precisamos nos mobilizar sempre para avançar e, sobretudo, manter conquistas. Mas para isso, é fundamental que estejamos em um Estado Democrático de Direito – ambiente em que podemos contestar injustiças e lutar por participação e pluralidade. Pensando bem, acho que eu decidi ser mesária nas eleições de 2022 para contemplar essa diversidade e, de alguma forma, contribuir para que ela continue existindo.

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Comportamento

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A juventude encontrou nas redes sociais maneiras para se organizarem e lutarem por um país melhor.
por
Gustavo Pereira, Maria Eduarda dos Anjos e Sônia Xavier
|
10/11/2022
Imagens do Tsunami da Educação
Imagens do Tsunami da Educação e, São Paulo, 15 de maio de 2019. Foto: reprodução/CUT

A participação dos jovens nas seções eleitorais foi destaque nesse ano, resultado da mobilização realizada no início do ano para que pessoas – entre 16 e 17 anos – tirassem o título de eleitor. A presença nas urnas é a concretização do uso das redes sociais como instrumento para o engajamento político dos jovens, prática que se fortaleceu no país a partir de 2013 com as jornadas realizadas pelo Movimento Passe Livre.

Ivan Paganotti, professor e pesquisador em comunicação social, atribui a utilização dos ambientes digitais, nos movimentos políticos no Brasil, à observação do uso de espaços virtuais em movimentos políticos estrangeiros, como nas Primaveras Árabes ou no Movimento Occupy, nos Estados Unidos.

“Muitos desses movimentos começaram a perceber que não adianta só mostrar sua força na rede, é importante transformar essas mobilizações e levar elas para as ruas”, afirma Paganotti.

Segundo pesquisa da TIC Kids Online Brasil 2021, 78% dos jovens brasileiros, entre 9 e 17 anos, utilizam as redes sociais de maneira cotidiana. A maioria dessas plataformas foram criadas para promover interação por meio do compartilhamento da rotina, mas vêm sendo apropriadas como mecanismo de debates e intervenções políticas.

Segundo Ivan, isso se deve, também, ao fato do surgimento de comunidades virtuais. Elas apresentam maior diversidade de discursos, por conta da abrangência que possuem e, seu uso, é potencializado pelas crises climáticas, econômicas e políticas que se tem vivido.

Em entrevista ao Contraponto Digital, a candidata para deputada estadual nas eleições deste ano e ex-presidente da UBES, Rozana Barroso, salientou a importância das redes sociais para o engajamento jovem na política: “Somos a geração do tiktok sim!  Foi através de uma ‘trend’ nessa plataforma que tiramos mais de 2 milhões de títulos de eleitores”.

Coletividade como meio

A aglutinação de jovens em debates políticos se mostrou essencial para a busca de um futuro melhor, é o que acredita Luiz Ramos, secretário da UNE (União Nacional dos Estudantes), órgão representativo dos universitários e um dos organizadores do “Tsunami pela Educação”.

“É importante a gente se engajar politicamente porque todas as transformações sociais, tudo que a gente viveu, não só no Brasil, mas na história do mundo, teve uma grande participação da juventude”, complementa o secretário.

Isso também é evidenciado nas Jornadas de 2013, organizadas pelo Movimento Passe Livre, que reuniu milhares de manifestantes na Avenida Paulista. Lucas Oliveira, ex-integrante do MPL, relata que a divulgação foi feita através do Facebook, como uma forma de comunicação direta com os militantes.

Oliveira comenta que o preço da tarifa e a vontade de integrar um movimento social com uma visão parecida com a que ele tinha, o fizeram participar do MPL: “Querer fazer as coisas de uma maneira que não fosse verticalizada, de uma maneira que as pessoas atuassem diretamente e não por meio de representante”.

Jornadas de 2013
Jornadas de 2013, organizadas pelo Movimento Passe Livre - Foto: Reprodução/ MPL

Campanhas políticas se voltam para as redes

A noção de que a internet é um instrumento com grande poder de influência, também foi notada pelos partidos políticos. O engajamento de candidatos nas redes sociais faz total diferença nas campanhas e, como o foco dessas eleições foram os jovens, o investimento nesta área atingiu patamares maiores.

Israel Russo, assessor do MBL (movimento que apoiou a candidatura de Kim Kataguiri, do União Brasil), afirma que a campanha foi “um mix de metodologias”, tendo o entretenimento como ponte para o contato com os militantes.

 "A gente vai no game, na história, no contexto em que eles estão engajados e os incentivamos a se mobilizarem e se engajarem com política", declara o assessor.

Isis Mustafá, candidata a deputada federal pela Unidade Popular, acrescenta que o engajamento político jovem é importante não somente pela força e participação nas redes sociais, mas também pela inovação sobre o fazer política: “Queremos representar o novo não só na idade, mas nas ideias também”.

O outro lado do universo virtual

Apesar do ambiente digital proporcionar encontros com comunidades que possuem pensamentos semelhantes, é necessário atenção à formação de “bolhas”. Ivan afirma que com a mesma facilidade com que se encontram tais grupos de interesses, há o distanciamento de outras perspectivas e, assim, o crescimento de movimentos radicais.

O especialista comenta que outro malefício da internet é a violência simbólica: “É mais fácil ameaçar (na rede) uma pessoa de morte ou usar uma linguagem mais agressiva e o custo para quem está produzindo esses conteúdos ofensivos parece menor".

Ivan complementa que os próprios algoritmos favorecem conteúdos que tenham grande carga emotiva, os quais são mais facilmente compartilhados: “De modo geral, conteúdos mais ponderados, equilibrados, racionais e com textos mais extensos têm desvantagem em comparação a conteúdos bombásticos”.

Para o pesquisador, essa realidade tem feito com que muitas pessoas deixem ou revejam a utilização das redes sociais. Ele acredita que isso possa implicar numa reconfiguração do uso desses espaços, para que o esgotamento provocado por essa violência seja evitado.

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