A comunidade LGBT+ enfrenta desafios para garantir inclusão e respeito. Entre preconceitos e iniciativas de diversidade, jogadores e criadores lutam por um cenário mais acolhedor.
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Thomas Fernandez
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15/04/2025

Por Thomas Fernandez

 

O baralho de cartas desliza suavemente sobre a mesa. Cada jogador posiciona suas criaturas, lança feitiços e traça estratégias. Magic: The Gathering - MTG não é apenas um jogo de cartas colecionáveis, mas um universo inteiro onde histórias se entrelaçam, comunidades se formam e, para muitos, um refúgio onde a criatividade se expressa. No entanto, para a comunidade LGBT+, esse espaço nem sempre foi – ou é – tão acolhedor quanto poderia ser.

Higson Menezes, jogador de Magic desde 2006 deixa evidente que o jogo não é apenas um passatempo, mas uma parte essencial da sua trajetória. MTG sempre esteve presente em sua vida, mas foi em 2016 que mergulhou de cabeça nesse universo. Com o tempo, não apenas jogou, como também criou eventos e se envolveu em iniciativas voltadas para a diversidade dentro do jogo. A comunidade de Magic tem uma base de fãs vasta e apaixonada. Uma paixão que dificilmente resulta em inclusão. A realidade é que a aceitação da comunidade LGBT+ dentro do MTG ainda é algo nichado. Algumas lojas de card games são acolhedoras e incentivam a diversidade, mas outras simplesmente não se interessam ou não veem um retorno financeiro na realização de eventos inclusivos. E, claro, existem aqueles jogadores que se opõem à diversidade, preferindo manter o ambiente como um “clube fechado”.

Higson já passou por situações de preconceito dentro do jogo. Um dos momentos mais marcantes foi quando começou a divulgar o Pride Magic, iniciativa que criou para promover um espaço seguro para jogadores LGBT+. Em um dos grupos de discussão, um membro se revoltou, alegando que criar esse tipo de evento era “segregar” os jogadores. O discurso dele era de que estavam “separando” a comunidade ao invés de integrá-la. No entanto, a realidade é que espaços seguros são necessários porque, muitas vezes, o ambiente tradicional de lojas e torneios não é receptivo. A comunidade LGBT+ dentro do MTG depende muito das lojas e dos próprios jogadores. Quando a administração do local incentiva a inclusão e combate comportamentos tóxicos, a diferença é perceptível, no entanto, há locais onde a cultura de exclusão persiste. Algumas lojas não se preocupam com esse aspecto, e os jogadores que compartilham dessa visão reforçam um ambiente hostil para quem foge do padrão tradicional.

Mesmo com os desafios, há iniciativas que lutam por um Magic mais inclusivo. Além do Pride Magic, outras figuras na comunidade trabalham para ampliar a diversidade. Criadoras de conteúdo como Lys Alana, Lumi e Carol Anet fazem um trabalho importante, não só por serem parte da comunidade LGBT+, mas também por representarem mulheres dentro do jogo – um outro grupo que, historicamente, enfrenta barreiras no cenário competitivo. Além disso, há ações como as arrecadações organizadas pelo canal Tolarian Community College, um dos maiores criadores de conteúdo sobre Magic no YouTube. O professor, criador do canal, realiza campanhas anuais para arrecadar fundos para a Trans Lifeline, uma organização que fornece suporte direto e assistência financeira para pessoas trans em situação de vulnerabilidade. Essas arrecadações não apenas ajudam a comunidade trans, mas também reforçam a importância de um espaço mais acolhedor dentro do universo de Magic. Enquanto isso, a própria Wizards of the Coast, empresa responsável pelo Magic, tem uma postura ambígua em relação à diversidade. Embora tenha promovido representatividade em suas cartas e histórias, decisões como o retrocesso na relação entre Chandra e Nissa – duas personagens que estavam a caminho de se tornarem um casal – mostram que a empresa ainda prioriza interesses financeiros sobre o compromisso com a comunidade.

A mudança precisa vir de dentro para fora. As lojas precisam se abrir à diversidade, e os jogadores devem estar dispostos a construir um ambiente mais acolhedor. Para quem é LGBT+ e quer entrar no mundo do Magic, Higson considera importante buscar uma loja receptiva, observar o ambiente, conversar com outros jogadores e perceber se há abertura para inclusão. Se um local não for seguro, o ideal é procurar outro. Infelizmente, ainda é necessário esse cuidado.

A comunidade Magic já avançou em termos de aceitação, mas há muito o que melhorar. E a mudança não acontece sozinha, a diversidade dentro do jogo precisa ser incentivada, não apenas por empresas e criadores de conteúdo, mas por cada jogador que deseja um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos.

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Cultura e Entretenimento

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No País que mais violenta a população transgênera, existir é um ato de resistência e reafirmação
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Julia da Justa Berkovitz
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10/04/2025

Por Julia Berkovitz

 

Jordhan Lessa é um servidor público comunicativo, culto, alegre, com uma história inimaginável. Até os seus 46 anos, viveu no que ele chama de “não lugar”. Após batalhas internas e externas contra a discriminação e a violência que sofreu a vida inteira, Jordhan pôde se entender como um homem trans. Aos 11 anos foi levado a um manicômio por ter dito à sua mãe que gostava de uma menina. Durante sua adolescência, Jordhan foi expulso de casa, morou na rua, trabalhou no lar de uma família e somente voltou à casa de sua mãe, após ter descoberto uma gravidez fruto de um estupro.

Daí em diante, Jordhan seguiu batalhando por seu filho, sobrevivendo de subempregos, tendo em vista que sempre foi discriminado por ter uma “leitura muito masculina”. Aos 30 anos, ele conseguiu entrar no serviço público. Ainda assim, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+, as mulheres lésbicas o indagavam porque ele era “tão masculino”. Ele ficava sem entender esse questionamento, pois nunca soube ser diferente.

A única vez em que Jordhan tomou banho no quartel, ele foi chamado na sala do comandante porque uma colega se sentiu desconfortável com a sua presença no vestiário. Até então, no início dos anos 2000, ele nunca tinha ouvido falar de transição de gênero. Após anos enfrentando questões de saúde mental, Jordhan conheceu João W. Nery, o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Nesse momento, Jordhan se reconheceu como um homem trans. Diz ter passado a existir e a viver realmente, achando seu lugar no mundo.

Jordhan
Jojo.

Jordhan explica que para além do problema da falta de empregabilidade de pessoas trans, há a questão da manutenção, não basta apenas contratá-las, elas devem ser tratadas com respeito em um ambiente que não as invalide. Para aqueles que estão passando pela transição, o tratamento não deveria ser diferente. Alguém é trans a partir do momento em que se autodeclara. Para Jordhan, o trabalho que ele faz de conscientização é uma semeadura: não necessariamente poderá colher todos os frutos, mas abrirá caminhos e possibilidades para a população trans combater o preconceito que sofre. 

Esta também foi a vivência de Nathan Breno da Silva, um analista administrativo extrovertido, carismático, dedicado que, mesmo jovem, já possui uma longa trajetória de vida. Nathan adentrou no mercado de trabalho já tendo passado pela transição de gênero, mas, infelizmente, isso não o impediu de ser desrespeitado e discriminado.

Ele alega ter sido muito difícil entrar no mercado de trabalho sendo um homem trans. Em 2018, Nathan participou de um processo seletivo específico para pessoas trans em uma empresa multinacional. Ele e mais dois candidatos foram selecionados. Na época já se reconhecia como Nathan, os outros dois meninos estavam no processo. Ele relata que tiveram todo o apoio possível da empresa, que chegou a fazer um treinamento com a equipe para saber como recepcioná-los. Mesmo assim, eles recebiam inúmeros olhares de julgamento. 

Nathan
Na.

Nathan explica que para aqueles que estão no início da transição, sem os documentos retificados e enfrentando questões de saúde mental, entrar no mercado de trabalho é um processo ainda mais difícil e doloroso. Diz que as pessoas não aceitam quem você é, não respeitam o seu nome e o seu pronome. 

Tanto na multinacional quanto em empregos anteriores, colegas de trabalho tentavam invalidá-lo como homem, pedindo para ver seu corpo, perguntando pelo nome morto ou querendo “vê-lo de verdade”. Nathan conta que, em diversas situações, é necessário fingir que não está ouvindo os comentários preconceituosos e ignorar indagações sobre sua identidade. 

Tanto para Jordhan quanto para Nathan, é a partir da comunicação que as pessoas trans poderão ser verdadeiramente incluídas no mercado de trabalho. Certos termos utilizados em campanhas, como “saúde feminina”, não incluem as mulheres e os homens trans. É necessário criar uma comunicação assertiva e abrangente.  Além disso, é fundamental que pessoas trans tenham espaço e visibilidade para contarem suas histórias e experiências de vida. Palestras e treinamentos são portas de entrada para essa comunidade. Jordhan acredita que o caminho é a sensibilização, as pessoas precisam, primeiro, vê-los como gente. 
 

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Entre o alívio da fuga e as incertezas do futuro, a sobrevivência de uma familia libanesa em território brasileiro revela a resiliência dos refugiados
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Laura Celis Brandão
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15/04/2025

Por Laura Celis

 

O som das explosões ainda ecoava nos ouvidos de Fateh e sua esposa, Nadia quando recebeu uma mensagem da Embaixada brasileira que dizia: "Vôo de Repatriação ao Brasil. Lista de Espera. Embarque dia 18/10/2024 (13h)". Durante meses, a família viveu sob o temor constante dos bombardeios, enquanto a guerra no Líbano transformava ruas familiares em cenários de destruição e escombros. O medo já fazia parte da rotina quando Nadia decidiu partir junto aos seus filhos. Sem alternativas, partiram junto aos filhos Said, 16, Sadal, 11 e Solana, 6 para o Brasil, para deixar o cotidiano de violência.

A guerra avançava sem trégua atingindo não apenas edifícios, mas também famílias inteiras. Casas de parentes foram bombardeadas, bairros antes movimentados foram reduzidos a ruínas, e conhecidos desapareceram, vítimas dos ataques incessantes. Permanecer significava conviver diariamente com a incerteza da própria sobrevivência.

Deixaram para trás a casa onde construíram uma vida, os amigos de infância, os cheiros e sabores de uma terra que, apesar do sofrimento, ainda chamavam de lar. Agora, fisicamente longe do caos, tentam recomeçar em um País que não conheciam, onde tudo soa estranho — inclusive a língua — mas que representa sua única chance de sobrevida e segurança. Entre o luto pelo que ficou para trás e a esperança por um futuro mais digno, enfrentam os desafios da adaptação, enquanto tentam se adaptar, carregam a incerteza de quando, ou se, conseguirão chamar esse novo lugar de lar.

Apesar do alívio de estarem em um local seguro, Nadia e Fateh lidam com um sentimento constante de culpa por terem conseguido escapar enquanto tantas outras pessoas, incluindo familiares e amigos, ainda enfrentam os horrores da guerra, e não contam com o dia de amanhã. Para Nadia, a sensação de impotência é esmagadora, por saber que muitos dos que ficaram não tiveram escolha. O sentimento de sobrevivência se confunde com a angústia por aqueles que não puderam partir, e a cada notícia de mais destruição em sua cidade natal, a dor de estar longe se mistura com o alívio de ter dado uma chance de sobrevivência aos filhos, e a si mesma.

Nadia relembra as dificuldades desde a decisão de partir até a chegada ao Brasil com a família em 18 de outubro de 2024. As quase 10 horas que separam Beirute de São Paulo foram marcadas por incertezas, burocracias e medo. A saída do Líbano exigiu negociações e muita coragem, já que cada passo poderia significar o fim do sonho de recomeçar. Passaram dias aguardando informações, sem garantia de que conseguiriam embarcar. A confirmação de que estariam na lista de espera de refugiados a bordo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) veio apenas horas antes da decolagem, trazendo um misto de alívio e desespero, que aumentava a cada segundo que se aproximava do próximo voo. O tempo era curto para se despedirem do pouco que restava, e a incerteza do que os aguardava no Brasil, e o que deixavam no Libano tornava a partida ainda mais angustiante.

Ao pousarem em solo brasileiro uma onda de alívio tomou conta de Nadia e sua família. Apesar dos desafios da adaptação estarem apenas começando, havia, pela primeira vez em meses, um pequeno sentimento de segurança. A angústia constante dos bombardeios, o medo de não saber se poderiam sobreviver até a próxima hora, deram lugar a uma sensação de proteção, mesmo que temporária. 

A chegada ao aeroporto de Guarulhos foi marcada por uma recepção calorosa, com parentes que haviam imigrado anos antes e agora viviam em São Paulo. Apesar da saudade da terra natal ser profunda, o abraço familiar trouxe um sentimento reconfortante de pertencimento. Os parentes que os receberam foram fundamentais nesse processo inicial de adaptação, oferecendo apoio emocional e prático, como o acolhimento em suas casas, e principalmente, no processo de familiarização com a nova realidade. 

A adaptação ao Brasil, embora seja desafiadora, é vista como uma oportunidade, principalmente pelo futuro dos filhos. As crianças, que enfrentaram por muito tempo o medo diário da guerra, e largaram estudos, amigos e o lazer, agora vivem a oportunidade de estarem em um ambiente seguro, no qual podem acordar sem o medo constante de ataques repentinos. Nadia diz que por sentir muito medo, uma das filhas urinava na cama constantemente. 

O futuro da família, assim como o de muitos refugiados, permanece incerto. O processo de reintegração no Brasil passa por um caminho repleto de obstáculos, mas também de avanços significativos. O país vem se tornando um destino importante para pessoas em buscas de refúgio, principalmente vindas de países do Oriente Médio. Porém, a integração social, cultural e econômica desses cidadãos deslocados exige mais do que políticas públicas de acolhimento, há a necessidade de um esforço para que as diferenças culturais sejam respeitadas, e que a solidariedade seja incorporada na sociedade como um todo. A jornada de Nadia, Fateh e os filhos reflete a luta de milhares de refugiados que buscam, no Brasil, uma chance de recomeço, e acima de tudo, de viver com dignidade.

 

 

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Histórias de reinvenção pessoal quando a vida impõe novos caminhos.
por
Mohara Ogando Cherubin
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10/04/2025

Por Mohara Cherubin

 

Estabelecido em seu cargo há mais de uma década e acostumado a uma rotina previsível, Vandenilson de Assunção, mais conhecido como “Maranhão” iniciou aquela segunda-feira, 19 de junho de 2023, como qualquer outro dia de trabalho. Nada indicava que, em poucas horas, sua vida tomaria um rumo inesperado. Por volta da 20h15min, enquanto voltava para casa de moto com a sua esposa na garupa, um carro avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente contra eles. A motorista, Marcela, 22, não conseguiu frear a tempo. O impacto foi imediato e a dor, avassaladora. No asfalto, em meio à confusão e ao desespero, um único pensamento dominava a sua mente: se indagava como Ramon, seu filho mais novo, ficaria sem os pais.

Hoje ele é um homem que, mesmo carregando consigo um recomeço de vida constante, está sempre com um sorriso no rosto. Hoje tem 44 anos e aprendeu a encarar a vida com um olhar diferente, uma esperança de que um novo dia sempre virá. A partir de cuidados, companheirismo e perseverança, ele aprendeu que nem todo recomeço é uma escolha. Reflete diariamente que às vezes, a vida o força a recomeçar, e é na superação desses desafios que diz se reinventar.

Com uma infância e adolescência tranquilas, Maranhão cresceu em São Luís, capital do Estado, onde também conheceu o amor e se casou com Maria da Glória Almeida Diniz, 48, em 2006, com quem teve três filhos. Em 2008, o casal recebe um convite para passar um mês de férias em São Paulo, na casa da irmã de Maranhão, que já residia na cidade. Aos poucos, uma simples viagem marcada pela curiosidade se transformou em um desejo pelo novo, fazendo com que o período de “férias” da família se prolongasse na cidade.

O surgimento de uma proposta de trabalho na área de segurança fortaleceu ainda mais o desejo de permanecer em São Paulo. Desse modo, junto de sua esposa e os três filhos do casal Carlos Henrique, 23, Isaac, 21 e Ramon, 16, Maranhão se estabelece em São Paulo e inicia uma nova jornada pessoal e profissional. Um tempo depois, em 2009, ele iniciaria seus serviços como porteiro e manobrista no Porto Seguro, um condomínio residencial localizado na Zona Norte de São Paulo.  

Apesar de atuar na área de segurança do condomínio, Maranhão nunca foi uma pessoa de apenas um "bom dia" e "boa noite". Desde os primeiros dias de trabalho, ele se mostrou alguém que realmente se importa com os moradores. Com seu jeito simpático, prestativo e sempre atento às necessidades de cada um, foi construindo laços de amizade, conquistando a confiança das famílias e se tornando uma figura essencial no dia a dia do condomínio. Foi nesse período que recebeu o apelido carinhoso de "Maranhão", uma referência ao seu estado de origem, e, até hoje, mantém essa mesma proximidade e dedicação no trabalho.  

A recuperação foi um dos momentos mais difíceis de sua vida. Tanto ele quanto a sua esposa tiveram que passar por cirurgias devido a fraturas no fêmur e nos braços. Ambos se viram totalmente dependentes dos amigos e vizinhos para realizar atividades simples e sobreviver, em razão do afastamento das atividades profissionais. Ambos consideram que a fisioterapeuta Carla foi um verdadeiro anjo em suas vidas, fazendo com que não desistissem do tratamento e os ajudando a dar os primeiros passos de volta à vida. No total, foram 19 meses de recuperação até que o porteiro estivesse apto a retornar ao trabalho. 

Arquivo 1
Vandenilson de Assunção, o "Maranhão".

 

A retomada da vida foi uma experiência dolorosa para Maria Luiza Martins. Apelidada de "Malu", viúva, 74, vivia uma vida agradável com os três filhos, Janaina, 46, Juliana, 44, e José Lucas, que teria 42 anos atualmente. A família, que havia perdido o pai anos antes, em 1996 e havia encontrado força e consolo em meio às dificuldades da perda. As filhas mais velhas de Malu estavam escrevendo suas próprias histórias e já caminhavam para a independência financeira, enquanto o caçula não conseguia manter estabilidade nos empregos, por conta de seus comportamentos. A perda do filho José Lucas foi outra situação que marcou uma nova interrupção da vida no dia a dia de Maria Luiza.

Ele era um rapaz alegre, carismático e educado, rodeado de colegas e pessoas que o amavam, mas, a partir dos 15 anos de idade, o jovem teve a acesso a drogas ilícitas e começou a fazer uso contínuo das substâncias. Desde então, suas irmãs tentaram ajudá-lo de diversas formas, entretanto, ele não aderia a nenhum tratamento, e só se envolvia cada vez mais com más companhias, "amigos" que apoiavam e acompanhavam o rapaz nessa jornada autodestrutiva.

E foi em 2004 que José Lucas morre vítima de assassinato em um posto de gasolina da região. Ele tinha apenas 22 anos na época do crime. Os dias, meses e anos que se seguiram foram marcados pela dor de uma mãe que não se conformava com a terrível perda dos homens da sua vida, seu marido e seu filho. O diagnóstico de depressão piorou consideravelmente a partir daquele fatídico domingo, e Malu e as filhas seguiam procurando entender e aceitar a tragédia. 

20 anos depois Malu vive em uma residencial para idosos e o ambiente a ajuda a tornar os dias mais fáceis.

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Malu e as filhas, Janaina e Juliana.

 

Tanto Maranhão, quanto Malu, tiveram suas vidas marcadas pela necessidade de recomeçar por caminhos diferentes. Ele, enfrentando a dor física e os desafios da recuperação após o acidente, e ela, aprendendo a lidar com o vazio deixado pela perda de um filho. Porém, apesar das cicatrizes que carregam, ambos encontraram forças para seguir em frente, mostrando que a resiliência está nos pequenos gestos do cotidiano, no apoio de quem está por perto e na capacidade de encontrar novos significados para a vida. Recomeçar não é esquecer, mas aprender a viver apesar das ausências e transformações, valorizando cada dia como uma nova oportunidade. 
 

 

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São 800 quilômetros percorridos em 10 horas de viagem pela dona Zenaide.
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Giulia Fontes Dadamo
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20/03/2025

Por Giulia Dadamo

 

É madrugada, e a cidade de São Paulo ainda resiste ao sono. No terminal rodoviário da Barra Funda, a sacoleira Zenaide ajeita a mochila nas costas e observa o movimento frenético ao seu redor. O alarde dos vendedores ambulantes que fazem o último grito de seus produtos se mistura ao som metálico do embarque. Ela, no entanto, já está com o olhar e os ouvidos acostumados. Aquele não é o seu objetivo. O dela é o longo trajeto que começa ali, no Terminal, mas vai muito além. Ela é uma dos milhares de sacoleiros que fazem o vai e vem entre a 25 de Março e suas cidades de origem. A dela, porém, é mais longe do que a da maioria. Todo mês, pelo menos uma vez, ela segue com sua mercadoria abarrotada de bijuterias, roupas e acessórios para abastecer sua lojinha em Umuarama, interior do Paraná. Seja por viagens organizadas com ônibus fretado com grupo de pessoas da região, ou às vezes pelo transporte da Viação Garcia, ela nunca deixou a desejar no estoque, que é o sustento da sua família apesar do longo tempo de estrada.

Durante as 10 horas de viagem, ela atravessa os 800 km em direção ao lugar onde as calçadas são mais largas e o ritmo da vida é mais lento, mas igualmente apertado. Observa a estrada como quem conhece cada curva, cada quebra de pista. Ela pensa nos clientes de cidades pequenas, que nunca se cansam de olhar as mesmas peças, os mesmos produtos, e que talvez nunca terão acesso à imensidão do comércio de São Paulo.

Ao contrário do que o nome sugere, a imagem do sacoleiro carregando sacos pesados nas costas é um tanto desatualizada. Zenaide, por exemplo, transporta suas mercadorias em mochilas robustas, com zíperes resistentes e alças reforçadas. Não há muito romantismo na rotina que envolve essa jornada: o trabalho exige resistência, mas é também uma questão de estratégia e adaptação. No trajeto, ela e seus colegas de profissão têm o corpo todo moldado pela necessidade de carregar e proteger as mercadorias. A mochila vai apertando os ombros, as costelas começam a reclamar do peso. 

Ela aprendeu, com o tempo, a organizar melhor os itens, buscando distribuir o peso de forma mais uniforme para evitar a dor do cansaço. Mesmo assim, os quadris doem. O alívio vem apenas quando ela pode fazer a primeira pausa na viagem, ainda que breve. Mas a jornada não é só física. Cada quilômetro percorrido a leva a repensar sua vida e o que significam, de fato, essas mercadorias que carrega nas costas. Roupas, calçados, bijuterias e acessórios fazem parte daquela imensidão de mochilas. Apesar de serem itens pequenos, eles ocupam um grande espaço no mercado, principalmente nas cidades menores. 

Por mais que o comércio da 25 de Março seja um universo de possibilidades infinitas de estoque, muitas das peças ali vendidas são repetitivas, mudam apenas de cor ou detalhe. Os clientes de Zenaide, em Umuarama, talvez não tenham ideia de que, ao comprar uma simples bolsa de camurça, estão adquirindo um produto que percorreu mais de 800 km, atravessando estradas sinuosas e absorvendo os solavancos do ônibus fretado. Talvez nem imagine que a vendedora que lhe oferece o item teve que negociar cada centavo no mercado paulista, empurrando, mais uma vez, a fronteira do preço justo.

A sacoleira é uma figura de certa forma invisível, uma trabalhadora que transita entre mundos sem ser notada por completo. Sua loja é o reflexo de sua resiliência, mas é o peso da mochila e da jornada, invisíveis aos olhos dos clientes, que definem sua realidade. O mercado de sacoleiros, longe dos holofotes e da glamourização de alguns setores do comércio, sobrevive da repetição das idas e vindas, da reconstrução constante de suas rotinas, onde cada viagem, seja ela feita em grupo ou sozinha, carrega em si uma bagagem emocional e física densa.

Essa bagagem vai além do peso das mochilas e sacolas que preenchem os ônibus de passageiros lotados. É o peso das expectativas, dos sonhos de crescimento, de ser mais do que a vendedora ambulante, de se colocar no mesmo patamar de quem transita nos centros comerciais da metrópole, longe da poeira das estradas. Mas, no fundo, cada sacoleira tem uma missão íntima que transita entre o pragmatismo do sustento e o desejo de empreender algo além da rotina.

À medida que Zenaide se aproxima de seu destino, as paisagens vão mudando. Asfalto dá lugar a estradas simples, sinalizando que o ritmo da vida local se aproxima. Mas ela não pensa nisso enquanto observa as paradas e pequenas cidades que surgem à beira do caminho. O que invade sua mente são as pequenas apostas que fez, as estratégias que criou para diversificar seu estoque e garantir que, quando ela voltar à sua loja em Umuarama, possa ver novamente o sorriso dos seus clientes e o reconhecimento de seu esforço.

O sacoleiro é, acima de tudo, alguém que sabe lidar com as idas e vindas da vida, com os desafios de quem está sempre no movimento, sem nunca parar. Zenaide segue sua jornada, entre os sorrisos de seus amigos de estrada e as ruas que chamam seu nome. O destino talvez nem seja o ponto final da viagem. Talvez, o que importa, é o trajeto em si. O constante ir e vir, o desafio do trabalho invisível, da carga carregada com tanto esforço, e o olhar atento de quem, como ela, sabe que no vai e vem do mundo, sempre há algo a aprender e a construir.


 

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Partindo de um eixo central, a CNV auxiliou e teve o apoio de diversas Comissões espalhadas pelo Brasil, à exemplo da PUC-SP
por
Danilo Zelic de Abreu Lima
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02/06/2022

Por Danilo Zelic

A ditadura civil-militar, regime político que durou 21 anos, de 1964 a 1985, foi marcado por diversas atrocidades humanitárias. Conhecido como um período de exceção, foi marcado, entre outros fatores, por: graves violações aos direitos humanos; numerosos Atos Institucionais; bipartidarismo; censura aos meios de comunicação; perseguição à oposição civil e política; prisões arbitrárias; um sistema judiciário favorável ao regime; e o aumento da desigualdade social no país.

Comparado com países da América Latina que passaram pelo mesmo tipo de regime autoritário e realizaram uma série de políticas públicas após a volta do estado democrático de direito, denominadas como Justiça de Transição – como a Argentina, Chile e Uruguai – a maneira como o Brasil executou essas medidas políticas e judiciais resulta do acerto entre os políticos e militares da época nos últimos anos do regime.

A iniciativa, tomada em grande medida da sociedade civil como instituições de direitos humanos, familiares de mortos e desaparecidos políticos, parcela de representantes da Igreja Católica e a vontade de políticos da oposição e partidos criados após o período de exceção, gerou uma série de ações foram formuladas para que o Estado brasileiro reconhecesse os crimes e violações aos direitos humanos durante a ditadura.

Desde então, ocorreram três ações promovidas pelo Estado direcionadas à Justiça de Transição: Comissão de Mortos e Desaparecidos (1995) e a Comissão da Anistia (2002), ambas no governo de Fernando Henrique Cardoso; e a Comissão Nacional da Verdade (2011), no governo de Dilma Rousseff. A última considerada como a que mais se aproxima de um projeto de Justiça de Transição.

Cartaz de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia - Foto: Reprodução
Cartaz de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia - Foto: Reprodução

Um elemento importante para compreender a implementação da CNV foi, sobretudo, a condenação que o País sofreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), no caso “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil”.

Em 7 de agosto de 1995, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/Americas (HRW), em nome dos mortos e desaparecidos políticos no contexto da Guerrilha do Araguaia, entraram com uma ação contra o País para que houvesse um reconhecimento dos crimes cometidos pelo Estado durante a Guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1975, marcado por conflitos desproporcionais pelo Exército brasileiro contra militantes da resistência armada no norte do país.

No ano de 2009, a Corte aceitou a denúncia contra a Federação e o processo vigorou até 24 de novembro de 2010, dia da condenação do Brasil no caso Gomes Lund. De acordo com Paulo Cesar Gomes, historiador, escritor e coordenador e editor-chefe do projeto História da Ditadura, a política de Justiça de Transição adotada pelo Brasil tem as suas “especificidades” e é considerada pela maioria dos especialistas que “foi e vem sendo muito lenta”.

“No caso do Brasil, é meio que um consenso que foi e vem sendo muito lento, mas como também ele tem vários problemas no sentido de tornar a nossa transição incompleta, o que acaba dando essa característica da democracia brasileira hoje de muita fragilidade”, diz Gomes.

A LEI DA ANISTIA

A Lei nº 6.683, mais conhecida como Lei da Anistia, foi sancionada em 28 de agosto de 1979, durante o último governo do regime militar, João Batista Figueiredo, seguindo a lógica de seu antecessor, Ernesto Geisel, de uma abertura política “lenta, gradual e segura” em direção a um regime democrático.

Cartaz do III Encontro Nacional das Entidades da Anistia
Cartaz do III Encontro Nacional das Entidades da Anistia - Foto: Reprodução

Propunha anistiar todos aqueles que foram condenados judicialmente durante o período militar, incluindo políticos que tiveram seus mandados cassados, jornalistas, professores, universitários punidos pelos Atos Institucionais – decretos editados ao longo do regime que permitiam reprimir a conduta de pessoas da sociedade, usando o método da violência, forçando o exílio dos perseguidos, controlando a imprensa, entre outras situações.

Ao mesmo tempo, agentes do Estado responsáveis por crimes como torturas, desaparecimento forçado, repressão e perseguição violenta também foram anistiados, impossibilitando punições judiciais e criminais, a partir da implementação de uma ferramenta estatal para apurar tais violações, como foi a Comissão da Verdade.

No ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou a revisão da Lei de Anistia sob a relatoria do ex-ministro Eros Grau. Por sete votos a dois, a Corte manteve o entendimento da Lei adotada pelos militares, contrariando familiares de mortos e desaparecidos políticos, entidades de direitos humanos e partidos políticos favoráveis a revisão da lei. O entendimento se mantém até hoje, com ações movidas pela sociedade civil questionando a revisão da lei.

De acordo com Paulo Cesar Gomes, a produção de materiais durante a CNV, que serviriam de auxílio para a formulação de peças jurídicas direcionadas a população determinada a processar o Estado pelos crimes cometidos durante o período foi limitada pela Lei de Anistia. “Se sabia que era um órgão que tinha um papel de investigar, de aprofundar o conhecimento desse período, dar subsídios para que as pessoas buscassem seus direitos”, conta o historiador.

A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

27 anos depois do fim da ditadura civil-militar no Brasil, o surgimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – instituída pela lei 12.528 durante o então governo da Presidente Dilma Rousseff, em 18 de novembro de 2011 – foi um marco político institucional no que diz respeito ao reconhecimento de crimes e violações aos direitos humanos cometidos pelo próprio Estado. O trabalho realizado pela CNV durou cerca de três anos, iniciando no dia 16 de maio de 2012, até a data da entrega do Relatório Final, 12 de dezembro de 2014, determinado a sua elaboração a partir da lei. Esse ano, a CNV completou dez anos de sua instalação.

Partindo do princípio pela busca da memória e da verdade após o levantamento de graves violações aos direitos humanos entre os anos de 1946 e 1985, a Comissão CNV teve um papel semelhante ao Projeto: Brasil Nunca Mais, dos anos 80. Elaborado com 850 mil processos judiciais do Superior Tribunal Militar (STM), o projeto reuniu documentos do próprio Estado comprovando torturas e violações aos direitos humanos contra presos políticos.

Ex-presidentes e a presidente Dilma Rousseff, na posse dos membros da Comissão Nacional da Verdade - Foto: Jane De Araújo/Agência Senado
Ex-presidentes e a presidente Dilma Rousseff, na posse dos membros da Comissão Nacional da Verdade - Foto: Jane De Araújo/Agência Senado

Como lembra o historiador Paulo Cesar Gomes, a instalação da Comissão foi muito simbólica, desde o início dos trabalhos, passando pela realização de suas atividades até a entrega do Relatório Final.

“Esse simbolismo pode ser visto em imagens da época, não só vídeos, mas fotos também e reportagens, de como a instalação da Comissão ela foi muito midiatizada, midiatizada pela importância da iniciativa, pela centralidade que o Governo Dilma deu à Comissão. Também pela própria cerimônia de abertura que contou com a presença de todos os ex-presidentes brasileiros que estavam vivos naquele momento”, conta Gomes.

Nesses 2 anos e sete meses de trabalho, a CNV teve a participação de 200 pesquisadores e consultores; colheu 1121 depoimentos, 132 deles de agentes públicos; realizou 80 audiências e sessões públicas; e efetuou 11 inspeções de instalações públicas com o acompanhamento das vítimas de torturas que sofreram nos respectivos lugares. O historiador aponta que não foi somente a sua própria instalação que impactou o cenário político brasileiro, mas também a criação da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Comissão.

Para ele, a LAI “fortalece o sentido de cidadania”. “Se a gente considera o acesso às informações públicas, pessoais que estão em Órgãos Públicos, como parte da garantia de direitos que não necessariamente tem a ver com reparação histórica”, relata. A Lei facilita, além de pesquisadores e historiadores, jornalistas que necessitam da busca por informações públicas.

No mesmo momento da criação da CNV, diversas Comissões da Verdade foram tomando conta de todo o território brasileiro, não só nas principais capitais do país, mas em regiões onde ocorreram diversas violações aos direitos humanos e tiveram pouca cobertura midiática, pelos principais meios de comunicação. As Comissões no âmbito estadual, municipal, sindical, legislativo, universitário e as chamadas comissões temáticas, tiveram papel importante para alimentar a Comissão Nacional com materiais e informações usadas para a elaboração do Relatório Final.

Entrega do Relatório Final
Entrega do Relatório Final - Foto: Fabrício Faria|CNV

O Relatório Final da Comissão é dividido em três volumes, respectivamente: as atividades da Comissão, as graves violações de direitos humanos, conclusões e recomendações; textos temáticos; e mostos e desaparecidos.

Dentre outras informações importantes, o Relatório totalizou 434 mortes e desaparecimentos político de vítimas do Estado brasileiros entre o recorte estudado no Órgão. Entres as 434 vítimas de violência da ditadura, 210 continuam desaparecidas. Reconheceu, também, o nome de 377 agentes da repressão responsáveis direta ou indiretamente por torturar e exercer atividade violenta contra pessoas detidas nas instalações do regime.

Ao final do Relatório, estão presentes 29 recomendações direcionadas às autoridades nacionais, com o objetivo de auxiliar na criação de políticas públicas contra violações aos direitos humanos, à punição de autores de crimes durante o regime e a eliminação de práticas e dispositivos que remetem à época.

A COMISSÃO DA VERDADE DA PUC-SP – NADIR GOUVEA KFOURI

A partir da criação de Comissões da Verdade por todo o País, a Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), que foi palco de duas situações violentas durante o regime militar, também realizou a sua, a Comissão da Verdade da PUC-SP – Reitora Nadir Gouvea Kfouri – CVPUC. Foi instalada no dia 10 de maio de 2013 e finalizou suas atividades no dia 18 de setembro de 2017, acontecendo o ato de encerramento no TUCARENA e o lançamento do Portal da CVPUC.

Assim como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), produziu um Relatório Final, recomendações direcionadas ao direito à memória e os direitos humanos no País, a história da instituição durante o regime militar, e sobretudo, foi responsável por apurar o desaparecimento do estudante de Ciências Econômicas João Maria Ximenes, em 1974, a partir do contato de familiares com membros da Comissão.

Instalação da Comissão da Verdade da PUC-SP - Foto: Reprodução
Instalação da Comissão da Verdade da PUC-SP Foto: Reprodução

Segundo Leslie Denise Beloque, economista e professora da instituição e membro da Comissão da universidade, havia dois objetivos bem claros: registras a memória da universidade e uma ação pedagógica. “Tanto registrar, recolher uma série de eventos, de depoimentos para não deixar se perder essa memória, registrar essa memória, e dois fazer alguns atos, uma série de atividades que levasse para a comunidade o conhecimento dessa história”, conta a professora.

A economista ficou responsável pela pesquisa dos cinco estudantes da PUC que foram mortos pelo regime. Durante a pesquisa, as memórias do tempo que dividiu com eles estavam muito presentes. “Tinha dias que eu estava em casa escrevendo, trabalhando no computador, e eu tinha que me levantar e sair para andar. Porque palavras não são só palavras. Quando você começa a contar, escrever e pesquisar sobre essas coisas, todas as emoções, sofrimentos, alegrias e tristezas que você teve na época desses fatos, voltam como uma realidade assustadora”, diz Belloque.

Á frente da Arquidiocese de São Paulo, o Cardeal de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns teve papel fundamental na resistente ocorrida nas instalações da universidade. De acordo com Rosalina de Santa Cruz, assistente social e professora da universidade, episódios envolvendo o Cardeal também foram lembrados na Comissão.

“A história da PUC, não é centrada em seus presos, é centrada na resistência que foi a nossa universidade, e a resistência da PUC se dá pelo papel de Dom Paulo. Então não era só a gente ter uma reitora eleita, que Dom Paulo conseguiu naquele momento ter uma reitora de esquerda, uma professora [se refere a Nadir Gouvea Kfouri]. Mas também abrigamos a SBPC, a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência”, lembra a professora.

A lembrança que Rosalina tem sobre a CVPUC passa pela carreira profissional e história pessoal. Lecionando na instituição desde os anos 80, “filha da puc” como ela mesmo diz, sentiu um certo alívio misturado de uma sensação de felicidade ao participar da Comissão. O ponta pé inicial da CVPUC, segundo Cruz, partiu da própria comunidade acadêmica com o apoio do Padre Rodolpho e não da Reitora, nomeada pela instituição e não escolhida a partir do voto. “É uma universidade que eu aprendi, que eu vivi a dar aula, até hoje dou e tenho um verdadeiro afeto e amor pela minha universidade que eu milito”, relata a professora.

Encerramento da atividades da CVPUC - Foto: Reprodução Facebook PUC - SP
Ato de encerramento das atividades da CVPUC - Foto: Reprodução Facebook PUC - SP

Tanto Belloque quanto Cruz avaliam que no momento da Comissão houve muito apoio e participação da comunidade puquiana. “A gente agitou bastante, todas as datas importantes da PUC a gente não deixava passar em branco, todos os acontecimentos, mesmo que for na sociedade, a gente fazia na prainha, a gente não deixava passar em branco nada dessas coisas”, lembra Belloque. A assistente social segue na mesma direção, porém com uma ressalva que considera importante, a continuidade da discussão trazida pela Comissão.

“Na Comissão não teve uma continuidade para nossos alunos, em conseguir que os alunos voltassem e reconstruir essa história que passou aqui na nossa rampa, no Pátio da Cruz, na nossa universidade”, ressalta Cruz.

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Depois de um longo processo de apagamento, artistas contemporâneos passam a reivindicar as origens negras do jazz. Ouça.
por
Enrico Souto, Maria Eduarda Magalhães, Mayara Neudl e Milena Camargo.
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27/05/2022

 

Nesse Podcast, você vai encontrar uma contextualização sobre uma das maiores lutas que vem ocorrendo no cenário musical, em especial, do Brasil: a retomada das raízes afrodescendentes do jazz. Recentemente, Jon Batiste, competindo com grandes nomes da música pop, foi o o 11º artista negro a levar o prêmio de Álbum do Ano em 64 anos de Grammy.

O que o destaca entre os demais competidores é seu esforço em transportar o jazz, gênero tradicional que perdeu espaço na música popular atual, para dentro das sensibilidades contemporâneas, mesclando-o com sonoridades modernas do pop e do rap. E, indo além do experimento estético, trazendo a luz a história de resistência e autoestima negra envolta no jazz, mas que foi sistematicamente apagada durante décadas, desde seu surgimento no século XX.

Aqui no Brasil, especialmente, o jazz recebeu uma imagem de música rebuscada, fina, feita por e para a elite. No entanto, artistas contemporâneos, como Baco Exu do Blues e Jonathan Ferr, lutam para inverter a narrativa. Por que isso acontece, e qual a importância deste fenômeno?

Venha descobrir conosco, clicando aqui.

 

 

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As histórias de um motorista de aplicativo em Sampa
por
Milena Flor Tomé
|
12/05/2022

Por Milena Flor

Em meio a selva de pedras, Fernandinho se desloca pela capital paulista. Pouco sabe para onde vai, o dirigir se faz na arte dos encontros. Entre as ruas e as histórias, é ali que ele também se encontra.  De roupa alaranjada da cabeça aos pés, ele traz o sorriso no rosto. Alegria de quem já muito sofreu e entende que o único jeito de seguir a vida é se levantar depois de cada queda. Ainda que não admita ponto fixo no mundo, é em um quarto/cozinha/banheiro que se aconchega no fim do dia. Ele é seu próprio lar. Com a câmera na mão e na escuta, a autora do vídeo retrata a mistura do amor com o humor, de gente que mesmo com pouco ousa sonhar.

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Sem cura, a busca pelo tratamento adequado do autismo é uma corrida contra o tempo
por
MILENA FLOR TOMÉ
|
25/05/2022

Por Milena Flor Tomé

O vai-e-vem do balanço no quintal é o lugar favorito do Miguel. Sair do parquinho de madeira exige oferecer a bolacha da vaquinha que ele ama. Loiro de olhos azuis, Miguel é super carinhoso. É ele o dono do beijo de lambidas que às vezes sai com algumas mordidas. Já Benjamin gosta mesmo é de pular. Conhecido como Pipoquinha, ele pula o dia inteiro. Seja na cama elástica ou no sofá. De vez em quando, arquiteta planos para fugir de casa. É uma formiguinha apaixonada por doces. Melina é brava. É ela que manda nos irmãos. Se quer alguma coisa, faz dar certo. Ninguém tira os brinquedos que são dela. Encher três balões e colocar uma vela em cima do bolo já é aniversário, sua comemoração favorita. O “fefessário” a deixa eufórica.

Miguel, Benjamin e Melina são os trigêmeos da Manu.

“Eu sempre fui criada para ser independente. Então, minha vida foi assim: tenho que estudar para não depender de homem. Antes deles (filhos), eu trabalhava em dois empregos, mas nunca soube cozinhar direito, nunca tinha trocado uma falda. A gente se prepara conforme as coisas acontecem. E meu marido é muito parceiro. Temos a meta de vencer cada dia”. Foto: arquivo pessoal.
“Eu sempre fui criada para ser independente. Então, minha vida foi assim: tenho que estudar para não depender de homem. Antes deles (filhos), eu trabalhava em dois empregos, mas nunca soube cozinhar direito, nunca tinha trocado uma falda. A gente se prepara conforme as coisas acontecem. E meu marido é muito parceiro. Temos a meta de vencer cada dia”. Foto: arquivo pessoal.

“Cada criança tem o seu tempo”. Essa era a frase que a psicóloga Manoela Crescêncio mais escutava. Acostumada com a rotina e o jeito deles, não notava nenhum sinal de alerta. Até que recebeu um aviso das educadoras da creche municipal sobre um possível atraso no desenvolvimento social dos seus filhos. Ao investigar, recebeu o diagnóstico de suspeita de Transtorno Espectro Autista (TEA).

O autismo é uma condição grave que prejudica a comunicação e interação social. O diagnóstico é clínico e interdisciplinar. Até o momento, não há exames específicos para a detecção. Os traços se baseiam em déficits persistentes, padrões restritos e repetitivos que são analisados por observação direta do comportamento e uma conversa com os pais ou cuidadores. Segundo o neuropediatra Jaime Lin em entrevista para esta matéria, as características estão na dificuldade para estabelecer uma conversa, anormalidade no contato visual e interesse incomum por objetos ou aspectos sensoriais.

Os sintomas geralmente se apresentam de forma precoce no desenvolvimento, mas podem se manifestar apenas quando há uma maior demanda social. Os sinais devem ser qualificados por um profissional treinado e capacitado, seja por neuropediatra, psiquiatra, fonoaudióloga, psicóloga, terapeutas ocupacionais ou psicopedagogas.

“Eu que detesto chorar na frente dos outros, fiquei até com a garganta trancada”, lembra Manoela do dia que recebeu o diagnóstico dos trigêmeos.

Ela que sempre quis ser mãe, não esperava lidar com algo tão difícil. Porém, sabia que se não fizesse algo, ninguém mais faria pelos seus filhos. Noites de estudos constantes, enquanto o trio realizava terapias multidisciplinares que não apresentavam nenhuma melhora no desenvolvimento. Em contato com outras mães, através de grupos online, Manoela conheceu a Análise Comportamental Aplicada (ABA).

A ABA é uma terapia baseada na ciência da análise do comportamento que ajuda no autismo com as habilidades, principalmente, de comunicação. O objetivo é aumentar os comportamentos que são úteis e diminuir os que são prejudiciais ao aprendizado. Apesar de ser muito conhecida nos EUA, Manoela não encontrou nada na cidade onde reside em Santa Catarina. As poucas técnicas aplicadas por conta própria já apresentavam resultados positivos nos seus filhos. Só que o custo para o tratamento era caro demais para a família.

“Pensava em vender minha casa. Só que são três filhos. Se eu vendesse a minha casa, não conseguiria pagar um ano de terapia”, conta Manoela que conseguiu o recurso terapêutico por meio de uma ação judicial que durou dois anos e meio.

De acordo com o art.3º, inciso III da Lei nº12.764/12 são direitos da pessoa com espectro autista o acesso as ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades, incluindo: o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo; o atendimento multiprofissional; a nutrição adequada, terapia nutricional; os medicamentos e informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.

A vitória neste caso é uma exceção, visto que na maioria das vezes, o Brasil não cumpre totalmente o que está escrito na lei. “A estrutura que temos é quase nenhuma na rede pública para seguir a legislação. Principalmente quanto ao tratamento mais adequado. As medidas são mais paliativas do que para atender as necessidades das crianças”, diz o advogado Alexandre Simon que atuou na ação dos trigêmeos.

Passado um mês com o acesso a terapia, as crianças já tiveram uma significativa evolução. Respondem quando chamadas pelo nome, seguem comandos, apontam para pedir coisas e até emitem várias sílabas. Por outro lado, Christiane Silveira não teve a mesma sorte com o filho Kauã que também possui espectro autista. Cabeleireira, ela se vira junto com o marido que é colorista para conseguir pagar as terapias. “É muito difícil, pelo SUS não consegui. Investimos em média R$3mil por mês. Fora os outros gastos e o tempo que exige”, relata Christiane que também recebe ajuda financeira da família.

“Eu não me importo de sair na rua com meu filho pulando, cantando alto. Eu não preciso que ele deixe de fazer isso. Ele é feliz! Só queremos que ele consiga ter uma independência”. Foto: arquivo pessoal.
“Eu não me importo de sair na rua com meu filho pulando, cantando alto. Eu não preciso que ele deixe de fazer isso. Ele é feliz! Só queremos que ele consiga ter uma independência”. Foto: arquivo pessoal.

Kauã tem três anos, é uma criança muito alegre. Sorri o tempo todo e adora contato físico. Antes tinha um foco extremo para letras e números. Hoje, seu amor é pelos animais. Jogos no celular, desenhos animados, músicas, tudo tem que estar relacionado ao mundo animal. Ele faz acompanhamento com fonoaudióloga, psicopedagoga, terapeuta ocupacional e nutricionista. Para a mãe, o que transformou a vida dele foi a mudança na alimentação. Comenta que a diferença depois de dois meses foi nítida com a diminuição das crises.

“Alimentos processados e ultraprocessados, ricos em açúcares e aditivos podem piorar sintomas no autismo por promover inflamação, prejudicar a função intestinal e aumentar a hiperatividade. Algumas proteínas alimentares, como glúten e a caseína do leite animal, podem intervir no sistema imune, neurológico e piorar sintomas gastrointestinais e comportamentais. Dessa forma, uma alimentação com consumo de frutas, legumes, verduras, cereais, leguminosas e sementes e a exclusão de glúten e leite animal são ideais para pessoas com autismo”, recomenda a nutricionista Maria Rosa Rodrigues.

Tanto os trigêmeos da Manu quanto o Kauã fazem musicalização infantil. Dada a ligação entre o sistema de neurônios espelho e a imitação, a música tem sido sugerida como parte dos programas de terapias. Um estudo publicado pela revista científica Translational Psychology, de 2018, sugere que as atividades musicais podem melhorar a habilidade de comunicação de crianças autistas. O músico Guilherme Fogaça trabalha em conjunto com o plano dos terapeutas. Um dos instrumentos mais usados é o xilofone.

“Miguel era um dos que menos gostava de música, hoje é um dos que mais se identifica. Tanto que tem uma canção cristã que é ‘Alvo Mais Que a Neve’. Todas as vezes que canto, ele sempre olha e sorri”. Foto: arquivo pessoal.
“Miguel era um dos que menos gostava de música, hoje é um dos que mais se identifica. Tanto que tem uma canção cristã que é ‘Alvo Mais Que a Neve’. Todas as vezes que canto, ele sempre olha e sorri”. Foto: arquivo pessoal.

“Miguel gosta de girar as baquetas na mão. Entrego apenas uma, a primeira tem que tocar no xilofone. Quando ele toca já trabalho a questão motora. E digo: ‘muito bem, você tocou o xilofone’. Já entra a comunicação. Como recompensa entrego a outra baqueta para que fique girando as duas na mão”, relata Guilherme sobre um dos atendimentos.

Há uma variedade de terapias voltadas para o tratamento do autismo, isso porque cada caso atende uma necessidade específica. Os êxitos virão na medida que ocorre a conciliação ideal para as características próprias daquele espectro. Uma busca que, geralmente, envolve investimento financeiro que não é acessível para todas as famílias. Desta forma, Manoela abriu com ajuda de outras mães uma Associação de Amigos do Autista (AMA), na cidade de Tubarão (SC). A organização leva informações úteis para os pais e terapia gratuita para as crianças autistas, a partir do trabalho voluntariado de profissionais. Christiane também sonha em ajudar outras pessoas, por isso pretende cursar nutrição e se especializar na área do autismo.

Caro leitor, concedo este parágrafo para explicar a escolha do foco desta matéria. Minha proposta inicial era escutar os pais de pessoas com espectro autista, mas ao longo das entrevistas percebi o forte ativismo, especificamente, das mães. Vale ressaltar que a reportagem é sobre este aspecto e os possíveis tratamentos para o autismo. Não tendo como objetivo representar propriamente os autistas, visto que para isso é necessário escutá-los. Além da reivindicação de direitos, é importante o reconhecimento das pessoas com deficiência como capazes de se posicionar sem a interferência de terceiros.

Mãe atípica

O nascimento de um bebê com características atípicas é um choque para os pais, que têm seus anseios frustrados. Apesar das reações iniciais, as mães geralmente aceitam com maior facilidade e logo, começam a procurar por mais informações. Nem sempre os conteúdos estão disponíveis com facilidade, e isso a pesquisadora e ativista Patricia Salvatori descobriu com o diagnóstico de Prader-Willi estabelecido à sua filha Larissa.

“Eu nunca tinha ouvido falar e não existia praticamente nada em português. Eram conteúdos muito desatualizados. Essa síndrome causa várias características. É um espectro que inclusive tem traços do autismo. Mas também vi que nos EUA tinham muitos tratamentos. Uma série de estudos”, a partir da constante busca pela compreensão, Patricia desenvolveu uma página nas redes sociais online que além de compartilhar conhecimento útil, conta do seu convívio com a filha.

Sair da rotina não é uma tarefa fácil, o que faz desse momento ainda mais especial. Registro no CarnaPupa: bloquinho de carnaval inclusivo em São Paulo, SP. Foto: arquivo pessoal.
Sair da rotina não é uma tarefa fácil, o que faz desse momento ainda mais especial. Registro no CarnaPupa: bloquinho de carnaval inclusivo em São Paulo, SP. Foto: arquivo pessoal.

Larissa é uma adolescente que tem o coração do tamanho do mundo. Ela sempre quer ajudar as pessoas. Seja com doações de seus brinquedos ou roupas. Adora pintar desenhos e colorir a vida de quem está próximo com sua alegria e doçura. Ama os animais e aparece com frequência na página criada pela sua mãe e denominada de ‘Mundo Imperfeito’. Nome que contraria um padrão definido, este que faz a deficiência ser vista como algo errado. Essa imperfeição fala sobre a vida real.

“Ser mãe atípica é ao mesmo tempo que estamos numa sobrecarga gigantesca por lidar com todos esses problemas é entendermos, acima de tudo, que o problema não é a minha filha. O problema é a sociedade em que vivemos que não é preparada para receber as pessoas como elas são e o mundo como tem que ser, diverso. Não somos todos iguais. Cada um tem suas diferenças. E o mundo tem que estar aberto para todas essas pessoas. Ser mãe atípica é lutar por isso”, completa Patricia.

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Representatividade feminina ainda deixa a desejar nesse universo
por
Anna da Matta
|
12/05/2022

Por Anna da Matta

Caminhando pelos longos corredores e salas de uma exposição cada pessoa vai entrando em contato com diversas informações, sejam das obras expostas ou apenas do local. Os cheiros de perfume no ar, as gargalhadas e conversas paralelas ao fundo de seus próprios pensamentos, as cores e formas das produções artísticas tentando chamar a atenção de quem está presente. As interpretações e óticas para as criações são diferentes de indivíduo para indivíduo. Cada um tem suas próprias perspectivas e concepções, e vão ter sentimentos distintos em relação ao que estão observando. Mas, nota-se, em algum canto do ambiente, pelo menos um trabalho inspirado em uma mulher. 

No universo das artes, a imagem de mulheres é constantemente reproduzida. De incontáveis formas e em uma larga escala. As obras as retratam como objeto de desejo, de maneira angelical, de uma ótica polêmica, como inspiração etc. Seja qual o modo elas estejam representadas, estas figuras são grande parte do foco de produções artísticas. Apesar disso, não necessariamente torna esse ambiente um espaço de igualdade ou de representatividade. 

O ano era 2017 e o coletivo Guerrilla Girls vinha ao Brasil para uma retrospectiva de trinta e dois anos de seu trabalho. Elas vestem máscaras de gorilas carregadas de pelo e com expressões faciais diferentes, mostrando apenas os olhos e com buracos para as narinas. O anonimato faz parte e ajuda a manter o foco nas questões em que querem problematizar.  São reconhecidas por serem artistas ativistas feministas. Pregam que podem ser qualquer um. Dizem que estão em todo lugar. 

Guerrilla Girls protestando nas ruas de Nova York, 1985. (George Lange/Divulgação)

Em público, elas utilizam do humor e de visões afrontosas para evidenciar questões de gênero e étnicos, bem como corrupção na arte, no cinema, na cultura pop e na política. As ativistas construíram, e continuam a construir, uma narrativa nada convencional, e colocam nos holofotes as injustiças e assuntos que, normalmente, são quase que invisíveis. 

Ao levantarem dados — um tanto quanto chocantes — sobre a presença feminina no mercado das artes, as Guerrilla Girls passaram a influenciar o setor. 

Num fundo amarelo vibrante, com a imagem de uma figura feminina com cabeça de gorila em tons de cinza, preto e branco, virada de costas e reclinada em uma espécie de pano com tonalidade meio vinho, um dos cartazes provocativos que fazem parte das ações do coletivo feminista, estampa as frases “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. 

Cartaz realizado por Guerrilla Girls, 2017. (Foto / Reprodução)

Lamentavelmente a desigualdade dentro desse universo não se classifica como fora da normalidade, como se fosse algo surreal. Segundo o veículo de comunicação ArtNet, foram gastos mais de US$196 bilhões, entre os anos de 2008 e 2019, em leilões de arte. Dentre esse valor, os trabalhos produzidos por mulheres representam apenas 2% das obras vendidas.

Não é nenhum segredo que o setor cultural não escapa à regra quando se fala em desigualdade de gênero. Em uma pesquisa feita pelo IBGE em 2018 foi exposto que as mulheres atuantes no campo da cultura ganham, em média, 67,8% do salário dos homens para executar tarefas semelhantes. Segundo a criadora de conteúdos e fundadora do Museu do Isolamento, Luiza Adas, o valor do trabalho de um artista tem que ser dado de acordo com o prestígio e com as reflexões que trazem para a sociedade, e com certeza, as mulheres têm a capacidade de terem trabalhos tão incríveis quanto, senão até mais, que artistas homens, então, para ela, não faz o menor sentido essa diferença salarial.

Ao adentrar em um estúdio — ou algum outro lugar reservado para a criação — os artistas mergulham em seus próprios universos, silenciando por algumas vezes o mundo externo. A artista e tatuadora Lua Clara Faria, de vinte e um anos, é brasileira mas já mora em Lisboa faz alguns anos. Para ela, poder se expressar com a arte é extremamente gratificante. Através de suas produções, ela consegue enxergar aquilo que estava sentindo quando decidiu realizar algum projeto. Tanto no processo, quanto no final. 

Lua compreende a sua arte como uma forma de meditação. É, de diversas maneiras, contemplativo. Ela desenha mandalas e florais em diferentes superfícies. Quadros, telas, paredes, já até pintou violão. Também já produziu em lã e artesanatos como almofadas, capas de celular, cadernos, canecas etc. E há algum tempo, decidiu se aventurar no universo das tatuagens. 

Quando Lua desenha, principalmente as mandalas, consegue deixar sua mente mais calma no processo. Ela conta que serve de ajuda para a ansiedade. 

A artista já teve algumas oportunidades de expor suas criações. Para além de sites de vendas online, Lua expôs sua arte em uma feira de artesanato. Através da internet, ela sempre teve contato com clientes ou pessoas que elogiam suas produções, mas, não acredita que essa comunicação chegue perto da sensação do encontro presencial, de algo mais pessoal. Ao relembrar da experiência, ela se enche de emoções e memórias boas. Era uma tarde agradável. Aqueles que não tinham acesso a suas redes, puderam conhecer seu trabalho. 

No entanto, Lua enxerga a desigualdade que se faz presente no mundo artístico. Neste início como tatuadora, ela nota que ainda existem diversos estereótipos e concepções de que mulheres são mais delicadas do que os homens. Também observa a maior quantidade de tatuadores com reconhecimento no mercado.  

Mulher observa quadro em exposição no Museu do Prado em Madri, 2020. (AFP) 

Jochen Volz, diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, já organizou pelo menos 30 exposições individuais de artistas mulheres entre 2001 até hoje. Ele também assinou como curador duas mostras que foram, cada uma em seu momento histórico, as com maior presença feminina. A 53ª Bienal de Veneza, no ano de 2009, com 43% de artistas mulheres, e a 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, com 60% de artistas mulheres.   

O diretor diz entender que ainda é necessário um grande esforço até que os acervos dos principais museus tenham um equilíbrio maior entre os artistas. A presença feminina no acervo da Pinacoteca chega a 30% dos artistas aproximadamente. De acordo com Jochen, o número é melhor do que já foi alguns anos atrás, mas afirma não ser o suficiente. 

Naomi Cary, que se considera multiartista audiovisual, explica que toda vez que alguém se pergunta se alguma coisa é arte ou não, ela passa a ser. O papel dessas produções é de colocar as pessoas nesse conflito com elas mesmas e com as suas próprias concepções. Quando trabalha com arte manual, em formato de pintura de telas, Naomi realiza uma série intitulada “Black Alien”, que é toda de autorretrato. É uma forma de reinventar sua identidade e desafiar as maneiras de como é vista para criar. A artista tenta, em suas criações, questionar e abandonar esse lugar de musa, passiva, de ser olhada. De consumir a arte sempre de um lugar distante e se aventurar a produzir algo diferente disso. 

Um dos privilégios masculinos é retratar qualquer assunto ou tema em suas produções. Para a mulher, em sua maioria das vezes, é dado um espaço apenas das representações. Quase como se fosse uma obrigação falar do universo feminino. É o que a sociedade espera dessas artistas. Vão criando segmentações a serem seguidas. Como se a criatividade — em um trabalho majoritariamente imaginativo e criativo — não pudesse falar mais alto, como se estivessem limitadas a caberem nas caixinhas das expectativas dos outros. 

Entretanto, há esperança para o futuro feminino nas artes. As mulheres estão cada vez se sentindo mais abertas a entregarem algo que, de fato, condiz com aquilo que elas querem produzir — não que esse feito não esteja presente no passado também, as revolucionárias são a prova disso.  Progressivamente, as artistas mulheres têm tomado seus devidos espaços nesse universo. Já não é mais aceitável fazer uma seleção sem nenhuma imagem feminina presente.

 

O caminho ainda é longo e árduo, mas existem esperanças para novos olhares feministas. 

 

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