O montanhismo ensina que o caminho não se resume ao destino, enquanto o processo é o verdadeiro objetivo do corpo e da mente
por
João Curi
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18/11/2024

Por João Curi

No alto. O que fazem lá, como chegam tão longe, o que comem, onde querem chegar, são perguntas comuns. Esse é o primeiro engano. Não tem nada de comum na escalada. Cada experiência é individual, mesmo subindo em grupo. Cada pulmão aguenta um determinado ritmo, cada perna desafia a altitude numa determinada dose de coragem e persistência.

Persista. E se o risco for alto demais, desista. Não tem vergonha nenhuma em voltar. A experiência é única. A vida também. O jogo não pode ser desbalanceado e o que importa é viver ao máximo no máximo. Não desperdice bateria com os fones no ouvido. Qualquer chamado da natureza é vital. Seja um bicho à espreita, o ronco das nuvens enegrecendo, ou a surpresa de uma companhia exploradora, tudo que toca os ouvidos é uma chamada indispensável.

Não perturbe. Passo a passo, a trilha vai ganhando curva e o tênis perde a firmeza do pé. As rochas, aglomeradas no caminho, requerem total atenção. É escorregadio, pontudo, nada convidativo. Desafiador.

Pedro Galavote é praticamente graduado em Jornalismo pela PUC-SP, já prestes a entregar o TCC, um documentário sobre escaladas e evidência artística de sua trajetória no montanhismo. Com as lentes, registra as experiências de subir e descer dos picos e montes do sul do Brasil, sem testemunhas, e as histórias que essas visitas temperadas de aventura lhe proporcionaram.

Montanhista posando à frente de um amontoado de galhos que bloqueiam a trilha
Pedro Galavote (Foto: acervo pessoal)

Decidido a estrear algum esporte, o coração jovem estava em busca de alguma novidade para se exercitar. Foi quando se deparou com vídeos de trilhas, montanhismo, alpinismo, e pegou gosto pela meditação guiada sobre as rochas. Já tinha certa experiência, mas nada elaborado. Na última aventura, subiu o Pico Paraná em quatro horas.A formação rochosa de granito e gnaisse está situada entre os municípios Antonina e Campina Grande do Sul, no conjunto de serra Ibitiraquire ("Serra Verde", em tupi), na Serra do Mar paranaense. O pico em questão é o ponto mais alto da região sul do País, chegando a cerca de 1877m acima do nível do mar.

Não conseguiu de primeira, confessa. Quando estreou, ainda este ano, tinha emendado a viagem de ônibus que, perturbado pelo ronco de um passageiro, o fez virar a noite com os olhos mal pregados. Cansado das mais de seis horas de estrada, amanheceu nervoso, sem tomar café e assim subiu.

Não muito tempo depois, já num ponto distante, sentiu a pressão baixar enquanto o corpo tentava subir. A montanha o desafiava a pensar num plano de contenção, que seguiu na montagem da barraca ali mesmo e, natureza à parte, uma noite sem roncos. O pesadelo viria ao acordar, vestido da frustração de ter que descer antes de chegar ao topo, mas era preciso. De pressão baixa, tão escurecida quanto a noite anterior, era arriscado de passar mal em algum trecho que o exigisse vencer os quinze, vinte quilos que carregava nas costas para escalar as rochas do trajeto em que os pés não teriam mais a mesma firmeza. Frustrado fica, mas é melhor voltar mais cedo do que não voltar. Estava sozinho, afinal.

Gosta assim porque é subindo, ele por ele, que acaba se conhecendo melhor, enfrenta e desvenda os próprios limites, e só tem que se preocupar consigo. Se chover, choveu. Se pesar o passo ele espera. Não tem pressa. Nem se compara aos corredores das alturas, adeptos do trailrun, que volta e meia ultrapassam o entusiasta pra voltar descendo pouco tempo depois. Não, o jogo dele é outro. Pedro gosta da imersão de se permitir meditar em meio à natureza, ascendendo corpo e mente numa experiência aberta e solitária, tão convidativa quanto perigosa. É uma paz, um sossego que só, afirma.

A mãe, por consequência, perdeu o dela e não vai dormir de preocupação. No começo foi difícil entender. Imagina! Deixar o menininho que ela carregou no colo, criou com o maior cuidado, assim sozinho no meio de uma montanha. E a chuva? Os bichos? E se chegar algum estranho e levar tudo, se ele se perder, se cair, se passar mal quem é que socorre? Toma cuidado, tem certeza que vai? Não quer levar alguém com você?

O filho, compadecido, foi convencendo com o tempo. Para acalmar a mãe preocupada, mostra o planejamento todo, desde o caminho traçado por profissionais até os equipamentos e as medidas de proteção. Informava a previsão de tempo, de vento, o itinerário, e garantia que sozinho não ficaria – pelo menos não o trajeto todo. Sempre vai passar alguém lá.

Essa é uma das magias do montanhismo. Entender que as pessoas que sobem e descem, assim como as flores e as aranhas do caminho, são minúsculas e efêmeras. As vidas vêm e vão, e o pico continua lá, lembrando que Pedro não passa de um sopro. Ele, os pais dele, avós, e futuramente os filhos, netos, bisnetos. Todos que passaram e passarão, que vêm e vão embora, tudo vai mudando enquanto a montanha permanece.

O tempo caminha lentamente nas alturas.

Quando chega ao topo, finalmente, abre o livro de registros e deixa a assinatura, junto à data, hora, e uma frase. É uma tradição nos cumes brasileiros, além de ser uma importante questão de segurança. Dessa forma, não só deixam marcada a vitória pessoal de cada montanhista como asseguram quem subiu e há quanto tempo.

Uma vez lá em cima, Pedro já não conta mais com o relógio. Respira fundo, acalma a vista e aprecia. Tudo, desde o lanchinho até a paisagem. Tira foto, passa café, monta acampamento, e aí chega a melhor parte: o cochilo da vitória. Esse é bom, viu? O prêmio merecido antes da descida. Porque subir é só a ida. E a volta?

Essa é uma viagem a parte.

Tem quem ensine a subir na vida

Seu Orlando é idealizador e proprietário da Triboo! Parque, um centro de treinamento de montanhismo em Itajubá, Minas Gerais, próximo à UNIFEI. Fundou o negócio em 2001, num outro ponto menor do que ocupa hoje, já com foco na caminhada e em equipamentos de escalada, um projeto que nasceu do TCC quando se formou em Administração em 1998.

A ideia foi ganhando forma, firmeza, e logo reuniu uma clientela fiel para sustentar o empreendimento e incentivar o esporte na região. Junto a mais dois funcionários, seu Orlando oferece a experiência segura e monitorada de escalar as formações rochosas. Primeiro, na parede de treino, depois num espaço mais controlado e natural. Tudo vigiado e com orientação de profissionais.

Até porque escalada não é brincadeira de criança – por mais que alguns buffets infantis tenham provem o contrário. O jogo aqui é justamente essa diferença. Não adianta achar que para subir uma montanha basta um tênis bom, pulmão forte e a coragem de subir. Não, longe disso. Altitude não requer só atitude, tem muito jogo de cintura e cabelo branco por trás.

Ninguém sobe sozinho. Até Pedro, que é adepto do montanhismo a um, segue o itinerário e as rotas que alguém antes dele já traçou. A comunidade se sustenta e se apoia à distância, mas o trabalho de Orlando é fazer isso de perto. Nos últimos anos, inclusive, os jovens têm se interessado mais pela ideia.

A nova tendência da juventude, talvez por obra e incentivo do algoritmo, tem conquistado espaço no cenário esportivo nacional. A escalada esportiva entrou no quadro olímpico em 2018, durante os Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires. Dois anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, o esporte foi adicionado ao programa e se firmou na última edição, em Paris.

Em 2021, a Prefeitura de Curitiba anunciou o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva do país, com instalações ideais para as modalidades Boulder e Velocidade. As paredes novas foram construídas na área externa ao ginásio do Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) Nelson Comel, na capital parananese, que já sediou as primeiras competições nacionais da modalidade.

Orlando, inclusive, destaca o vice-campeão brasileiro de escalada na etapa boulder, o escalador itajubense Davi Peres, que é aluno da Triboo e o orgulho da cidade. Esses olhares mais cuidadosos com o esporte acarretaram incentivo à preservação dos picos e maior respeito aos proprietários dos espaços de treinamento desse esporte que não é uma loucura dos jovens. Existe regra, tem uma forma segura e comprovada de conquistar a montanha, abrir uma rota, um caminho novo.

A Triboo, por exemplo, disponibiliza uma croquiteca com as rotas de escalada recomendadas para cada pico estudado pelos profissionais. O caminho é pedregoso, mas tem pavimento de quem já tem os pés calejados.

É um esporte que pode ser radical, é verdade, e por isso tem que aprender antes de fazer. Não dá para pilotar um carro sem aprender a dirigir antes. Para as montanhas, o caminho é parecido. Não adianta querer escalar o Everest de primeira. Todo mundo quer subir a Pedra do Baú, o Pico dos Marins, e acaba esquecendo que a subida não tem só flores.

Mas as pedras do caminho fazem parte do esporte. É tudo organizado, desde o grau de dificuldade até os equipamentos necessários para cumprir a missão de subir, porque para descer todo santo ajuda.

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A vida de Maria Leonilde é marcada por mudanças, desafios e superação, tudo costurado com a paixão.
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Marcello Toledo
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18/11/2024

Por Marcello Toledo

 

Nascida em Tietê-SP, no dia 14 de dezembro de 1945, Maria Leonilde Valentini, mais conhecida como “dona Nide” é uma dessas pessoas que parecem carregar no sorriso a história de uma vida inteira. Hoje com 78 anos, ela lembra com carinho dos altos e baixos de uma longa jornada, sempre acompanhada de sua inseparável máquina de costura. De linhas e tecidos, Nide tirou o sustento, fez amizades e encontrou forças para superar as dificuldades que surgiram no caminho.

Casada aos 18 e mãe de dois, ela passou por várias cidades, sempre carregando consigo o dom de transformar tecido em amor e sustento. Costurando desde os 24 anos, foi em São Manuel que ela deu seus primeiros passos na profissão, e de lá em diante, a costura nunca mais deixou de ser o centro da sua vida. Dona Nide conta que aprendeu tudo sozinha, não fez nenhum curso, apenas seguiu seu caminho e foi conquistando clientes.

Ali, como seu marido era motorista de ônibus,  ela fez muita camisa para os motoristas locais e costurou amizade com muitas das mulheres da cidade. Depois, vieram novas mudanças. Em São Paulo, ela trabalhou para uma confecção de Tatuí, onde ganhou experiência em larga escala. Mas a vida em São Paulo foi complicada e por conta do trabalho de seu marido. Foram obrigados a se mudar mais uma vez.

Dessa vez foram para Santa Rita do Passa Quatro onde as coisas foram muito turbulentas, com seus filhos relativamente grandes, dona Nide foi obrigada a trazer sustento para dentro de casa, pois seu marido não era nem um pouco solidário com sua família. Ficaram na cidade e logo se mudaram novamente, pois as coisas em Santa Rita ficaram muito complicadas financeiramente. Sua filha conta com muito orgulho que se não fosse o talento e a dedicação de sua mãe, teriam passado fome.

De volta a São Paulo, agora em Guarulhos, ela reencontrou freguesas antigas do bairro da Casa Verde, onde morou pela primeira vez. Elas foram verdadeiros anjos na vida dela, como dona Nide não tinha dinheiro para se locomover, suas clientes faziam questão de pagar o ônibus para que ela fosse buscar as roupas. Isso ajudou não só a se sustentar, mas também a ficar perto dos filhos, cuidando da casa e garantindo o mínimo de estabilidade.

Sergio, seu filho mais velho, já falecido, era homossexual e isso foi motivo de muitas brigas e discussões dentro de casa a vida inteira, pois seu Ênio, não o aceitava de maneira nenhuma. Além das dificuldades financeiras, dona Nide ainda tinha que segurar a bronca dentro de casa para que pudesse manter seu filho junto a familia, pois o desejo de seu marido era diferente. 

Então, tempo depois, dona Nide retorna a Tietê, sua cidade natal, mas agora sua vida tem outra reviravolta: ela descobre que seu filho acabou contraindo AIDS, o que piorou ainda mais as coisas, pois além das dificuldades familiares, a questão financeira não era fácil, então todos os exames, tratamentos e remédios, era dona Nide que pagava com o dinheiro da costura, pois seu marido se recusava a ajudar na maioria das vezes.

As coisas foram muito pesadas emocionalmente durante este período, sua filha mais nova Célia, também contribui  como podia para ajudar seu irmão, assim como sua clientela de costura que sempre deu todo tipo de apoio a dona Nide, pois sempre foi muito querida por todos.

Infelizmente, com 30 anos, seu filho acabou falecendo, foram momentos de muita dor, conta dona Nide. Logo após, também se cansou dos abusos de seu marido e acabou se separando, mas ela sempre se recusou a abaixar sua cabeça, sempre manteve o sorriso no rosto. Apoiada por suas freguesias e amigas, que já eram quase da família, dona Nide seguiu bem firme. 

Após tanta turbulência, ela encontrou uma nova chance ao lado de Ricardo Grando, um senhor de Cerquilho,cidade vizinha de Tietê, com quem viveu quase 14 anos. Lá, Nide ficou conhecida pelas arrumações e reparos de roupas das lojas da cidade. Conta que foi muito feliz ao lado de seu Ricardo, era um homem bom e honesto, sempre apoiou e tratou sua família como se fosse dele, principalmente seu neto Marcello, filho de Célia sua filha mais nova, seu Ricardo era muito presente em sua vida, o que deixava dona Nide ainda mais contente.. Mas, quando ele também partiu, a costureira voltou para Tietê, onde mora até hoje, costurando para amigas que conheceu ao longo da vida.

Por causa da costura e de seus esforços ela foi capaz de auxiliar nos estudos de sua filha e de seu neto financeiramente. Além do talento com as agulhas, dona Nide sempre soube administrar seu dinheiro, mesmo com as dificuldades nunca deixou ninguém passar fome e ainda mais, ficar sem estudar.

A casa de dona Nide até hoje é movimentada. É conhecida por suas clientes por ser uma pessoa muito doce e de um coração lindo, sempre receptiva com café, pães e bolos, além de sempre ter sido super elogiada por seu talento na costura, suas clientes não a trocam por nada nesse mundo. 

Além do mais, dona Nide ainda cuidou muito de sua mãe, Genoefa, que só com seus 94 anos foi ficar doente e parar na cama. Ela era quem ia em sua casa todo dia, cozinhar e limpar, até sua mãe finalmente descansar. Ainda hoje também cuida de sua irmã Alaíde que acabou ficando com Alzheimer.

Nide fala com carinho do que a costura representou para ela. “Foi o que me salvou”, conta. Quando a vida ficava difícil e o marido passava por problemas, a costura foi o que garantiu um dinheirinho e uma segurança. Com ela, conseguiu ajudar a sustentar a casa, os filhos, e, mais tarde, criar laços que a fortaleceram nos momentos mais duros.

Entre vestidos de noiva e trajes de carnaval, lembra de peças feitas com amor e dedicação. Costurou para festas, para formaturas, e nunca se esquece dos trajes para o famoso Baile do Havaí e para os blocos de carnaval da cidade. São histórias de vida entrelaçadas com as linhas que ela sempre costurou, fazendo dela uma parte de cada celebração.

Hoje, ao lado do neto Marcello, que é a paixão da sua vida, dona Nide olha para trás com gratidão, agradece a Deus pelo dom que lhe foi dado. Se não fosse a costura, ela diz, talvez não tivesse superado tanto. Para ela, cada ponto é um pedaço de tudo o que viveu, cada peça é uma lembrança – e costurar é sua maneira de dar sentido à própria história.
 

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Quando se percebe, a doença degenerativa já levou a pessoa muito antes de morrer.
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Catarina Pace
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05/11/2024

Por Catarina Pace

Dona Joaquina teve seu primeiro derrame aos 80 anos — um acidente vascular transitório, desses que “vão e voltam”. Quando se recuperou, ainda reconhecia todos ao seu redor. Seis meses depois, em julho, sofreu um derrame isquêmico que comprometeu partes do corpo, deixando-a com movimentos limitados, embora ainda lembrasse de algumas pessoas. No último derrame, ela perdeu a fala, deixou de reconhecer quem amava e precisou se mudar para uma casa de repouso.

A segunda vida de Dona Joaquina começou quando ela tinha 73 anos e foi diagnosticada com Alzheimer, mas ninguém na família sabia o que significava conviver com essa doença, que apaga, lentamente, as memórias de quem a enfrenta. Quem conta essa história é sua filha, Maria Irene, que não apenas sentiu a partida da mãe, mas também testemunhou o impacto dessa doença, que chega sorrateira e leva a vida embora, devagar, mas de forma inevitável.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento. É a causa mais comum de demência, um termo geral para o declínio das funções cognitivas que interfere com a vida comum e as habilidades básicas. As células cerebrais começam a se deteriorar, formando placas e emaranhados de proteínas que prejudicam a comunicação entre os neurônios. Esse processo causa, aos poucos, uma perda da função cerebral e costuma envolver lapsos de memória, confusão e desorientação, dificuldade de planejamento e raciocínio e também, alterações de humor e comportamento. Com o tempo, os sintomas pioram e a pessoa perde habilidades essenciais, como falar, andar e cuidar de si mesma. Ela não tem cura, e mesmo com tratamentos que ajudam a retardar e tratar de algumas consequências, é difícil não ver a diferença na pessoa com o passar do tempo.

Para Irene, aceitar essa mudança foi doloroso, e colocar sua mãe em uma casa de repouso parecia inimaginável. Aos poucos, ela começou a ver os “lares de idosos” de uma forma diferente, uma perspectiva que só encontrou nesse momento difícil. Irene visitava sua mãe em diversos horários, conhecia todos os plantões, saía mais cedo do trabalho ou abria mão do almoço para estar ao lado dela. E mesmo assim, ela conta, com um sorriso no rosto, que Dona Joaquina sempre foi uma mulher de espírito leve e com alta autoestima — “mesmo gordinha”, gostava de si mesma e vivia bem com a vida, lembra.

Um dos maiores desejos de Dona Joaquina era ver seus filhos e netos formados, e conseguiu. Presente em todas as formaturas, dizia que a vida era perfeita como estava e que não queria mais nada. Com o avanço da doença, começou a esquecer os rostos que tanto amava, a família, sempre muito unida, sentiu um vazio crescente. Quanto mais ela se afastava, mais eles se viam sozinhos.

Para Irene, o fim da vida de Dona Joaquina foi um pouco diferente. Ela contou que foi muito mais difícil do que imaginava, que ver a pessoa que amava e que viu se dedicar tanto a ela nesse estado, vegetando, e não percebeu que também estava ficando doente. Estava cansada, esgotada e estressada. Um dia estava indo para a clínica visitá-la e do nada não reconheceu mais o caminho. Estava dirigindo e teve uma crise de ansiedade. Para ela, estava totalmente perdida. E assim foi seu primeiro contato com a síndrome do pânico decorrente do Alzheimer, que mesmo não tendo, sentiu nela a dor dessa doença.

Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico antes da Dona Joaquina falecer, mas que foi agravando depois de sua morte. Quando ela percebeu que a doença de sua mãe era irreversível, ela foi piorando.

Além da doença da mãe, Irene soube lidar com a sua, mas sempre pensava se poderia se recuperar, se poderia continuar sendo forte nesse momento. Seu jeito brincalhão e divertido de ser levou a uma hipótese: as brincadeiras poderiam ser apenas uma maneira de esconder a depressão que já estava ali há algum tempo, talvez desde quando descobriu a doença da mãe, mas só foi expressivo quando se viu em um beco sem saída, quando sabia que não tinha mais volta.

Autor: Catarina Pace
Dona Joaquina e Maria Irene
Arquivo Pessoal

Outra experiência de contato com a doença é a de Davi Valentim, um neto que viu o Alzheimer tomar conta de sua avó. Diferentemente de Joaquina, para Davi, a vinda da doença de sua avó, Dona Yara, foi um processo mais natural, porque ela já mostrava sinais de esquecimento há algum tempo, o que para a família, vinha com o avançar da idade. Mas, após o diagnóstico, o esquecimento ficou mais intenso, até ela começar a esquecer dos nomes dos filhos e netos.

Davi se lembra que ele sempre foi o “moço bonito”, apesar de não saber seu nome, Dona Yara o marcou com o que podia se lembrar. Ele conta que apesar de um processo muito triste, também foi muito bonito, porque ela nunca se esqueceu de quem ela era ou das coisas que tinha paixão, em especial da música clássica, que sempre ecoava pelas paredes da casa onde passou o resto da vida.

Para seus netos, que cresceram ao lado da casa dela em Lorena, Dona Yara era uma constante. Passaram a infância por lá, quase diariamente, aproveitando a comida de vó e brincadeiras. Ela sempre os recebia com um sorriso, e mesmo quando já não podia cozinhar ou andar como antes, o amor e a gentileza dela ainda eram os mesmos.

Com o tempo, a doença avançou, e a situação se tornou ainda mais delicada depois do falecimento do esposo de Dona Yara, Antônio Carlos. A partir desse momento, o Alzheimer progrediu rapidamente. Ela começou a perder a noção de quem era sua família e já não conseguia se lembrar de ninguém ao seu redor. Davi conta que a família ficou muito abalada com a condição, sempre na cama, limitada pelas consequências da idade e pela doença que a dominou.

Ainda assim, ele guardou as melhores lembranças de sua avó, uma mulher amável e alegre, que sempre falava muito e ria como se não houvesse tempo ruim. Mesmo depois que ela parou de reconhecê-lo, ele jamais se esquecerá de quem ela era e de tudo o que viveram juntos. A imagem de Dona Yara, de alguma forma, nunca mudou: era ainda a mesma avó afetuosa e tagarela, cheia de alegria e amor.

Ele conta que no final da vida de Dona Yara, na última vez que ele a viu, ela estava recitando uma música clássica, umas das quais ela nunca esqueceu, e para ele, essa foi a parte mais importante de seu último encontro: mesmo não sabendo quem ele era, ou se lembrando de tudo que já viveram juntos, uma paixão ainda estava viva em sua mente debilitada.

Autor: Catarina Pace
Dona Yara e sua família
​​​​​Arquivo Pessoal 

 

O Alzheimer afeta principalmente pessoas acima dos 65 anos e é o principal tipo de demência no mundo, responsável por aproximadamente 70% dos casos da doença. A estimativa é que cerca de 50 milhões de pessoas vivem com a doença, número que deve aumentar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. No Brasil, centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem tratamento multidisciplinar integral e gratuito para pacientes com a doença, além de medicamentos que ajudam a retardar a evolução dos sintomas da condição, que afeta 1,2 milhão de pessoas e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano.

Assim como Maria Irene e Davi, são muitas famílias que devem lidar com a doença e passar pelo trauma de ver quem amam terem a vida levada rapidamente por essa doença tão avassaladora, mas, as memórias, por mais dolorosas que possam ser, sempre terão um espaço no coração de quem fica.

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Transformações simbólicas fogem a negociação do Estado sobre o direito à terra
por
Antônio Bandeira
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18/11/2024

Por Antonio Bandeira

 

O momento era temido havia anos, desde a primeira visita de uma empresa de energia rotulada como “limpa” no município de Queimada Nova, em 2012. As visitas se tornaram mais frequentes quando a empresa italiana Enel Green Power apontou a região como favorável à energia eólica. As tensões cresceram, e em uma reunião, o impasse se instaurou. Nela estavam, em lados distintos da sala, as lideranças da comunidade quilombola Sumidouro e os representantes do empreendimento de energia eólica. A sala era abafada e as cadeiras estavam em círculo, no qual se esperava chegar ao consenso sobre o Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), um documento essencial para regulamentar os impactos das operações de energia renovável no território da comunidade. A reunião foi tensa desde o início. De um lado, os quilombolas defendiam que o plano deveria respeitar as particularidades culturais e ambientais de suas terras. Do outro, a empresa argumentava sobre os prazos e custos que as adaptações exigiriam, sustentando seus argumentos pela ideia de “progresso”. O mediador do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sentado ao centro, tentava organizar as falas e acalmar os ânimos, mas o clima era de impasse. A medida tomada foi a de encerrar a discussão, sem avançar.

Esse primeiro conflito da reunião foi apenas o marco inicial da discussão que se arrasta há anos. Um debate que para Nilson José dos Santos, líder comunitário do Quilombo Sumidouro, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí e radialista, não leva em consideração os danos imateriais e culturais dos empreendimentos de energia “limpa” no território quilombola. E tampouco freia os ímpetos da empresa. Nilson conta que viu de perto as construções começarem. Embora acompanhasse todas as mudanças que o estudo da empresa trouxe à comunidade local, ele não acreditava que o dia no qual as torres passariam a ser construídas de fato chegaria. A poeira da estrada de terra, levantada por caminhonetes e caminhões que chegavam ao local embaçando o ar, e o barulho dos motores e máquinas, que trabalhavam no local rompendo o som natural do espaço, ficaram marcados na memória do quilombola. Mas aquilo seria apenas o começo.

Os veículos carregados levavam aquilo que seria a primeira linha de transmissão, estruturas físicas que transportam eletricidade de usinas geradoras até as subestações e distribuidoras de Queimada Nova, localizada a cerca de dois quilômetros do quilombo. Ali estava de pé a primeira torre de medição, rompendo a linha do horizonte e passando a integrar a paisagem local. Paisagem de terras rochosas da caatinga, rodeadas de morros e serras, onde estão as casas feitas de argila, com telhas de barro, sem reboco e pisos de pedra dos quilombolas; e ao redor das casas, a vegetação natural do bioma: espécies arbustivas e herbáceas, plantas de pequenos a médio porte, com poucas folhas, galhos retorcidos, espinhos, raízes profundas e caules grossos. E no lugar da paisagem natural, agora estava a estrutura alta e metálica do Parque Eólico Lagoa dos Ventos.

A estrutura do parque contrasta com as características típicas das plantas adaptadas à seca. Entre essas espécies estão: aroeiras, umbuzeiros, mandacarus, paus d'arco, umburanas, marmeleiros, entre outras que se fazem fundamentais para a vida e a dinâmica locais e que são parte das construções das moradias. Compõem o cenário natural também as plantações (de milho, feijão, abóbora, algodão, mandioca, melancia, capim etc.) e as criações (de suínos, bovinos, aves e caprinos) nas quais os pequenos trabalhadores do quilombo trabalham e tiram seu sustento, agora rodeado por grandes torres de energia eólica.

De acordo com a tradição oral transmitida pelos mais velhos da comunidade, a origem do Quilombo Sumidouro remonta a 1861, quando uma família de pessoas escravizadas fugiu das “terras dos brancos” e se refugiou “nas pedras com água”. A partir de então, começaram a viver ali, e, aos poucos, acolheram outras famílias que se uniram a eles. Hoje vivem lá 23 famílias, que somam 115 pessoas.

Foto quilombo sumidouro
Foto: Reprodução

Há pouco mais de uma década a paisagem descrita vem sofrendo profundas alterações, desde as primeiras visitas das empresas. Com o avanço dos estudos, foi feita a instalação de algumas torres de mediação. Até que em 2017, a comunidade local se deparou com um empreendimento que passava a dois quilômetros do território. Não era ainda o gerador, mas uma linha de transmissão que ia da Bahia à Queimada Nova. Logo, uma linha virou duas, que viraram três, que viraram quatro. Os empreendimentos foram acontecendo de forma contínua, entre 2018 e 2021. No começo não se tinha dimensão dos impactos pela primeira linha gerada, mas, com os conhecimentos adquiridos com as construções, foram feitos estudos dos impactos. Então, foi utilizado esse conhecimento para realizar o estudo da segunda linha. Os estudos eram sempre baseados nos impactos gerados pela linha anterior. As linhas não são passageiras, e, sim, uma instalação, fazendo, agora, parte da vida dos quilombolas, que vão conviver com elas até o fim de suas vidas.

A instalação das linhas prejudicou significativamente o ecossistema, afetando tanto a fauna quanto a flora. A construção das torres requer a abertura de clareiras para a instalação dos equipamentos, o que implica a retirada de vegetação nativa e a degradação do solo. Com a fragmentação dos habitats, animais são forçados a migrar para áreas mais distantes. A relação da comunidade com a natureza faz parte da cultura e da sobrevivência local. O equilíbrio com o meio ambiente é fundamental para sua agricultura de subsistência e para a manutenção de suas práticas culturais.

Parque Eólico em queimada nova
Parque Eólico em Queimada Nova - Foto: Reprodução

A chegada dos empreendimentos marcou também o início da pressão fundiária. As terras do Sumidouro, como  boa parte das terras do estado do Piauí, são devolutas do Estado, ou seja, terras sem títulos e sem escritura. Com a chegada das eólicas, o Estado passou a dar títulos individuais às pessoas como meio de regularizar as terras, facilitando o processo de grilagem. Com isso, os proprietários dos títulos individuais arrendaram a área à empresa de implantação de torres. Hoje há uma concentração dessas terras onde antes existiam terras de uso coletivo, não apenas do Quilombo do Sumidouro, mas de famílias da agricultura familiar, como Nilson explicou.

O Quilombo Sumidouro foi certificado pela Fundação Palmares em 2003; em 2004, começou o processo de regularização fundiária e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado em 2022. Antes disso, porém, já com o RTID pronto, mas não publicado, áreas de dentro do território quilombola foram delimitadas e concedidasa indivíduos. O Incra acionou o Instituto de Terras do Piauí (Interpi), que suspendeu a emissão desses títulos. Esse episódio marcou uma disputa mais acirrada, que espalhou o medo pelo quilombo. Em 28 de novembro de 2023, a comunidade foi titulada pelo Interpi, mas isso não foi o suficiente para resolver o conflito em torno da terra. Apenas em maio de 2023, o Incra reconheceu e declarou como terra da Comunidade Remanescente de Quilombo Sumidouro uma área de 932 mil hectares, por posse por herança.

Nilson contou, também, que para a comunidade, principalmente para as pessoas de mais idade, a terra é sagrada. Há mistérios e histórias resguardadas pelos morros e serras que compõe o território. Hoje, a poluição visual corrói a paisagem, que se torna artificial, e a comunidade convive com a poluição sonora. Seus impactos fogem da lógica estatal de negociação por direitos à terra e os danos ultrapassam as questões materiais. Parte desses impactos são imateriais e incompensáveis, não podendo ser incluídos nas negociações por compensação.

O caso do Quilombo do Sumidouro não é isolado. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a instalação de empreendimentos de energias ditas “limpas”, motivada pela transição energética que faz parte da estratégia do governo brasileiro diante do cenário de mudanças climáticas. Com um protagonismo alcançado a nível mundial, o Brasil constantemente bate recordes no quesito energia renovável. De acordo com um estudo da Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas no ano de 2023, 93,1% da eletricidade total brasileira é derivada de fontes renováveis, passando desde a energia hidrelétrica, até a eólica, solar e usinas a biomassa.

Esses dados refletem uma visão midiática que reforçam um orgulho nacional, uma vez que o Brasil é o segundo país do mundo na liderança de fontes renováveis, atrás apenas da Noruega, de acordo com dados da Enerdata.

A busca por fontes de energia com menor impacto ambiental é fundamental no debate sobre o meio ambiente, mas carrega desafios e contradições que precisam ser abordados.O discurso da transição energética como a solução para os problemas energéticos e para as mudanças climáticas esconde os impactos sociais e ambientais dos grandes empreendimentos, como mostra a pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil, lançada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, durante o G-20 Social, evento voltado para a sociedade civil em paralelo ao G-20 e que aconteceu de 14 a 16 de novembro, no Rio de Janeiro.

Segundo Soraya Tupinambá, pesquisadora do Instituto Terramar, em fala durante o lançamento da pesquisa, o vocabulário utilizado na transição energética é uma estratégia de “greening”. Ela afirma que a comunicação esconde os reais impactos e interesses dessa indústria transnacional, que não tem preocupação com o planeta. Soraya explica ainda que o Brasil aumentou a emissão de CO2 ao mesmo tempo que aumenta a produção de energia renovável considerando que o governo brasileiro promove a energia renovável ao mesmo tempo que promove a expansão de fósseis por todo o país como na foz do Amazonas, ou seja, é uma expansão da produção de energia e não a substituição de uma por outra. E faz isso usando um glossário verde, como ‘parques eólicos’, parque no seu imaginário é algo muito bacana, algo leve, bacana, gostoso, energia limpa. E complementa dizendo que toda a cadeia é ocultada por esses nomes.

Apesar dos diversos impactos sociais e ambientais que as comunidades tradicionais enfrentam com a instalação dos grandes empreendimentos em seus territórios, suas opiniões são pouco ouvidas: seja na ausência de consultas prévias e informadas às comunidades, que seriam obrigatórias de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seja na apresentação de seus pontos de vista na mídia. Nataly Queiroz, uma das coordenadoras da pesquisa “Vozes Silenciadas Energias Renováveis” acha que mídia repercute a voz das empresas do capitalismo global, que lucram com os mega empreendimentos das energias renováveis, pois de todas as fontes citadas nas matérias analisadas na pesquisa, 28% vêm do poder Executivo e 27% de empresas do setor energético, enquanto apenas 1,4% das fontes são das comunidades tradicionais impactadas.

Carla Maria, representante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), da Articulação dos Povos de Lutas do Ceará e a Rede Nacional de Mulheres Atingidas por Megaprojetos, defende que a transição energética seja diferente do modelo dos megaempreendimentos e favoreça os territórios onde são instalados. Para ela, o modelo de desenvolvimento defendido pelas empresas e pelo governo é predatório. Diz que todos que fazem parte das comunidades tradicionais estão sofrendo a parte negativa da transição energética, já que eles chegam nos territórios com promessas de desenvolvimento, e quando os moradores das comunidades se posicionam dizendo que não querem, porque conhecem os outros territórios que já foram impactados, são ameaçados de morte.

Os casos acima, principalmente o do Quilombo Sumidouro, exemplifica os impactos invisibilizados da expansão das energias renováveis, revelando como as comunidades tradicionais, como os quilombolas, enfrentam a perda de territórios, desequilíbrios ambientais e danos culturais irreparáveis. Apesar do reconhecimento recente de suas terras, os desafios persistem, evidenciando a necessidade de um modelo de transição energética que respeite os direitos dessas comunidades e incorpore suas vozes nas decisões, garantindo um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e inclusivo.

 

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Meio Ambiente

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Três histórias que mostram a luta de quem vive para cuidar do seu bichinho de estimação.
por
Cristian Buono
|
04/11/2024

Por Cristian Buono

 

Em um mundo onde a correria do cotidiano muitas vezes ofusca a vida daqueles que compartilham nosso planeta, um movimento silencioso, mas crescente, de compaixão e resiliência vem ganhando força. São as histórias de animais resgatados, cuidados, curados e amados por pessoas que se dedicam, muitas vezes, sem recursos e com pouca visibilidade, a salvar vidas indefesas. São essas histórias que inspiram, emocionam e nos lembram da importância de olhar para o outro, principalmente para os mais vulneráveis. 

As iniciativas de resgate animal se tornam pequenos faróis de esperança em um mundo muitas vezes impessoal e desumano. É a partir desse espírito de luta que surgem as narrativas de seres vivos, que, cada um à sua maneira, passaram por desafios extremos e encontraram em sua recuperação uma segunda chance, não só para eles, mas também para aqueles que se dedicaram a salvar suas vidas.

A primeira história, do Thales, começa de maneira triste e dolorosa, como tantas outras que acontecem nas ruas das grandes cidades. Em novembro de 2012, um funcionário de um hotel localizado na Alameda Santos, em São Paulo, encontrou um pequeno gato atropelado, abandonado na sarjeta. O animal, que parecia não ter esperança de sobrevivência, foi imediatamente levado à procura de ajuda. No entanto, os obstáculos começaram a surgir logo de cara. As organizações não governamentais (ONGs) que o funcionário procurou estavam todas com as vagas ocupadas, sem condições de resgatar mais animais naquele momento.

Foi quando a Dra. Claudia Tomasetto, proprietária de uma clínica e pet shop na Vila Mariana, tomou conhecimento da situação. Ela, que já lidava com casos de resgates e cuidados veterinários, não hesitou em ajudar. Thales, como o gatinho foi batizado, foi recebido em seu pet shop, mas a situação não era simples. Claudia afirma que foi o caso mais complexo que já atendeu, pois o animal havia sofrido múltiplas fraturas pelo corpo, além de escoriações e lesões graves. O diagnóstico inicial era ruim, mas, com o apoio da Dra. Claudia e de uma equipe médica dedicada, o gatinho passou por duas cirurgias complexas, nas quais pinos e placas de titânio foram colocados para estabilizar seus ossos fraturados.

O processo de recuperação foi longo e difícil. Cada passo dado por Thales era uma vitória, uma superação das adversidades que pareciam insuperáveis. Com o tempo, o gato foi se tornando mais forte, mais ágil e, o mais importante, mais feliz. Sua história de recuperação emocionou todos os envolvidos no resgate e, eventualmente, Thales encontrou seu lar definitivo com Adriana, ex-funcionária do pet shop Patotinhas. Ela não resistiu ao charme do pequeno guerreiro e o adotou. Hoje, Thales é um gato saudável e espertíssimo, embora ainda carregue consigo a lembrança do sofrimento que viveu. Ele é a alegria da casa de Adriana, e sua história é um símbolo de que, mesmo nos momentos mais sombrios, é possível encontrar luz e renovação.

Thales
Reprodução: Foto tirada pelo tutor

Se a história de Thales é marcada pela superação de um animal, a trajetória de Cecília Beatriz Migueis é um exemplo de dedicação e transformação humana. Aos 45 anos, Cecília, uma psicóloga de carreira sólida, sentiu a necessidade de fazer mais pelos animais. Ela já realizava resgates, castrações e feiras de adoção há mais de 20 anos, mas sentia que sua contribuição poderia ir além. Foi então que, com uma coragem admirável, ela decidiu retomar seus estudos e prestar vestibular para Medicina Veterinária, um desafio considerável para alguém que não entrava em uma sala de aula desde a juventude.

Aos 45 anos, Cecília se inscreveu no vestibular e, para sua alegria e surpresa, foi aprovada na Universidade de São Paulo (USP). Com muita determinação, ela se dedicou aos estudos e concluiu o curso com êxito, realizando o sonho de sua vida. Hoje, ela atende em uma clínica no bairro do Ipiranga, mas afirma que não vai abandonar sua verdadeira paixão: o resgate e a adoção de animais. Cecília continua organizando mutirões de castrações gratuitas e feiras de adoção a cada 15 dias, fazendo a diferença na vida de centenas de animais que, sem sua ajuda, poderiam estar perdendo a chance de um futuro melhor. Sua história é um exemplo claro de que nunca é tarde para mudar, para aprender e, principalmente, para fazer a diferença na vida dos outros.

Em abril de 2023, a cidade de Santos foi palco de mais uma história de resgate que comoveu o Brasil inteiro. Eliseu, um gato encontrado no telhado de uma casa no bairro Areia Branca, estava em estado crítico: desnutrido, desidratado e com uma infecção generalizada. Sua condição era tão grave que ele mal conseguia se mover. Ele foi imediatamente resgatado pela ONG Viva Bicho, que, ao ver a gravidade do quadro, internou o gato para um tratamento intensivo.

O tratamento de Eliseu não foi fácil. Ele estava tão debilitado que precisou de uma transfusão de sangue, que provocou duas paradas cardíacas. A equipe da ONG, no entanto, não desistiu e lutou incansavelmente pela vida do felino. Eliseu foi colocado em um tratamento com oxigênio e tapete térmico para melhorar sua circulação e temperatura corporal, e os primeiros sinais de melhora começaram a aparecer. Após 15 dias de intensivo, ele engordou 600 gramas e começou a desenvolver musculatura nas patas. Sua recuperação, no entanto, não foi linear. Houve momentos de instabilidade, em que parecia que o progresso havia desaparecido, mas a ONG e a comunidade não desistiram.

O que aconteceu a seguir foi um milagre. As redes sociais se encheram de mensagens de apoio e carinho para Eliseu, com pessoas doando energia positiva para o animal. A hashtag #EliseuVive ganhou força, e logo a história do gato se espalhou pelo Brasil. O apoio da comunidade foi fundamental para sua recuperação, e, poucos dias depois, Eliseu começou a mostrar sinais de que estava pronto para enfrentar a vida. Ele deixou o hospital, começou a andar e a brincar novamente. Sua história inspirou tantas pessoas que, após a recuperação completa, a ONG decidiu não colocá-lo para adoção. Eliseu se tornou o símbolo de esperança da ONG Viva Bicho e, em um gesto de homenagem ao animal que inspirou tantas vidas, a instituição mudou seu nome para *Instituto Eliseu*.

Eliseu
Reprodução: ONG Viva Bichos

Hoje, Eliseu é um gato saudável e feliz, vivendo na sede da ONG, que dobrou de tamanho e passou a atender gratuitamente animais de tutores de baixa renda. A história de Eliseu não só salvou uma vida, mas também gerou uma onda de solidariedade que aumentou as doações e o número de associados à causa. Eliseu, com sua história de superação, tornou-se um farol de luz para aqueles que enfrentam desafios pessoais, sendo uma verdadeira inspiração para aqueles que, como ele, estão lutando pela vida.

Essas histórias de resgates e superações não são apenas sobre animais. Elas são também sobre pessoas. São histórias de coragem, dedicação e solidariedade. São relatos que nos mostram como, com amor e determinação, é possível transformar dor em esperança, sofrimento em alegria, e solidão em companheirismo.

O trabalho de resgate animal no Brasil, embora admirável, não é fácil. Ele enfrenta obstáculos financeiros, falta de apoio institucional e, muitas vezes, o desinteresse da sociedade. No entanto, essas histórias provam que, quando as pessoas se unem por uma causa maior, milagres acontecem. Thales, Cecília e Eliseu são apenas três exemplos do poder do resgate animal, mas existem milhares de outros por trás das cortinas dessa luta silenciosa.

O que essas histórias também ensinam é que cada vida tem um valor imenso, e que a solidariedade e o amor podem transformar qualquer realidade, por mais difícil que ela seja. Seja através de um ato simples de resgatar um animal na rua, ou da dedicação incansável de pessoas como Cecília, que mudam a sua vida para salvar a vida de muitos outros resgatando animais que precisam de acolhimento.

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Sem cura, a busca pelo tratamento adequado do autismo é uma corrida contra o tempo
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MILENA FLOR TOMÉ
|
25/05/2022

Por Milena Flor Tomé

O vai-e-vem do balanço no quintal é o lugar favorito do Miguel. Sair do parquinho de madeira exige oferecer a bolacha da vaquinha que ele ama. Loiro de olhos azuis, Miguel é super carinhoso. É ele o dono do beijo de lambidas que às vezes sai com algumas mordidas. Já Benjamin gosta mesmo é de pular. Conhecido como Pipoquinha, ele pula o dia inteiro. Seja na cama elástica ou no sofá. De vez em quando, arquiteta planos para fugir de casa. É uma formiguinha apaixonada por doces. Melina é brava. É ela que manda nos irmãos. Se quer alguma coisa, faz dar certo. Ninguém tira os brinquedos que são dela. Encher três balões e colocar uma vela em cima do bolo já é aniversário, sua comemoração favorita. O “fefessário” a deixa eufórica.

Miguel, Benjamin e Melina são os trigêmeos da Manu.

“Eu sempre fui criada para ser independente. Então, minha vida foi assim: tenho que estudar para não depender de homem. Antes deles (filhos), eu trabalhava em dois empregos, mas nunca soube cozinhar direito, nunca tinha trocado uma falda. A gente se prepara conforme as coisas acontecem. E meu marido é muito parceiro. Temos a meta de vencer cada dia”. Foto: arquivo pessoal.
“Eu sempre fui criada para ser independente. Então, minha vida foi assim: tenho que estudar para não depender de homem. Antes deles (filhos), eu trabalhava em dois empregos, mas nunca soube cozinhar direito, nunca tinha trocado uma falda. A gente se prepara conforme as coisas acontecem. E meu marido é muito parceiro. Temos a meta de vencer cada dia”. Foto: arquivo pessoal.

“Cada criança tem o seu tempo”. Essa era a frase que a psicóloga Manoela Crescêncio mais escutava. Acostumada com a rotina e o jeito deles, não notava nenhum sinal de alerta. Até que recebeu um aviso das educadoras da creche municipal sobre um possível atraso no desenvolvimento social dos seus filhos. Ao investigar, recebeu o diagnóstico de suspeita de Transtorno Espectro Autista (TEA).

O autismo é uma condição grave que prejudica a comunicação e interação social. O diagnóstico é clínico e interdisciplinar. Até o momento, não há exames específicos para a detecção. Os traços se baseiam em déficits persistentes, padrões restritos e repetitivos que são analisados por observação direta do comportamento e uma conversa com os pais ou cuidadores. Segundo o neuropediatra Jaime Lin em entrevista para esta matéria, as características estão na dificuldade para estabelecer uma conversa, anormalidade no contato visual e interesse incomum por objetos ou aspectos sensoriais.

Os sintomas geralmente se apresentam de forma precoce no desenvolvimento, mas podem se manifestar apenas quando há uma maior demanda social. Os sinais devem ser qualificados por um profissional treinado e capacitado, seja por neuropediatra, psiquiatra, fonoaudióloga, psicóloga, terapeutas ocupacionais ou psicopedagogas.

“Eu que detesto chorar na frente dos outros, fiquei até com a garganta trancada”, lembra Manoela do dia que recebeu o diagnóstico dos trigêmeos.

Ela que sempre quis ser mãe, não esperava lidar com algo tão difícil. Porém, sabia que se não fizesse algo, ninguém mais faria pelos seus filhos. Noites de estudos constantes, enquanto o trio realizava terapias multidisciplinares que não apresentavam nenhuma melhora no desenvolvimento. Em contato com outras mães, através de grupos online, Manoela conheceu a Análise Comportamental Aplicada (ABA).

A ABA é uma terapia baseada na ciência da análise do comportamento que ajuda no autismo com as habilidades, principalmente, de comunicação. O objetivo é aumentar os comportamentos que são úteis e diminuir os que são prejudiciais ao aprendizado. Apesar de ser muito conhecida nos EUA, Manoela não encontrou nada na cidade onde reside em Santa Catarina. As poucas técnicas aplicadas por conta própria já apresentavam resultados positivos nos seus filhos. Só que o custo para o tratamento era caro demais para a família.

“Pensava em vender minha casa. Só que são três filhos. Se eu vendesse a minha casa, não conseguiria pagar um ano de terapia”, conta Manoela que conseguiu o recurso terapêutico por meio de uma ação judicial que durou dois anos e meio.

De acordo com o art.3º, inciso III da Lei nº12.764/12 são direitos da pessoa com espectro autista o acesso as ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades, incluindo: o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo; o atendimento multiprofissional; a nutrição adequada, terapia nutricional; os medicamentos e informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.

A vitória neste caso é uma exceção, visto que na maioria das vezes, o Brasil não cumpre totalmente o que está escrito na lei. “A estrutura que temos é quase nenhuma na rede pública para seguir a legislação. Principalmente quanto ao tratamento mais adequado. As medidas são mais paliativas do que para atender as necessidades das crianças”, diz o advogado Alexandre Simon que atuou na ação dos trigêmeos.

Passado um mês com o acesso a terapia, as crianças já tiveram uma significativa evolução. Respondem quando chamadas pelo nome, seguem comandos, apontam para pedir coisas e até emitem várias sílabas. Por outro lado, Christiane Silveira não teve a mesma sorte com o filho Kauã que também possui espectro autista. Cabeleireira, ela se vira junto com o marido que é colorista para conseguir pagar as terapias. “É muito difícil, pelo SUS não consegui. Investimos em média R$3mil por mês. Fora os outros gastos e o tempo que exige”, relata Christiane que também recebe ajuda financeira da família.

“Eu não me importo de sair na rua com meu filho pulando, cantando alto. Eu não preciso que ele deixe de fazer isso. Ele é feliz! Só queremos que ele consiga ter uma independência”. Foto: arquivo pessoal.
“Eu não me importo de sair na rua com meu filho pulando, cantando alto. Eu não preciso que ele deixe de fazer isso. Ele é feliz! Só queremos que ele consiga ter uma independência”. Foto: arquivo pessoal.

Kauã tem três anos, é uma criança muito alegre. Sorri o tempo todo e adora contato físico. Antes tinha um foco extremo para letras e números. Hoje, seu amor é pelos animais. Jogos no celular, desenhos animados, músicas, tudo tem que estar relacionado ao mundo animal. Ele faz acompanhamento com fonoaudióloga, psicopedagoga, terapeuta ocupacional e nutricionista. Para a mãe, o que transformou a vida dele foi a mudança na alimentação. Comenta que a diferença depois de dois meses foi nítida com a diminuição das crises.

“Alimentos processados e ultraprocessados, ricos em açúcares e aditivos podem piorar sintomas no autismo por promover inflamação, prejudicar a função intestinal e aumentar a hiperatividade. Algumas proteínas alimentares, como glúten e a caseína do leite animal, podem intervir no sistema imune, neurológico e piorar sintomas gastrointestinais e comportamentais. Dessa forma, uma alimentação com consumo de frutas, legumes, verduras, cereais, leguminosas e sementes e a exclusão de glúten e leite animal são ideais para pessoas com autismo”, recomenda a nutricionista Maria Rosa Rodrigues.

Tanto os trigêmeos da Manu quanto o Kauã fazem musicalização infantil. Dada a ligação entre o sistema de neurônios espelho e a imitação, a música tem sido sugerida como parte dos programas de terapias. Um estudo publicado pela revista científica Translational Psychology, de 2018, sugere que as atividades musicais podem melhorar a habilidade de comunicação de crianças autistas. O músico Guilherme Fogaça trabalha em conjunto com o plano dos terapeutas. Um dos instrumentos mais usados é o xilofone.

“Miguel era um dos que menos gostava de música, hoje é um dos que mais se identifica. Tanto que tem uma canção cristã que é ‘Alvo Mais Que a Neve’. Todas as vezes que canto, ele sempre olha e sorri”. Foto: arquivo pessoal.
“Miguel era um dos que menos gostava de música, hoje é um dos que mais se identifica. Tanto que tem uma canção cristã que é ‘Alvo Mais Que a Neve’. Todas as vezes que canto, ele sempre olha e sorri”. Foto: arquivo pessoal.

“Miguel gosta de girar as baquetas na mão. Entrego apenas uma, a primeira tem que tocar no xilofone. Quando ele toca já trabalho a questão motora. E digo: ‘muito bem, você tocou o xilofone’. Já entra a comunicação. Como recompensa entrego a outra baqueta para que fique girando as duas na mão”, relata Guilherme sobre um dos atendimentos.

Há uma variedade de terapias voltadas para o tratamento do autismo, isso porque cada caso atende uma necessidade específica. Os êxitos virão na medida que ocorre a conciliação ideal para as características próprias daquele espectro. Uma busca que, geralmente, envolve investimento financeiro que não é acessível para todas as famílias. Desta forma, Manoela abriu com ajuda de outras mães uma Associação de Amigos do Autista (AMA), na cidade de Tubarão (SC). A organização leva informações úteis para os pais e terapia gratuita para as crianças autistas, a partir do trabalho voluntariado de profissionais. Christiane também sonha em ajudar outras pessoas, por isso pretende cursar nutrição e se especializar na área do autismo.

Caro leitor, concedo este parágrafo para explicar a escolha do foco desta matéria. Minha proposta inicial era escutar os pais de pessoas com espectro autista, mas ao longo das entrevistas percebi o forte ativismo, especificamente, das mães. Vale ressaltar que a reportagem é sobre este aspecto e os possíveis tratamentos para o autismo. Não tendo como objetivo representar propriamente os autistas, visto que para isso é necessário escutá-los. Além da reivindicação de direitos, é importante o reconhecimento das pessoas com deficiência como capazes de se posicionar sem a interferência de terceiros.

Mãe atípica

O nascimento de um bebê com características atípicas é um choque para os pais, que têm seus anseios frustrados. Apesar das reações iniciais, as mães geralmente aceitam com maior facilidade e logo, começam a procurar por mais informações. Nem sempre os conteúdos estão disponíveis com facilidade, e isso a pesquisadora e ativista Patricia Salvatori descobriu com o diagnóstico de Prader-Willi estabelecido à sua filha Larissa.

“Eu nunca tinha ouvido falar e não existia praticamente nada em português. Eram conteúdos muito desatualizados. Essa síndrome causa várias características. É um espectro que inclusive tem traços do autismo. Mas também vi que nos EUA tinham muitos tratamentos. Uma série de estudos”, a partir da constante busca pela compreensão, Patricia desenvolveu uma página nas redes sociais online que além de compartilhar conhecimento útil, conta do seu convívio com a filha.

Sair da rotina não é uma tarefa fácil, o que faz desse momento ainda mais especial. Registro no CarnaPupa: bloquinho de carnaval inclusivo em São Paulo, SP. Foto: arquivo pessoal.
Sair da rotina não é uma tarefa fácil, o que faz desse momento ainda mais especial. Registro no CarnaPupa: bloquinho de carnaval inclusivo em São Paulo, SP. Foto: arquivo pessoal.

Larissa é uma adolescente que tem o coração do tamanho do mundo. Ela sempre quer ajudar as pessoas. Seja com doações de seus brinquedos ou roupas. Adora pintar desenhos e colorir a vida de quem está próximo com sua alegria e doçura. Ama os animais e aparece com frequência na página criada pela sua mãe e denominada de ‘Mundo Imperfeito’. Nome que contraria um padrão definido, este que faz a deficiência ser vista como algo errado. Essa imperfeição fala sobre a vida real.

“Ser mãe atípica é ao mesmo tempo que estamos numa sobrecarga gigantesca por lidar com todos esses problemas é entendermos, acima de tudo, que o problema não é a minha filha. O problema é a sociedade em que vivemos que não é preparada para receber as pessoas como elas são e o mundo como tem que ser, diverso. Não somos todos iguais. Cada um tem suas diferenças. E o mundo tem que estar aberto para todas essas pessoas. Ser mãe atípica é lutar por isso”, completa Patricia.

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Representatividade feminina ainda deixa a desejar nesse universo
por
Anna da Matta
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12/05/2022

Por Anna da Matta

Caminhando pelos longos corredores e salas de uma exposição cada pessoa vai entrando em contato com diversas informações, sejam das obras expostas ou apenas do local. Os cheiros de perfume no ar, as gargalhadas e conversas paralelas ao fundo de seus próprios pensamentos, as cores e formas das produções artísticas tentando chamar a atenção de quem está presente. As interpretações e óticas para as criações são diferentes de indivíduo para indivíduo. Cada um tem suas próprias perspectivas e concepções, e vão ter sentimentos distintos em relação ao que estão observando. Mas, nota-se, em algum canto do ambiente, pelo menos um trabalho inspirado em uma mulher. 

No universo das artes, a imagem de mulheres é constantemente reproduzida. De incontáveis formas e em uma larga escala. As obras as retratam como objeto de desejo, de maneira angelical, de uma ótica polêmica, como inspiração etc. Seja qual o modo elas estejam representadas, estas figuras são grande parte do foco de produções artísticas. Apesar disso, não necessariamente torna esse ambiente um espaço de igualdade ou de representatividade. 

O ano era 2017 e o coletivo Guerrilla Girls vinha ao Brasil para uma retrospectiva de trinta e dois anos de seu trabalho. Elas vestem máscaras de gorilas carregadas de pelo e com expressões faciais diferentes, mostrando apenas os olhos e com buracos para as narinas. O anonimato faz parte e ajuda a manter o foco nas questões em que querem problematizar.  São reconhecidas por serem artistas ativistas feministas. Pregam que podem ser qualquer um. Dizem que estão em todo lugar. 

Guerrilla Girls protestando nas ruas de Nova York, 1985. (George Lange/Divulgação)

Em público, elas utilizam do humor e de visões afrontosas para evidenciar questões de gênero e étnicos, bem como corrupção na arte, no cinema, na cultura pop e na política. As ativistas construíram, e continuam a construir, uma narrativa nada convencional, e colocam nos holofotes as injustiças e assuntos que, normalmente, são quase que invisíveis. 

Ao levantarem dados — um tanto quanto chocantes — sobre a presença feminina no mercado das artes, as Guerrilla Girls passaram a influenciar o setor. 

Num fundo amarelo vibrante, com a imagem de uma figura feminina com cabeça de gorila em tons de cinza, preto e branco, virada de costas e reclinada em uma espécie de pano com tonalidade meio vinho, um dos cartazes provocativos que fazem parte das ações do coletivo feminista, estampa as frases “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. 

Cartaz realizado por Guerrilla Girls, 2017. (Foto / Reprodução)

Lamentavelmente a desigualdade dentro desse universo não se classifica como fora da normalidade, como se fosse algo surreal. Segundo o veículo de comunicação ArtNet, foram gastos mais de US$196 bilhões, entre os anos de 2008 e 2019, em leilões de arte. Dentre esse valor, os trabalhos produzidos por mulheres representam apenas 2% das obras vendidas.

Não é nenhum segredo que o setor cultural não escapa à regra quando se fala em desigualdade de gênero. Em uma pesquisa feita pelo IBGE em 2018 foi exposto que as mulheres atuantes no campo da cultura ganham, em média, 67,8% do salário dos homens para executar tarefas semelhantes. Segundo a criadora de conteúdos e fundadora do Museu do Isolamento, Luiza Adas, o valor do trabalho de um artista tem que ser dado de acordo com o prestígio e com as reflexões que trazem para a sociedade, e com certeza, as mulheres têm a capacidade de terem trabalhos tão incríveis quanto, senão até mais, que artistas homens, então, para ela, não faz o menor sentido essa diferença salarial.

Ao adentrar em um estúdio — ou algum outro lugar reservado para a criação — os artistas mergulham em seus próprios universos, silenciando por algumas vezes o mundo externo. A artista e tatuadora Lua Clara Faria, de vinte e um anos, é brasileira mas já mora em Lisboa faz alguns anos. Para ela, poder se expressar com a arte é extremamente gratificante. Através de suas produções, ela consegue enxergar aquilo que estava sentindo quando decidiu realizar algum projeto. Tanto no processo, quanto no final. 

Lua compreende a sua arte como uma forma de meditação. É, de diversas maneiras, contemplativo. Ela desenha mandalas e florais em diferentes superfícies. Quadros, telas, paredes, já até pintou violão. Também já produziu em lã e artesanatos como almofadas, capas de celular, cadernos, canecas etc. E há algum tempo, decidiu se aventurar no universo das tatuagens. 

Quando Lua desenha, principalmente as mandalas, consegue deixar sua mente mais calma no processo. Ela conta que serve de ajuda para a ansiedade. 

A artista já teve algumas oportunidades de expor suas criações. Para além de sites de vendas online, Lua expôs sua arte em uma feira de artesanato. Através da internet, ela sempre teve contato com clientes ou pessoas que elogiam suas produções, mas, não acredita que essa comunicação chegue perto da sensação do encontro presencial, de algo mais pessoal. Ao relembrar da experiência, ela se enche de emoções e memórias boas. Era uma tarde agradável. Aqueles que não tinham acesso a suas redes, puderam conhecer seu trabalho. 

No entanto, Lua enxerga a desigualdade que se faz presente no mundo artístico. Neste início como tatuadora, ela nota que ainda existem diversos estereótipos e concepções de que mulheres são mais delicadas do que os homens. Também observa a maior quantidade de tatuadores com reconhecimento no mercado.  

Mulher observa quadro em exposição no Museu do Prado em Madri, 2020. (AFP) 

Jochen Volz, diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, já organizou pelo menos 30 exposições individuais de artistas mulheres entre 2001 até hoje. Ele também assinou como curador duas mostras que foram, cada uma em seu momento histórico, as com maior presença feminina. A 53ª Bienal de Veneza, no ano de 2009, com 43% de artistas mulheres, e a 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, com 60% de artistas mulheres.   

O diretor diz entender que ainda é necessário um grande esforço até que os acervos dos principais museus tenham um equilíbrio maior entre os artistas. A presença feminina no acervo da Pinacoteca chega a 30% dos artistas aproximadamente. De acordo com Jochen, o número é melhor do que já foi alguns anos atrás, mas afirma não ser o suficiente. 

Naomi Cary, que se considera multiartista audiovisual, explica que toda vez que alguém se pergunta se alguma coisa é arte ou não, ela passa a ser. O papel dessas produções é de colocar as pessoas nesse conflito com elas mesmas e com as suas próprias concepções. Quando trabalha com arte manual, em formato de pintura de telas, Naomi realiza uma série intitulada “Black Alien”, que é toda de autorretrato. É uma forma de reinventar sua identidade e desafiar as maneiras de como é vista para criar. A artista tenta, em suas criações, questionar e abandonar esse lugar de musa, passiva, de ser olhada. De consumir a arte sempre de um lugar distante e se aventurar a produzir algo diferente disso. 

Um dos privilégios masculinos é retratar qualquer assunto ou tema em suas produções. Para a mulher, em sua maioria das vezes, é dado um espaço apenas das representações. Quase como se fosse uma obrigação falar do universo feminino. É o que a sociedade espera dessas artistas. Vão criando segmentações a serem seguidas. Como se a criatividade — em um trabalho majoritariamente imaginativo e criativo — não pudesse falar mais alto, como se estivessem limitadas a caberem nas caixinhas das expectativas dos outros. 

Entretanto, há esperança para o futuro feminino nas artes. As mulheres estão cada vez se sentindo mais abertas a entregarem algo que, de fato, condiz com aquilo que elas querem produzir — não que esse feito não esteja presente no passado também, as revolucionárias são a prova disso.  Progressivamente, as artistas mulheres têm tomado seus devidos espaços nesse universo. Já não é mais aceitável fazer uma seleção sem nenhuma imagem feminina presente.

 

O caminho ainda é longo e árduo, mas existem esperanças para novos olhares feministas. 

 

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Cultura e Entretenimento

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Como o mundo de hoje é impactado pelo passado e segue destinado a cometer os mesmo erros
por
Paulo Castro
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16/06/2022

Por Paulo Victor Castro 

O século XX é visto como o século da grande modernidade. O período é marcado por grandes guerras, lutas sociais e culturais e, uma grande mudança de visão para a sociedade. Uma forte influência do que ficou conhecido como o Modernismo e suas fases. No começo de 1900, é possível enxergar um mundo feito por construções rebuscadas, estéticas e trabalhadas. Essa é a principal mudança que marca essa troca. Nas artes e arquitetura, as coisas passam a ser mais práticas, sendo assim tendo uma preocupação menor para a estética e um grande investimento em sua função e habilidade de desempenhar a ação em curto e médio prazo. Algo que para época ia completamente contra o “natural”, já que a cultura sempre esteve mais conectada à beleza, riqueza e poder. Entretanto, esta mudança de pensamento não é algo visto apenas no mundo artístico e arquitetônico, a troca era principalmente no modo de se viver e enxergar o futuro da sociedade, algo que acabou culminando com o que hoje é conhecido como um grande período de momentos e revoluções.

A primeira década do século XX é marcada, ainda, por um forte e intenso Imperialismo, período que chegou a durar até a segunda metade desses 100 anos em colônias europeias. Uma dos conflitos mais marcantes desse momento foi a Guerra Russo-Japonesa (1904-05). O Japão derrota a Rússia na Manchúria (China), e conquista, na época, o que o mundo tinha de mais valioso a oferecer: terras. Ter terras simbolizava força, tamanho e poder, sendo assim o desejo de todas e qualquer potência. Não à toa, a Primeira Grande Guerra não demoria muito a chegar, tendo enormes implicações na questão territorial e militar dos grandes países do planeta. Ainda no assunto da Guerra Russo-Japonesa, a vitória do Japão é o marco do início e caminhada de uma forte militarização do país asiático e, do outro lado, uma enorme insatisfação russa com o seu atual regime, que à época era comandado por Nicolau-II. Importante destacar como isso é extremamente importante e crucial para as mudanças que vieram a ocorrer nos países e suas revoluções nacionais e internacionais.

A segunda década do século XX possui uma importante e intensa influência com o presente e suas grandes brigas, intrigas e questionamentos. A Primeira Guerra Mundial foi o grande embate e o conhecido palco de uma brutal batalha entre as potências de todo mundo durante os anos de 1914 e 1918. A pluralidade cultural, social, artística e a enorme disputa territorial culminam em uma sangrenta guerra. A batalha entre os países muda completamente o rumo do mundo, novas grandes potências surgem, como os Estados Unidos, e um futuro passa a ser desenhado por aqueles que controlavam a maioria das “cartas”.

A arte e a guerra

Evidentemente, é impossível cair dentro do mundo do passado e não comentar sobre a enorme influência que a arte carrega. Desde os famosos movimentos artísticos como o Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, o Expressionismo e muitos outros, a sociedade em formação passa por belos períodos de conhecimento e cultura. Algo que ainda é extremamente importante e necessário nos dias atuais. Movimentos como o Jazz, que surgiu em New Orleans, nos Estados Unidos, são extremamente valiosos e cheios de conhecimento e história. Mesmo sem o poder de influência das armas e das grandes batalhas, a arte e cultura sempre esteve presente na sociedade e são fontes de conhecimento para também entender os dilemas atuais que os países carregam.

Em conversa com o professor Mauro Luiz Peron, doutor em Multimeios pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas em 2006, e professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a arte foi algo muito debatido. “A Arte constitui uma das mais extraordinárias expressões humanas e, por ser expressão de sensibilidades construídas em meio a experiências econômicas, sociais e políticas, em seu bojo toda realização musical (cultural que é) indica as escolhas estilísticas e estéticas de seus criadores e, por isso mesmo, toda arte é mesmo plena de sentidos multifacetados. Mas talvez o mais intrigante nas obras de grande impacto seja o fato de detectarem, no banal, o mais inusitado, e vice-versa. O resultado é a contundência, o assombro e, assim, o convite para uma nova chamada para a educação do Olhar. As consciências de classe, por exemplo, são mobilizadas o tempo todo por grandes obras musicais, teatrais, cinematográficas e literárias. E é sempre um olhar específico que vai procurar quantificar (e qualificar) o alcance de tais obras”, explica.

As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por momentos importantes e, também, relevantes para o futuro da sociedade, mas o ponto de partida do pensamento será exatamente o olhar da cultura apontado por Mauro Perón. Em uma sociedade que passou por uma transformação lá atrás de um estético para o prático, a arte hoje, em algumas situações, passou a ser vista como “secundária”, tanto em importância e necessidade. Não é atoa, que a sua falta é um dos grandes erros da modernidade. O tal problema tem claramente uma conexão com o passado e as escolhas. O prático, por muitas vezes, esteve não à frente do estético, mas, sim, do pensamento. 

O lado das escolhas também é algo importante na análise do tempo e a sua enorme diferença no espaço. Como cada escolha, momento, guerra, ação e outras diversas coisas podem ter influenciado o passado e o presente. Como que mesmo tudo tão longe, alguns problemas seguem o mesmo. Em 2022, a Rússia volta a estar em guerra, a potência dos Estados Unidos entra em um dos seus piores períodos nos últimos 50 anos, e um Brasil desesperado e inflacionado de problemas e mais problemas. Como os dilemas do passado voltam a aparecer no presente? Onde ocorreu a evolução? “Somente podemos avaliar épocas passadas na perspectiva do presente que experimentamos. Por esse motivo, olhamos seletivamente para o passado. Nessa perspectiva, avalio que a trajetória humana é configurada por uma extraordinária dialética, na qual as interações, as interdependências, as influências recíprocas redefinem o tempo todo mesmo as projeções de sociedades futuras”.

Um dos temas principais do século XXI é o Capitalismo e a sua influência nos mais diversos pontos da sociedade. Repare que a troca feita no passado entre o estético para o prático também pode ser visto por alguns ângulos no modo de viver capitalista. O mundo pode ser daqueles que produzem e desempenham hoje algo que o outro não pode oferecer, e quando no topo, assim como as potências dos 1900, lutam para permanecer e afundar ainda mais quem está por baixo dessa grande cadeia. O ciclo segue o mesmo. “O Capitalismo é um Modo de Produção de existência. O dinamismo da sociedade capitalista arrasta tudo e todos para a realização ampliada da exploração, em nome da realização ampliada do lucro. Toda a riqueza socialmente produzida é plantada na exploração da imensa maioria da população humana. Tudo tende a ser transformado em mercadoria”.

Nos dias atuais é muito claro e escancarado uma enorme evolução tecnológica do novo século. Talvez os grandes carros voadores e nenhum dos ETs tenham chegado a terra, mas o rápido desenvolvimento em grandes áreas também faz parte do começo da história do século XXI. Alguns extremamente positivos e animadores mas nem tudo aparenta ter seguido esse caminho. Uma questão levantada durante a entrevista com o professor Mauro Peron foi qual a explicação para um avanço tão forte e intenso em algumas áreas da sociedade, e um retrocesso, ou melhor, “continuação de pensamento” em outras. Repare bem, o início dos anos de 1900 é marcado pelo racismo e uma grande diferença de classes em boa parte do mundo, realmente houve evolução nesse sentido até o atual ano de 2022? 

“Há uma questão de base a ser considerada: todo avanço só existe em nome ou de uma opressão, ou de uma resistência a toda forma de opressão. Esse processo tem acompanhado a história de todas as sociedades. E talvez seja preciso apontar que, afinal, “racismo”, “desigualdade social”,  e “guerras” expõem (ou ocultam) experiências fundamentais e limítrofes da sobrevivência. Nesses termos, é preciso interrogar: a Tecnologia é avanço para quê? Para quem? Existe para perpetuar violências, ou para emancipar a todos? Não é possível responder a essas perguntas sem olharmos para todos os horrores pelos quais um “bem” também significou a dor mais devastadora. Afinal, toda “evolução” não pode ser simplesmente um “bem”, porque se ela é a mudança de um estado de sociedades para outro, muitas sociedades viveram os piores pesadelos em regimes totalitários antes impensáveis”.

Um ponto importante é saber como gerir tudo aquilo que é visto como evolução, ainda mais nos novos tempos de máquinas e grandes descobertas. Saber trocar o que não passa de uma invenção para realmente uma progressão. A tecnologia por muitas vezes é vista como uma liberdade. Realmente é um enorme avanço, mas na mesma medida em que constrói, também é capaz de privatizar e oprimir. Nem todo “bem” é realmente às custas de ninguém. E contra isso, a luta jamais parará. Tanto da mudança mais simples, até a mais sofisticada. Porque e como evoluir, essa é a pergunta mais importante.

 

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Relatos de mulheres que sofreram violência sexual e psicológica durante suas aulas práticas de direção
por
Fernanda Fernandes
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27/06/2022

Por Fernanda Fernandes 

 

Era uma conquista estar indo tirar a carta, pois isso só foi possível por fruto de seu trabalho. Lavínia se dedicou como menor aprendiz e juntou dinheiro para a habilitação. Por já ter passado por violências ao longo de sua vida, tinha um certo receio de ficar em um carro com um homem. No dia 13 de setembro de 2020, era a sua primeira aula. Tomou um banho demorado, pois ficava pensando o que poderia acontecer neste dia, mas foi. Ao entrar no carro, Lavínia alega já se sentir desconfortável, pois o instrutor começou a elogiá-la constantemente. Ele dizia: “Você é muito linda”, “Que pele maravilhosa”, “Que cabelo lindo”.

No primeiro momento ela achou estranho, mas pensou que ele estava querendo criar uma intimidade, de uma forma invasiva, mas entendeu. Com o passar das aulas os elogios foram aumentando, e novas atitudes começavam a surgir.

Lavínia relata que em um dos dias, o instrutor pediu para ela tirar uma foto da folha que continha a explicação sobre as infrações de trânsito, e na hora de tirar a foto ele passou a mão na coxa dela. No momento Lavínia ficou sem reação, paralisada, só conseguia olhar para a tela de seu celular, e sem saber o que fazer, disse para continuarem a aula.

Quando começavam a fazer a baliza, ele falava para ela: Lavínia se você acertar a baliza eu mereço um abraço, se você errar, você também merece um abraço. Eu gosto de dar prêmios aos meus alunos.

Lavínia explica que o instrutor partia para cima dela, sem sua permissão. “Eu nunca falei que podia, eu tentava fugir. Só que eu ficava, será que isso está acontecendo ou é coisa da minha cabeça, será que ele realmente está sendo invasivo ou eu estou inventando. Minha intuição dizendo que era um assédio, mas minha bondade falando que era coisa da minha cabeça”.

Com dúvida e com esperança de que a próxima aula poderia ser melhor, Lavínia foi em mais uma. Era um dia muito chuvoso, ela conta que não dava pra ver nada, nem com o para-brisa na velocidade maior, e nesse dia ele a levou para uma rua sem saída.

Em seu relato ela afirma que foi desesperador. Indo em direção do final da rua, ele andava a menos de 10 km/h e não parava de olhar para ela. Com medo, ela pensava em como poderia reagir. “Eu não posso dizer que a intenção dele era me estuprar, mas deu a entender muito que era isso”.

Mas ao chegar no final da rua, o alívio veio, quando enxergaram três homens tendo aulas de moto. Nesse momento, o instrutor mudou seu comportamento – para disfarçar – e Lavínia pediu para trocarem de lugar e começarem a aula – na qual ela não conseguiu dirigir por medo.

Assustada, mas também com coragem, a moça que na época tinha 19 anos, parou as aulas, enviou um relato para a autoescola – que fez pouco caso da situação – e publicou também em suas redes sociais, o que gerou muita repercussão e descobertas. A partir de sua publicação, mais de vinte casos de assédio na mesma auto-escola começaram a surgir. Samantha foi um desses.

Como sempre quis dirigir, ao completar 18 anos ganhou a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) de presente dos seus pais. Mas por já ter sofrido assédio em outros momentos da vida, estava receosa. Sua terapeuta a incentivou a enfrentar seus medos e não se privar de fazer aulas com um instrutor homem, mas como ainda não se sentia completamente preparada Samantha preferiu fazer as aulas com uma mulher.

Para conseguir agendar com a instrutora, demorou muito mais tempo, pois era a única mulher da autoescola. Mas ela não se importou, esperou e fez suas aulas com tranquilidade – que segundo ela foram fantásticas.

Porém em um dos dias em que tinha duas aulas, o sistema da autoescola estava quebrado e ela não conseguiu registrá-las como feitas. A partir disso, teve que repor as aulas perdidas. Como não queria esperar tanto tempo e estava ansiosa para pegar a habilitação logo, deu a chance de fazer com um homem.

Na primeira reposição tudo ocorreu bem – tirando o fato dele ficar apenas no celular e não dar atenção a o que ela estava fazendo. Já na segunda aula, como Samantha estava tendo dificuldades com a baliza, ele disse que iria ensiná-la a fazer.

Sentado no banco do passageiro, e Samantha no do motorista, ele começou a virar o volante ele mesmo. “Nesse momento ele encostou no meu peito várias e várias vezes, as primeiras vezes com o braço, como se fosse sem querer”.

Samantha relata que por ter os seios grandes e por causa do banco estar perto do volante, mesmo incomodada, relevou. Mas depois percebeu que quando ele tirava a mão do volante ele passava em seu seio. Ao perceber, ficou paralisada e sem reação, mas por não ter certeza se havia ocorrido de propósito ou acidentalmente, não tomou nenhuma atitude.

Depois de dois meses, após já ter finalizado o seu processo de habilitação, ela viu o relato da Lavínia nas redes sociais. “Uma amiga minha me enviou a publicação e disse: foi o mesmo instrutor que te deu aula? E na hora eu não sei explicar, naquele momento eu pensei aquilo realmente aconteceu, não era coisa da minha cabeça”.

Samantha relata, que foi assustador, ao perceber que era o mesmo instrutor sua ficha caiu. E então ela se sentiu invadida e desrespeitada. 

Após ver a publicação, ela expôs o seu caso para Lavínia, e juntas foram até a autoescola falar com o dono e lutar por justiça. A autoescola, que fica localizada na Vila Sônia ficou se justificando, e colocando as vítimas como culpadas da situação. Mas após um período, o instrutor foi demitido.

Samantha abriu um boletim de ocorrência na justiça, mas até o momento não teve respostas. Lavínia também pretende abrir. Os ocorridos uniram as duas, que construíram uma amizade que prevalece até hoje. O apoio foi fundamental e durante a entrevista elas mostraram que ficam felizes em poder ajudar mulheres com os seus relatos, além de se sentirem muito corajosas em denunciar e expor a situação.

“Sozinha eu não teria feito nada, com ela eu tive muito mais força” conta Samantha.

Agressividade e menosprezo

Além do assédio, a violência também se faz presente em atitudes grosseiras e falas machistas, que desestimulam e menosprezam o conhecimento e a credibilidade das mulheres.

Era sua penúltima aula, o nervosismo e medo da prova prática estavam cada vez maiores, e a insegurança também tomava sua cabeça. Mas o que já era um grande problema, se tornou ainda maior após esses dois dias.

Enquanto dirigia, o instrutor de Rafaela que sempre a tratou bem, conversava sobre diversos assuntos cotidianos, o que para ela era tranquilo e até a deixava menos nervosa no momento de dirigir. Porém, existem assuntos e assuntos, e aqueles que – às vezes – não cabem, a política é um deles.

Estava no meio da aula quando o instrutor começou a perguntar para Rafaela sobre o presidente do Brasil e as próximas eleições, ela até pensou em não comentar, mas não aguentou, seguindo com a conversa e trazendo suas pontuações em relação a política atual.  

Os minutos foram passando e o clima já não era o mesmo, estava tenso e as opiniões divergentes ecoavam, o que fez Rafaela querer encerrar o assunto, mas ele não parou e continuou falando até o final da aula. Após o ocorrido, ela ficou um pouco desanimada para o próximo treinamento, por ter se incomodado com as afirmações que escutou, além de perceber o quanto isso afetaria o dia seguinte. 

Sua última aula chegou, e como já esperado, o professor mudou completamente. As risadas e o jeito simpático de conversar, se tornaram caras fechadas e frases secas. Desconfortável com a situação a jovem de 18 anos seguiu o caminho quieta, até que, quando menos esperava, o instrutor começou a falar novamente sobre política em tom de provocação e insinuando que a mulher não sabia o que estava dizendo, por ter pouca idade e que ela precisava ler mais.

Ao chegar ao local da aula, Rafaela se sentou no banco do motorista e começou a dirigir como sempre fazia, até que em meio a troca de marchas e disparadas de setas, começou a ouvir em tom agressivo “Rafaela não é assim”, “Rafaela você está errando pois não está me escutando”. As correções do instrutor, que nas primeiras aulas afirmavam “Fica tranquila, você está aqui para aprender”, começaram a ser rudes. Com o nervosismo de ser a última aula, o desconforto em ter que ouvir que não tem competência para ter suas próprias ideias, além das grosserias, Rafaela não aguentou, com a cabeça cheia, parou o carro, respirou e começou a chorar. Ao ver as lágrimas, o instrutor, outra vez, muda completamente, mas agora soa como preocupado e diz para irem embora.

Contando sobre o fim da história, Rafaela com raiva diz “No caminho de volta após o choro passar, o professor virou para mim e disse para eu ficar tranquila, pois mulher é assim mesmo, quando não consegue fazer alguma coisa, senta e chora”.

A experiência de escutar uma frase machista também aconteceu com Larissa, que sempre teve o sonho de dirigir, pois quando era pequena seu pai a colocava no colo enquanto estava ao volante. A jovem comenta que fez suas aulas práticas com um homem, mas que tudo ocorreu bem. Diferente dos outros relatos, esse caso ocorre na Rua do Carmo Marialva Aranha, local em São Paulo, onde ocorrem as provas práticas do Detran (Departamento Estadual de Trânsito).

Ansiosa e com medo de ser avaliada, lembra que pegou uma fila quilométrica e não parava de andar de um lado para o outro. Com um pouco de agonia de falar do ocorrido, ela explica que depois de 2 horas esperando, chegou a sua vez. Ao entrar no carro, deu bom dia ao avaliador, e o silêncio ecoou, sem resposta começou a arrumar o cinto, retrovisor, banco, até que escuta: eu não tenho todo tempo do mundo para esperar não viu, se continuar lerda assim não vai dar.

Tentando manter a concentração, não quis que isso a desestabilizasse e então seguiu com calma. Ligou o carro, saiu, fez baliza, a primeira parada, tudo perfeito, sem nenhuma pontuação, o que a deixou mais confiante.  Quando estavam chegando próximo da última rua, o avaliador comentou que ela estava ficando muito perto dos carros da direita e que se ela continuasse assim ele iria reprová-la. “Presta atenção eu não vou falar de novo” era o que ela ouvia, enquanto pedia desculpa.

Quanto mais perto do final da prova, Larissa começou a ficar mais nervosa com medo do último estacionamento. “Eu lembro que enquanto eu estava esperando na fila, eu vi a quantidade de pessoas que foram reprovadas exatamente ali na guia, e isso me deixou extremamente tensa” conta.

E foi o que aconteceu, ao estacionar e pisar o pé no freio, sentiu o pneu encostando na calçada. Nessa hora de frustação e indignação com o erro no último momento, ela relata com raiva e tristeza “Eu fiquei morrendo de vontade de chorar, eu lembro que eu só queria pegar o papel e ir embora. Mas o instrutor olhou para mim, assinou o papel e disse: viu Larissa, você reprovou pela sua incapacidade, eu te avisei que você estava perto dos carros, você está reprovada por sua causa". Chorando ela saiu do veículo.

 

O machismo de outro ângulo

Lindomar Costa, instrutor teórico e prático credenciado pelo Detran, atualmente ministra aulas para pessoas que têm medo de dirigir, e por 85% de seus alunos serem mulheres, conta em entrevista que para muitas esses medos são decorrentes de traumas e experiências negativas dirigindo.

Mas além das problemáticas presentes dentro da autoescola, ele traz uma outra perspectiva do machismo. Lindomar afirma ter percebido ao longo dessa trajetória de instrutor, principalmente para habilitados, que muitas mulheres casadas deixam de dirigir por conta de seus maridos, que preferem ter um domínio sobre elas e não as incentivam a tirar a carta de motorista. Dizem, “eu te levo, não se preocupa”, criando assim uma falsa proteção e as impedindo de ter uma liberdade.

O instrutor comenta que outro problema ocorre quando os maridos tentam ensinar as mulheres a dirigir, “Muito dos medos dessas mulheres vem de experiências desastrosas, por exemplo, tentou aprender com o marido e ele grita, chama ela de burra”.

Em relação ao assédio, ele relata que já escutou o relato de várias alunas que foram assediadas na autoescola, a ponto de desistirem de fazer as aulas. “A pessoa deposita toda a confiança dela no instrutor e de repente ele desmorona toda aquela expectativa. É uma decepção para a aluna, que acaba desistindo de tentar dirigir” comenta.

Ao longo da conversa, ele acrescenta que durante o curso de instrutor teórico e prático do Detran, é abordado o comportamento do instrutor, o que ele pode e não pode fazer, além da temática do assédio. “Eles abordam de uma forma bem clara e ensina realmente qual que é o papel do instrutor, como ele deve se posicionar”. Segundo o instrutor, uma das coisas ensinadas durante o curso é que o professor não pode andar com o braço atrás do banco do aluno, que a mão deles tem que estar sempre na perna, e que é proibido qualquer assunto que não seja direcionado a aula.

Perigo constante?

"Mulher no volante perigo constante". Essa é a clássica frase dita por homens para diminuir a capacidade de dirigir das motoristas. Porém, com um novo olhar e mergulhando fundo em relatos é possível ressignificar essa afirmativa tão corriqueira, pois de fato, sim, mulher no volante perigo constante. Mas em qual contexto?

O perigo está presente quando a mulher se senta em frente ao volante, mas ele ocorre quando um homem desconhecido está do seu lado. Esses são apenas alguns dos diversos relatos existentes, esse problema não é pontual, não é pequeno, ele é realmente constante, causando traumas e impedindo que muitas mulheres se tornem independentes e dirijam as suas próprias vidas.

Todos os dias querem podar e desestimular as mulheres, mas a denúncia precisa acontecer para que assim como, Lavínia e Samantha se ajudaram, outras mulheres possam ser salvas. A frase machista ganhou um novo significado ajudando a compreender que a violência e o machismo no trânsito começam muito antes da carteira de habilitação.

 

 

 

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Reajustes dos servidores foram viabilizados por retirada de direitos ao longo do mandato do tucano
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Lucas Martins
|
14/04/2022

Por Lucas Martins

A tarde estava chuvosa, a água batia na cobertura do Palácio 9 de Julho, mas não fazia mais barulho do que os manifestantes que estavam na porta da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Dentro do Plenário Juscelino Kubistchek, os deputados e deputadas estaduais chegavam um. Os progressistas sentavam à esquerda do presidente da Casa, Carlão Pignatari, e os conservadores, à direita, enquanto a base governista se espalhava pelas fileiras do fundo e se acomodava nas cadeiras verdes acolchoadas. 

Nas galerias, diversas categorias de servidores públicos, que carregavam faixas e bandeiras, aguardavam inquietos o início da votação da reforma da previdência estadual quando o deputado Frederico D'Ávila, em processo de afastamento por ataques à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, apontou as mãos em formato de arma para eles. A atitude do parlamentar foi como um fósforo em um barril de pólvora, que gerou uma explosão na ala dos manifestantes.

Mais tarde, um dos eventos mais marcante da história da Alesp aconteceu. Durante o seu discurso, o ex-deputado Arthur do Val, que renunciou e amargou uma cassação de mandato em votação no plenário após ter áudios sexistas vazados, chamou os sindicalistas presentes de "vagabundos" diversas vezes, enfurecendo Teonílio Barba, que partiu para cima de "Mamãe Falei". Esse foi o momento em que tudo se inverteu e a base governista criou uma falsa narrativa. Os manifestantes, que estavam sendo agredidos pelo projeto que era votado, se tornaram os agressores . Por volta da primeira hora da madrugada, o gesto de Frederico D'Ávila fez mais sentido do que nunca. A reforma da previdência estadual havia sido aprovada. Um tiro na perna dos servidores, que saíram aleijados, mas sem saber que era apenas um começo de uma série de ataques promovidos pela gestão de João Doria.

Em 2021, o Executivo lançou mais uma proposta covarde ao Legislativo paulista. O Projeto de Lei complementar proposto buscava promover uma reforma administrativa ao acabar com diversos direitos dos funcionários públicos. O PLC foi a plenário em uma terça-feira de muito sol, quente como o clima que se instaurava nas galerias. Novamente os sindicatos mobilizaram diversos manifestantes para lutar contra mais um ataque. Durante as falas que apoiavam a proposta, a líder do Partido dos Trabalhadores na Alesp Professora Bebel fazia círculos com as mãos, um comando para que todos virassem de costas e ignorassem as atrocidades que eram faladas.

Entre os discursos na tribuna, a oposição contava os parlamentares presentes no local. Constatado um baixo número de governistas, era pedida verificação de quórum. Os deputados do campo progressista, juntamente com os conservadores da extrema direita, corriam para as portas do plenário e se escondiam do olhar atento de Carlão Pignatari, que queria levar mais um troféu para Doria e receber um tapa em seu topete.

A técnica de obstrução não funcionou. Os capangas do Executivo, como eram chamados os deputados da base do então governador com suas emendas parlamentares liberadas, mantiveram o quórum necessário. Ao final da sessão extraordinária, um silêncio reinou. Luto pelo funcionalismo público, que já estava mancando, e naquele momento foi ao chão. A sequência de cruzados que levou os servidores à lona não foi ocasional. O plano de Doria estava escrito, desde o começo, e ficou explícito em sua última reunião com parlamentares da Alesp, realizada mensalmente durante seu mandato, para que as estratégias da base fossem definidas.

O Secretário da Casa Civil, Cauê Macris, presente no encontro virtual, questionou em tom amigável o líder do governo na Assembleia Legislativa o porque de eles não estar nos gabinetes articulando com outros parlamentares para que a cartada final de Doria fosse aprovada em plenário. Cercado em grandes árvores em uma praça de Marília, Vinicius Camarinha riu, e disse que já estava tudo certo para que o tucano presidenciável deixasse seu cargo em paz.

O último ato de Doria seria tentar ganhar de volta o funcionalismo público com projetos de revalorização salarial. Porém, os servidores mostraram que não tinham memória curta. Através de seus óculos sustentados por uma fina aração, José Gozze assistiu à votação das duas reformas e à diversas outras lutas. Cercado por bandeiras de sindicatos que já participou ou presidiu, e quadros com líderes progressistas, ele condena todos os passos de Doria, da prefeitura ao governo. Ansioso, ele mostra suas conversas com diversos movimentos, destacando as articulações feitas para derrubar os recentes ataques feitos pelo Executivo.  Além disso, em seu caderno com adesivos de diversos partidos de esquerda colados, ele lê os dados inflacionários dos últimos dez anos, condenado a esmola oferecida por Doria em forma reajuste salarial.

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