O final do verão e início do outono é marcado pela expectativa de uma nova temporada de futebol americano. Esse ano, a expectativa só aumentou, uma vez que a crise sanitária atual ameaça todos os esportes. No mundo universitário, jogadores, treinadores, comissão e fãs invadiram o Twitter com a hashtag “WeWantToPlay” pedindo para que a temporada 2020 não fosse cancelada, mas continuasse com as medidas de prevenção ao vírus necessárias.
Em janeiro os Estados Unidos anunciaram seu primeiro caso de Covid-19 e seu presidente, Donald Trump, afirmava que estava tudo sob controle. Um mês depois o país se tornou o novo epicentro mundial, superando a Itália. Até o momento em que essa matéria foi feita os EUA estavam com 6.369.749 casos confirmados e 190.366 mortes e ainda em crescimento. Conforme cientistas americanos alegaram, como Jeremy Youde, especialista global em políticas de saúde em entrevista à BBC Brasil, as autoridades demoraram muito para tomar medidas preventivas contra o contágio do novo coronavírus o que ajudou na disseminação da doença pelo país.
O futebol americano universitário possui uma história mais longa que a liga nacional. É a porta de entrada dos jogadores para a liga nacional (NFL) e um entretenimento tradicional aos sábados para a população. Sendo assim, times e fãs se uniram pelas redes sociais para pedir que a temporada fosse mantida. Um cancelamento não seria só um horário vago na televisão, mas sim uma incerteza no futuro de jovens atletas e uma ameaça a sua saúde. Pois como explica Danilo Lacalle, editor e apresentador de esportes americanos do Torcedores.com em entrevista ao Contraponto Digital, as bolsas de estudos são vitais para muitos jovens atletas:
“A Universidade nos Estados Unidos é muito cara (...) E por mais que os estudantes-atletas sejam vistos com muito mérito nos EUA, as bolsas ainda são poucas perto da quantidade de gente que solicita. E no caso da esportiva, você tem que se destacar demais na escola ou em uma Community College (escolas que oferecem cursos de 2 anos para formar ou preparar pessoas para o mundo acadêmico). E ainda assim, muitas cobrem apenas gastos de alojamentos, e não da universidade em si. Conseguir uma Full Scholarship [bolsa integral], atualmente, tem sido apenas para atletas que são os melhores do time e que precisam daquilo para se manter na universidade, porque a outra opção é parar.”
Trevor Lawrence, quarterback de Clemson (ACC), foi uma das vozes mais ativas do “#WeWantToPlay”. Ele, ao lado de outros colegas, alega que a infraestrutura da universidade proporciona mais segurança a muitos jogadores que suas próprias casas. E ele não está errado.
https://twitter.com/Trevorlawrencee/status/1292600603395461125?s=19
Tal como no Brasil, a população negra é a mais afetada pelo vírus, chegando a taxas de mortalidade três vezes mais altas se comparadas a de estadunidenses brancos. O futebol americano é composto, majoritariamente, de homens negros. Sem um sistema de saúde universal, como o SUS, uma simples visita a emergência de um hospital, por exemplo, pode custar seis mil dólares (aproximadamente 31 mil reais no câmbio atual). Jogando pela universidade, os jogadores teriam todos os custos de uma possível infecção cobertos.
Mesmo diante dos protestos, grandes conferências universitárias, como as de primeiro escalão da NCAA, decidiram adiar a temporada deste ano para a primavera norte-americana, ou seja, começo de 2021. Essa decisão é problemática na visão de Lacalle, pois o calendário acaba sendo prejudicado e os atletas jogarão duas temporadas em um único ano. “Colocar os jogadores para disputar intensamente duas temporadas no mesmo ano pode causar muitas lesões. E muitos deles, se lesionarem feio, podem não voltar a jogar. E esse é o único meio que muitos veem de sair da pobreza e ajudar as famílias. Fora que trabalharam a vida inteira pra isso”.
Enquanto Trevor Lawrence é a favor da volta do esporte, o defense end Gregory Rousseau optou por não jogar esta temporada. Greg é um dos nomes mais cotados para estar na primeira escolha do Draft de 2021. O ano de 2020 seria chave na carreira do jogador, uma vez que a partir do terceiro/quarto ano universitários, atletas de destaque passam a jogar com a atenção de times da NFL para uma possível contratação. A decisão de Rousseau de não jogar foi apoiada por seu time, o Miami Hurricane (ACC).
https://www.instagram.com/p/CDl_2naB2F2/?igshid=1nv8zo2228x6u
"Obrigado, Universidade de Miami. Sempre um Cane."
A última esfera a ser afetada pelas decisões desta temporada universitária será a NFL. O Draft 2021 será mantido e, apesar de a NFL afirmar que não adiará o evento, usualmente em abril, Lacalle acredita que é uma possibilidade para que haja mais tempo para analisar os atletas. Caso não se adie, “pode ser [a análise para o Draft] mais superficial do que dos demais anos”. Os problemas em uma análise superficial são contratações “injustas”: atletas com potencial são chamados em posições inferiores do Draft, com contratos, salários e oportunidades inferiores a daqueles chamados nas primeiras posições. Ou até não chamados para compor “o 1% que entra para a liga”, nas palavras do entrevistado. Além disso, eles podem chegar “crus” a liga, sem o preparo necessário, que demandará dos times mais tempo de preparação.
Futebol americano no Brasil
O Brasil é o segundo país que mais consome futebol americano sem contar os Estados Unidos, perdendo somente para o México. A paixão pelo esporte “gringo” é tanta que em 2013 surgiu a Confederação Brasileira de Futebol Americano (CBFA), substituindo a Associação Brasileira de Futebol Americano (AFAB), fundada em 2000. Com times em 21 distritos federais, somando mais de 300 equipes, e 15 jogadores, a temporada deste ano não escapou de alterações pela pandemia.
A presidente interina da CBFA, Marcelli Bassani, primeira mulher a ocupar o cargo, em entrevista para o Contraponto Digital, discute a popularidade do esporte no país, a temporada de 2020 e a representatividade feminina em um esporte tradicionalmente masculino.
P: O futebol americano cresceu muito aqui no Brasil. Como isso afetou o esporte por aqui? Houve maior procura de pessoas querendo jogar, maior público nos jogos?
R: Sim, temos um crescimento exponencial (...), mas a nossa realidade ainda é muito longe e ser digna para os atletas e times como os mesmos merecem. É muito cansativo se lesionar e ter que arcar do próprio bolso, mensalidade para jogar, arcar do próprio bolso viagens para fora... Ao meu ver, teremos um choque muito grande ainda na questão organizacional entre atletas, times, dirigentes e a própria CBFA, porque viemos tentar organizar o esporte. Não impondo, mas mostrando como certas mudanças podem modificar para melhor algumas coisas. E isto é um trabalho constante. Podemos até melhorar de imediato, mas o novo cenário certamente será apresentado aos filhos dos jogadores.
P: Como será a temporada de 2020? Será cancelada? Se não, quais os protocolos de segurança a serem seguidos para a volta do esporte?
R: O nosso protocolo de retorno ao esporte prevê o retorno conforme as fases dos governos estaduais e municipais, e ainda que liberados os campeonatos, em sua fase protocolar 4, sugerimos a testagem ouro dos jogadores com teste SWAB, com apresentação 48 horas antes da partida.
Entendemos que onde for permitido que o Futebol Americano aconteça, ele deve acontecer. Mas nunca abrindo mão de todos os requisitos de saúde e higiene, pois tivemos um excelente time de Prevenção a Saúde estudando formas de permitir que nossa paixão ocorra de forma segura (aproveito para agradecer). Mas já lhe adianto que os Campeonatos em sua maioria, até o Nacional, só ocorrerá (sic) ano que vem.
P: Como você vê a participação das mulheres no futebol americano? Acredita que irá melhorar, que as ligas femininas terão tanta visibilidade quanto as masculinas?
R: Temos excelentes times de Full Pad femininos e inclusive a nossa seleção brasileira de Flag Football, que nos enche de orgulho. Talvez para uma maior coalizão e aproveitamento de equipes de apoio onde der, a unificação dos times e criação do feminino e masculino dará muito mais visibilidade, auxílio e exponencie mais o esporte no âmbito feminino, que termina sendo inferiorizado na atual estrutura.