Desconstruindo a visão errônea que muitas pessoas tem sobre a gastronomia indiana, São Paulo possui hoje uma rede enorme de restaurantes ao redor da cidade. O preço dos pratos varia de acordo com o lugar e o público, existem os que funcionam à la carte e os que atendem também self-service, sendo muito mais acessíveis do que o senso comum diz. A variedade de pratos é enorme, desmistificando a ideia de que a culinária indiana é restrita a curry, pão e pimenta. É uma gastronomia muito complexa e que é influenciada por inúmeros fatores, dentre eles: estratificação social, religião e o vegetarianismo.
A Índia é o segundo país mais populoso e o sétimo maior em extensão territorial do mundo. Localizada na Ásia Meridional, a diversidade cultural e religiosa é quase uma regra para um país tão grande e tão populoso. O país indiano é a sétima maior economia do mundo, mas em contrapartida sofre com altos níveis de pobreza, doenças e desnutrição. O ditado "você é o que você come" nunca fez tanto sentido. Se a Índia possui toda essa riqueza cultural, sua gastronomia não seria diferente.
O país é composto por várias tribos diferentes, morando em regiões diferentes, o que faz com que exista uma culinária própria em cada local. O sul é composto em sua grande maioria por vegetarianos; o leste é famoso por ser mais carnívoro, sua alimentação é baseada em frutos do mar, já que se localiza na costa; e no norte, no limite com o Paquistão, frango e assados são a base de suas refeições.
Arroz, uma proteína, batata ou grão-de-bico no curry e pepino é o cardápio diário dos indianos, diz a especialista na área de Recursos Humanos, Carolina Tavares, que morou quatro anos em Calcutá. Ela ainda reforça que o arroz é o alimento mais acessível e consumido no país, pois o governo subsidia sua venda. Então, apesar de viverem abaixo da linha da pobreza, as pessoas não passam fome lá. " Uma pessoa só, come no almoço o que eu como de arroz em uma semana", afirma Carolina. Na refeição indiana, há a troca da carne pelo curd (ricota), para aqueles que se declaram vegetarianos. Como a substituição é por um derivado do leite, o veganismo não é uma prática recorrente no país.
"Eles não tem conceito do que é saudável, eles não tem noção do que é uma salada. Todas as comidas deles, são feitas com muito óleo e a grande maioria é frita. O óleo que eles usam para isso é o óleo de mostarda, que é uma delícia, e na mente deles por ser de mostarda, é saudável", declara a especialista. Ela ainda acrescenta que na Índia as refeições são em sua maioria caseiras e frescas, já que de acordo com a cultura local, grande parte das mulheres não trabalham e são responsáveis pelas tarefas domésticas.
Indo contra o mito de que a Índia é um país predominantemente vegetariano, apenas um terço de sua população, por volta de 37%, tem uma alimentação estritamente sem carne.
O antropólogo Balmurli Natrajan e o economista Suraj Jacob apontam que o consumo de carne no país é maior do que imaginam, mas que por conta de pressões "culturais e políticas" algumas pessoas não informam que comem carne e dizem que consomem mais comida vegetariana do que de fato fazem. "A comida consumida pelos poderosos acaba sendo representada como a comida consumida pelo povo", afirmam os pesquisadores sobre as generalizações e estereótipos serem frutos das estruturas de poder.
O sistema tradicional de estratificação social da Índia, as castas, também influencia nesse aspecto, visto que segundo dados do governo indiano, residências consideradas vegetarianas, que possuem uma renda e consumo maior, são mais ricas que as residências em que se come carne. As castas e tribos mais baixas, por exemplo os dalits, são as que mais consomem carne e comem de qualquer tipo, já a casta mais alta, dos brâmanes, não consomem carne animal de nenhuma espécie.
Além do vegetarianismo, a relação de castas interfere em outros âmbitos da gastronomia indiana. Um indiano prefere passar fome do que comer alimentos preparados por alguém de casta inferior; pessoas de castas diferentes não podem comer juntas e os pobres (castas mais baixas) praticam uma dieta alimentar muito mais por falta de recursos, do que por opção filosófica e religiosa.
A Índia é um país em que a religião tem muita força, o que faz com que sua gastronomia seja extremamente influenciada por qualquer que seja a vertente. Segundo a chef e professora de gastronomia Patrícia Sousa, a religião na Índia determina não apenas o que se come, mas quando (há períodos em que certos alimentos são proibidos), e também com quem (pessoas de castas diferentes não devem comer juntas).
Com aproximadamente 80% de adeptos, o hinduísmo é a religião mais comum no país, e consequentemente a que mais dita os hábitos alimentares. "O Hinduísmo perpetua muitos dos princípios da culinária ayurvédica, determinando combinações de ingredientes, criando pratos típicos. Há também os dias de jejum, de acordo com cada um dos deuses do panteão e também suas festas, onde comidas específicas são ofertadas a tais deuses e também apreciadas por seus devotos", afirma a professora.
Ainda segundo Patrícia, come-se sempre com as mãos, usando no máximo uma colher. Por serem pontiagudos, garfo e faca na mesa simbolizam violência; a comida é sagrada, logo deve ser tocada com as mãos. Há também um gesto de oferecer aos deuses antes de se começar a comer, pois eles acreditam que se não a oferecerem, a comida poderá causar indigestão.
Porém, a principal peculiaridade da gastronomia indiana é a sua relação com a vaca. Para os indianos, a vaca é um animal sagrado, logo não pode de maneira alguma ser consumida.
Há uma mito que diz que os seguidores do Deus Krishna, quando morressem, seriam reencarnados em vacas. Logo, não se pode comer essa carne, porque você estaria comendo um desses seguidores. A vaca não pode ser morta, nem ferida, tem passe livre para transitar pelas ruas das grandes cidades e sua urina, considerada sagrada e purificante, pode ser utilizada para "lavar" utensílios da cozinha; ela é considerada mais pura até que os brâmanes - casta mais alta do país.
"Não sei nos outros restaurantes, mas aqui não tem carne de vaca, porque vaca é Deus para gente", é o que diz o indiano Sunuil, que trabalha no restaurante Reet Namasté, em São Paulo. O local é liderado pelo chef Ramchandra Kharel, que há algum tempo mudou-se da Índia para o Brasil, e segue a risca as tradições e costumes da sua culinária. Ritos, festivais, e festas são seguidos no restaurante e interferem diretamente no menu diário, com a finalidade de aproximar ao máximo Brasil e Índia, mesmo que não fisicamente.