Por Maria Laura Medeiros
Há, na memória de Dani, uma cena que nunca saiu do lugar. Uma saia vermelha. A irmã saindo do quarto. A criança que a observava, encantada, imaginando como seria vesti-la. Era apenas uma fantasia de infância, mas carregava ali uma verdade profunda — aquela que ainda não tinha nome, mas já morava dentro dela: a certeza de que era uma menina, mesmo que o mundo ao redor dissesse o contrário. “Eu acho que a gente é trans desde que nasce. Não existe outra explicação”, diz Dani, hoje com 60 anos, sorrindo com os olhos de quem percorreu um caminho longo e, muitas vezes, solitário até se encontrar por completo.
Sua infância foi atravessada por silêncios e pequenas censuras. Crescida em uma família de classe média tradicional, em uma cidade do interior de São Paulo, Dani viveu desde cedo a repressão de expressar sua feminilidade. Não havia agressão física em casa, mas os olhares e advertências eram frequentes. Sua mãe dizia que ela sempre estava muito feminina, e que seu pai não iria gostar. Levava bronca pelo jeito de dançar, pelo jeito de falar. Tudo isso gerou muitos traumas para ela. Na escola, era o isolamento. Dani almoçava sozinha no recreio, lidando com o peso de ser “diferente”. Na adolescência, durante os anos 70 e início dos 80, não existiam referências, não havia Internet, nem espaços seguros para questionar sua identidade. Ela diz que não sabia nem por onde começaria. Só existia uma travesti na cidade, a Paula. Era um universo tão distante do meu, parecia inalcançável.
Como muitas pessoas trans de sua geração, Dani guardou o que podia para si. Viveu no que ela chama de “modo de sobrevivência”, e seguiu o que se esperava dela. Mudou-se para São Paulo para estudar teatro — e foi ali, entre os palcos e as ruas da cidade, que sua alma começou a respirar. Lembra que quando viu as "manas" na rua, sentiu como se morresse e nascesse outra vez. O amor também chegou — primeiro com Márcia, depois com Fernando. Dani acredita em conexões que não seguem fórmulas fixas. Se apaixonou e ficaram sete anos juntas. Com o Fernando teve uma experiência maravilhosa. Ele é o pai do seu filho. Ser mãe foi um marco em sua vida, e ao mesmo tempo, um momento de virada. Quando o filho foi morar com ela, Dani começou a se permitir mais, ainda que timidamente. Saía à noite como crossdresser. Era o que dava pra fazer. Sabia quem ela era, mas o medo ainda falava alto.
Hoje, passadas seis décadas de vida, Dani fala de si com liberdade e brilho nos olhos. Há pouco tempo, realizou um dos sonhos que acalentava há anos: diz ter conseguido sua ‘teta’ agora com 60 anos. E estou muito feliz. Conquistei tudo o que quis conquistar. Mas a conquista de si mesma não apaga os desafios que ainda enfrenta todos os dias. A felicidade convive, lado a lado, com o medo. Conta que é um mundo muito difícil, muito cheio de solidão. Às vezes as pessoas acham que está tudo mais aberto, mas entreolha o retrocesso com o avanço da extrema direita, os olhares de julgamento… dependendo do shopping que vai, da loja que entra, é muito observada e isso não é legal.
Os ataques nem sempre são verbais ou físicos — muitas vezes, são silenciosos e cruéis. Um olhar, um sussurro, um constrangimento no banheiro feminino. Por isso, Dani criou rotinas para se proteger: sai de casa com fones de ouvido e música alta, para não escutar provocações. Ela descreve a sensação de sair todos os dias com uma prece nos lábios: voltar pra casa bem. Ao falar da nova geração, Dani se emociona. Ver jovens trans acessando hormônios cedo, podendo viver sua identidade com mais liberdade, a faz sentir que sua trajetória teve um propósito. Afirma estar chegando numa fase em que vai entregar o bastão. A nova geração chega pra continuar a luta. Porque sempre vai ser uma luta. Nunca se pode abaixar a guarda. Sempre vai ter alguém para dizer que não se merece ser aquilo que se é.
A história de Dani é feita de memórias que doem e brilham. Ela sobreviveu ao silêncio, ao apagamento e ao medo. Mas não apenas sobreviveu: Dani floresceu. Ela não é uma estatística, nem um símbolo. É uma mulher com uma história profundamente humana, real, e necessária. E se há algo que ela aprendeu ao longo de todos esses anos é que a vida, de verdade, começa quando a gente se permite existir. Nunca esteve tão feliz. Nunca se sentiu tão ela mesma. E isso… isso não tem preço.