Por Helena Campos
Fernanda, aos 22 anos, vivia o auge de uma paixão com Rafael. Praticamente moravam juntos, sonhavam com o futuro — e esse futuro chegou mais cedo do que esperavam. As relações, quase sempre sem camisinha, tinham algo de inconsciente: o desejo de construir uma família já morava dentro dela. Assim veio a primeira gravidez. Quando contou a novidade ao namorado, decidiram seguir com a gestação e oficializar o amor com o casamento. Tudo parecia perfeito. Mas a alegria dos preparativos se desfez em uma única consulta médica. Embora se sentisse bem, o ultrassom revelou que o embrião não tinha batimentos. O corpo, disseram, logo se encarregaria de expulsá-lo. Fernanda optou por encerrar logo o ciclo com uma curetagem, procedimento que limparia o útero e eliminaria o feto por completo. Mesmo com o coração abalado, manteve o relacoionamento. Afinal, ainda eram jovens, teriam tempo para realizar o sonho. Além disso, o planejamento da cerimônia, que ficou nas mãos de Fernanda, ajudou a afastar os pensamentos e o luto do bebê perdido com as festas do casamento.
No fim de outubro, Fernanda desceu as escadas de casa vestida de branco, ao som de Taj Mahal, de Jorge Ben. Lá embaixo, amigos e familiares celebravam o amor do casal. A lua de mel foi em Fernando de Noronha, pularam no mar e viveram dias de sonho, prometeram uma jornada de felicidade ao lado um do outro e compartilharam o desejo de serem companheiros para o resto de suas vidas. Fernanda sabia que tinha escolhido um ótimo parceiro. Na juventude ela era namoradeira, pulava de um amor para o outro, até que encontrou Rafael. Era um homem dedicado, proativo e esforçado, logo mostrou que estava ao seu lado para ficar; ela percebia que ele a amava e que faria tudo por ela. Sabia que seria um grande pai.
Mas vieram novas gestações e novas perdas. Fernanda percebeu que tinha grande facilidade de engravidar, mas o problema era segurar o embrião. A cada perda, o luto era pior, sentia um vazio grande no peito e nunca se acostumava com a situação mesmo que, de certa forma, já a esperasse.
Um ano dentro do casamento as esperanças cresceram, desta vez a barriga já marcava na roupa e amigos e família já estavam ansiosos pela chegada de um novo membro. Agora, teria que dar certo, nunca haviam chegado tão longe em uma gestação, o bebê já estava em formação. Apesar das boas energias, o casal enfrentou mais uma consulta com más notícias. Segundo os médicos, seu útero não era forte o suficiente para segurar o bebê, e assim que ele começava a pesar, o tecido que o segura, cedia. Apesar do estágio avançado de desenvolvimento do embrião, não era possível o ter de forma prematura, ele não sobreviveria. Fernanda não falava nada na cama do hospital, esqueceu tudo o que sabia naquela hora.
Na recepção Rafael, abalado, observou o ex-lateral do Palmeiras Francisco Arce, saindo com seu filho no colo, e pensava “por que comigo?”. Saiu do transe assim que o médico Jesus saiu das portas que mantinham Fernanda, com más notícias. Para fazer a curetagem as enfermeiras sedaram sua esposa com Ocitocina e o resultado era Fernanda desacordada na cama do hospital. Rafael entrou na sala e visualizou a cena de tensão, temia por mais uma perda, além do bebê. Não se continha nos pensamentos, tudo passou à sua frente, todos os momentos de felicidade ao lado daquele corpo que agora parecia sem vida. Olhava atentamente os movimentos dos médicos e enfermeiras; queria gritar. Após poucos minutos de agonia, que pareceram uma eternidade, os médicos conseguiram reacordar a paciente. Da curetagem saiu algo grande, realmente um ser já em formação, Fernanda não teve coragem de ver, na verdade, não quis nem saber, mas o luto foi bem mais real desta vez.
Até hoje, Fernanda revive o trauma, sonha com a situação e, mais de 20 anos depois, ainda evita remédios fortes e principalmente anestesias, a sensação é de que está quase morrendo de novo. Fernanda não conseguiria passar por isso novamente, ainda assim, seu desejo de ser mãe não tinha morrido. Foram em busca de um diagnóstico, com esperança de uma solução. O ginecologista identificou o problema: incompetência istmo cervical, um problema no colo do útero, que o faz ceder com o peso da gravidez; portanto, ocorre uma dilatação e logo, a perda. O profissional recomendou uma cerclagem, procedimento que dá um “nó” no útero, o que manteria o embrião na bolsa gestacional.
O casal gosta de pensar que da agonia saíra algo bom, agora sabiam o problema e o Doutor Jesus os assegurou que o sonho de uma família se tornaria uma realidade! O médico passou a acompanhar a trajetória de Fernanda e logo que a paciente engravidou novamente e realizou a cerclagem como o combinado. Apesar do sucesso da operação, Fernanda ainda mantinha uma gravidez de risco, e passou a maior parte da gestação de repouso, na cama. A futura mãe trabalhava em um ateliê de artes, que no começo foi compreensivo com a situação delicada, mas ao passar dos meses cortaram Fernanda da empresa. Rafael preocupado com as despesas que viriam com o novo integrante, arrumou outro emprego, trabalhava dia e noite determinado a dar o melhor para sua família.
9 meses depois Fernanda acorda 5 horas da manhã com muita cólica, levanta da cama, e vê a água da bolsa escorrendo por sua perna, acordando Rafael que, com seu jeito desesperado, ligou para o doutor e avisou que era hora do bebê nascer. Depois de tomar banho e juntar seus pertences, muito bem planejados pela mãe ansiosa, o casal se dirigiu para o hospital e, por meio das cólicas, Fernanda não acreditava que aquilo finalmente estava acontecendo.
Chegando no hospital foram alocados em uma sala comunitária, via outras mulheres entrarem e saírem da sala, até que chegou sua vez. Na sala de operação Fernanda se esforçou para parir de forma natural durante 4 horas, mas o médico alertou que havia a possibilidade do bebê não se ajustar na posição correta. Com as forças esgotadas, Fernanda aceita a cesária, que foi feita rapidamente. Mesmo meio grogue, Fernanda segurou sua filha em seus braços e sabia que era a melhor decisão que já havia tomado. Pensou em desistir tantas vezes, mas se soubesse do calor que sentiria nesse momento não pararia nem um segundo para cogitar outra possibilidade. Já Rafael percebeu que faria tudo por aquele bebê, era o fruto do amor por sua esposa e do sonho de construir uma família.
Em casa, família e amigos visitaram para dar as boas vindas a Helena, que nasceu com mais ou menos 3 quilos, cabelos pretos e pele rosada. Era a primeira criança tanto da família Fontes, quanto da Aguiar, e por isso foi especialmente celebrada. Mesmo sem saber, Helena foi mimada por todos os convidados, presentes de todas as estirpes, inclusive uma almofada que dorme junto a ela até os dias atuais, 21 anos depois.
Fernanda ainda perdeu outros bebês após o nascimento de sua única filha, gostaria de ter dado irmãos a Helena e encher sua casa de crianças. Sua mãe, Maria Albertina, diz que tinha esse desejo porque Helena sempre foi uma criança muito tranquila, chorava pouco e não fazia drama. À medida que a menina crescia, Fernanda via nela seu próprio reflexo — nos gestos e no jeito de pensar. Gostava de poder conversar com ela, entender suas ideias. Então a artista, que ainda carregava a vontade de ser mãe, descobriu como realizar todos seus sonhos de uma vez, e foi atrás de tirar um diploma de pedagogia.
Quatro anos depois, foi contratada como professora Waldorf, e hoje dá aula de artes para jovens do ensino médio. Criou enorme conexão com os estudantes, gosta tanto do seu trabalho que trabalha até quando não deveria. Em sala de aula, consegue dizer qual aquarela pertence à qual aluno, conhece o traço que cada um faz com o pincel. Fernanda é aquela professora que todo mundo lembra, leva para a vida, aquela que está nas histórias que os pais contam à seus filhos, é aquela professora que os alunos sentem saudade e que voltam para visitar.