A Transcestralidade além do acervo

Como Rudá mostra a ameaça contra a transgeneridade brasileira
por
Fernanda Silva Querne
|
20/06/2025

Por Fernanda Querne

 

Nascida e criada no bairro da Bixiga, o centro a acolheu. Não é nenhuma coincidência que a Casa 1 esteja na Bela Vista. Sempre ouviu falar do ambiente, até mesmo frequentando. Mas o destino fez com que suas histórias se cruzassem de outra forma. Assim, o caminho de uma artista travesti encontrou um lar de acolhimento para a comunidade LGBTQIAP+. Um lugar que oferece tanto segurança em tratamentos quanto acesso a uma educação que a normatividade hetero cisgênera rejeita. Assim como o próprio curso para o qual Rudá foi selecionada para lecionar: a matéria da transcestralidade, um passado não registrado da comunidade.

Sobre esse tema, em vez de perguntar sobre o passado, fala-se das figuras transgêneras que moldaram a comunidade e enfrentaram um preconceito tão brutal quanto o atual. Uma reflexão intensa sobre o presente. Uma de suas grandes referências é a imortalizada pela Academia Brasileira de Letras, a primeira mulher preta trans na ABL, e também vencedora do Grammy Latino pelo álbum Índigo Borboleta Anil.

Durante a entrevista, Rudá não mediu palavras ao elogiar a cantora, uma das guias para as suas aulas. Ela se inspira em Liniker — o que é mútuo, pois ambas se seguem nas redes sociais. Expressando-se pela arte como forma de sobrevivência. Uma pela música, a outra pelos palcos. Duas artistas, cada uma com sua transgeneridade. O ato de existir é sua resistência.

Pois, pelo décimo sexto ano consecutivo, de acordo com um dossiê de 2024 da Associação Nacional de Travestis e Trans (Antra), o Brasil continua sendo a nação que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Com 122 mortes registradas no ano passado, houve uma redução nos dados.A violência acontece mais em locais públicos, com ruas desertas e à noite. Além de ter um excesso de violência e crueldade nos atos, o Estado que lidera o ranking é São Paulo - berço de ambas. Logo, em segundo e terceiro lugares, respectivamente, estão Minas Gerais e Ceará.

Mesmo com os dados ameaçando sua existência, a compositora foi um dos maiores destaques da Virada Cultural de 2025 em São Paulo, com seu maior público no Palco Anhangabaú — uma plateia de 120 mil pessoas. Já Rudá ecoa sua voz além da coxia, mas enfatizou a todo momento que a arte de Liniker a inspira tanto na criação artística quanto nas suas aulas, pois multiplica sua arte pelos bastidores.

Ambas produzem além da sua transgeneridade. Rudá, antes de enaltecer a cantora, deixou claro quais são suas músicas favoritas: "Veludo Marrom" e "Tudo" — ambas do seu último álbum, Caju, lançado em 2024. Esses hits abordam o jeito de amar e de ser amada.Algo semelhante à dramaturgia que Rudá escreve em Travas. Por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, dividida em episódios, as apresentações mostram o "depois" de um grande amor. Uma reflexão entre amigas, a jornada levanta a temática de como superar a dor, com direção de Ronaldo Serruya. Rudá leva toda essa sua artisticidade para a sala de aula.

Ao ser selecionada pela Casa 1, Rudá já preparou seu curso pensando que teria como alunos estudiosos com doutorado ou até mesmo mestrado. Logo, fez com que sua aula fosse um acervo pedagógico e iconoclástico sobre o imaginário trans dentro da mídia — desde a ditadura até os dias atuais. Criando assim um documento sobre as pessoas transgêneres brasileiras.Um curso de pesquisa e apuração. Ao entrar na sala de aula, surpreendeu-se com a história de cada aluno. A maioria são Pessoas Com Deficiência (PCD) e pessoas trans/travestis. Sem ensino superior e acolhidas pela Casa 1, seus estudantes realizam uma troca enriquecedora na construção do acervo. O momento em que Rudá percebeu que seu curso fazia a diferença na vida de quem o acompanhava aconteceu em um dia ordinário, mais uma aula. Rudá deparou-se com um grande armário de madeira. Atrás dele estava seu aluno.

O motivo do cômodo dentro da sala era que ele não queria perder conteúdo, mesmo fazendo a mudança de sua casa para outra. Ao invés de faltar, levou o armário consigo. E assim, a classe seguiu. O que é crucial, já que seu conteúdo é primordial para além da história trans como um todo, que é amplamente exemplificada de forma americanizada. O acervo de Rudá só mostra o quanto a violência brasileira apagou suas histórias — e ainda o faz. Pois a maioria das referências são estadunidenses. Como o protesto por direitos iguais da comunidade LGBTQIAP+, o Stonewall de 1969, que deu voz a grandes figuras mundiais como Marsha P. Johnson, ativista trans preta.Mesmo sabendo que, atualmente, a política do presidente Trump afeta a comunidade trans — como a impossibilidade de participarem do exército ou a mudança nos documentos relacionados ao sexo biológico —, Rudá deixa claro: apesar de sua empatia pelos que sofrem nos Estados Unidos, não há espaço para viralatismo.

A mídia hegemônica dá visibilidade ao terror que está acontecendo nos EUA. Entretanto, ele ocorre também no Brasil. Essas histórias brasileiras precisam ser ouvidas. Rudá sentiu-se ouvida na entrevista, escavando as histórias das pioneiras para inspirar as que ainda estão por vir.

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