A tragédia de São Sebastião, que deixou ao menos 65 mortos e mais de 2500 pessoas desabrigadas em fevereiro deste ano, poderia ter sido evitada, ou ao menos atenuada, caso o Poder Público tivesse aprendido lições com o desastre de Petrópolis, ocorrido um ano antes.
Município localizado no Rio de Janeiro sofreu, em fevereiro de 2022, a maior calamidade já registrada na região. O evento deixou 241 vítimas fatais e mais de 4 mil pessoas sem moradia. Aproximadamente um ano depois, a região de São Sebastião enfrentou uma situação parecida. Apesar de observar o exemplo no estado vizinho, poucas coisas foram feitas para que as áreas do litoral paulista tivessem um desfecho diferente de Petrópolis.
Na opinião de Carlos Rittl, ambientalista e consultor especialista em política Internacional da Rainforest Foundation da Noruega, os governos deixam para agir nos locais ameaçados quando uma tragédia ocorre, ao invés de investirem em planos de contingência mais elaborados.
"As autoridades só agem diante da emergência, contam com a sorte para que isso não aconteça, mas isso é de uma irresponsabilidade enorme. Enquanto isso alocam recursos dos orçamentos municipais, que seriam para a contenção desses ricos, para outras pautas", disse Rittl.
Uma das maiores críticas dos especialistas em relação à cidade de Petrópolis foi a falta de avisos. Um dos exemplos citados foram as mensagens de texto (SMS) extremamente simples da Defesa Civil, que deveriam ter sido mais explicativas e contundentes no momento de alertar a população da gravidade das chuvas.
"As Defesas Civis, estadual e municipal tinham conhecimento daquele cenário, dispararam SMS muito vagos, semelhantes a outros que já tinham sido enviados dezenas de vezes durante o verão, então a própria população não entendeu bem a gravidade daquele alerta”, explicou Pedro Camarinha, PhD em ciências do sistema terrestre, mudanças climáticas e desastres.
Além disso, a ausência de indicações de perigo nas ruas também causou confusão nos moradores. Por não saberem onde era seguro, muitos se deslocaram para áreas de risco já comprometidas em busca de uma saída. Após a tragédia, foram implementadas marcações no solo, mostrando direções que a população pode seguir para se proteger e quais devem ter a circulação evitada. Cancelas também foram instaladas para diminuir o fluxo de pessoas.
Naomi Martins, engenheira civil da Universidade Católica de Petrópolis, evidenciou que o Poder Público poderia evitar muitos desastres caso agisse com antecedência. "Em Petrópolis, muita coisa mudou por questões de segurança depois que as chuvas aconteceram. Foram itens básicos, que poderiam ter sido feitos há muito tempo e possivelmente teriam evitado outras tragédias”, disse a especialista.
Com as mudanças fluminenses implementadas há mais de um ano, São Sebastião poderia ter usado as lições para prevenir seus desastres. No entanto, o litoral paulista sequer tinha sirenes, ferramenta antiga usada em Petrópolis no caso de chuvas fortes e possíveis deslizamentos. Somente neste ano, após a catástrofe, o governo paulista se pronunciou sobre a implantação do equipamento no estado.
"Acho que houve algumas lições aprendidas na região de Petrópolis, pelo menos em relação aos sistemas de alerta, que ainda não prevalecem em todas as regiões, como não aconteceu em São Sebastião [antes da tragédia]”, comparou Rittl.
Procuradas por e-mail e telefone, as Prefeituras de Petrópolis e São Sebastião não responderam à reportagem. Após contato com a Defesa Civil fluminense também não obtivemos retorno.
Infraestrutura atrasada
Além da ausência de planos de contingência, uma das grandes questões apontadas por especialistas é o atraso na infraestrutura do Brasil. Segundo dados da Inter.B, uma consultoria internacional de negócios, a média de investimento do país no setor nas duas últimas décadas ficou em torno de 2% do produto interno bruto (PIB). Enquanto isso, países de renda média e continentais, no mesmo perfil, investem entre 4% e 9%. O déficit se reflete nas tragédias com chuva.
"Muitas dessas infraestruturas, importante mencionar que elas foram feitas e projetadas na décadas de 70, 80, 90, normalmente olhando para condições limite baseados em climas que já não acontecem mais”, ressaltou Pedro Camarinha.
Seja no litoral paulista com São Sebastião, em Petrópolis ou no resto do planeta, o cenário é igualmente preocupante. Relatório do Fórum Econômico Mundial de 2023 colocou “desastres naturais e eventos climáticos extremos” e “falha na adaptação à mudança climática” entre os dez maiores riscos globais para os próximos dez anos. Diante disso, boas políticas públicas serão o diferencial entre novas tragédias avassaladoras e redução de danos capazes de salvar vidas.
Algumas das propostas de prevenção passam pela criação de obras de contenção e drenagem, remoção da população em áreas de risco, ordenamento territorial - a fim de evitar o avanço de pessoas para as regiões mais suscetíveis a desastres - e educação ambiental, aumentando a percepção de risco dos moradores: “A população tem que ser preparada. Ela tem que entender onde está inserida, quais são os problemas, quais são as soluções que ela a pode aplicar ou em situações de risco, o que ela deve fazer para que ela não seja impactada, não venha a ter danos humanos significativos”, explicou Camarinha.
Periferia em foco
Para Rittl, existem problemas estruturais que fazem com que a população periférica seja a mais afetada. “Uma família que não tem onde morar ocupa essas áreas (de risco) e o Poder Público, ou seja, Prefeitura, Governo Estadual e Câmara Municipal de vereadores, permite que exista essa ocupação irregular”, afirma.
Naomi Martins ratifica a declaração do especialista e aponta que Petrópolis enfrentou os mesmos problemas com a especulação imobiliária: “O que sobra para a população pobre são os terrenos que não são tão favoráveis assim. As pessoas foram se instalando porque não tinham para onde ir e o governo daqui também não interferiu. Para mim, [a especulação imobiliária] é a grande responsável por isso”, declarou.
A não remoção de pessoas das áreas de risco também foi uma das grandes causadoras do grande número de óbitos em Petrópolis, o que se repetiu em São Sebastião. Caso tivesse observado a situação vizinha, o município paulista poderia ter diminuído o número de vítimas, dado que a região estava ainda mais cheia por conta do feriado de Carnaval.
Pelos dados do IBGE, 83% das cidades não possuem nenhum tipo de instrumento para realocar pessoas de baixa renda que vivem em áreas de risco, seja por meio de pagamento de aluguel social, compra de imóvel ou outros tipos de auxílio.
Resolver o problema habitacional não é simples. Segundo especialistas, é necessária uma cadeia de ações, não apenas a retirada de pessoas das áreas de risco sem destino certo. Em São Sebastião, por exemplo, milhares de cidadãos ainda ocupam hotéis e conjuntos habitacionais em Bertioga, além da casa de parentes e amigos.
Na opinião de Martins, uma das formas de proteger a população das regiões de risco, dado que as pessoas não pretendem se mudar, é auxiliar nas construções para evitar obras irregulares que possam danificar ainda mais o solo e a região em que estão instaladas.