São Sebastião e cidades próximas foram atingidas por chuvas extremas em fevereiro deste ano. Além das chuvas terem causado a destruição de diversas residências e imóveis da região, ela também deixou traumas psicológicos que demorarão muito mais tempo para serem tratados.
Os temporais causaram deslizamento de terra, bloqueio de rodovias, queda no fornecimento de água e energia e deixaram vítimas fatais. Foram registradas mais de 24 mortes, 228 pessoas desalojadas e 338 desabrigadas. Um desastre ambiental dessa proporção abalou a saúde mental de todos os habitantes. Porém, segundo relatos dos moradores de São Sebastião, os atendimentos psicossociais do Estado para essa população foram precários ou até inexistentes.
Fabrício Rodrigues, comerciante ambulante que teve sua casa atingida pela enchente, é morador da região de Juquehy há 33 anos e afirma que especialidades médicas na sua cidade são uma lenda urbana. ‘’A atuação da prefeitura de São Sebastião nessas questões é uma piada nacional. Não existem psicólogos, só alguns psiquiatras que te enchem de remédios" relata ele.
Henrique Mallia, técnico de tecnologia da informação que se mudou para São Sebastião pouco antes da tragédia, também afirma não ter visto nenhum projeto ou mobilização do governo para buscar apoio psicológico à população. “Para passar por tudo isso, só com as terapias que faço semanalmente no particular”, conta o técnico de TI.
O trauma e o estresse pós-traumático são, na maioria das vezes, os principais fatores que atingem os grupos afetados pelas tragédias. Tais fatores só podem ser, de certa forma, superados, quando há um processo a longo prazo que ajude a orientar essas pessoas com tratamento psicológico. ‘’É o que ocorre, por exemplo, com vítimas de violência doméstica.
Você não tem a mesma concentração, seu sono e sua alimentação mudam e até ocorre perda de memória. O trauma interfere em todas as suas atividades do dia a dia’’, relata Marília Palma, psicóloga Junguiana formada na Faculdade de Jaguariúna.
Para Fabrício, o impacto psicológico é enorme para todos, até para quem não está nas áreas de risco. Ele conta que sente medo e ansiedade, aterrorizado pela ideia de que vai acontecer tudo de novo, “Foi a maior sensação de impotência que tive na minha vida”, relata o comerciante.
Os mesmos sentimentos são compartilhados por Henrique Mallia. Segundo ele, toda vez que chove o desespero volta, “Outro dia chegou a entrar um pouco de água em casa e isso já me deu um aperto no coração gigantesco", conta.
Quando a pauta envolve crianças o problema é ainda maior. Marília conta que uma de suas pacientes, que se encontrava em São Sebastião neste mesmo período, é mãe de duas crianças, um menino de nove anos e uma menina de seis. A paciente relatou as dificuldades que as crianças estão tendo para lidar com a vida cotidiana, tendo crises de choro repentinas. “A criança não tem maturidade para entender o que está acontecendo. Ela sabe que tem algo de estranho se manifestando em seu corpo, mas não sabe como lidar’’, explica a psicóloga.
Essa também é uma realidade dentro da casa de Fabrício Rodrigues. Sempre que chove, ele volta cedo para casa e sua filha de sete anos já sabe que tem que se preparar. “Quando chego, a primeira coisa que ela faz é perguntar se já é para subir para o segundo andar", conta ele.
O que fica após as tragédias ambientais
O Brasil lidera o ranking de índices de depressão dentre os países da América Latina. Estima-se que 50 mil brasileiros e brasileiras fazem o uso contínuo de drogas psicotrópicas como, antidepressivos e ansiolíticos. Mas mesmo com o alto consumo desses medicamentos, o registro de casos de depressão não tende a declinar, pelo contrário, a curva aumenta anualmente. Este fato deveria se mostrar suficiente para que o Estado assumisse a responsabilidade de tratar o problema enquanto um fenômeno social, e não um problema clínico individual e subjetivo.
Um levantamento de dados da prefeitura da cidade de Brumadinho, por exemplo, mostrou que, em 2021, houve um aumento de 31% no consumo de antidepressivos em comparação a 2018 – ano anterior à tragédia causada pela barragem da Vale. De um ano para outro, os índices registraram um aumento dos comprimidos de 68.918 para 82.282. A utilização da Sertralina, substância utilizada em antidepressivos, teve um aumento de 103% de 2018 para 2021.
Luísa Lancellotti, psicanalista formada em Psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), questiona sobre a disseminação dos psicofármacos sem o devido cuidado dos psiquiatras para cada caso. A psicanalista diz que já não deveriam indicar a medicação sem antes estabelecer um diálogo com o paciente a fim de ajudá-lo a lembrar de fatos e situações que podem estar relacionadas a sua doença, “Não deveria ser neste esquema fast food, que a pessoa passa no psiquiatra e já saí de lá com um medicamento’’ afirma Lancellotti.
Além do aumento no consumo de medicamentos na região litorânea, os índices registraram maiores tentativas de automutilação, tentativas de suicídio e o aumento de violência doméstica na região após o desabamento de Brumadinho. Em 2018 foram registrados 27 casos envolvendo tentativas de suicídio. Nos anos seguintes, o número foi para 50 casos. Em 2021, a prefeitura de Brumadinho registrou 146 casos. Isso mostra que os desastres naturais têm relação direta com a saúde mental dos indivíduos que atravessam essas catástrofes.
Precarização dos Atendimentos Psicossociais
Luísa enfatiza que este descaso faz parte de uma isenção do governo de tomar a responsabilidade para si, ‘’Isso mostra qual é a crença por trás do atendimento da rede de saúde pública. Apenas dar um medicamento para calar os sintomas e assim, se dizer suficiente’’ afirma ela. Fabrício também pontua questões a respeito dos poderes executivo e legislativo, ‘’É lá em cima que falta o olhar clínico com as necessidades do povo. São vários fatores que acarretam nessa precariedade do setor da saúde’’.
Psicólogos que administram grupos de apoio destacam sobre a possibilidade de narrar o sofrimento como algo imprescindível no processo de superação de traumas das pessoas. Mas parece haver uma falta de interesse do Estado em ouvir esses grupos. O remédio entra para corroborar com essa não escuta à população. ’’Tem pessoas que passaram por uma tragédia extremamente traumática, que marcará para sempre a vida delas. Essas pessoas não podem nem ser escutadas.”, diz Lancellotti.
O problema parece ser uma cadeia que se torna um círculo vicioso. O atendimento é precário porque as ferramentas são precárias. Os profissionais que atuam na área da saúde pública são mal remunerados e os ambientes são degradados. Há um sucateamento geral do sistema de saúde que precisa ser revisto. É preciso que haja condições dignas de trabalho para atender às demandas dos grupos vulneráveis da mesma forma.
Fabrício Rodrigues é o diretor do Instituto de Capoeira Lobo Guará, um projeto social com capoeira para crianças, jovens e adultos na comunidade de Lobo Guará. Ele conta haver regiões tão precárias em São Sebastião que o governo precisa dar conta do básico, antes de pensar em assistências psicossociais. Segundo ele, existem bairros onde a luz não voltou até hoje, além de outros pontos nos quais escolas que ficavam em encostas do morro foram destruídas. Nos dois casos, a situação ainda não foi resolvida. “Se a Secretaria não consegue alojar essas crianças para estudar, imagina para assistir psicologicamente.”, afirma Fabrício.
Quem pode atravessar o Luto
O cenário exige que essas pessoas tenham a possibilidade de ter um atendimento contínuo. O processo de luto, segundo alguns especialistas, geralmente duram meses. O luto não envolve apenas a perda de um membro da família ou um conhecido, mas existe também a perda material, e diversas perdas simbólicas, como a de um lugar ou uma identidade.
Para Lancellotti, o luto é um luxo para certas parcelas da população. ‘’Essas pessoas, segundo as práticas do governo, não têm o direito a passar pelo processo de luto. Elas são apenas corpos produtivos, não são sujeitos. São grupos desumanizados’’, afirma ela.
Esse contexto é vivido por Fabrício. Ele conta que, quando a situação se estabilizou minimamente em sua comunidade, todos tiveram que sair para tentar trabalhar, mesmo que em ocupações diferentes, uma vez que setores como o turismo estavam parados. “Não podemos nos dar o luxo de parar. Essa é nossa realidade.” relata ele.
Uma forma de realizar esse processo de luto seria através da responsabilização. Se há negligência de empresas, estas deveriam ser responsabilizadas. Ainda que não existam consequências, repara-se o dano e há um reconhecimento, mesmo que pontual.
O descaso com a saúde mental envolve diversas outras pautas que precisam ser analisadas cautelosamente, pois envolvem fatores econômicos, sociais e estruturais. ‘’É preciso olhar para tudo isso e ver que há uma necessidade de uma enorme reforma política’’, finaliza Lancellotti.
A nossa equipe tentou contatar a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e a Secretaria de Saúde de São Sebastião para mais informações e dados mais específicos sobre os atendimentos psicossociais, no entanto, não obteve retorno.