Tambores reúnem milhares de estrelas em São Paulo

O encantamento e reconhecimento pela arte afro-brasileira uniu pessoas de todos os lugares para transformar o bloco de carnaval em um espaço de celebração e memória
por
Giuliana Barrios Zanin
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24/04/2025

Por Giuliana Barrios    

 

 

                                                                  

 

A casa da Vila Anglo-Brasileira é um espaço pequeno, mas aconchegante. A sala e a cozinha são interligadas pela presença de uma sintonia entre a arte, a música e um mundo que é particular de todos. As paredes conversam com ela. Os tambores são os donos dali. A mestra Adriana é só uma velha conhecida. Três deles são seu xodós. Rum, Rumpi e Le. Eles têm timbres diferentes que quando se unem, cantam para os orixás. Ela conta que foi com os tambores que se descobriu percussionista. Foi realmente um chamado espiritual. Ela frequenta os terreiros desde quando se conhece por gente por causa de seu pai que era ogan, um tipo de padrinho do terreiro. 

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Os tambores de Xangô são esses três primeiros que acomodam a casa de Adriana. Foto: Giuliana Zanin

Adriana adorava o carnaval. Com quinze anos, frequentava blocos e era fã do Afro Oriaxé. Mal saberia ela que, anos depois, viria a se tornar tão próxima de mulheres as quais tocavam no bloco e era fã: Beth Beli e Girlei Miranda. Nessa época, ela conhece o movimento negro e já estava iniciada no santo. Pareceu o momento perfeito, um encontro de irmandade, quando, em 1996, ela, Beth, Girlei e Nega. A ancestralidade de cada uma chamava por algo a mais. E o povo clamava por elas.

Em um encontro das meninas, a mensagem cantou à Beth que decidiu só voltar se fosse por xangô, dizia para o grupo. Foi quando ela encontrou um livro "Ilú Aba", Ilú = tambor e Aba = paz espiritual no iorubá. E a ideia de se unirem enquanto um grupo de música ficou ainda mais presente e significativa. Cada uma sabia um pouco de música. Adriana tocava os tambores do candomblé, Beth conhecia dos malinquês, Girlei cresceu na cantoria do samba e Nega Duda estudou cantigas de angola. 

Elas começam a estudar a melhor forma de criar uma oficina para mulheres negras e se questionavam sobre como passar isso para elas já que mulher no candomblé geralmente não toca. Foram para o Rio e fizeram uma oficina entre elas mesmas. Mexiam as mãos no maracatu na casa de conhecidos e na companhia de teatro de rua, CIA Mistérios Novidades. Adriana falava tudo muito à vontade. Suas mãos contavam as histórias. 

As mãos de couro do Ilú, como são chamadas aquelas que tocam tambor no terreiro, permitiram o surgimento do bloco e da associação Ilú Oba de Min.  Mãos femininas que tocam tambor para Xangô em iorubá.

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O Ilú levou para os outros cantos do Brasil a sua força em apresentar memórias da cultura afro-brasileira. Foto: Reprodução/Alexandra Turani

O bloco abre religiosamente o feriado na sexta de Carnaval. É o único que vai às ruas. Mais de 400 estrelas brilham separadas e unidas. Alexandra Tunani é uma delas que se encantou pelo casamento entre os tambores e os movimentos corporais do Ilú. Sempre saia do trabalho ali no centro a caminho da estação de metrô quando, um dia, ouviu e viu os batuques. Afirma ter ficado hipnotizada, e quando se deu conta, estava acompanhando o cortejo, perplexa e emocionada. Ela teve seu primeiro contato com a percussão e com o candomblé por meio do bloco e lamenta ter sido apresentada tardiamente. Desde o início, estava reconhecendo que algo já era familiar, destaca. 

Alexandra não apenas se interessou pelo conjunto artístico, mas se reconheceu enquanto um grupo. Todas, em sua maioria, mulheres. Mulheres, quase todas, negras. O Ilú é um espelho que a mostrou para ela mesma, conta. A estrela do bloco explica que ressignificou o entendimento de raça enquanto não apenas como um conjunto de características fenotípicas, mas enquanto uma identidade étnica; uma comunidade. A festa não abriu apenas as ruas à ordem subversiva, mas à compreensão de olhar, ouvir e sentir a História. Não das meninas do Ilú Oba de Min, mas também de todas as pessoas que antecederam seus espaços. 

Já homenagearam Leci Brandão, Rainhas Mães, mulheres quilombolas, Carolina Maria de Jesus, Marielle Franco, Elza Soares, as fundadoras, Nega Duda e Girlei Miranda. Além de tornaram o cortejo um espaço de protesto e manifesto contra eventos históricos. Em 2019,  escreveram uma carta-manifesto contra o racismo estrutural, a perseguição e violência contra pessoas negras e da população LGBTQIAPN+, reverenciando um ato levantado pelo Movimento Negro Unificado durante a ditadura militar nas escadarias do Theatro Municipal há 40 anos.

A todo momento a conversa com a Adriana trouxe nomes às quais ela tem o carinho de lembrar que foram mãos auxiliadoras da sua arte e da recomposição do bloco que a descobriu percussionista; mestra. Sandra, Mafalda, Beth, Giselda, Elza, Gi, as 200 mulheres no ensaio do Pelourinho, na Bahia, e tantas outras. E finaliza, É sobre isso e tudo isso: retomar o nosso lugar de direito.

"Em estímulo de ânimo, confiança e amor (...)

Por isso saudamos os que nos deram

Confiança e esperança,

No amparo ao destino incerto,

E perante as Mulheres Negras ativistas,

Que hoje tocam o Tambor,

Nós dizemos: Abayomis…,

Energias da ancestralidade universal,

Com coragem ânimo e fé

Nós estamos aqui…

Carta-manifesto lido por Conceição Evaristo e outras vozes negras no cortejo “Negras Vozes: O tempo de Alakan” (2019)

 

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A união dos tambores, agogôs, bombos, bongôs, triângulo e outras tantas vozes contam as histórias das ancestralidades africanas no bloco Ilú Oba de Min. Foto: Jorge Sato

 

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