Sonhos de ressocialização permanecem presos entre as grades dos presídios

A reintegração expõe a fragilidade das segundas chances em um sistema que falha em promover ressocialização
por
Lais Romagnoli
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10/10/2024

Por Lais Romangnoli

 

Assim que completou 18 anos, Márcia cruzou, pela primeira vez, os portões de um presídio. A jovem não imaginava que essa visita, motivada pela negociação de linhas telefônicas como estelionato, seria apenas a primeira de muitas, tanto como visitante quanto como presa, em sua jornada pelo mundo do crime. A oferta de dinheiro fácil foi sedutora para Márcia, que mesmo muito nova, vivia um estilo de vida conturbado. Com escolhas equivocadas e graves consequências, a jovem parecia estar destinada a um fim sombrio, comum entre muitos que adentram pelo universo de uma vida levada contra as leis.

Com o marido encarcerado e carregando a vida de seu primeiro filho, sua rotina se resumia a visitá-lo aos sábados e domingos. Durante os dias da semana, a falsa ilusão do tráfico de drogas a envolveu, e logo ela se viu atrás das grades. Após o parto, Márcia se despediu do filho, em lágrimas, sofrendo ao levar o pequeno para a prisão. No entanto, após um aconselhamento médico, optou por deixá-lo na casa de sua mãe, com apenas dois dias de vida.

Cumprindo sua pena ela passou meses em busca de um novo começo, realizando cursos voltados à construção civil, seu verdadeiro sonho. Ao iniciar a graduação, a falta de recursos a empurrou para a venda de drogas sintéticas na faculdade. A busca pelos insumos em outro país a levou à prisão novamente, resultando em uma condenação de sete anos.

Enquanto estava livre ela foi recebeu uma série de respostas negativas de ofertas de emprego e pela falta de uma estabilidade financeira. Uma realidade semelhante a grande parcela de ex-presidiários, que em busca de construir uma nova vida, enfrentam diversos paradigmas ligado a falta de apoio após a liberdade e a discriminação. Após cinco anos de reclusão, Márcia fugiu para São Paulo e contou à sua família que finalmente estava livre. Com determinação, acomodou-se no único quarto disponível na casa da mãe, que contava com uma fossa, e comprou uma cama e um guarda-roupa como os primeiros passos rumo à reconstrução de sua vida.

Durante essa fase de transição, conseguiu um trabalho que a preenchia, mas a felicidade foi curta, pois foi demitida por justa causa ao ser descoberta como foragida da Justiça. Em meio a incertezas sobre o futuro e à angústia da fome, pensou em acabar com sua própria vida. Porém, em um momento de desespero, o crime ressurgiu como uma solução tentadora, levando-a a ser presa pela terceira vez.

Na cadeia, ela notou que os programas de ressocialização funcionavam somente na teoria e não na prática e que o sistema falhava nas ações para transformar a opinião do preso sobre o crime cometido. Para Márcia, o Estado ganha cada vez mais poder com tantos presos sem instrução em cárcere. Após sofrer um golpe de seu advogado, ela decidiu mudar de vida. Mesmo sem preparo, começou a escrever ofícios para a juíza, que acatou seus argumentos. Com um caderno, uma caneta e um português com alguns erros gramaticais, lutou pela sua liberdade e foi solta em 2019. Ao defender-se e buscar Justiça, ingressou no curso de Direito, enfrentando a discriminação de colegas que descobriram seu passado. Essa hostilidade a levou a abandonar o semestre.

Grávida de seu terceiro filho, Márcia se viu em meio a uma tempestade de dificuldades e tentações de retornar ao crime. Entre questões financeiras e preconceitos, decidiu voltar à faculdade, determinada a construir uma carreira como advogada. Para ela, a ressocialização é uma ilusão; só funciona quando o indivíduo decide não se submeter à discriminação e ao sofrimento. A estudante de direito notou que a sociedade raramente oferece uma segunda chance aos ex-presidiários, anulando a verdadeira essência do processo de reintegrá-los à sociedade.

Antes, ela sentia vergonha de seu passado, como quando abandonou a faculdade após um colega descobrir sua história. Mas hoje, possui um podcast onde entrevista ex-detentos e compartilha sua trajetória. Se enfrenta discriminação, menciona seu canal online, onde expõe as razões por trás de suas escolhas. Além de se tornar uma comunicadora em temas ainda considerados tabus, Márcia dedica-se aos atendimentos sociais, ajudando aqueles que precisam de orientação jurídica na área criminal. Sua trajetória é um depoimento de resistência, transformação e a incessante busca por um futuro melhor, em busca dos sonhos planejados entre as grades de um presídio.

 

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