Se correr o bicho pega, se ficar a gente cuida

Do zoológico à clínica veterinária, entenda como melhorar essa coexistência
por
João Curi
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28/10/2024

Por João Curi

Bicho do mato não se cria na cidade. Mas, se a teimosia for suficiente, pode ter jeito de fazer caber gato, cachorro, coelho, periquito, papagaio, e ainda um peixinho betta num aquário próprio sobre a estante. Sabe como é, assim dá para sentir a natureza mais de perto. Cuidar é fácil, só comprar a ração e encher o potinho. Qualquer coisa, se precisar viajar, pede ao vizinho que tudo se resolve num empréstimo de chave. 

Até parece. Os cuidados exigem extrema atenção, quase como se fosse uma criança aprendendo a andar. O contato com a natureza através dos animais pode ser uma boa pedida, mas precisa ver o quanto cabe na agenda. Não adianta acolher um bichinho fofo dentro de casa se na primeira poça de urina fora do lugar já se faz um escarcéu. É o ciclo natural dos pets - termo cunhado em meados do século XVI, na Grã Bretanha, para descrever um "animal preferido" - arruinar parte da mobília, comer muito num dia e nada no outro, ser dócil com os parentes e hostil com as visitas. Tudo faz parte.

O que não dá é achar que para ter não precisa cuidar. Pode começar a acumular jornal de papel, perder o nojo de limpar caixa de areia, separar aquela esponjinha maltrapilha só pra drenar as poçinhas, dedicar um espaço exclusivo da casa para o pet, escolher o balde específico para trocar a água do aquário. Finge que tem outro ser vivo dividindo o apartamento, o sobrado, o que for, mas não vale cobrar o aluguel.

Despesas a parte, cuidar de um animal em casa não parece compatível. E, se parar para pensar, não é mesmo. Há quem diga que lugar de bicho nem no zoológico é, que dirá num apartamento no centro da cidade. Em meio a tantos carros, ônibus, pedestres, motos, fiação elétrica, asfalto e caixas d'água, querer encaixar um bicho na urbanização pode se provar um jogo de campo minado. 

Por sorte, existem alguns macetes.

Biólogo posando ao lado de um veado em cativeiro
Gabriel guarda registros com alguns dos animais de que cuidava em um de seus estágios durante a graduação (Reprodução/Acervo pessoal).

Gabriel conheceu seu primeiro zoológico ainda pequeno. Os olhos brilhavam, acesos com a maravilha de quem ainda estava conhecendo o mundo. É diferente da televisão. Pessoalmente, assim cara a cara, tudo é tão real que a experiência se torna inesquecível. Quando entrou na faculdade, entretanto, os olhos mudaram. Já não era mais uma criança, afinal. Graças à graduação e ao trabalho que arranjou na área, descobriu os bastidores que se escondiam da infância, quando não tinha ciência de toda a história à la Globo Repórter que precedia os bichinhos: o que comem, onde viviam, como chegaram aqui?

Gabriel Lázaro é formado em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, e já trabalhou no cuidado e na manutenção de animais silvestres em uma instituição de zooterapia, em São Paulo.  O bacharel esclarece que, ao contrário do que se pensa, os zoológicos são ambientes importantes para a preservação dos animais em exposição, que muitas vezes são resgatados do tráfico ou de situações de cativeiro e não conseguem se adaptar de volta ao habitat natural. No zoológico, por sua vez, a vida desses animais é melhor aproveitada, inclusive sob condições mais seguras, o que pode beneficiar também a biodiversidade e preservar espécies ameaçadas de extinção.

Nisso, entra também o incentivo das escolas em introduzirem, desde cedo, esses contatos com a vida animal. Essa prática estimula não só o aprendizado, como também uma maior conscientização, desde a base da sociedade futura, sobre o cuidado com a vida selvagem e o respeito aos seus habitats naturais. Pensando nisso, seja nos zoológicos ou em aquários, é importante consultar previamente as condições em que são mantidos os animais nos seus respectivos espaços.

Por mais benéfica que seja a proposta, claro que existem os casos ruins, como a recente denúncia de maus-tratos à orca Kshamenk no Aquário Mundo Marino, em Buenos Aires, na Argentina. A orca “mais solitária do mundo” foi filmada praticamente imóvel por um dia inteiro, em vídeo divulgado nas redes sociais pela ONG Urgent Seas, sendo a última da espécie em cativeiro em toda a América Latina. Não só isso, como repercussões recentes em oposição ao cativeiro de animais marinhos nos Estados Unidos também ganharam força, muito devido ao documentário “Blackfish”, lançado em 2013, que incentivou a mobilização pública em favor da libertação da orca Lolita, mantida durante mais de cinquenta anos em cativeiro, no Miami Seaquarium, na Flórida.

Mas é uma missão difícil criar um ambiente que tenha o conforto de um lar. Não é qualquer árvore bem plantada e laguinho que montam uma casa, ainda mais tão próximo de gente que passa e vai embora, fica e tira foto, grita e sai correndo. Esse processo conta com facilitadores, como as técnicas de enriquecimento ambiental, que promovem o bem-estar e buscam proporcionar chances do animal se comportar naturalmente como o faria no habitat de origem, por exemplo. Nesse sentido, vale considerar como prioridade a segurança tanto dos animais quanto da equipe de manutenção e do público, em prevenção a disputas por território, alimentos e até a possíveis fugas.

Cabe mais um?

Segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE-SP), a capital de São Paulo representa mais de 27% da população estadual, apesar de ocupar apenas 0,61% do território paulista. Ainda assim, a megalópole esbanja uma densidade demográfica de até 7.383 habitantes por km². Todos esses dados tornam difícil acreditar que cabem animais de forma digna nesta cidade, e muitas vezes a preocupação é validada.

Não é difícil, todavia, entender que as metrópoles, grandes concentrações urbanas, não são convidativas ao convívio com animais – principalmente os silvestres. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum a aparição de saguis nos fios de redes elétricas, o que pode ser perigoso considerando o risco de eletrocutamento, e a má orientação de alguns cidadãos e turistas que oferecem alimentos para esses animais sem perceber que isso pode prejudicar a qualidade de vida nesses ambientes naturais tão próximos da civilização.

Com isso, o biólogo alerta que muitos animais em ambientes urbanos, principalmente os silvestres, acabam se adaptando ao que não deveriam, desencadeando hábito que não são naturais e inclusive podendo contrair doenças que podem ameaçar o equilíbrio do ecossistema em que estão inseridos.  

 

O outro lado da emergência

Victória, estudante de Veterinária, agarrada a um cachorro da raça Golden retriever na cozinha de um apartamento
Victória atuou em clínicas veterinárias durante a maior parte de seu período de estágio, em Belo Horizonte (Reprodução/Acervo pessoal).

Para Victória foi diferente. O seu carinho pelos pets era tamanho que decidiu que estudaria muito para poder cuidar de todos eles. Realizando seu sonho, mudou-se de São Paulo para a capital mineira para estudar Medicina Veterinária na PUC-MG. Embora tenha ido sozinha, logo trouxe companhia para o apartamento, dois gatinhos, que também a motivavam ao estudo na prática. 

Prestes a concluir a graduação, já no último ano, Victória Sardinha é estagiária do setor de internação de um hospital de felinos, em Belo Horizonte. O olhar mudou desde que entrou no curso, principalmente sobre ambientes dedicados aos animais em pleno contexto urbano. Parques de cachorro, por exemplo, que antes acendiam uma vontade de adotar um cachorro grande para aproveitar todo aquele espaço, já não são mais tão convidativos. Com o tempo, Victória aprendeu que a leitura corporal de um cachorro não é fácil de se identificar. Inclui detalhes que só os olhos treinados conseguem notar. Não tem como separar uma briga, que pode acontecer rápido e se tornar um problema tanto para os pets quanto para os donos.

Da mesma forma, também entendeu que não existe estereótipo comprovado. Todo cachorro tem a capacidade de ser dócil ou agressivo, bonzinho ou mau, e o perigo ainda varia quanto ao potencial de mordedura - sendo essa a principal queixa dos apavorados por pitbulls, por exemplo. Num conflito, inocente ou não, qualquer confusão pode se tornar um incidente maior, e é aí que mora o perigo.

Chega a ser bizarro, ainda, pensar que alguns tutores colocam os animais no papel de filhos. Alguns até instalam o cão em carrinhos de bebê para passearem, e por mais fofo que possa parecer, pode ser prejudicial porque impede a atividade física necessária ao animal que deve caminhar com as próprias patas, para assim perder peso e exercitar a socialização. A falta disso pode torná-lo muito reativo ou tímido demais para interagir com outros cachorros, seja em ambientes fechados ou abertos. Em outras palavras, pet não é gente, e renderia uma crise danada fazê-lo pensar que é.

E tem mais. Dizem as línguas desavisadas que gato é mais independente, ao ponto de não precisar estar ali o tempo inteiro, mas esses felinos também precisam de atenção - embora seja comum que o próprio animal escolha quando isso pode ocorrer. É diferente do cachorro, a personificação da carência e da lealdade, que precisa de atenção praticamente o dia todo.  Aliás, não acredite na lenda das sete vidas - da mesma linha fajuta de que o gato preto é sinal de mau agouro e azar. Em total contraste aos desenhos animados, os gatos podem se machucar ao caírem do alto, sendo um caso mais comum do que parece. E nem precisa ser tão alto, basta um susto ou um tropeço para ocorrer um acidente. Todo cuidado é pouco. Mesmo na rua, o gato corre risco de ser atropelado por carros, principalmente no inverno quando é comum se esconder debaixo deles para se aquecer.

Além disso, animais cujos tutores trabalham o dia inteiro e acabam sozinhos por muito tempo sofrem de estresse e ansiedade suficientes para ativar alguns malefícios, como destruir os móveis ou objetos da casa, e lamberem o próprio corpo, o que apesar de ser comum pode causar patologias. Aliás, a leishmaniose é caso comum em Belo Horizonte, muito pela falta de vacinação em prevenção à doença, que foi tema da campanha “Agosto Verde” na PUC-Minas durante o mês passado. Segundo dados da Prefeitura, houve um aumento de mais de 53% de casos da lesihmaniose visceral canina (LVC) entre 2021 e 2023.

E o conselho de quem sabe do que está falando é simples: esteja atento à vacinação disponível para o seu pet, e cuidado ao passear durante os horários de pico do sol, entre às onze da manhã e uma da tarde. O asfalto quente pode danificar as patinhas do pet, o que num rápido exercício de empatia já se torna mais claro, até porque não é qualquer um que andaria descalço na calçada quente. O aviso se estende com alerta especial para raças de cachorro braquicefálicas – do fucinho achatado, como Pug, Buldogue, Shitzu – que já não conseguem respirar sozinhas por conta própria e a condição piora em função do calor. Esses são casos comuns que Victória já viu com os próprios olhos, quando atendia uma clínica para cães e gatos durante o verão, e lamenta lembrar que não tiveram finais felizes.

A inocência animal é uma qualidade que escancara a maldade humana. Chega a ser como uma cena de filme acompanhar alguns casos clínicos. Havia uma senhora que fazia questão de alimentar uma cadela viralata que vivia nos arredores de uma região frequentada por usuários de drogas e pessoas em situação de rua, e num determinado dia ela havia percebido algo de diferente nela. O andar era diferente, a disposição do corpinho e a expressão dela não eram comuns. A senhora decidiu levá-la por conta própria à clínica veterinária, onde Victória trabalhava na época. Após alguns exames, foi constatado que a cadelinha fora abusada por um suposto dono em situação de rua, e provavelmente não era a primeira vez. A estudante, humana que é, não conteve as lágrimas ao relembrar o caso, repetindo que custou a acreditar que era real. Foi um desses momentos que a profissão mudou para sempre os seus olhos, tanto para os bichos quanto para a humanidade.

Um segundo caso também serviu de lição para o coração mole. Em casa, um pequeno Yorkshire e um Chow-Chow de porte médio assustaram a tutora após uma briga pela manhã. Ao final da tarde, o pequeno sofria de falta de ar e começava a inflar como um balão. O atendimento de emergência exigia a assinatura de alguns papéis relacionados ao pagamento e a termos legais, ao que a tutora resistia a fazer, atrasando o procedimento. Sem muito tempo, com o que era praticamente uma bomba prestes a explodir, Victória e outra estagiária aguardavam em agonia a assinatura, que não vinha. Acontece que, mais cedo, o Yorkshire havia fraturado a costela e o osso perfurou o pulmão, expelindo aos poucos o ar e chegar à condição em que chegou. Mas a tutora não queria pagar nada, e Victória já conseguia imaginar o paciente explodindo às custas disso. Foi a maior emergência que já viveu como veterinária, principalmente no quesito da surpresa. No final, nenhum papel foi assinado e o cachorro não sobreviveu.

A decisão entre a vida e a morte é tão complicada quanto parece. Na veterinária, Victória aprendeu a verdade por trás da eutanásia, uma conduta indolor que dá fim ao sofrimento de um animal em estado terminal ou extremamente doloroso. Infelizmente, não é assim que algumas pessoas enxergam essa medida de último recurso. Não se trata de uma saída para um problema financeiro, tampouco a fuga de tanto trabalho para cuidar de um ser vivo. É um tratamento terminal totalmente sustentado na ética. É a solução de última instância, especialmente para pacientes sob tratamentos paliativos, sem qualquer expectativa de cura. É uma escolha de último caso que não responde à chamada do tutor, salienta a veterinária. Não existe pedir por uma eutanásia, por mais que caiba ao tutor decidir se procederá ou não. Apesar de ser um processo indolor, perfura o mental de quem assiste à vida desvanecer.

Victória lembra da sua primeira eutanásia. Era um cachorro que sofria de maus-tratos, chegando à clínica mais parecido com um pano de chão, abandonado à sujeira e com fome, idoso que era, fora resgatado da casa por um vizinho compadecido. A decisão difícil prosseguiu, autorizada pelo responsável, e Victória se surpreendeu com o alívio que sentiu ao ver o cachorro se desprender de toda a dor e ser conduzido à morte de forma mais digna. É um caso atípico, já que o comum é um acompanhamento mais longo do paciente antes da medida final, o que só piora a frustração de não haver outra.

Essa comunhão de animais silvestres no contexto urbano é complicada. A tendência é que eles apareçam cada vez mais, não como uma invasão, mas como uma expansão das cidades aos ambientes deles. As queimadas, por exemplo, provocam a fuga de vários animais que se veem encurralados nos limites da cidade, e acabam se inserindo nos ambientes urbanos sem qualquer preparo, muitas vezes sofrendo acidentes com cabos elétricos e atropelamentos. E a preocupação se estende para o descuido de animais domésticos, como os gatos que zanzam pela vizinhança, e que acabam esbarrando com animais silvestres ao ponto de contraírem doenças e desequilibrarem o ecossistema.

Victória fez intercâmbio na Nova Zelândia enquanto ainda concluía o Ensino Médio, e relata que, ao contrário da Austrália, que faz jus à fama de abrigar uma vastidão de animais perigosos e peçonhentos, dispõe de uma fauna mais tranquila de se observar de perto e tão diversa quanto. Lá, o contato com os animais silvestres tem lugar definido, tamanho o respeito incumbido nos hábitos e na rotina que se aprende nas salas de aula desde criança. É uma cultura que abraça a vida animal como prioridade de preservação, em especial os encontros com espécies locais em ilhas próximas, como o pássaro típico Kiwi, considerado um dos grandes símbolos do país. A principal diferença para a estudante foi perceber que os cachorros eram bem-vindos na maior parte da Nova Zelândia, sendo comum acompanharem os tutores em trilhas e nas praias, onde não são proibidos de frequentar. Este, porém, é um ponto que ela defende que não se estabeleça no Brasil, dada a menor conscientização no tratamento desses animais e da cultura que divergem bastante, principalmente quanto à educação sanitária de recolher fezes e manter esses espaços limpos.

A boa experiência com a vida selvagem, contudo, não impediu sustos durante a viagem. Em meio a uma viagem de carro, quando Victória e a família que a acolheu no intercâmbio visitavam um lago, a placa “Atenção: sanguessugas! Não entre neste lago” foi difícil de esquecer. Dado o perigo de alguns encontros, o governo neozelandês esbanja claro conhecimento das espécies que também ocupam o território e fazem bom uso das sinalizações para prevenir ao máximo possíveis acidentes com tubarões, águas-vivas, polvos, e demais potenciais perigos associados ao contato mais direto com a natureza. Não que isso impeça os nativos de aproveitarem esses espaços sem qualquer temor, cientes do comportamento desses animais e dos limites que devem respeitar com eles, tanto nas praias quanto em trilhas e até mesmo nas cidades.

No curto período em que frequentou a Austrália, para alguém que estava decidida a fugir do mato e dos infames perigos que se escondem nele, Victória completou três ou quatro trilhas e ainda conseguiu turistar pelo país já livre de todo o pavor implantado previamente. Diferente da Nova Zelândia, é pouco recomendado seguir caminho sem um guia experiente. Ainda assim, a vida animal é tão conservada quanto, dispondo de parques de reserva naturais dedicados a coalas e cangurus, com visitação gratuita e livre, sem cercas, banheiros nem pontos de venda. Apenas uma grande calçada e os animais, que já se acostumaram aos humanos, mesmo os filhotes.

A invasão antrópica também existe, é verdade, mas é menor e envolve muito mais respeito. Talvez seja um bom começo para se seguir em outros países, consideradas as adversidades de cada região.

Todo mundo está cansado de ouvir que é preciso parar o desmatamento, mas a falta de ação soa como uma tempestade tropical fora de época. É urgente, avassaladora, inescapável. Tão logo a humanidade também se encontrará encurralada, já no limite do próprio desenvolvimento, praticamente expulsando a si mesma do próprio planeta, mas não antes de levar centenas de milhares de espécies junto nessa grande vala ambiental comum.

Ainda é sinal de ingenuidade acreditar num futuro em que a mudança seja realmente efetiva e definitiva. De acordo com o relatório anual Global Forest Watch, organizado pela Universidade de Maryland, a perda de florestas tropicais primárias foi de 3,74 milhões de hectares em 2023, o que representa desmatar quase 10 campos de futebol por minuto; sendo 0,69 milhão proveniente de incêndios, o maior registro da categoria nos últimos três anos. O diagnóstico piora quando se considera a emissão de 2,4 gigatoneladas de CO2 envolvida nesse processo, o equivalente à metade da emissão anual provocada por combustíveis fósseis nos Estados Unidos.

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