O bairro que mudou, mas ainda resiste
No bairro da Saúde, em São Paulo, Paulino Marques, 88 anos, mantém sua rotina de sempre. Entre cuidar do quintal espaçoso e colocar cadeiras no portão para prosear com os vizinhos, ele é um ponto de resistência em meio à crescente verticalização. Sua casa, com mais de 60 anos de histórias, agora está ao lado de um prédio de 15 andares que nasceu onde antes havia outra residência térrea como a sua. “Continuo aqui, cuidando das minhas plantas, conversando com os vizinhos, mas fico indignado com o que a cidade virou”, conta.
Verticalização: promessa quebrada
Paulino se refere à transformação urbana que, segundo o Plano Diretor Estratégico de 2014, prometia adensar áreas já urbanizadas e melhorar a vida de quem mora nas periferias. Na prática, porém, a verticalização tem beneficiado as construtoras e a classe média alta. “Diziam que esses prédios iam trazer moradia para quem precisava. Mas olhe só quem consegue comprar esses apartamentos: quem já tem dinheiro!”, critica Paulino, apontando para o edifício vizinho.
Os dados confirmam sua visão. Segundo um estudo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), os apartamentos de médio e alto padrão lideraram o crescimento imobiliário em São Paulo entre 2000 e 2020. Enquanto isso, a falta de habitação acessível continua a empurrar a população de baixa renda para as bordas da metrópole, longe de serviços e infraestrutura.
“Aqui ainda é meu refúgio”
Apesar das mudanças ao redor, Paulino insiste que seu dia a dia pouco mudou. Ele preserva sua privacidade no quintal, cuida das árvores e mantém a casa como sempre fez. O que mais o incomoda não é a sombra do prédio ao lado, mas o que ela simboliza. “Eu não sinto que perdi minha vida aqui, mas a cidade perdeu o rumo. Falam que isso é progresso, mas progresso para quem?”
Ainda há vizinhos que, como ele, resistiram às ofertas de venda feitas pelas construtoras. “A rua não está morta, ainda tem gente de verdade aqui. Mas dá para sentir que estamos sendo apertados, como se as casas não fossem mais importantes.”
A cidade para poucos
Especialistas concordam com as críticas de Paulino. “A verticalização em São Paulo foi direcionada pelo mercado imobiliário, e não pelo interesse público”, explica Maria Encarnação Sposito, geógrafa urbana. “Sem políticas consistentes para habitação popular, os lançamentos atendem apenas quem pode pagar caro por eles.”
Paulino sente que o bairro da Saúde é um exemplo dessa falsa promessa. “Quando falam em melhorar a cidade, eu penso nas pessoas simples, que estão longe daqui. Aí constroem prédios e dizem que estão ajudando, mas a ajuda nunca chega para quem realmente precisa”, desabafa.
Uma memória viva em uma cidade em transformação
Mesmo com todas as mudanças ao seu redor, Paulino não pensa em sair de sua casa. “Aqui estão as minhas lembranças, minha família, minha vida.” Ele não rejeita o futuro ou o crescimento da cidade, mas lamenta a forma como isso está sendo feito. “Construir prédios não é o problema. O problema é esquecer as pessoas.”
A história de Paulino não é apenas sobre uma casa ou um prédio vizinho. É sobre a identidade de São Paulo e de seus moradores. Enquanto os arranha-céus se multiplicam, a cidade parece se afastar de sua essência. Paulino, com sua casa simples e seu quintal generoso, segue como um lembrete de que o progresso deve incluir todos, e não apenas os que podem pagar por ele.