São Paulo aconchega um pedaço do Nordeste

Dona Francisca, uma chef que “enche estômagos vazios de fome e corações famintos por lembrança”.
por
Kawan Novais
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18/11/2024

Por Kawan Novais

 

No bairro do Limão, localizado na zona Norte de São Paulo, em 1991, nascia o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), um espaço destinado ao prestígio e preservação da cultura nordestina no estado de São Paulo. O lugar mais nordestino fora do Nordeste tem suas características muito bem visíveis: bandeirolas dançando sobre os sons da sanfona, paredes imensas simulando a arquitetura colonial nordestina com os “casarões” coloridos e, no ar, um intenso aroma do forte tempero que realça o sabor da carne de sol e do baião de dois.

Ali também se encontra Francisca Mendonça Pessoa, a Dona Francisca, proprietária e chefe de cozinha do ‘Família Kariri’, do qual ali concentrava todo o intenso cheiro e sabor do baião de dois dos 27 mil quadrados de área do CTN. Entre as mais de 50 cadeiras em frente ao restaurante, havia uma composta por um casal que após conversar com Francisca, foi descoberto que os dois eram de Catende, uma cidade de Pernambuco.

Francisca nasceu em Lagoa de Pedras, município interiorano do Rio Grande do Norte, e veio para São Paulo há mais de 50 anos. Hoje, sem revelar as unidades pertencentes às sete dezenas de sua idade, a chef se mostra empolgada com a ideia de coordenar uma cozinha por muito mais tempo. Ela é responsável por gerenciar uma demanda de quase mil clientes a cada semana que buscam degustar a extravagante comida nordestina.

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Dona Francisca, em 1993 ou 1994, no início da história do restaurante ‘Família Kariri’. Foto: Reprodução/Arquivos de Francisca.

Antes do Família Kariri, Dona Francisca trabalhava em uma indústria de confecção têxtil, assim como grande parte do grupo de mulheres que migraram com ela do interior do Nordeste para a metrópole na época. Em 1991, o nascimento do Centro de Tradições Nordestinas promoveu a maior oportunidade de sua vida: um sorteio que daria um espaço para construir um restaurante que também espalhasse um pedacinho do Nordeste em São Paulo.

Uma “pitada” de sorte colaborou para a vitória de Francisca e para o nascimento de Kariri, o primeiro restaurante do CTN. Apenas cinco mesas disponíveis aos clientes em frente a uma barraca de madeira com quatro metros de largura por quatro metros de comprimento para os três cozinheiros, foi o espaço dos primeiros passos de Francisca enquanto chefe de cozinha.

Hoje, ela conta com uma equipe de quase 30 funcionários e mais de 60 mesas que têm a capacidade de atender a demanda de 240 clientes. Durante as comemorações nordestinas do calendário, seu coração aquece ao ver todos os assentos ocupados.

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Algumas das cozinheiras integrantes do grupo de Dona Francisca. Foto: Repordução/Arquivos de Francisca.

Ela diz, com alívio, nunca ter se deparado com um preconceito por ser nordestina. Muito pelo contrário, pois ela sempre foi muito elogiada pelas suas capacidades culinárias, principalmente daqueles que comiam e matavam um pouco da saudade de casa, mesmo que tão longe. Mas, muitos de seus clientes que também saíram do Nordeste e que foram atendidos por ela, sofreram das mais diferentes formas: Não conseguir emprego por causa de sotaque; Capacitismo por “não ser qualificado o suficiente para uma cidade grande”; Colegas de profissão que foram considerados exóticos pelos pratos.

Francisca nunca conseguiu lidar bem com a ideia de que pessoas com características parecidas com a dela tenham sido negligenciadas pelo fato de ter origem em outra região. Para além da cozinha, ela tem como uma das missões descobrir as cidades originárias do máximo clientes que conseguir, e acolhê-los. Esta é a tarefa menos difícil, pois é muito fácil de puxar uma conversa e descobrir rapidamente sobre detalhes de outras pessoas e fazer com que se sinta em casa, assim como ela se sente em São Paulo.

Uma segunda tarefa, esta mais próxima de um projeto, o “Jantar para Todos”, que semanalmente - todas às quartas-feiras - Dona Francisca e parte de sua equipe preparam e entregam marmitas para pessoas em condições de rua. Desde abril de 2020, quando o restaurante precisou ser fechado devido ao vírus COVID-19 e os integrantes do restaurante Kariri precisaram se adequar ao trabalho em casa, há a distribuição de marmitas nas ruas.

Desde o início do restaurante, quando pôde, Dona Francisca ajudava as pessoas que trabalhavam nas construções do CTN com marmitas. Hoje, com o crescimento do Kariri, a chef também quer atender quem não pode ir ao restaurante, mas que pode conhecer ou relembrar de um sabor que “todos deveriam conhecer”.

 

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Equipe do ‘Família Kariri’ conduz projeto “Jantar para Todos” com entrega de marmitas todas as quartas-feiras. Foto: Reprodução/Arquivos de Francisca.

 

Sandro, o principal responsável pelo projeto “Jantar para Todos” e o segundo proprietário do ‘Família Kariri’, foi citado como uma figura de liderança quando se trata do em torno do restaurante. Mas, não existiria algo sem que a Dona Francisca estivesse presente, de acordo com Camila Santos, uma das cozinheiras que fazem parte da equipe. Camila é quase 30 anos mais nova que sua chefe de cozinha e não faltou palavras para expressar o quanto Francisca é a imagem ideal à inspiração quando se trata de empreendedorismo e liderança feminina.

Dona Francisca é muito firme quando necessário. Com o coração à tona desde o fundo da panela à cadeira mais longe do restaurante, a chef contribuiu para cada um de seus cozinheiros, tanto dentro quanto fora da cozinha. Camila, a mais nova dentre o todo o grupo, carrega o apelido de "sombra", pois a segue em quaisquer movimentos na cozinha.

Para ela, esse é um dos maiores orgulhos de sua vida. Tornar-se referência não só enquanto cozinheira para a comida nordestina em São Paulo, mas enquanto uma mulher valorizada em meio aos diversos preconceitos que nunca se sentiu atingida. Dona Francisca consegue dar aconchego para seus clientes que querem encher estômagos vazios e corações famintos por lembrança do Nordeste.

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