Roteiristas de Hollywood protestam contra uso do ChatGPT no cinema

Greve da categoria dura dois meses e já afeta a produção de filmes e séries
por
Victoria Nogueira Rosa
|
07/07/2023

Roteiristas de Hollywood decretaram greve pela primeira vez em 15 anos. Além de melhores salários e condições de trabalho, os profissionais defendem que o uso das inteligências artificiais na indústria cinematográfica seja discutido. Especialistas divergem até que ponto a chegada das tecnologias pode provocar mudanças na produção dos roteiros.

O ChatGPT é um dos alvos das críticas. A ferramenta, lançada em novembro do ano passado pela OpenAI, é capaz de produzir textos de todos os gêneros e estilos instantaneamente. Para isso, ela utiliza um banco de dados alimentado por milhões de artigos já produzidos.

Na prática, basta um comando para que roteiros ao "modo" Jean-Luc Godard ou Quentin Tarantino sejam entregues em segundos a pessoa por trás do computador. Os roteiristas, por sua vez, defendem ser creditados pelo uso dos materiais.

A discussão em torno da automatização da produção de roteiros já chega, inclusive, ao próprio streaming. Na série Black Mirror, a personagem Joan vê a vida retratada fielmente por uma plataforma — a Strawberry, uma paródia da Netflix. Para isso, um computador é utilizado no processo de produção do roteiro daquilo que seria o cotidiano da jovem.

Para Marcelo de Araújo, professor do departamento de Filosofia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador da relação da ética com as inteligências artificiais, é grande o potencial de desemprego com a popularização das novas ferramentas, como o ChatGPT.

“A expectativa desse cenário é que as pessoas vão ter que começar a buscar requalificações. Não sabemos até que ponto vamos ter como realocar esses profissionais nos setores produtivos do mercado de trabalho”, apontou.

Do ponto de vista criativo, para Araújo, as inteligências artificiais têm plena condições de se assemelhar à complexidade do trabalho humano no futuro.

"Eu não vejo por qual razão isso não aconteceria. Talvez a criatividade consista em extrair da máquina o que te interessa", disse.

A visão é contestada por Thiago Costa, professor do departamento de Cinema da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

Segundo Costa, apesar do ChatGPT surpreender com a agilidade de entrega dos textos, ele não deve entregar a mesma sofisticação de um roteiro produzido por uma pessoa.

“Roteiro é algo feito para virar audiovisual. A fala tem que ser como a gente. A inteligência artificial pode até emular isso, mas não vai chegar na realidade. Ela não vai conseguir alcançar essa conexão emocional que a gente precisa”, ressaltou.

Para Flavia Guerra, jornalista especialista em cinema, para além do roteiro, o cinema vai ter, também, transformações visuais com a chegada das inteligências. “O CGI já tem feito milhares [de mudanças], recriando cenários, rostos [de personagens] e cenas de filmes”, afirmou.

Para ela, o ChatGPT pode substituir uma parcela dos roteiristas ao automatizar uma parte mais mecanizada do processo. Contudo, “transformar isso em algo que vai ser capaz de segurar uma série toda, eu acho que ainda não é capaz. Por mais bem programada que seja, [a IA] não tem a vivência que um roteirista tem para dar essa textura do real”, lembrou. Ela destaca que é difícil prever as mudanças para os próximos anos.

Em Hollywood, a paralisação, que completou 2 meses em julho, já impacta as filmagens de filmes e séries. The Last of US, Emily in Paris e Stranger Things estão entre as afetadas. Mais de 300 atores e atrizes, entre eles Meryl Streep, Jennifer Lawrence e Rami Malek, declararam apoio aos atos, que não têm previsão para acabar.

Costa observa que é difícil que uma greve, tal como a vista nos Estados Unidos, aconteça no Brasil. A movimentação norte-americana, contudo, pode fomentar as discussões.

“Nós não temos uma organização tão estabelecida aqui. Mas, quando vemos Hollywood se movimentando, a tendência é que isso se espalhe muito rapidamente”, apontou.

Discussão cresce entre os roteiristas brasileiros

A discussão de qual será o futuro da profissão com a introdução da inteligência artificial também cresce entre os roteiristas brasileiros. Como os especialistas, eles se opõem sobre o assunto.

Para Luiza Guane, que já colaborou na produção de filmes e séries documentais, "muitos não encaram o ChatGPT como uma ferramenta que possa substituí-los, justamente porque os textos entregues ainda são muito fracos".

Já Lucas Corbucci, que trabalha com Luíza em uma produtora independente de São Paulo, relatou "ter medo" do futuro com a implementação do ChatGPT.

"Estou fazendo cursos para me especializar em outras áreas do audiovisual. Tenho amigos roteiristas que tiveram os salários reduzidos para não ficar desempregados", afirmou.

Procurada para se posicionar sobre o uso das IA no mercado nacional, a Associação Brasileira de Autores Roteiristas (ABRA), não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Regulação do ChatGPT já é debatida na Europa

Com a popularização do ChatGPT cresce o debate dos países em torno de uma regulação.

Em março, a Itália chegou a banir o mecanismo por quase 30 dias, alegando que ele desrespeita as leis de proteção de dados. A plataforma, contudo, voltou a funcionar após mudar as políticas de privacidade.

O uso do ChatGPT é igualmente motivo de polêmica em outros membros da União Europeia. Na Espanha, a OpenAI está sendo investigada pela Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), que averigua se a empresa segue o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) do continente.

Para Moacir Ponti, especialista em Ciência de Dados e professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC), a proibição da utilização das inteligências artificiais não deve acontecer no Brasil.

"Eu acho que não aconteceria uma proibição massiva, mas, talvez, uma regulamentação que garanta o mínimo de segurança desse tipo de tecnologia”, declarou.

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