Redes de apoio ajudam na cura de sequelas por uso de alucinóginos

A rede de apoio de jovens com um raro transtorno causado por cogumelos alucinógenos, o TPPA.
por
Lucas de Paula Allabi
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11/11/2024

Por Lucas Allabi

Wallace e Geovanna viveram dificuldades particulares até descobrirem que suas vidas não precisavam ser tão infernais, nem tão solitárias. O que sentiam, sem saber, em nada se assemelhava a uma dimensão sobrenatural cheia de labaredas e criaturas demoníacas, mas era algo muito mais simples, que poderia ser resumido em uma sigla: TPPA (Transtorno Perceptivo Persistente Induzido por Alucinógenos).

Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, o universitário Wallace estava passando por um momento emocional instável, como quase todo mundo. Ele sempre usou drogas ilícitas de forma recreativa e, para extravasar, decidiu ingerir cogumelos alucinógenos enquanto estava em quarentena em sua casa no Itaim Paulista, em São Paulo. Ele programou três “viagens”, dividindo os três gramas de cogumelos comprados na Internet igualmente para cada uma. Na primeira, tudo correu bem. Viu formas geométricas no espaço e cores exageradas e, quando se olhava no espelho, se transformava em uma pintura renascentista. Ficou extremamente sensível. Riu e chorou.

No dia seguinte, entretanto, Wallace notou algo estranho. Os cogumelos deixaram alguns vestígios em sua visão. Ele via pontinhos coloridos se mexendo, similares a uma estática de televisão antiga, e quando olhava para carros ou braços humanos percebia que se multiplicavam, como que deixando rastros de si mesmos. Resolveu não dar muita bola pra isso e seguiu com seus planos. Ingeriu os cogumelos mais duas vezes. Os efeitos, porém, pareciam ter mudado. Ele teve crises de pânico durante o uso da substância e ficou com medo de nunca mais sair da “brisa”. Achou que podia estar enlouquecendo. Nas semanas subsequentes, nada mais parecia fazer sentido. Ele via a parede de seu quarto se expandindo e retraindo, como um pulmão respirando. Objetos como toalhas ou páginas de um livro se movimentavam mesmo parados. Wallace começou a ter crises de ansiedade constantes e uma depressão aterradora. Passava dias sem sair da cama.

Dois anos depois, na cidade de Senador Canedo (GO), Geovanna passaria por algo semelhante. A jovem de 18 anos, que nunca teve contato com Wallace, vivenciou sua primeira experiência com uma droga psicodélica. A mãe da garota tinha morrido pouco menos de um ano antes e, abalada, Geovanna resolveu experimentar os cogumelos alucinógenos. Sendo sua primeira vez com a substância, ela ingeriu uma dose considerada muito baixa, ou seja, menos de uma grama do fungo. Os seus efeitos foram prazerosos. Ela não alucinou muito e ficou com o riso tão frouxo que chegou a irritar seu marido, que via televisão ao seu lado. No dia seguinte, os efeitos do cogumelo já deveriam ter acabado. Mesmo assim, ela ainda se sentia drogada. Estava com pensamentos fora do normal num fluxo incontrolável e sua sensibilidade também estava alterada: algo na sua visão parecia não estar certo.

Geovanna tentou viver por mais alguns dias sem se importar com o que acontecia, mas era impossível. Na mesma semana, quando foi dirigir uma moto na autoescola próxima de sua casa, viu o asfalto da rua se contorcer e criar movimentos de vórtex. Na saída do lugar, enxergou a tinta de uma parede respirando, como a do quarto de Wallace. Perguntou ao seu marido, que a esperava ali, se estava vendo aquilo. Não estava.

Angustiada, ela fez algo nada recomendado pelos médicos ao buscar no Google informações sobre seu estado. Logo encontrou no YouTube um vídeo de um jovem com cabelos encaracolados contando sobre sua condição médica. Era Wallace. Em 2021, ele, fazendo as mesmas procuras que Geovanna, acabou tropeçando em sites americanos que falavam de um transtorno raro causado pelo uso de drogas alucinógenas, como LSD, MDMA, Ayahuasca e muitas outras. Era o Hallucinogen Persisting Perception Disorder (HPPD), ou Transtorno Perceptivo Persistente Induzido por Alucinógenos (TPPA), em português.

Trata-se de uma síndrome muito rara em que a droga deixa algumas sequelas no cérebro do usuário. Os sintomas podem incluir alucinações de diversos graus, alterações na sensibilidade, depressão, ansiedade e pânico. Existem poucos estudos de caso e ainda não foi descoberta nenhuma cura ou tratamento evidente.

Ao se inteirar de tudo isso, Wallace correu para o Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, onde encontrou o Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas. Ninguém lá conhecia o TPPA, mas os médicos do local se interessaram em ter algo novo para estudar. Os residentes rapidamente pesquisaram a literatura disponível sobre o transtorno e receitaram-lhe sertralina, um antidepressivo. Wallace foi diagnosticado e ficou feliz em encontrar médicos que prometiam ajudá-lo. Ele resolveu publicar um vídeo no YouTube contando sua história para encontrar outras pessoas com o transtorno no Brasil e criar uma rede de apoio.

Foi assim que Geovanna conseguiu compreender o que estava deteriorando sua vida nos meses seguintes ao uso dos cogumelos. Ela se identificou com tudo que Wallace explicava no seu vídeo e como isso o afetava e, rapidamente, encontrou seu número de telefone para conversar com ele. Pelas mensagens, descobriu que algumas coisas tinham mudado na vida do paulistano desde a publicação no YouTube um ano antes. Ele havia tentado diversas medicações, mas nenhuma eficaz no combate aos seus sintomas. Após meses se consultando no HC, desistiu de qualquer tratamento. Mesmo assim, Wallace criou um grupo no WhatsApp com pessoas que sofrem de TPPA e acabaram procurando-o. Foi lá que Geovanna encontrou jovens de várias regiões do País relatando seus casos, os tratamentos que testaram e o que faziam para tentar viver com alguma normalidade.

A partir das mensagens, ela começou a sua peregrinação em busca de uma cura, ou pelo menos de algo que minimizasse o que sentia. Passou por um psiquiatra do SUS que não acreditou no transtorno e receitou um antipsicótico que piorou os sintomas. Em outra consulta, uma médica achou que ela tinha problemas por falta de sono e receitou Rivotril. Passou por mais outra profissional que finalmente acreditou no diagnóstico de TPPA e recomendou o uso de lamotrigina, uma droga antiepilética. Foi o remédio que finalmente diminuiu suas alucinações. Hoje, Geovanna toma seu medicamento pegando receitas com uma parente médica.

Conversando com sua psiquiatra Geovanna também descobriu que o uso de qualquer tipo de droga, mesmo que não seja psicodélica, como o álcool ou até tabaco, piora os sintomas do transtorno. Muitos do grupo de WhatsApp, por exemplo, pararam com absolutamente tudo. Outros, como Wallace, ainda usam substâncias como MDMA e arcam com pioras momentâneas ou permanentes de seus quadros. Hoje, Geovanna vive sem quase nenhuma sequela. Sua vida parece normal, e muitas vezes ela nem se lembra das angústias que a assombraram por tanto tempo.

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