Quem cuida tem rotina desafiadora

Entre a desvalorização de salários, falta de reconhecimento e jornadas exaustivas, os enfermeiros seguem firme
por
Annanda Deusdará
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12/06/2025

Por Annanda Deusdará

 

O interesse de Gislene Camargo pela profissão veio ainda na adolescência, durante um atendimento por causa de uma crise de bronquite. Aos 18 anos, começou o curso de auxiliar de enfermagem, pelo qual se apaixonou e depois cursou a faculdade de enfermagem. Durante a pandemia estava na linha de frente no hospital Oswaldo Cruz, onde permaneceu por três anos. Na época sua rotina era muito difícil, a necessidade do isolamento fez com que ela precisasse mandar sua filha morar com sua mãe - por medo de acabar passando a Covid-19 – ela viu vários colegas passarem por essa aflição e acabarem por perder seus familiares. Uma situação de saúde pública inédita. Os enfermeiros também não sabiam ao certo com o que estavam lidando, o paciente era internado em um dia e em no máximo cinco já estava morto. Após tudo que viram, eles não acreditavam que conseguiriam sair vivos daquela situação e uma rotina normal novamente era algo muito distante.

Mesmo após o fim da pandemia, as dificuldades se acumulam. A desvalorização não vem apenas no salário, mas na falta de reconhecimento diário que eles sofrem. Ela diz que sempre precisa lidar com o paciente em sua pior fase, raramente a situação inverte e ele se cura. Sua saúde mental é constantemente testada, tanto por lidar diariamente com a fragilidade da vida, quanto pela pressão exercida pela instituição. Ela conta que até a televisão que deixa de funcionar, ou a comida que não veio do jeito que o paciente queria eles querem que o enfermeiro resolva.

O hospital em que ela trabalhava ficava em frente às janelas de um prédio, eles eram aplaudidos pelos moradores, tinham cartazes pendurados agradecendo ao seu trabalho - eram tratados como heróis - porém após o término da pandemia tudo foi esquecido. Muitos de seus colegas ficaram com sequelas e precisaram se afastar, alguns até hoje não conseguiram retornar devido a questão psiquiátrica, acabaram perdendo muitos familiares e acreditam que a culpa foi deles. Apesar do cuidado ser realmente o trabalho deles, a relevância do que eles fazem voltou a ser invisível e agora a imagem deles é a de um faz tudo. Eles são aqueles que tem contato direto com os pacientes, fazem mais do que dar banho e trocar curativos, são também apoio psicológico para as pessoas, mesmo que essa não seja a função deles.

O equilíbrio entre a vida profissional e pessoal vai sendo aprendido com o tempo, porém não é fácil.  Os encontros com amigos e familiares são complicados, porque os dias em que todos estão disponíveis, muitas vezes é dia de plantão e burocracia para conseguir fazer uma troca é muito grande. Ela conta que é necessário se adaptar e entender que um feriado é seu mas o outro será de outro colega, ou você enlouquece porque dificilmente vai ter o dia que quer. Fazer atividades que exigem a presença em dias específicos é praticamente impossível, porque o seu trabalho é exercido através da escala 12x36 e os dias em quem precisa estar no hospital variam a cada semana. Esse ano, teve um projeto de lei com o objetivo de mudar a carga horária dos enfermeiros para 30h semanais – atualmente é operado pela escala 12×36- apesar de ser a favor da medida, Gislene acredita ser muito difícil de ser realizada. A razão, é que essa decisão mexeria com muitas instituições e não seria interessante financeiramente para as mesmas. Para poder ocorrer a mudança de escala, é necessário mexer em questões de contrato e salário.

Quando chega o fim do ano, alguns lugares dividem para que todos os funcionários consigam folgar ou no Natal ou no Ano Novo, entretanto nem sempre acontece dessa forma. A prioridade é dada para que já trabalhava no local antes desse período, já ocorreu dela precisar trabalhar nas duas datas pois era nova no hospital e seu poder de escolha foi postergado para o próximo ano. A questão salarial também é um desafio, é preciso escolher entre ter uma vida financeira mais confortável e qualidade de vida. Na cidade de São Paulo, o valor pode variar entre R$ 3.786 e R$5.908, com as despesas pessoais e as contas de casa, muitos precisam trabalhar em dois hospitais ao mesmo tempo. Para conseguir se manter em um emprego só, é necessário abrir mão de certas coisas, e viagens é uma delas, que não é possível fazer sem um bom planejamento.

Essa experiência desgastante já foi a realidade de Gislene há alguns anos. Foi um de seus melhores momentos financeiros trabalhando na área, pois a possibilitou viajar com sua filha, quando a mesma era pequena, e em certa ocasião também conseguiu fazer o mesmo com sua sobrinha. Em contrapartida, ela não via os dias passando, porque passava a maior parte do tempo fora de casa, e cada hospital que você entra são rotinas diferentes, são novos desafios e outras pessoas para lidar. Para manter aquela rotina, que a mesma considera insana, é preciso ter muito claro qual o seu objetivo com aquilo, não pode ser apenas dinheiro, caso contrário você perde qualidade de vida, uma boa noite de sono, horas de descanso em tempo com as pessoas que ama. Segundo ela, chega uma hora que seu próprio corpo começa a dar sinais que está sobrecarregado e se seguir por esse caminho é extremamente perigoso, 12h por dia é muito cansativo, suas pernas ficam fracas no fim do expediente sem contar o estresse e o cansaço psicológico e mental.

A escolha profissional de Nicolle Maciel, se deu ainda na infância devido a proximidade que tinha com a sua vó que também era enfermeira e adorava mostrar seus equipamentos, ela acompanhava de perto sua rotina a buscando no hospital mas essa foi só a primeira experiência que a vida lhe reservava. Aos 12 anos, ela descobriu uma doença autoimune que a fez ficar no hospital por um tempo, o que a aproximou ainda mais do dia a dia da enfermagem o que faz decidir pela faculdade de enfermagem. Entretanto, a certeza da profissão veio na época de seu estágio, quando voltava para casa um frentista a pediu socorro porque seu colega estava passando mal, o medo a invadiu e ela achou que não daria conta por se estagiária, entretanto acabou prestando os primeiros socorros e a partir daquele momento não restavam mais dúvidas, ela queria ser enfermeira para ajudar as pessoas. 

Um dos principais desafios na área é inicialmente conseguir emprego, entre se formar e começar a trabalhar há um abismo, após isso é lidar com as pessoas, apesar de ser algo que ela gosta a dificuldade é imensa, até porque eles não são apenas quem cuida fisicamente mas também do emocional dos seus pacientes. Também existe uma pressão, pois o que se aprende durante o curso é muito básico, é completamente diferente daquilo vivenciado dentro do hospital. A sua primeira experiência foi na área clínica e foi algo desafiador para ela, porém após um mês sua supervisora a indicou para ir para UTI adulta, o medo de não dar conta veio novamente devido a quantidade aparelhos e pacientes críticos, mas sua professora a tranquilizou, e atualmente ela não quer outra vida.

Apesar de amar a profissão, a desvalorização é uma realidade, tanto no campo financeiro, quanto no dia a dia no Hospital. No início da carreira, ela trabalhava em dois empregos, ela conta que não tinha vida, pois passava 24h trabalhando. Hoje, trabalhando apenas no Hospital, na escala 12x36, ela consegue equilibrar melhor sua vida profissional com a pessoal. Apesar de conseguir se manter, com algum conforto, ela confessa que isso só é possível porque mora com seu marido, que também é enfermeiro, para conseguir sustentar uma casa sozinha, ela acredita que precisaria de um segundo emprego.

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