Quando o abandono vira justificativa para a autopreservação

O impacto e a dor do abandono para mulheres durante o tratamento do câncer e outras doenças
por
Laís Carnelosso
|
21/05/2024

O reflexo da solidão
O reflexo da solidão

Maria é residente de Ribeirão,  divorciada e mãe de 3 filhos maiores de idade. Como todos, os filhos cresceram, saíram do ninho e foram para cidade São Paulo. Assim,  ela precisou tocar sua vida sozinha no interior. Aos 38 anos, ela conheceu Luiz, que se revelou um par perfeito. Atencioso e com os mesmo interesses, Maria achou interessante dividir sua rotina com alguém. Depois de anos vivendo sozinha, ela se arriscou e começou a namorar. Com dois anos de relacionamento, ela descobriu que estava com leucemia. Ele se colocou à disposição e foi presente no início do tratamento. Numa hora, ele ia às consultas, dava apoio em casa e demonstrava segurança, na outra, ele só avisou que estava indo embora para viver sua vida, meses depois.  Aos 40 anos, Maria sentiu a solidão do abandono. Com os filhos longe, a partida da única pessoa próxima, por quem desenvolveu amor, doeu mais que a doença. Mesmo nessa situação frágil, ela escolheu seguir em frente com o tratamento.

Não é confortável chegar sozinha às quimioterapias, explicar à família e aos enfermeiros que o outro, que demonstrava estar apaixonado, simplesmente quis se preocupar com o tempo gasto por ele mesmo. Mas foi isso que aconteceu e ela naquele momento só  queria se curar. Com o objetivo alcançado, ela reparou que ainda tinha sentimentos por Luiz e fez algo que muitas pessoas julgaram, mas não se arrepende.   Um ano depois de vencer a doença, ele descobriu que estava com o mesmo câncer que ela teve, a leucemia. Eles voltaram e ela cuidou dele. Infelizmente, Luiz não conseguiu se curar e Maria fez questão de estar lá até os seus últimos dias. 

Essa foi sua história de amor. Doeu e foi desconfortável, mas ela não faria diferente. Independente do modo que ele escolheu ver o tratamento dela, foi ensinada a não soltar a mão de quem ama. Para ela, o tempo sempre é curto e vale a pena amar. 

Abraço
Mulheres se apoiando durante o tratamento

 

O comportamento parece não distinguir classe social ou reconhecimento midiático. Com uma alta popularidade, a cantora Preta Gil movimentou os jornais após o diagnóstico de câncer de intestino, descoberto no início de 2023. A cantora explicou que percebeu que tinha algo errado com seu corpo após ter mudanças no funcionamento do intestino e picos de pressão alta. Ao embarcar no tratamento, ela estava com medo mas focada em se curar. Depois dos primeiros momentos no hospital, quando tudo começou a se acalmar, ela  se deparou com uma crise no casamento, que vinha de antes do diagnóstico. Casada desde 2015 com Rodrigo  Godoy, a artista lidou com atritos ainda na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).  Em TV aberta, a cantora narrou que Godoy chegou para ela e disse que iria em um pagode, porque queria se divertir. Internada, ela o questionou sobre a coerência da ação, mas ele não mudou de ideia. Sob os cuidados de uma amiga, Preta teve um pico de pressão alta, com medição maior que 20, e ali decidiu que não precisava mais daquilo. 

Por mais que ela tenha pedido a separação, não abre mão de frisar que foi abandonada. Desde o início, o ex-marido não a apoiou como deveria, além de negligenciar a maioria dos votos de seu casamento. Para completar sua caminhada, que já estava difícil, sites de fofocas postaram que seu ex-marido estava tendo um caso com sua estilista enquanto eram casados. Preta Gil se viu com um tratamento de quimioterapia, um divórcio, uma traição e uma cirurgia de histerectomia para digerir. 

Por conta desse caso, muitos veículos postaram uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), que mostra que 70% das mulheres com câncer de mama são abandonadas pelos seus parceiros durante o tratamento. Contudo, a SBM declara que é impossível expressar esses números e essa pesquisa nunca foi feita. O único estudo encontrado sobre o tema é de 2009. Feita pelas universidades de Stanford e Utah, ele aponta que mulheres têm seis vezes mais chances de serem abandonadas pelos companheiros após diagnóstico de doenças graves. Surpreende que ninguém mais queira explorar esse fenômeno. 

Annamaria Massahud Rodrigues dos Santos, mastologista e membro da diretoria da  SBM, diz que mesmo a instituição não tendo realizado pesquisas, é comum ter o relato de mulheres que iniciaram o processo de separação na consulta de retorno ou nos primeiros ciclos de tratamento de quimioterapia. A especialista não deixa de trazer à tona que muitos casamentos já estão desgastados antes do tratamento e não sobrevivem.

Taciana Mutão, oncologista do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, está dentro do dia dia de mulheres com câncer. Em sua vivência, ela já presenciou histórias como a da Maria (de mulheres que voltaram para cuidar dos companheiros), da Preta Gil ( maridos que já não se envolviam) e até de casamentos que passaram por crise no tratamento, mas se estabilizaram.  

Juliane Callegaro Borsa, doutora em Psicologia e terapeuta cognitivo-comportamental de mulheres, expressa que o abandono pode ocasionar muitos problemas já que impulsiona o medo e a solidão. Ela alerta que quando falamos de momentos em que a mulher precisa de apoio emocional, essas consequências se intensificam. Após o rompimento de laços, o futuro fica mais incerto e a sensação de solidão pode abalar a autoestima e a autoconfiança. A psicóloga aponta que dessa forma, os sintomas de depressão e ansiedade são acentuados a tal ponto que o próprio tratamento pode  ser negligenciado. 

A especialista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz fala que um divórcio pode levar até ao reajuste de medicamentos. Ela destaca que essas pacientes precisam receber muito mais atenção e, na maioria dos casos,  ter acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico. As mulheres oncológicas têm muitas incertezas e sua autoestima abaixa por conta das mudanças hormonais e  corporais; principalmente, se passaram por cirurgias como a mastectomia. Essas mudanças podem afetar a relação de um casal. Taciana reitera que o parceiro não consegue lidar com tudo isso na maioria das vezes.

A diretora da SBM recomenda que mulheres no processo de separação expressem seus medos e preocupações para que o tratamento seja mais eficaz. Além disso, a especialista articula sobre a importância da rede de apoio, já que somos seres sociais. Mesmo quando alguns pacientes preferem estar sozinhos no tratamento, eles precisam de acompanhantes em suas interações com as instituições de saúde e equipes multiprofissionais.

  • Impactos do abandono na juventude após doenças mentais 
Angústia
A angústia da perda

Era dia 12 janeiro deste ano quando ele a deixou por telefone, depois de 7 anos de relacionamento. Nos últimos 5 meses de relação, ele estava na Europa e prometeu que seria um passo para o futuro dos dois, mas não foi isso que aconteceu. Depois do diagnóstico de Transtorno Geral de Ansiedade, a relação foi ficando instável e ele decidiu sair de sua vida. Ela percebeu que tinha algo errado dois dias antes dele a deixar. Ao ter uma crise muito forte durante a madrugada, foi ao hospital. Com 130 bpm em repouso, tremedeira e dores pelo corpo foi liberada por não ser “nada mais” que ansiedade. 

Ao contar em áudio o que aconteceu para o companheiro, ele a ignorou propositalmente, como confirmado pelo mesmo no discurso de término. Seu argumento foi que não se sentia bem também. Esse relato é de Clarice, uma mulher de 22 anos, que ficou solteira enquanto estava afogada em seus pensamentos e sentimentos. O argumento da ex-metade para acabar a relação era que, por amor, ele fazia isso para que ela melhorasse, o que obviamente não ocorreu. Após o rompimento dos laços, ela não conseguiu mais sair de casa. Seu medo e pânico, gerados pela intensificação da ansiedade, pioraram. Um dos grandes fatores disso foi a baixa autoestima que desenvolveu.

Isolada e paralisada em casa por mais de 1 mês, ela saiu do quadro através de terapia, que realizava desde dezembro de 2023. Infelizmente, ainda fica em alerta por conta dos sintomas psicossomáticos, mas já consegue ficar em lugares fechados. Após três meses do término, ainda tem dificuldades para se relacionar e colocar em prática o exercício da conversa. Ao analisar o passado, ela percebe que o ex-namorado é e era seu grande gatilho. Ele a ignorava e criava situações de tensão, o que agravou ainda mais seu transtorno. Quando se depara com rispidez ou tratamentos do tipo, começa a ter crises na sequência. 

Ela descreve como foi doloroso a pessoa com quem passou 7 anos não escolher olhar nos seus olhos para fazer isso. Depois do término, ele nunca mandou mensagem para saber como ela estava, ela diz que é como se ele tivesse apagado todos esses anos da memória. A jovem compartilha que foi orientada na terapia que a perda de um companheiro é como um luto. Então, além de lidar com a doença, ganhou a dor de um luto. Sua inspiração para seguir em frente, foi o tamanho do caminho que ainda tem. Seu tratamento segue até hoje.

Para se levantar desse sentimento de abandono e rejeição, todas as especialistas, entrevistadas na matéria, recomendam a mesma coisa. Fortalecer outros laços, se expressar, procurar ajuda psicológica e investir em atividades que dão prazer, como o lazer e exercícios físicos. Independente de qual doença estamos falando, após o término de uma relação, há um agravamento do quadro. A  baixa autoestima, a intensificação do  medo e ansiedade são quase inseparáveis dessa situação. Assim, as mulheres precisam de atenção e cuidados específicos nesses momentos.

Sobre a incidência de transtornos mentais em mulheres, uma pesquisa do ThinkOlga, de 2023, revelou que as mulheres são mais afetadas por doenças mentais no Brasil. No ranking apresentado, a ansiedade lidera com 35% de incidência e a depressão fica em segundo lugar com 17%. Os motivos levantados são a rotina estressante, tristeza, baixa autoestima e insatisfação no trabalho. As estruturas de opressão social também estão na lista, de maneira geral, o machismo, o racismo e a exclusão econômica e social são os principais fatores. 

O abandono como autopreservação

Como aponta a psicóloga, Juliane Callegaro, homens não são ensinados a entrar em contato com suas próprias emoções na maioria das vezes. Lidar com uma parceira com uma doença grave, pode desencadear medo e ansiedade e , assim, eles optam por se afastar como autopreservação.

Ela diz que concorda com a afirmação de que a maioria dos homens conseguem amar apenas sob condição normal de temperatura e pressão. Ela explica que, em geral, eles não são educados para exercer cuidados e lidar com situações emocionalmente complexas. Também chama a atenção para um contexto social que demanda aos homens uma imagem de sucesso e felicidade,  que pode fazer com que eles se afastem de situações percebidas como negativas ou difíceis.

Para tentar entender essa prática, conversei com 18 homens sobre o assunto. De todas as respostas, não saiu nenhum “devemos abandonar mulheres doentes porque nossa vida é mais importante”, mas a maioria acredita que deve pensar em si em alguns momentos. 

Quando questionados sobre doenças psicológicas, quatro deles responderam que a situação muda. A maioria alegou que os cuidados precisam ser diferentes, mais complexos e que demandam mais atenção. Outra questão vista, é a diferença do tratamento que envolve menos incidência aos hospitais, na maioria das vezes. 

A questão da autopreservação é o ponto central da ação. Não educados para situações emocionalmente complexas e digerir suas próprias emoções, quando o ritmo do relacionamento muda, a opção mais viável  para esse homem é romper com a parceira e não tentar se adaptar.

Como uma forma de deixar as demandas dos cuidados mais aparentes e evitar a sobrecarga, a psicóloga deixou 3 dicas básicas. Durante os cuidados com o outro, Juliane aconselha buscar rede de apoio disponível, buscar Psicoterapia no manejo das dificuldades reais, subjetivas e relacionais que vem junto com o diagnóstico, com o tratamento e buscar atividades de lazer e/ou profissionais que tornem a rotina leve e efetivamente ajude transpor a insegurança causada pela doença.
 

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