Tarcísio de Freitas (Republicanos), eleito governador de São Paulo, não aborda políticas imigratórias em seu plano de governo, enquanto o Estado segue recebendo ondas de refugiados afegãos autorizadas por seu padrinho político, Jair Bolsonaro. A quantidade desses cidadãos acampados há meses no Aeroporto Internacional de Guarulhos escancara a falta de estrutura de acolhimento e ressalta a importância da participação de ONGs e da sociedade civil.
Bolsonaro assinou a portaria interministerial nº 24 em setembro de 2021, a qual concedia vistos temporários com fins humanitários para refugiados afegãos. Diante da crise instaurada no Afeganistão com o retorno do Talibã a Cabul, quase 3 mil afegãos entraram no Brasil entre janeiro e setembro de 2022, conforme revelam os dados publicados pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Como essa onda era esperada e, inclusive, incentivada pelo Brasil, a falta de preparo para a acolhida dessas pessoas é ainda mais evidente.
Reportagem entrou em contato com a assessoria do Tarcísio de Freitas, mas não obteve resposta.
A ausência de uma atuação mais efetiva do Estado, no que diz respeito ao acolhimento de refugiados, é notada pela Swany Zenobini, voluntária e líder do Coletivo Frente Afegão. De acordo com a ativista, os abrigos existentes não são adequados porque separam famílias, ao colocar cada membro em um quarto diferente.
“Em alguns casos, esses laços de relacionamento são as únicas conexões que restaram deles com seu país natal. O Brasil concedeu o visto humanitário ano passado, mas vem fazendo o serviço pela metade, porque não concedeu a moradia com dignidade”, comenta a ativista.
Depois de receber denúncias de que refugiados afegãos estavam vivendo em condições desumanas no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em 19 de agosto, Swany, foi checar a situação no local na mesma data e, desde então, os corredores e instalações com placas de embarque e desembarque tem feito parte da sua rotina diária.
Em algumas postagens em suas redes sociais mostram como esse grupo está abrigado. Em outras, pede doação de itens de saúde, higiene e comida. Com o Coletivo Frente Afegão, formado por quase 100 voluntários, ela arrecada os produtos e distribui entre os necessitados. “Também criamos uma vaquinha on-line para atender as necessidades dos afegãos no aeroporto, porque o Estado não tem atendido às demandas", conclui.
Em nota publicada no início de novembro, o Itamaraty informa que desde o início da política do governo federal no concedimento de vistos temporários com fins humanitários para refugiados afegãos, já foram autorizados 6.138 vistos a afegãs e afegãos, cujas vidas estavam em risco em seu país. Na maioria dos casos, sua vinda ao Brasil foi intermediada por organizações da sociedade civil que os recebem e promovem sua integração local.
Segundo o órgão, a Embaixada do Brasil em Teerã, capital do Irã, foi a que mais concedeu vistos quando comparada a toda a rede de postos consulares do Brasil, superando a produção de vistos de embaixadas e consulados brasileiros em países superpopulosos, como a Índia e a China.
Camila Baraldi, doutora em relações internacionais e ex-coordenadora de políticas para migrantes na prefeitura de São Paulo, explica que, devido à falta de políticas públicas para o acolhimento dessas pessoas, a sociedade civil se torna o principal elemento de suporte.
“O trabalho que essas organizações realizam realmente faz muita diferença na vida dos imigrantes, mas o que a gente precisa pensar é que a demanda é tão ampla que ela necessita de uma ação maior e coordenada do poder público. Muito importante essa atuação, mas isso precisa ser assumido pelo Estado”, aponta.
O Ministério de Relações Exteriores também afirma que estão sendo mantidas ações de coordenação com agências especializadas das Nações Unidas (como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR e a Organização Internacional para as Migrações – OIM), com vistas a buscar soluções para os casos de maior vulnerabilidade.
Entre as ações promovidas pelo ACNUR, estão o encaminhamento de refugiados para as oportunidades de acolhida e a garantia imediata da documentação, prevista pela legislação brasileira, afirma Maria Nogueira, Chefe do Escritório de São Paulo da agência. “Também trabalhamos pela matrícula dessas crianças na escola, ofertas de serviço de saúde, inclusão linguística, inclusão financeira e oportunidade de acesso ao mercado de trabalho”, pontua.
A nível municipal, a Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social em parceria com a Cáritas Diocesana de Guarulhos e com o apoio do ACNUR desenvolve um serviço de acolhimento que oferece moradia e suporte para migrantes estrangeiros. A “Residência Transitória para Migrantes e Refugiados” entrou em atividade em 10 de agosto deste ano a fim de receber 27 usuários em cômodos separados pelos gêneros masculino e feminino, além de um adjacente para mães solo com seus filhos.
Por conta da alta demanda, em outubro, mais 20 quartos foram construídos e a previsão é de que mais 100 sejam entregues nos próximos meses com auxílio de verba enviada pelo governo federal. No caso específico de ajuda imediata aos afegãos no aeroporto, a prefeitura de Guarulhos informou que oferece três refeições por dia, além de água e cobertores.
Brasil: atrativo imigratório
Para Arthur Murta Soares, doutor em relações internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), a política imigratória do Brasil é, no papel, uma das mais avançadas do mundo. “Tudo o que a ONU recomenda internacionalmente o Brasil transformou em lei”, explica.
De acordo com Murta, o país possui diversos arcabouços legais para garantir a vinda de imigrantes e, por isso, em momentos de crise, é um dos principais destinos para refugiados. Entretanto, apesar de ter boas políticas para atrair essa população, o Brasil não trabalha com uma estrutura de acolhida e integração.
Problemas como o que o Estado de São Paulo enfrenta com os afegãos são parte de um padrão. De acordo com Murta, “o mais interessante ou até mais triste de diagnosticar é que nesse caso o governo Tarcísio não seria uma inflexão no governo de São Paulo, ou seja, o estado não tem historicamente uma grande política para refugiados.”
“É muito preocupante que o atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, não tenha nenhuma política para refugiados ou mesmo a prefeitura de Guarulhos, que é quem tem que resolver esses problemas. No caso, o governo do estado seria quem articularia todas essas políticas da região metropolitana.”
Atuação do poder municipal
Baraldi explica que, como o Brasil não possui estruturas federais e nem São Paulo possui políticas estaduais, os problemas ficam a cargo dos locais em que os imigrantes chegam: os municípios. Nesse sentido, localidades como Guarulhos, com o Aeroporto Internacional, e São Paulo, com a promessa de mais oportunidades de emprego, são atrativas para essa população.
A especialista cita as leis aprovadas na política municipal da capital paulista como uma forma de dar atenção a imigração. "Foi um projeto construído de forma participativa, com organizações da sociedade civil, que atuam no tema, e com os próprios imigrantes", diz.
As políticas, especialmente para imigrantes internacionais e refugiados, precisam considerar, segundo Baraldi, a mudança cultural repentina que essa população vai enfrentar. “Temos a questão da língua, da escolaridade, da oportunidade de empregos e da falta dos laços sociais, por exemplo.”
A cidade de São Paulo tem mais de 360 mil estrangeiros, segundo número divulgado pela prefeitura em junho de 2021, contando apenas os imigrantes que entram legalmente no país.
Experiência imigrante
Elo Nunez, de 22 anos, saiu da Venezuela e veio ao Brasil com os irmãos por conta da crise enfrentada pelo país no ano de 2018. “Eu e minha família chegamos primeiro em Roraima, para fazer os papéis e entrar legalmente”, relata.
Com a falta de estrutura do Estado, a jovem dependeu do auxílio de instituições religiosas para se manter. "A igreja nos ajudou com o curso de português, porque eu não falava uma palavra do idioma quando cheguei", finaliza.
As propostas de Tarcísio de Freitas não consideram a presença de refugiados, de modo que não existem planos para criações de novas políticas. Entretanto, as medidas de auxílio em vigor não são suficientes, além de serem desconhecidas, diversas vezes, pelos imigrantes.
"A gente pode citar um exemplo das aulas de português para os imigrantes, que é uma política que tem que ser criada especificamente para essa população ou os meus centros de acolhida", comenta Camila Baraldi, consultora na área de migrações.
Baraldi também avalia que os projetos de permanência são uma forma contínua de orientá-los como sujeitos de direitos. “A chegada dos venezuelanos, por exemplo, não veio acompanhada por políticas públicas permanentes de direitos para esses imigrantes, em órgãos responsáveis pelo tema, uma coordenação enfática do tema", diz.
Quando questionada, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) diz que no Centro de Referência e Atendimento a Imigrantes (CRAI) as pessoas são orientadas a emitir seus documentos, tanto os nacionais (como CPF) quanto os migratórios.
Nunez declara não ter recebido apoio direto do Estado. "Eu não tenho nenhum conhecimento dessas políticas públicas, sendo sincera, não sei quais são meus direitos e ninguém nunca me avisou", acrescenta dizendo que não vê divulgação dessas informações. "Poderia ter mais lugares de acolhimento, tem muita gente chegando ainda. Não ficamos sabendo de instituições que fizessem doações de calçados, roupa, itens de higiene, coisas assim", conclui.
De acordo com a Secretária Municipal, para receber auxílio do poder público, os imigrantes precisam portar o Protocolo de Solicitação de Refúgio, documento provisório recebido pelas pessoas em situação de refúgio.
Em nota, a coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), Thais La Rosa, chamou atenção para as condições precárias de refúgio e trabalho dos refugiados, afirmando que a oportunidade que se apresenta hoje, de se trazer demandas urgentes das populações imigrantes, das quais trabalhamos é valiosa. “A pandemia intensificou a crise que já estava instalada no Brasil. A fome, o desemprego e a ausência de renda surgem como as maiores consequências da pandemia aos trabalhadores migrantes.”
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que o Departamento de Migrações (DEMIG) da pasta atua em questões relacionadas à regularização migratória de migrantes e refugiados. O Governo Federal coordena, desde fevereiro de 2018, uma ação humanitária de assistência emergencial para atender refugiados e migrantes venezuelanos: a Operação Acolhida. Em novembro, essa força-tarefa ultrapassou a marca de 84.460 venezuelanos interiorizados em 887 municípios brasileiros, sendo 18.206 somente este ano. A região Sul foi a que mais acolheu refugiados: Santa Catarina - 16.140; Paraná - 14.640; Rio Grande do Sul - 12.805.