O relógio marcava 6h50 da manhã. Maria apenas conferiu seu celular, despretensiosamente, à espera do ônibus que a leva todos os dias ao apartamento em que trabalha. Quem usa transporte público para se locomover pela cidade, para ir ao seu trabalho ou estudo religiosamente no mesmo horário, já conhece os habitués do ponto ou da estação próxima de casa. É um fator reconfortante que acaba acontecendo sem querer, mas que cria fortes vínculos com pessoas inesperadas, a ponto de se dizer: “Nossa! Faz dois dias que não aparece a velhinha de meias coloridas”.
Foi o que aconteceu, em maior nível, às três comadres, muito conversadeiras, que compartilham o sagrado ponto de ônibus entre os cemitérios do Araçá e do Santíssimo Sacramento. Todas trabalham como empregadas domésticas no bairro de Perdizes e pegam o Barra Funda, o Brasilândia e o Santana, que são os únicos que percorrem a rua Cardoso de Almeida em sua totalidade. Eles são, em resumo, as bandeiras que abrem caminho aos os estudantes e trabalhadores que, humildemente, lutam contra um bairro cheio de morros, tortuoso para qualquer pedestre, e ainda por cima sem acesso ao metrô ou trem.
Uma das três senhoras, indignada, confessava para suas amigas a dor de perder a sua filha de 11 anos. Ela morreu de alguma doença complexa, dessas que com o nome mencionado já observamos a cara de medo ou derrota de quem a ouve. Mas a história logo deixou a falecida em seu descanso, e descambou na filha da patroa para quem a mulher trabalhava como empregada doméstica.
Após o falecimento da criança, a senhora, já atolada por dívidas hospitalares, recebeu ajuda de sua chefe para cobrir as despesas do enterro. Ela pagou a decoração, as flores e um caixão. Foi uma espécie de respeito prestado à mãe e à falecida. Um ato de compadecimento. Meses se passaram e, um dia, a filha da patroa encontrou uma calça sua manchada. Chamou a empregada, que prontamente a atendeu. Com raiva, apenas apontou a peça de roupa e perguntou o que era aquilo. A senhora respondeu que não era nada de mais, mas a jovem apontou a subalterna de sua mãe como a culpada, exigindo que ela pagasse uma calça nova. A marca era de grife, e a roupa custaria mais de 500 reais. Uma mulher de classe média-alta, formada em uma universidade particular de renome, ao encontrar uma calça minimamente manchada, exigiu uma nova de alguém que recebe um salário mínimo por mês sem nenhuma prova de que tenha realmente sido ela que fez isso.
Eram já 7h00min, o ônibus estava para passar. As duas amigas, também empregadas domésticas, sabiam que a história não teria um final trágico. A senhora, em seus quase 60 anos, falava da sua patroa no presente. Ela ainda trabalhava para ela. Isso tudo, entretanto, ainda não passava de uma suposição. O ponto inteiro ouvindo um drama que se apresentava desnudo, atrapalhando a fria calma da manhã. Quando a senhora estava prestes a continuar sua história, os futuros passageiros avistaram um ônibus que se aproximava. Enquanto ele chegava, perceberam que estava lotado.
A fila foi se formando na porta do ônibus e as três senhoras rapidamente se moveram para entrar nela. Conseguiram entrar no ônibus e retomaram a conversa sobre a insistência da garota no pagamento da calça. A empregada doméstica, atordoada, não soube o que responder. Disse apenas que não havia manchado forma alguma e contou que a filha da patroa começara a gritar exigindo o pagamento da calça. A empregada ficou assustada, mas recobrou a segurança e repetiu sua defesa. Disse que a jovem interpretou isso como desaforo. Para abalar a empregada, disse que a mãe dela pagou o caixão da sua filha e que Maria vivia roubando o dinheiro da família. Não há nada mais covarde que suscitar uma filha morta à uma mãe em estado de fragilidade.
A empregada, atordoada, respondeu que mesmo não sendo culpada, pagaria a roupa centavo a centavo, mas nunca voltaria à essa casa em que trabalhava. Não conseguia olhar a jovem nos olhos, e queria chorar.
Maria relembra que com o bate boca, a mãe da denunciante e patroa da acusada chegou ao quarto em que ambas brigavam. Ouviu a queixa e a argumentação de defesa. A mãe ficou furiosa com a filha. Disse que pagou o caixão por respeito, por sentir a dor de igual para igual, de Mãe para Mãe. A jovem ficou mais indignada ainda mais por ser desrespeitada frente a uma empregada.Um ultraje. Mesmo assim, a sua mãe foi irredutível. Pediu desculpas e que continuasse no trabalho.
O ponto de descida de Maria se aproximava. As três senhoras desceram e cada uma foi em direção ao apartamento em que trabalhava.