PLANO DIRETOR REFORÇA CONCENTRAÇÃO IMOBILIÁRIA EM SÃO PAULO, DIZEM ESPECIALISTAS

Críticas ao texto surgem por causa de regras ambíguas e indefinidas
por
Henrique Alexandre e Hadass Leventhal
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30/08/2023

 

Depois de meses de debates, mais de 50 audiências públicas realizadas e a participação de mais de 2,5 mil pessoas nas discussões, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo foi sancionado pelo prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB), no último dia 10 de julho. O documento, que já havia sido aprovado na Câmara Municipal no final de junho e teve uma longa negociação política entre vereadores, agora passa por uma fase crucial: a de implementação. 

Os principais objetivos do PDE, entre outras coisas, são as diretrizes do transporte público na cidade e também legislar sobre a construção de imóveis. A primeira versão da regulamentação do território da cidade veio em 1971, mas não vingou. Houve outra tentativa frustrada em 1988 pelo então prefeito Jânio Quadros, mas os resquícios da ditadura militar atrapalharam suas iniciativas.

 

Os primórdios do Plano Diretor que conhecemos foram institucionalizados em 2002 por Marta Suplicy após a Constituição introduzir a obrigatoriedade do planejamento urbano democrático, ou seja, com a participação da população. Em 2014, foi revisado sob o mandato de Fernando Haddad.

Quase dez anos depois, o novo Plano Diretor aumentou em 100 metros o raio para a construção de prédios em torno das estações de trem e metrô. Agora, os edifícios podem ser construídos a até 700 metros de distância desses ambientes. Isso vale também para os pontos de ônibus, que ganharam mais 100 metros no raio de, até então, 300 metros.

Arte sobre foto por Alexandre Batibuglli/Veja SP 

Raquel Schenkman, presidente do departamento de São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil, alerta para a discrepância entre a teoria e a prática da legislação. “A Lei do Plano Diretor tem uma primeira parte que são só conceitos, princípios e diretrizes. Isso está lindo: diz que precisa preservar o patrimônio histórico, a memória, a cultura, os rios, o ambiente, a vegetação. Mas é uma lei genérica de diretrizes muito amplas. O Plano não conseguiu chegar perto do território e de quem vive nos bairros da cidade”, explica.

Segundo a especialista, o resultado deste afastamento é uma paisagem pasteurizada e também imprevisível. “O Plano Diretor é uma lei que rege toda a dinâmica da cidade, incluindo áreas de preservação ambiental e histórica, incentivos ao mercado imobiliário e mobilidade urbana. Ele entende que São Paulo, por ser uma cidade tão grande, tem uma malha metroviária que precisa crescer. Assim, ele incentiva que a densidade populacional seja maior perto das construções de transporte. Você imagina que a qualidade de vida e acesso vai ser melhor”. Entretanto, não é isso que acontece.

Um dos fatores regentes do Plano é o Coeficiente de Aproveitamento (CA) do solo, proporção que determina a relação entre o tamanho do terreno e a quantidade de metros quadrados que podem ser construídos. No caso da capital paulista, essa relação é de 1:1. Ou seja, um terreno de 320m² poderá ter, por exemplo, quatro andares de 80m². Entretanto, existem alguns incentivos ao mercado imobiliário que burlam essas regras. As construtoras que levantarem além do permitido podem pagar uma outorga de forma a alterar o CA de um terreno para 4. Conforme a legislação, edifícios com fachadas ativas, garagens menores e metragens de interesse social também são recompensadas. Este costuma ser o caso das áreas em torno dos eixos de mobilidade urbana. 

Schenkman adverte que a revisão do Plano abriu espaço para uma interpretação ampla dos benefícios, produzindo prédios mais altos que o previsto. “A legislação cria artifício para conseguir descontos no Coeficiente de Aproveitamento e nas outorgas. No fundo, esses prédios que teriam CA de 4 sem o desconto possuem uma área construída que chega a quase 12. O plano dá mais descontos, flexibilizando ainda mais para o setor da produção imobiliária”.

Não são todas as áreas da cidade de São Paulo que passam por essa distorção. O mercado prioriza regiões já estabelecidas e valorizadas, concentrando os empreendimentos em locais com comércio e infraestrutura e alienando progressivamente as periferias. Consequentemente, bairros como Pinheiros, Moema, Tatuapé e Itaim estão cada vez mais parecidos, enquanto os modelos de produção imobiliária não necessariamente se encaixam nas demandas dos moradores locais. Por conta da falta de diálogo com o cotidiano, muitas pessoas acabam se mudando para outras regiões. 

Além disso, a arquiteta aponta para uma falta de controle nas transações de propriedades. Uma construção pode ser aprovada com uma metragem quadrada pequena, como se fosse moradia popular ou de interesse social,  e é comprada por uma família de alta renda, ou utilizada como apartamento de investimento e locação.

Segundo dados do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação ou Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais de São Paulo, SECOVI-SP, o número de empreendimentos verticais lançados na cidade de São Paulo entre 2016 e 2022 cresceu mais de 290%.  Já o número de empreendimentos vendidos não ficou muito pra trás. Ainda segundo a SECOVI-SP, o número de apartamentos vendidos entre 2016 e 2022 cresceu mais de 328%. Confira: 

 

  • UNIDADES LANÇADAS NA CAPITAL PAULISTA (EMPREENDIMENTOS VERTICAIS)

Fonte: Secovi-SP

 

  • 2016: 19.359

  • 2017: 31.379

  • 2018: 37.124

  • 2019: 65.312

  • 2020: 59.978

  • 2021: 81.841

  • 2022: 75.692

Nos últimos seis anos, o número de lançamentos na capital paulista cresceu 290% (ou 3,9 vezes).

 

  • UNIDADES VENDIDAS NA CAPITAL PAULISTA (EMPREENDIMENTOS VERTICAIS)

Fonte: Secovi-SP

 

  • 2016: 16.170

  • 2017: 23.629

  • 2018: 29.929

  • 2019: 49.224

  • 2020: 51.417

  • 2021: 66.092

  • 2022: 69.340

  • 2023: 21.736 (jan. a abr)

Nos últimos seis anos, o número de vendas na capital paulista cresceu 328% (ou 4,28 vezes).

Na análise da acadêmica, o Plano Diretor não democratiza a cidade como imaginava. A produção imobiliária é concentrada, e a possibilidade de venda é mais interessante que a distribuição da população ao longo dos eixos. Para ela, o ideal seria que a Lei de Zoneamento fiscalizasse a paisagem urbana a nível local, mas ela também foi impactada pela revisão. 

“A legislação está sendo apresentada pela prefeitura sem um mapa, porque ele vai ser elaborado pela Câmara Municipal. Os vereadores são pessoas eleitas pela população, mas não são especialistas”, elabora Schenkman. “A prefeitura, que é o poder executivo, deveria ter um quadro técnico capaz de fazer estudos e projeções. Era para todos terem acesso ao sol e à ventilação. Isso está sendo deixado de lado por uma lei teórica e genérica. O mais aflitivo é não conseguir antever a forma da cidade”.

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