A repercussão do veredito em favor de Johnny Depp contra a ex-esposa, Amber Heard, no processo de difamação que passou por um longo julgamento em Los Angeles, ativou o tribunal da internet. O assunto explodiu nas redes em 500% no Brasil. “O bem venceu” ficou nos trend in topics do Twitter com os usuários comemorando a vitória de Depp. Um pequeno grupo, 3%, falava sobre como Amber teria gerado uma maior fragilização no movimento ‘Me Too’, como ficou conhecida a luta feminina contra assédio e agressão sexual, por ter mentido, como acreditava a maioria.
De qualquer, forma, o Capitão Jack Sparrow estava de volta. E sendo inocente ou não, a carreira e a vida de Amber Heard ficarão marcadas como as de uma mentirosa, ardilosa, interesseira e qualquer outro adjetivo que a posicione de forma destruída.
A dez mil quilômetros da corte que emitiu a sentença vive Nancy. O nome fictício protege uma menina de dezesseis anos que está no terceiro ano do ensino médio de uma escola pública da perifera de São Paulo. Ela tem em “Piratas do Caribe” sua saga de filmes predileta. Mas na história da vida real que ela enfrenta, há um Johnny Depp que não pode ser acusado. Nancy convive diariamente com alguém do lado, que todos à sua volta enxergam como um bom instrutor na vida dela.
Aos 15 anos, a magia do navio Pérola Negra, das criaturas marinhas e dos tesouros em baús foi quebrada quando o próprio professor de inglês de sua escola cometeu assédio sexual contra ela e as colegas. O mundo por trás das mágicas aventuras de um pirata se quebrou. Existe um Johnny Depp por trás de um Jack Sparrow, e ainda que esse não seja culpado, o professor era; é.
Para a psicóloga e pós-graduada em sexualidade humana, Fernanda Romero, educação sexual é um caminho para evitar e proteger essas alunas vítimas de assédio no ambiente escolar: “Quando falamos sobre educação sexual nas escolas, ensinamos sobre mudanças do corpo, consentimento - o que pode e não pode - e quando aprendemos isso, evitamos muitas situações, principalmente de assédio”.
A psicóloga relata sobre a falta de educação nesses ambientes de ensino: “As instituições são bem carentes quando falamos de educação sexual. Poucas escolas oferecem, e quando oferecem, é muito básico, às vezes é até um professor que não tem especialidade em sexualidade para falar sobre”.
Cora tem 14 anos, e sonha um sonho que o pai não pôde realizar: o de ser delegada. Na sua história, ela era muito nova quando o ambiente escolar perdeu a segurança de um “segundo lar”. Ela estava no sexto ano de uma escola particular, por volta dos 11 anos, organizando a feira cultural, quando um menino mais velho ficou “passando a mão” nela. Na ida à diretoria para contar o fato, a mandaram “esquecer”. “Não foi nada.” Mas ela nunca esqueceu.
Anos mais tarde, ainda na escola, foi a vez do professor assediá-la, olhando e falando do corpo da adolescente. E ele ainda está lá. As alunas o conhecem, e sabem como ele é. Ele é parente da diretora da escola, e ainda que cressem que falar resolveria, a hierarquia as devolve a um lugar sem fala.
Nancy e as amigas começaram a descobrir, conversando, que o que o professor fazia não era só com elas. “Eu comecei a perguntar para as minhas amigas se ele fazia isso com elas também, e elas falaram que também achavam esquisito. Procuramos outras meninas que tinham passado por isso e eram muitas, inclusive.”
Reunidas, elas contaram à diretora o fato. Não podiam fazer nada sem provas, foi o que disseram. Mas se precisavam de provas, Nancy, fã das aventuras de um pirata que vai até o fim do mundo procurando tesouros, e as amigas, conseguiriam o que lhes foi cobrado.
Na falta de alguém que deveria ter investigado, as garotas reuniram relatos de outras meninas do Ensino Médio. Era um caminho para quem sabe, fazer a diretora enxergar o mapa melhor. Ao que parecia, incorporando Nancy Drew, a adolescente detetive da série de livros adaptada para a televisão, Nancy e as colegas teriam resolvido o crime. O professor “sumiu” da escola.
Teria sido mesmo um grande clássico em que Nancy Drew teria conseguido vencer. Mas na vida real, Nancy e as amigas se surpreenderam quando um mês depois o professor estava de volta aos corredores da escola, dando aula para elas. O que lhes foi dito é que ele levara uma suspensão e não poderia ser demitido, porque era concursado.
“Nos dias atuais ele não aparece já faz um mês. Mas não faz muita diferença, ninguém ligou muito. Na minha opinião até ficou melhor”, afirma Nancy com as recentes faltas sem motivos do professor.
Fernanda comenta sobre as meninas que passam por situações parecidas com as de Nancy e Cora: “Essa garota vai criar uma aversão a instituição e vai generalizar isso, até deixar de frequentar a escola. Além de todo o dano psicológico que vai causar nela. Onde deveria ser um ambiente de acolhimento, é onde ela é invadida, justamente por não ter essa educação dentro do ambiente escolar”.
Os dados no Brasil são ralos e desatualizados, mas em 2017 uma pesquisa da Microcamp, escola de inglês e informática, revelou que 46,4% dos jovens já sofreram assédio sexual na escola.
Diante da resistência de muitos à educação sexual nas escolas, a sexóloga frisa a importância desse conteúdo e que ainda há "um longo caminho a percorrer para quem estuda e trabalha na instituição”. Ela também ressalta que o acolhimento é fundamental para ajudar as vítimas da melhor forma possível: "ela já se sente completamente vulnerável, então fazer com que ela fique minimamente confortável com a situação. Não pressionar, mas fazer entendê-la que denunciar é importante. Quanto mais vozes tiverem, melhor. Mas o papel principal é o de acolhimento”.
Cora e Nancy são personagens de uma evidência para além de uma ficção. Existe um mar a ser navegado na discussão, proteção dessas adolescentes e punição das personas que escondem diante de toda uma sociedade um segundo personagem.
*Os nomes das vítimas foram propositalmente trocados nesta reportagem.