Panorama do futebol feminino está se transformando

Modalidade ganha mais espaço na sociedade, mas desafios persistem pelo caminho
por
Vinicius Villas Boas, Ivan Marino.
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29/09/2023

 

O futebol feminino, cenário de talento e resiliência ao longo da história, enfrenta uma série de desafios que, nos últimos anos, têm testemunhado transformações significativas. Em um contexto onde as vitórias no campo se entrelaçam com batalhas fora dele, a modalidade busca solidificar sua presença e nivelar as condições para as atletas. 

Nesta matéria, investigaremos diversos aspectos que compõem o universo da modalidade, abordando desde questões de desigualdade até o crescimento nas plataformas de mídia digital.

Desigualdade de Gênero

(Imagem/Divulgação)

Apesar dos avanços nos últimos anos, a desigualdade de gênero ainda persiste como um obstáculo a ser superado. As disparidades salariais entre homens e mulheres no esporte, evidenciadas por uma análise recente da CNN, destacam que as jogadoras ganham, em média, apenas 25 centavos para cada dólar recebido pelos homens na Copa do Mundo. 

O debate é fortemente ressaltado por algumas atletas da Seleção Feminina dos Estados Unidos, como por exemplo para Megan Rapinoe, eleita melhor jogadora do mundo pela FIFA em 2019, que além de ter deixado seu legado em campo, conseguiu sobressair as quatro linhas e lutar pelos direitos igualitários das mulheres nesse esporte.

A luta da atacante estadunidense começou em 2016, quando ela e outras jogadoras de sua seleção apresentaram uma reclamação à Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego, alegando discriminação de gênero na questão dos salários. Três anos se passaram e entraram com uma ação contra a Federação do Futebol dos Estados Unidos, sob a Lei de Direitos Civis e a Lei de Igualdade Salarial. As jogadoras argumentaram que estavam sendo remuneradas de forma inferior em comparação aos colegas masculinos, apesar de gerarem mais receita para a Federação.

Em tese, entre 2016 a 2018, as partidas da Seleção Feminina dos Estados Unidos acumularam cerca de R$247 milhões, superando a seleção masculina que teria arrecadado R$243 milhões. Nesse contexto, os jogos de futebol feminino resultaram em um excedente de R$5 milhões a mais em receitas, comparado às partidas masculinas durante o mesmo período.

Contudo, somente em 2022, após seis anos de luta, um juiz federal na Califórnia deu aprovação preliminar a um acordo de liquidação de R$116 milhões entre a Seleção Nacional Feminina de Futebol e a Federação masculina, ajudando a resolver um impasse na questão da igualdade salarial.

Agora, o órgão dirigente do futebol dos Estados Unidos está comprometido com a igualdade de remuneração para ambas as modalidades. O acordo inclui R$112 milhões a serem divididos igualmente entre as trinta jogadoras, com outros R$10,2 milhões reservados em um fundo para metas e instituições pós-carreira.

Comparado a outras modalidades, o futebol está ultrapassado em termos de igualdade. O surfe, por exemplo, destaca-se como um modelo de progresso. A Liga responsável pelo campeonato mundial, a World Surf League, tomou a iniciativa de implementar premiações igualitárias, reconhecendo os feitos tanto dos surfistas masculinos quanto das surfistas femininas. Essa abordagem progressista não apenas representa um marco na história do surfe, mas também aponta para o potencial de mudanças positivas em outras modalidades esportivas.

"Na WSL, acreditamos firmemente na promoção da igualdade e na valorização do talento, independentemente do gênero. Alcançamos um marco significativo ao implementar a igualdade salarial entre as categorias masculina e feminina. Essa medida não apenas reflete nosso compromisso com a equidade, mas também impulsiona o desenvolvimento sustentável do esporte. Ao reconhecer e recompensar o esforço e a habilidade das atletas femininas da mesma forma que fazemos com os atletas masculinos, estamos construindo um futuro mais inclusivo e inspirador", destaca Regys, diretor de comunicação da empresa.

Assédio 

(Foto: Divulgação)

Outro ponto crítico é o assédio, que ocorre desde as categorias de base, até o futebol profissional. Recentemente, o caso envolvendo o ex-presidente da Federação Espanhola, Luis Rubiales, acusado por beijar a força a jogadora Jenni Hermoso, destacou a necessidade de abordar não apenas questões de igualdade salarial, mas também de respeito e integridade no esporte.

Infelizmente atitudes similares a essa são muito recorrentes no meio do futebol feminino, muito disso por conta de uma sociedade machista já inserida em grande parte do mundo.

Por se tratar de um evento de escala mundial como é a Copa do Mundo, o caso de Luis Rubiales teve imensa repercussão, o que causou a exoneração do dirigente. No entanto, o assédio se encontra presente em diversas ocasiões, e, em muitas delas, não são nem reportadas.

Em suma, os casos podem terminar com a vítima arrasada e com possíveis traumas para o resto da vida, enquanto o agressor pode sair impune ou com uma leve penalidade. 

"Eu jogava muito bem futebol, até hoje amo e acompanho de perto, mas quando era pequena precisava jogar na minha cidade com os meninos, era a única forma de tentar seguir o meu sonho. Daí descobri que essa realidade era muito mais sombria do que eu poderia imaginar. O treinador, em quem deveríamos confiar para nos orientar e desenvolver, tornou-se uma fonte de assédio constante. Ele sempre encostava em mim, minando minha confiança e paixão pelo esporte. O assédio contínuo me deixou marcas profundas, levando-me a um estado depressivo. Foi um preço alto demais para pagar pela busca do meu sonho no futebol”, relata Isis Belchior, graduanda de educação física.

Assim como Ísis, muitas atletas enfrentam situações semelhantes, tanto nas categorias de base quanto no cenário profissional.O medo de represálias, o estigma associado ao assédio e a falta de estruturas de apoio muitas vezes contribuem para que essas histórias permaneçam ocultas por um longo período. O silêncio, no entanto, não significa ausência de impacto, pois as cicatrizes emocionais podem perdurar por toda a vida das jogadoras, afetando não apenas seu desempenho esportivo, mas também sua saúde mental e bem-estar.

Crescimento nas Redes Sociais e Aumento na Audiência

 

(Reprodução/Cazé TV)

Apesar desses desafios, ainda observa-se um crescimento notável nas redes sociais e um aumento significativo na audiência. A Copa do Mundo Feminina de 2023, sediada na Austrália e Nova Zelândia, foi um marco nesse sentido.

As redes sociais desempenharam um papel crucial, elevando perfis de jogadoras e ampliando o alcance do esporte. Nomes como Sam Kerr, Megan Rapinoe e Alex Morgan se tornaram não apenas atletas, mas ícones influentes fora do campo. Ao alcançar milhões de fãs, o engajamento online contribuiu para a conscientização e a promoção da igualdade de gênero no esporte.

Recentemente, uma pesquisa conduzida pela consultoria Sponsorlink, do Ibope Repucom, revelou um notável aumento no interesse pelo futebol feminino no Brasil. Os dados coletados apontam para um crescimento expressivo de 34% desde 2018, abrangendo um público diversificado, composto tanto por homens quanto por mulheres.

No segmento masculino, observou-se um considerável aumento de 43%, passando de 35.40 milhões de interessados em 2018 para expressivos 50.70 milhões na atualidade. Da mesma forma, entre as mulheres, o crescimento foi significativo, alcançando 26% no mesmo período. 

A Copa do Mundo Feminina de 2023 não apenas quebrou recordes de audiência em transmissões televisivas, mas também se destacou de forma extraordinária no cenário digital, especialmente no YouTube. O canal CazéTV, administrado pelo streamer Casimiro Miguel e que conta com uma base de 9 milhões de inscritos, acumulou mais de 69 milhões de visualizações ao transmitir ao vivo e gratuitamente todos os 64 jogos do torneio. 

Durante a estreia da seleção brasileira, um marco impressionante foi atingido, com mais de 5 milhões de dispositivos conectados durante a vitória por 4 a 0 sobre o Panamá. Esse evento registrou 1 milhão de visualizações simultâneas, estabelecendo um novo recorde mundial de maior audiência para o futebol feminino na plataforma digital. 

Esse fenômeno sublinha não apenas a ascensão do futebol feminino, mas também seu poder de cativar audiências em diversas plataformas, demonstrando uma mudança significativa nos padrões de consumo esportivo. Essa ascensão, reflete não apenas um aumento quantitativo, mas também um sinal claro de que o futebol feminino está conquistando um espaço cada vez mais expressivo e diversificado na sociedade brasileira.

"O futebol feminino já é uma realidade. O esporte está em constante evolução, e as críticas à qualidade do jogo surgem pois os telespectadores estão, de fato, acompanhando as competições. Gradualmente, as marcas também percebem a grandeza da modalidade como um todo. Assim, as alocações financeiras destinadas só tendem a aumentar nos próximos anos", afirma Mateus Capodeferro, especialista em marketing.

Esse constante crescimento dos patrocínios de grandes marcas destinados a equipes do futebol feminino e entidades esportivas ressalta de forma inequívoca que a modalidade firmou-se também como uma realidade no Brasil. 

 

Um Novo Capítulo para o Futebol Feminino

(Foto: Philip Fong/AFP)

 

Durante muito tempo, a carência de estrutura no futebol feminino impactou até mesmo os aspectos mais básicos da preparação profissional, como a ausência de categorias de base e programas de estímulo à prática esportiva.

Contudo, à medida que o tempo avança, as modalidades esportivas femininas conquistam seus devidos lugares, adquirindo as infraestruturas essenciais para seu desenvolvimento. Projetos exemplares, como o "Em Busca de uma Estrela" e o "Ska Brasil", representam uma garantia de que as futuras jogadoras recebem o suporte necessário para prosperar no cenário esportivo nacional.

Os investimentos destinados ao futebol feminino brasileiro, embora ainda distantes dos valores destinados ao masculino, ganharam destaque este ano com a iminente participação da seleção brasileira na Copa do Mundo de Futebol Feminino. Uma estrutura inédita foi meticulosamente planejada para a preparação das jogadoras nesta edição, marcada por uma delegação recorde, voo fretado e a implementação de um núcleo dedicado à saúde e performance.

Além disso, a recente decisão da FIFA de destinar uma parte significativa do prêmio em dinheiro da Copa do Mundo Feminina diretamente para as jogadoras representa um avanço. Contudo, a capitã da Nova Zelândia, Ali Riley, ressalta que isso é apenas um passo, mas não a linha de chegada. 

Mais do que uma competição esportiva, a atual missão transcende o campo de jogo, buscando enfatizar a equidade de gênero e promover o empoderamento feminino através do futebol. Guiados por valores sólidos, os idealizadores e apoiadores do projeto atuam como mediadores, ocupando a posição estratégica de meio de campo entre as jogadoras e os times profissionais. Este é um esforço conjunto para criar um ambiente mais justo e inclusivo no cenário esportivo.

O esporte não é apenas um campo de batalha por vitórias, mas uma arena para transformações sociais. A jornada rumo à igualdade no futebol feminino continua, e cada partida jogada e cada palavra falada moldam o futuro, inspirando gerações e deixando um legado duradouro para as mulheres no esporte.

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