Panorama do caos: da festa olímpica ao futebol feminino brasileiro

Como a pandemia tem afetado o mundo esportivo em meio a importantes competições
por
Daniela Oliveira, Eduardo Moura, Filipe Saochuk, Geovanna Hora, Thiago Pereira
|
26/04/2021

É fato consumado que a pandemia de covid-19 afetou o mundo inteiro de variadas formas. Com o universo esportivo não foi diferente. As diversas modalidades, que necessariamente são atividades táteis, presenciais, tiveram de adaptar-se a novas formas para seguirem adiante - e com segurança.

Com mais de um ano de pandemia, os esportes, anteriormente paralisados, voltaram à ativa em novos formatos: ausência de torcida, cuidado com os atletas, novos protocolos de segurança e alteração no calendário das competições.

“A pandemia pode ser considerada um fato social total, conforme o conceito formulado pelo sociólogo francês Marcel Mauss no início do século passado. Isto significa que ela tem impactado as múltiplas dimensões da vida social, incluindo, portanto, a do esporte. O esporte, não resta dúvida, foi atingido sob todos os aspectos: o esportivo, certamente, mas também o econômico, o político, o cultural. Como sempre, diante de situações assim tão extremas, os campos de atividade revelam pontos de fragilidade, bem como a potência de ação dos agentes históricos. Ao mesmo tempo, alguns processos são interrompidos, outros intensificados. O quadro, portanto, apresenta-se bastante nuançado, repleto de possibilidades de novos desenvolvimentos, mas, também, de riscos importantes”, comenta o professor José Paulo Florenzano, do departamento de antropologia da PUC-SP.

O novo protocolo afeta desde os atletas de categorias de base aos atletas de alto rendimento no mundo. A olimpíada, maior festa esportiva do mundo, foi adiada no primeiro momento, mas a incerteza de um fim próximo da pandemia - e de suas consequências -, fez com que o Comitê Olímpico decidisse remarcar os jogos, que acontecerão em Tóquio em julho. No entanto, há muita incerteza com a realização do evento, como avalia Florenzano, “Os Jogos Olímpicos de Tóquio, caso sejam de fato realizados, serão únicos na história do evento. Espectadores reduzidos ao silêncio no estádio e nas arenas, ou, talvez, a proibição pura e simples de espectadores, protocolos de distanciamento social, veto à presença de torcedores estrangeiros,  dentre outras medidas restritivas, constituem alguns dos fatores característicos da paisagem social dos Jogos. De fato, a pandemia converte o que era excepcional - a ausência de público nos estádios - em norma, naturalizando, pouco a pouco, a nova realidade. A interação entre atletas e torcedores, elemento chave de qualquer configuração esportiva, deixa de existir, modificando negativamente a dinâmica do evento. De resto, a própria sociedade japonesa parece temer as consequências da Olimpíada no país, reforçando as incertezas sobre a sua realização”.

Os olhos do mundo inteiro voltaram-se a Tóquio, seja pela grandiosidade e afinidade dos fãs de esportes com o evento, ou a curiosidade em saber como se dará a realização de um tradicional evento em meio ao caos instalado pelo coronavírus.

Os Jogos Olímpicos são, ao lado da Copa do Mundo, o principal e mais aguardado evento esportivo de todo o calendário. Disputados de quatro em quatro anos, eles surgiram nos tempos da Grécia antiga, em meados de 776 a.C., e tinham o objetivo de ser uma celebração religiosa, como forma de homenagear os deuses gregos, e ainda visavam promover uma espécie de integração entre os povos.

Nos primórdios da competição, a única prova disputada era a corrida. Porém, com o passar do tempo, foram adicionadas outras modalidades, como o salto em distância, o boxe, o arremesso de dardos e até a corridas de cavalos. Mais de dois mil anos depois, os Jogos Olímpicos se transformaram e se modernizaram, porém, ainda mantém a sua essência na grande integração do que hoje chamamos de países. Nos dias de hoje, atletas de praticamente todas as nações do mundo representam as cores de suas bandeiras nas 46 modalidades que compõem as Olimpíadas atualmente.

Com um evento deste tamanho e importância, os atletas que sonham em conquistar uma medalha por seus países, necessitam de uma preparação adequada, para conseguirem se classificar nas etapas seletivas de seus respectivos esportes, sendo estas extremamente disputadas.

Para um atleta garantir seu nome na lista final, ele precisa passar pelo chamado Ciclo Olímpico. Ao final de cada Olimpíada, um novo Ciclo se inicia para os atletas de todas as modalidades, e através de diferentes torneios, provas classificatórias e posições nos rankings de cada esporte, é determinado quem terá a oportunidade de disputar os Jogos Olímpicos seguintes.

“Durante esse ciclo inteiro, eu acabei treinando aqui na cidade de Frascati, na Itália e aqui a situação é diferente”, comenta o esgrimista gaúcho Guilherme Toldo, de 28 anos, que irá representar o Brasil em Tóquio, na terceira Olimpíada da sua carreira. “Eu consegui ter liberação para ter acesso a sala e manter os treinamentos, obviamente, com várias restrições de horário, de acesso a determinadas áreas da sala, de usar máscara durante o treinamento inteiro", completa ele.

Os Ciclos Olímpicos variam para cada modalidade, em que alguns são decididos com um bom tempo de antecedência dos jogos, outros são definidos cerca de um mês antes. Porém, todos têm um fato em comum: demandam uma grande preparação e concentração daqueles que pretendem disputar a competição.

 

O esgrimista Guilherme Toldo.
O esgrimista Guilherme Toldo. Foto: Reprodução/Instagram

 

A cada dia que passa, os Jogos Olímpicos de Tóquio se aproximam, e todo o esforço realizado e adversidades enfrentadas, estão prestes a serem finalmente recompensados.

“Eu acredito que, da mesma forma que vou fazer o máximo possível para respeitar as regras de segurança, eles vão fazer o máximo para que essas regras sejam respeitadas”, diz Toldo, com a ansiedade lá em cima. O esgrimista, que ficou em oitavo lugar no último Grand Prix de Doha, conclui: “As expectativas em relação aos Jogos são as melhores”.

Apesar da ansiedade dos atletas e todos os protocolos detalhadamente planejados pelo COI em parceria com o governo japonês, uma nova onda do coronavírus parece assombrar os planos olímpicos novamente. Nesta sexta-feira (23), há exatos três meses da data de abertura da competição, Tóquio e outras três regiões do Japão declararam um novo estado de emergência, devido ao aumento no número de casos confirmados da Covid-19.

Contudo, ainda nesta sexta-feira (23), o Governo Federal determinou que todos os atletas brasileiros que participarão das Olimpíadas devem ser vacinados antes da competição. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) deve enviar ao Ministério da Defesa uma lista com os nomes dos integrantes da comitiva que irão ao Japão. Com atletas, comissão técnica e outros colaboradores, estima-se que a lista deve ter cerca de duas mil pessoas. Ainda não há informação exata das datas de imunização.

Os efeitos da pandemia podem ser ainda maiores em categorias que, de praxe, já quase não possuem apoio ou patrocínio. José Paulo Florenzano considera: “as paralisações recorrentes nas competições modificam a dinâmica instituída nos clubes, nas equipes, nos atletas. Quebra-se o ritmo, perde-se o condicionamento, aumenta a chance de contusão, para citarmos alguns aspectos do problema. No caso dos clubes, as interrupções implicam a diminuição no fluxo de caixa alimentado pelas transmissões”.

Ainda sobre as modalidades invisibilizadas, Florenzano complementa: “diminuem também as contratações de atletas, as transferências internacionais, sempre motivo de atração para os torcedores. Cria-se um círculo negativo que atinge o campo esportivo como um todo. As agremiações marcadas por problemas de gestão, por sua vez, tornam-se mais vulneráveis diante das consequências acarretadas pela pandemia. Inclusive porque o poder de investimento de muitas empresas patrocinadoras parece diminuir, uma vez que elas também estão sendo atingidas pela crise econômica global”.

O futebol feminino, com um histórico de invisibilidade e proibição no Brasil, é um exemplo. No último dia 14 de abril, o decreto-lei 3.199 baixado pelo presidente Getúlio Vargas em 1941, que proibia as mulheres de jogar futebol, completou 80 anos. O decreto-lei vigorou por 42 anos, até o futebol feminino passar a ser devidamente regulamentado em 1983.

No entanto, mesmo regulamentada há quase 40 anos, a categoria ainda enfrenta dificuldades e está longe de ser equiparada ao futebol masculino. Um exemplo claro são os salários; o maior deles entre os jogadores que disputam o Campeonato Brasileiro, gira em torno de R$1.5 milhão, já entre as jogadoras que disputam o mesmo torneio, o teto não alcança R$20 mil.

Time Feminino do Red Bull Bragantino
Time Feminino do Red Bull Bragantino / Foto: Jornal em Dia

 

Em novembro de 2020, a FIFPRO (Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol), divulgou uma pesquisa feita em 62 países, visando captar os desdobramentos da pandemia no futebol feminino. 

Essa pesquisa revelou que atletas do mundo vem sofrendo as consequências da pandemia como falta de salários, perda de emprego e falta de suporte para saúde física e mental das atletas.

Em 47% dos países pesquisados as jogadoras tiveram salários suspensos ou cortados e em 40% dos países, as jogadoras não receberam suporte de saúde física ou mental. Listamos abaixo os principais dados da pesquisa:

Salários e benefícios: a pandemia provocou cortes de salários generalizados e rescisões contratuais no futebol feminino.

Apoio à saúde: Há deficiências generalizadas no nível de apoio à saúde física e mental das jogadoras durante a pandemia.

Alguns dados positivos também foram apontados durante a pandemia. A FIFA divulgou que as transferências internacionais no futebol feminino tiveram um aumento significativo de mais de 60% entre 2018 e 2021.

Um dos principais fatores para esse crescimento significativo, foi a ótima repercussão que a Copa do Mundo de 2019 teve entre os fãs do esporte, que acabou por atrair novos investimentos para a categoria. No entanto, após o início da pandemia, a janela de 2021 obteve queda nas transferências.

Tabela de transferência entre 2018 e 2021.

 

Priscila Andrade, jogadora do Red Bull Bragantino, relata como tem sido sua rotina no último ano e destaca o apoio significativo que o clube vem oferecendo às jogadoras mesmo em meio a pandemia: “a principal diferença está ligada aos protocolos e cuidados redobrados que agora precisamos ter não só no âmbito profissional, mas também pessoal, o futebol feminino vem em uma crescente estrutural e mesmo com a pandemia, a maioria dos clubes mantiveram seus compromissos. Recebemos todo o suporte necessário do clube mesmo em meio à pandemia. Nada foi afetado, pelo contrário, mesmo em alguns períodos onde os treinos precisaram ser suspensos por medidas de segurança, o clube sempre manteve seu compromisso com todos”.

O Red Bull Bragantino é um dos clubes brasileiros que vem aumentando o suporte à categoria feminina. Em 2020, também numa tentativa de redução na discrepância entre as modalidades, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), anunciou que as premiações para atletas das seleções masculina e feminina serão iguais. A equiparação entre os gêneros no futebol tem sido construída gradativamente, Priscila acredita que o investimento pode surtir efeito a longo prazo, “às categorias de base vem sendo fundamentais para o surgimento de atletas novas e talentosas, porém, acredito que falta um pouco mais de estrutura para aumentar mais o índice de captação dessas meninas enquanto estão novinhas, para que assim tenham tempo suficiente de serem trabalhadas, chegando no profissional preparadas, em todos os aspectos, para integrar suas equipes”.

É notável a crescente midiatização da modalidade. Jogos femininos têm sido cada vez mais transmitidos em grandes emissoras de televisão, jogadoras têm recebido patrocínio e estrelado grandes campanhas. A progressiva visibilidade, e a continuidade dos campeonatos femininos mesmo em meio a pandemia, traz esperança a clubes e atletas de que o futuro da modalidade é de amadurecimento e consolidação, destaca Priscila: “acredito que atletas e comissões técnicas estarão ainda mais conscientes e preparados, já que essa pandemia fez com que todos se reinventassem de acordo com as circunstâncias”.

No entanto, os cenários pós-pandêmicos, assim como em todo o mundo, é incerto no futebol feminino. Combater e manter os cuidados e protocolos necessários na pandemia, serão fatores decisivos para conquistar a estabilidade futura no esporte. A maneira em que atletas, clubes e organizações se comportarem neste período, definirão os passos seguintes e o futuro do esporte mundial.

Tags:

Esportes

path
esportes

Saúde

path
saude